sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Nathalia Lima (Poesias Avulsas)


COISAS DE DENTRO

Existe um sem fim de coisas em meu átrio
Sinto-me a qualquer momento implodir
Constantemente absorvo
Raramente disperso
Há de se fazer drenagem em mim.

Um engarrafamento de ideias...
Isso fará minha cidade interna eclodir, mas
Em meio a tanta percepção desvairada
É muito que capaz que eu vá submergir.

Que no submerso reconheça minha gente
Que no submerso enfim ouça minha voz
E que nos meus átrios de volta encontre
As flores e livros que daqui guardei.

Pouco menos que palavras há em mim agora
Finalmente posso descansar.

CIRCULAR

Tão rotunda quanto puder me encontrar
Circularmente meus pensamentos parecem viver
Em mundo inconstante meu cérebro decide morar
E em desalento a realidade decide sobreviver
Quem espera moradas tranquilas?
O bicho do consciente
Quem aguenta torrões de emoções?
O sábio do inconsciente
Chega mais perto loucura
Redundante circulação do pensamento
Disposição pra sofrer da emoção
Espero impaciente o cumprimento
da razão que pode existir em um coração.

Fonte:
http://anathalialima.blogspot.com/

Teatro de Ontem e de Hoje (Lua de Cetim)


Espetáculo baseado em texto de Alcides Nogueira e encenação de Marcio Aurelio, realização bem-sucedida que alia poesia cênica à preocupação sociopolítica. 

O texto ambienta os atos intervalados por década: 1961, 1971 e 1981, flagrando a vida de uma família interiorana. O pai é um pequeno comerciante de tecidos; a mãe, uma modesta dona de casa; o filho aparece na infância e na juventude, transformando-se em estudante universitário e membro da guerrilha urbana, acompanhado da namorada Marisa.

Ao contrário de seus textos anteriores, calcados sobre procedimentos vinculados às vanguardas, Alcides Nogueira faz aqui um exercício de realismo. O enredo privilegia as figuras do pai e da mãe, seus conflitos e felicidades de marido e mulher, esperanças e desassossegos típicos de quem vive tempos atribulados e sempre à beira do precipício. Aproveitando largamente as possibilidades dos papéis, Umberto Magnani e Denise Del Vecchio alcançam grandes interpretações, merecedoras de prêmios e indicações. Elias Andreato e Júlia Pascale encarregam-se dos jovens, bem menos destacados na trama, assim como o garoto Ulisses Bezerra, participante apenas do primeiro ato.

A encenação de Marcio Aurelio é sóbria, discreta, deslocando para os desempenhos do casal central a ênfase da montagem. Sua cenografia é funcional, assim como a iluminação, adequadamente fornecendo os climas requeridos pela ação.

Em seu comentário, o crítico Sábato Magaldi destaca aquilo que lhe parece o melhor da montagem: "A sensibilidade é o traço dominante na encenação de Marcio Aurelio. Ela valoriza a verdade interior, as reações abafadas, os subtendidos sutis. A rigor, ele não soluciona apenas as mudanças de ambiente, que rompem o clima criado. Esse é, aliás, um dos problemas que permanentemente desafiam a imaginação dos diretores. Umberto Magnani aproveita a melhor oportunidade que teve como ator e vive um Guima comovido, mentindo-se no fracasso e bebida, marcado pela tragédia. Denise Del Vecchio apaga a sua juventude para metamorfosear-se em Candelária, incorporando das maneiras ao sotaque interiorano. Elias Andreato (Júnior) faz o estudante sem nenhum cacoete, humanizando o relacionamento com os pais. Júlia Pascale (Marisa) não se perde num papel ingrato".1

Notas

1. MAGALDI, Sábato. Uma visão terna de confronto, cicatrizes e frustrações de uma vida menor. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 18, 27 nov. 1981.

Fonte:

Afonso José dos Santos (Jardim Velho)


Concurso de Poesias da Biblioteca Municipal João XXIII, de Moji Guaçu
Fonte:
http://caeseubt.blogspot.no/

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 3


V

O COMBATE

Desabava a tempestade, que desde o transmontar do sol estava iminente sobre a costa.

Passaram algumas lufadas rijas e ardentes: eram as primeiras baforadas da procela. Pouco depois caiu a refega impetuosa e cavou o mar, levantando enormes vagalhões.

Aires até ali bordejava com os estais e a bujarrona, entre as Ilhas dos Papagaios e a do Breu, mascarando a balandra de modo a não ser vista da escuna, que passava ao largo com as gáveas nos rizes.

Ao cair da refega porém, mandou Aires soltar todo o pano; e meter a proa direita sobre o corsário.

- Cheguem à fala, rapazes, gritou o comandante.

Cercaram-no sem demora os marujos.

- Vamos sobre a escuna com a borrasca, desarvorados por ela, traquete roto e o mais pano a açoitar o mastro. Percebeis?.

- Se está claro como o sol!

- Olhai os arpéus, que não nos escape das garras o inimigo. Quanto às armas, aproveitai este aviso de um homem que ele só a dormir entendia mais do ofício, que todos os marítimos do mundo e bem acordados. Para a abordagem não há como a machadinha; apunhada por um homem destemido, não é arma, senão braço e mão de ferro, que decepa quanto se lhe opõe. Não se carece de mais; um cabide d'armas servirá para a defesa, mas para o ataque, não. 

Proferidas estas palavras, tomou Aires a machadinha que lhe fora buscar um grumete e passou-a na cinta sobre a ilharga.

- Alerta, rapazes; que estamos com eles.

Nesse momento, com efeito, a balandra acabando de dobrar a ponta da ilha estava no horizonte da escuna e podia ser avistada a cada instante. A advertência do comandante, os marujos dispersaram-se pelo navio, correndo uns às vergas, outros às enxárcias e escotas de mezena e traquete.

No portaló Aires comandava uma manobra, que os marinheiros de sobreaviso executavam ás avessas; de modo que em poucos momentos farrapos de vela estortegavam como serpentes em fúria, enroscando-se ao mastro; levantava-se de bordo medonha celeuma; e a balandra corria em árvore seca arrebatada pela tempestade.

Da escuna, que singrava airosamente, capeando à refega, viram os franceses de repente cair-lhes sobre como um turbilhão, o barco desarvorado, e orçaram para evitar o abalroamento. Mas de seu lado a balandra carregara, de modo que foi inevitável o choque.

Antes que os franceses se recobrassem do abalo produzido pelo embate, arremessavam-se no tombadilho da escuna doze demônios que abateram quanto se interpunha à sua passagem. Assim varreram o convés de proa a popa.

Só aí encontraram séria resistência. Um mancebo, que pelo trajo e aspecto nobre, inculcava ser o comandante da escuna, acabava de subir ao convés, e precipitava-se contra os assaltantes, seguido por alguns marinheiros que se haviam refugiado naquele ponto.

Mal avistou o reforço, Aires que debalde buscava com os olhos o comandante francês, pressentiu-o na figura do mancebo, e arrojou-se avante, abrindo caminho com a machadinha.

Foi terrível e encarniçada a luta. Eram para se medirem os dois adversários, na coragem como na destreza. Mas Aires tinha por si a embriaguez do triunfo que obra prodígios, enquanto o francês sentia apagar-se a estrela de sua ventura, e já não combatia senão pela honra e pela vingança.

Recuando ante os golpes da machadinha de Aires, que relampeava como uma chuva de raios, o comandante da escuna, acossado na borda, atirou-se da popa abaixo, mas ainda no ar o alcançara o golpe que lhe decepou o braço direito.

Um grito de desespero estrugiu pelos ares. Soltara-o aquela mulher que lá se arroja para a popa do navio, com os cabelos desgrenhados, e uma linda criança constrangida ao seio num ímpeto de aflição.

Aires recuou tocado de compaixão e respeito.

Ela, que chegara à borda do pavês de ré precisamente quando o mar rasgava os abismos para submergir O esposo, tomou um impulso para arrojar-se após. Mas o pranto da filha a retraiu desse primeiro assomo.

Voltou-se para o navio, e viu Aires a contemplá-la mudo e sombrio; estendeu para ele a criança, e depondo-lha nos braços, desapareceu, tragada pelas ondas.

Os destroços da tripulação da escuna aproveitavam-se da ocasião para atacar á traição Aires, que eles supunham desprecatado; porém o mancebo apesar de comovido, percebeu-lhes o intento, e cingindo a criança ao peito com o braço esquerdo, marchou contra os corsários, que buscavam nas vagas, como seu comandante, a última e falaz esperança de salvação.

VI

A ÓRFÃ

O dia seguinte, com a viração da manhã, entrava galhardamente a barra do Rio de Janeiro uma linda escuna, que rasava as ondas como uma gaivota.

Não fora sem razão que o armador francês ao lançar do estaleiro aquele casco bem talhado com o nome de Mouette, lhe pusera na popa a figura do alcíon dos mares, desfraldando as asas.

À popa, na driça da mezena, tremulavam as quinas portuguesas sobre a bandeira francesa arreada a meio e colhida como um troféu.

No seu posto de comando, Aires embora atento à manobra, não podia de todo arrancar-se aos pensamentos que de tropel lhe invadiam o espírito, e o disputavam com irresistível tirania.

Fizera o mancebo uma presa soberba. Além do carregamento de pau-brasil com que sempre contara, e de um excelente navio mui veleiro e de sólida construção, achara a bordo da escuna avultado cabedal em ouro, quinhão que ao capitão francês coubera na presa de um galeão espanhol procedente do México, e tomado em caminho por três corsários.

Achava-se pois Aires de Lucena outra vez rico, e porventura mais do que o fora; deduzida a parte de cada marujo e o preço da balandra, ainda lhe ficavam uns cinqüenta mil cruzados, com os quais podia continuar por muito tempo a existência dissipada que levara até então.

Com a riqueza, voltara-lhe o prazer de viver. Naquele momento respirava com delícia a frescura da manhã, e seu olhar afagava amorosamente a pequena cidade, derramada pelas encostas e faldas do Castelo.

Apenas fundeou a escuna, largou Aires de bordo, e ganhando a ribeira, dirigiu-se á casa de Duarte de Morais.

Encontrou-o a ele e a mulher à mesa do almoço; alguma tristeza que havia nessa refeição de família, a chegada de Aires a dissipou como por encanto. Era tal a efusão de seu nobre semblante, que do primeiro olhar derramou um doce contentamento nas duas almas desconsoladas.

- Boas-novas, Duarte!

- Não carecia que falásseis, Aires, pois já no-lo tinha dito vosso rosto prazenteiro. Não é, Úrsula?

- Pois não fora?... O Senhor Aires vem que é uma páscoa florida.

- E não lhe pareça, que foram páscoas para todos nós.

Referiu o mancebo em termos rápidos e sucintos o que havia feito nos dois últimos dias.

- Aqui está o preço da balandra e vosso quinhão da presa como dono, concluiu Aires deitando sobre a mesa duas bolsas cheias de ouro.

- Mas isto vos pertence, pois é o prêmio de vosso denodo. Eu nada arrisquei senão algumas tábuas velhas, que não valiam uma onça.

- Valiam mil, e a prova é que sem as tábuas velhas, continuaríeis a ser um pobretão, e eu teria a esta hora acabado com o meu fadário, pois já vos disse uma vez: a ampulheta de minha vida é uma bolsa; com a derradeira moeda cairá o último grão de areia.

- Porque vos habituastes à riqueza; mas a mim a pobreza, apesar de sua feia catadura, não me assusta.

- Assusta-me a mim, Duarte de Morais, que não sei que há de ser de nos quando se acabar o resto das economias! acudiu Úrsula.

- Bem vedes, amigo, que não deveis sujeitar a privações a companheira de vossa vida, por um escrúpulo que me ofende. Não quereis reconhecer que esta soma vos é devida, nem me concedeis o direito de obsequiar-vos com ela; pois sou eu quem vos quero dever.

- A mim, Aires?

- Faltou-me referir uma circunstância do combate. A mulher do corsário francês arrojou-se ao mar, após o marido, deixando-me nos braços sua filhinha de colo. Roubei a essa inocente criança pai e mãe; quero reparar a orfandade a que voluntariamente a condenei. Se eu não fosse o estragado e perdido que sou, lhe daria meu nome e a minha ternura!... Mas para um dia corar da vergonha de semelhante pai!... Não! Não pode ser!...

- Não exagereis vossos pecados, Aires; foram os ardores da juventude. Aposto eu que já vão arrefecendo, e quando essa criança tornar-se moça, também estareis de todo emendado! Não pensas como eu, Úrsula?

- Eu sei!... Na dúvida não me fiava, acudiu a linda carioca.

- O pai que eu destino a essa criança sois vós, Duarte de Morais, e vossa mulher lhe servirá de mãe. Ela deve ignorar sempre que teve outros, e que fui eu quem lhos roubei. Aceitem pois esta menina, e com ela a fortuna que lhe pertencia. Tereis ânimo de recusar-me este serviço, de que preciso para repouso de minha vida? 

- Disponde de nós, Aires, e desta casa.

A um apito de Aires; apareceu o velho Bruno, carregando nos braços como uma ama-seca, a filha do corsário. Era um lindo anjinho louro, de cabelos anelados como os velos do cordeiro, com os olhos azuis e tão grandes, que lhe enchiam o rosto mimoso.

- Oh! que serafim! exclamou Úrsula tomando a criança das mãos rudes e calosas do gajeiro, e cobrindo-a de carícias.

Nessa mesma noite o velho Bruno por ordem do capitão regalava a maruja na taberna do Simão Chanfana, ao Beco da Fidalga.

Aires ai apareceu um momento para trincar uma saúde com os rapazes.
-----------
continua

Soares de Passos (Catão)


Como em tarde anuviada
Em tarde de negros véus.
Para a terra contristada
Sorri o íris dos céus;
Mas quando o sol esmorece,
O íris desaparece,
Tudo é negra escuridão;
O mar ruge e se encapela,
E nas asas da procela
Corre bramindo o trovão:

Tal ao sol da liberdade
Que sobre Roma luziu,
Qual íris em tempestade,
Catão à pátria sorriu.
Mas esse astro que fulgente
Das águias brilhara à frente,
Do Capitólio baixou;
E ele, o íris da bonança,
Ele, de Roma a Esperança,
Com seu fulgor expirou.

Contra as iras da tormenta
Ó forte lutaste em vão:
Que pode a virtude isenta
Contra a geral corrupção?
Já não luziam virtudes
Como nos séculos rudes
Dessa Roma consular;
O templo da tirania
A seus ministros abria
As portas de par em par.

Inda infante, viste Mário
De Roma o sangue beber;
E envolvida num sudário
A pobre Itália gemer.
Viste Sila, o monstro infando,
Entre as cabeças folgando,
Qual tigre, no seu festim;
E, infante, bradaste ufano:
– Dai-me um ferro, e o tirano
Livremos a pátria enfim! –

Não to deram: que lucrava
O teu valor juvenil?
Dum tirano outro brotava,
Nascia a guerra civil.
Enxuto de Roma o pranto,
Eis que envolto em negro manto
Lá surge um conspirador:
Cintila a morte, a ruína
No punhal de Catilina,
De Catilina, o traidor,

Surge, víbora gerada
Dos vícios do lodaçal!
Sobre Roma descuidada
Lança o veneno fatal!
Eia, empunha o facho ardente!
Entrega a pátria inocente
Aos punhais da tua grei!
E entre o sangue, à luz do incêndio,
Num trono de vilipêndio
Vem sentar-te como rei!

Mas treme! lá soa o brado
De Marco Túlio, orador.
Treme! Catão no senado
Já dos teus vence o furor.
Sucumbiste, algoz ferino!
Oh! mas vinga-te o destino
Que Roma jurou perder.
Catão, cobre-te de luto,
Que da Gália já escuto
A guerra civil descer.

Gerou-a o triunvirato,
Esse monstro d'ambição;
Que as eras de Cincinato,
Essas eras já lá vão.
D'olhos fitos sobre a Itália
Eis desce o leão de Gália,
E Arimino já tomou.
É César! ei-lo que assoma:
Abre-lhe as portas, ó Roma,
Que às tuas portas chegou!

Ei-lo parte, e já na Espanha
Os três legados venceu!
Só em Dyrrachio lhe ganha
A espada do grão Pompeu.
Os mortos jazem aos centos:
Sobre os seus restos sangrentos
Um homem chora: é Catão.
É ele que ali deplora
Essa guerra assoladora,
Guerra d'irmão contra irmão.

A liberdade expirava:
O coração lho prediz.
Roma, a livre Roma escrava
Ia dobrar a cerviz.
Não se enganou: lá troveja
O fragor d'alta peleja
Em Farsália inda uma vez;
Pompeu vacila e fraqueia;
A liberdade baqueia
De Júlio César aos pés.

Ei-la que expira, ei-la morta...
Oh! que não! ressurge além!
Catão é vivo: que importa
Quanto César ganho tem?
De Farsália aos naufragantes
Sobre as areias distantes
Da Líbia surge um fanal:
São dele, dele as bandeiras
Juntando as rotas fileiras
Para um combate final.

Mas César lá corre ovante,
Vence Juba e Cipião;
Tudo ante ele vacilante
Se prostra enfim maldição!
Não tarda a hora funesta:
De liberdade só resta
Dentro d'Utica um fulgor.
Inda Catão lá impera:
É lá que o vencido espera
As iras do vencedor.

Que venha, que ao seu aceno
Curvado não há-de ver
Aquele rosto sereno,
Que nunca soube tremer.
Caminha, César altivo,
E acharás em teu cativo,
Em vez de preito, o desdém!
Sabes vencer, porém corre
Vem saber como se morre,
Aprende a morrer também!

Catão, Catão, eis chegado
O momento de partir!
Com que rosto sossegado
Te vejo à morte sorrir!
Antes do golpe supremo
Tu paras inda no extremo
A meditar com Platão:
Assim a águia alterosa
D'alta penha cavernosa
Mede sublime a amplidão.

E depois, assim como ela,
Das nuvens rompendo o véu,
Adeja sobre a procela,
Deixa a terra, e busca o céu:
Tal coa dextra sempre ousada
Cravando no seio a espada,
Partiste d'alma os grilhões;
E dentre os vaivéns da sorte
Voaste, calcando a morte,
Às etéreas regiões.

César vence, e ao Capitólio
Lá sobe triunfador;
Roma cai do altivo sólio,
Rojando aos pés dum senhor.
Catão, o livre, expirara...
No suspiro que exalara
A liberdade voou.
Começava o negro império
Que um Calígula, um Tibério,
Um Nero, monstro, gerou.

Ele, entanto, sepultado
Nas praias junto do mar,
Lá dormia descansado
Sob a lájea tumular.
Ali a queixosa vaga
Vinha, rolando na plaga,
Beijar do livre a mansão;
E inda falar com saudade,
Da pátria, da liberdade,
à estátua de Catão.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

José Roberto Torero (Tadeu x Maria Angélica)


À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais. 

No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas talvez isso só acontecesse porque os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras.

Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças.

As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio.

Tadeu comprou um uniforme azul e amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca.

Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus times acertavam um lance, nem zombar do outro quando a equipe adversária cometia algum erro.

O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: "Gooooooooool!".

E assim mesmo, com dez letras "o". 

Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava "Ê, ô, ê, ô, o meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor".

Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou:

- Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho!

- Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo?

- E do casamento. Você pisou na bola!

- Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola.

- Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio!

- Calma, eu não quero tirar o time de campo.

Vamos tentar um segundo tempo...

- Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti.

Pode ir para o chuveiro!

- Quem sabe uma prorrogação? 

- Não. Fim de jogo.

Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse: 

- Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me deixa muito triste, porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento... eu jogava por amor... 

Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem. Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo.

Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: 

"Ê, ô, ê, ô, nosso amor é um terror!"

- Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e viveram felizes para sempre.

Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Nilto Maciel (A Melhor Notícia)


A morte é a melhor notícia, até para alguns mortos, que logo depois confirmarão o fato nos jornais. Uns deixam a confirmação para o dia subsequente, a semana seguinte, mais um mês. Outros nunca dão a confirmação, sumidos nos mares, nas montanhas, florestas. São os desaparecidos. Os vivos nem ficam sabendo se aconteceu mesmo a morte: onde está o corpo? Ninguém sabe. Terá morrido de verdade? Só acredito vendo.

                   A morte é a melhor notícia. Se for morto importante, os donos dos jornais, das rádios e televisões riem à toa. As edições são reduplicadas. As manchetes tomam todas as primeiras páginas. Estampa-se imensa foto colorida do defunto. Televisões e rádios passam dias repetindo a morte súbita da autoridade, do cantor, do rico. Espicham a notícia noite afora. Fazem da morte uma novela interminável. Capítulo XX: “Como caiu o avião. Destroços em alto mar. Tubarões sedentos de sangue.”  

                   Templos se lotam no dia do enterro. Gente de todos os bairros disposta a chorar rios de lágrimas e rezar todas as orações pelo morto. No velório choram, gritam, morrem, tentam beijar a testa enrijecida. Os parentes a amigos do falecido se vestem de preto e cobrem os olhos com óculos escuros. Muitos desmaiam, as câmeras de televisão focalizam o instante crucial da dor do desconhecido.  

                   A caminho do cemitério, multidões saem às ruas, debruçam-se nas janelas, sobem aos viadutos. Nas casas, ruas, fábricas e bancos todos lamentam a morte do fulano. Comoção geral, feriado nacional, bandeira a meio-mastro, música fúnebre nas emissoras. Vende-se tudo nas ruas: bandeirolas, fitinhas, bandeiras do time de futebol pelo qual torcia o morto. Fofoqueiros têm motivos de sobra para conversar e passear. Nas filas, nas esperas, nos passeios, nas praças o assunto é um só: a morte de fulano. Há descobertas sensacionais: o extinto amava uma francesa nova, enquanto a esposa velha lamentava.

                   Na missa de sétimo dia, se o morto tiver sido católico, a notícia precisa ser renovada. O falecido está caindo no esquecimento. Se for cantor, compositor, tocam-se suas músicas mais conhecidas. Nas lojas aumentam-se os preços dos produtos. Os jornais publicam pôsteres coloridos: fotos de quando o fulano ou a fulana tinham 20 anos.

                   Inspiração também a morte dá: poetas fazem versos lamentosos com a palavra morte e a palavra vida. Repentistas aparecem de repente nas praças, tocando e cantando homenagens ao defunto. 

                   Todos lucram com a morte. O anônimo coveiro finalmente é entrevistado, com direito a voz e a inventar lendas; o vendedor de velas se ilumina; o jornaleiro grita emocionado; a rezadeira chora por quem foi. 

                   A morte é a melhor notícia. A morte inventa mitos, lendas, sagas, cria religiões, funda igrejas. Cristo morreu; o Cristianismo nasceu. A morte acaba guerras. Depois de Hitler, a paz. A morte acaba eras. Sem Nero, Roma se livra dos incendiários. Decapitaram Conselheiro, desapareceu Canudos. A morte acaba ciclos. Mataram Lampião, acabou-se o cangaço. A morte inicia eras. Um tiro em Vargas dá início à era pós-Vargas.  

                   Se o morto for pobre, anônimo, seus parentes e amigos lamentarão: Tão bom, mas Deus assim o quis. Os privilegiados serão notícia no obituário ou na página policial.

                   Quando queimaram um índio em Brasília, o mundo inteiro protestou, embora queimem índios desde Cabral, Hernán Cortés, Pizarro. Queimar mendigo também dá notícia, embora os assassinos nunca sejam encontrados. 

            Se criança morre de fome e sede, nos sertões e nas favelas, a morte não será notícia, mas apenas motivo de estudo e número na estatística. Os pais dirão: Deus quis assim. Dará lugar a outros. Melhor notícia só o nascimento do próximo mortal: José, Maria, Sebastião.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/233

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 19


José Corrêa da Silva Júnior
(Pilar/ AL, 22 janeiro 1893 –  Santos/SP, 9 setembro 1972).

" PUDOR “

Ama-me assim, sem ânsias nem clamores,
sem amostras no olhar de coisa alguma,
num silêncio feliz, num gesto, em suma,
furtivo às aparências exteriores.

Deixa que o teu amor a paz resuma
essas noites propícias aos amores,
em que os gritos das luzes e das cores
ficam velados através da bruma.

Ama-me assim, como se as nossas vidas
duas árvores fossem diferentes,
por desiguais radículas nutridas...

E como se a alegria que abafamos
amargasse nos frutos renascentes
e entristecesse os pássaros nos ramos. . .
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Corrégio de Castro
(sem dados biográficos)

" FLOR DO HELIANTO (GIRASSOL) "

Conheces, certo, aquela flor dourada
que volta a face para o sol nascente
e, tendo a face para o sol voltada,
constante o segue, desde a aurora ao poente.

E já notaste que, se anuviada
a esfera de turquesa não consente
se perceba o astro louro, a flor amada
mesmo sem vê-lo, segue o sol ausente?

Também minha alma é como a flor do helianto.
Desde o instante feliz em que te vi
como tocada de um suave encanto,

- não sei que força estranha que senti -
pois em riso ela esteja, esteja em pranto,
trago-a sempre voltada para ti!
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Cruz e Souza
João da Cruz e Souza,
(Florianópolis/SC, 24 novembro 1862 – Antonio Carlos/MG, 19 março 1898)

" CORPO "
VII

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!

ENCLAUSURADA

Ó Monja dos estranhos sacrifícios.
Meu amor imortal! Ave de garras
e asas gloriosas, triunfais, bizarras,
alquebradas ao peso dos cilícios.

Reclusa flor que os mais revéis flagícios
abalaram com as trágicas fanfarras,
quando em formas exóticas de jarras
teu corpo tinha a embriaguez dos vícios.

Para onde foste, ó graça das mulheres,
graça viçosa dos vergéis de Ceres,
sem que o meu pensamento te persiga?!

Por onde eternamente enclausuraste
aquela ideal delicadeza de haste,
de esbelta e fina ateniense antiga?!

" MAGNÓLIA DOS TRÓPICOS "
                                                 À Araújo Figueredo

Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas,
Ó magnólia de luz, cotovia dos mares,
Formaram-te talvez os brancos nenúfares
Da tua carne ideal, de correções felinas.

O teu colo pagão de virgens curvas finas
É o mais imaculado e flóreo dos altares,
Donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares
Viáticos de amor e preces diamantinas.

Abre, pois, para mim os teus braços de seda
E do verso através a límpida alameda
Onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;

Vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,
No alvoroço febril de um pássaro cantando,
Vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.
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Cruz Oliveira
(Júlio Auto da Cruz Oliveira)
(Maceió/ AL, 5 dezembro 1880 – ????)

" OLHOS "

Olhos! Tantos amei quantos me abandonaram. . .
Tantos cobri de bens, de inefáveis ternuras,
quantos me querem mal, que em lugar me deixaram
de minhas ilusões, desilusões bem duras.

E dizer que os perdoei: que mau grado amarguras
de que venho de encher dias que se passaram,
só lhes desejo o bem das carícias mais puras
- que hoje me apraz perdoar os que me não perdoaram!

E isso me cura um pouco esse desgosto imenso
de amá-los, esse tédio, a fartura, o cansaço
da vida; e me dá mesmo um prazer quando penso

nas vezes em que a sós eles se consideram
e me admiram mais, pelo bem que lhes faço,
do que eles pelo mal que sempre me fizeram.
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Cynthia Castello Branco
(sem dados biográficos)

" PROFANAÇÃO "

Tenho-lhe um ódio quase extravagante
depois de havê-lo amado com loucura...
As vezes penso que se o amor não dura,
tece correntes, mesmo agonizante!

Sinto-me escrava dele e a cada instante
pergunto-me a razão desta clausura! . . .
Talvez porque nascendo é uma ventura,
o amor que morre é sempre vigilante.

Quero afastar os laços que me prendem
ao meu destino, assim como se eu fora
este chão que ele pisa . . . E, entretanto,

garras do Tempo sobre mim se estendem
e é uma vertigem doida, embriagadora,
odiá-lo assim depois de amá-lo tanto!

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Acruche Collection - Trova 10

Imagem com trova obtida no Facebook do Trovadot