domingo, 24 de fevereiro de 2013

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte I

I
Mistério da Casa de Bragança

A NOITE NA TAVERNA


Era por uma triste noite chuvosa, dessas que faz bem gozar quando a gente esta em casa. Lá fora, na rua do Piolho, a chuva argamassava a lama ao ritmo plangente de uma melopéia de cativo. E o vento vinha por ela assoviando, como por um funil, para desembocar imprecativamente no campo da Alampadosa. Dentro, na célebre tasca do Trancoso, a luz tremia vagarosamente nos grandes candieiros de azeite de peixe. Dava um lúgubre aspecto aquele antro de terra batida para chão, e de paredes escalavradas onde a gaiatice dos fregueses gostava de pintar obscenidades e onde se fazia a carvão a conta complicada dos pichéis.

Fantástico, por detrás do balcão envernizado como um cabo de enxada, o Trancoso erguia o busto na plenitude atlética de seu tórax. Era a grande cabeça barbuda e gadanhenta e, por debaixo da blusa felpuda de vasconço, o peito largo e forte a oscilar numa tempestade de respirações troando muitas vezes o grito estentórico dos apelativos brutais. E, para além na vastidão escura do aposento, por meio dos altos e bojudos tonéis cheios de cartaxo e de aguardente de cana, estavam as pequenas mesas de pau carunchoso, rodeadas de mochos baixos em rodelas de madeira sobre três espeques.

Naquela hora treda da noite, retardavam-se entretanto os fregueses a pretexto de que vinham cansados da procissão ao outeiro da Glória, e de que a chuva vergastava lá fora a quem tinha a audácia de sair. O Trancoso amuava-se, posto que lhe fossem emborcando as bebidas e o cobre lhe caísse pela gaveta adentro com um grande retinir metálico de chocalhar de guizos.

Já fora para ele o tempo dos primeiros açodamentos em juntar os patacões. As moedas de ouro contavam-se aos centos na velha arca escondida debaixo do nauseabundo catre onde dormia. Muito criança ainda, viera de além-mares para essas terras do Brasil, onde o ouro boiava à tona das enxurradas. E, em vez das longas empresas viajantes pelo sertão adentro, preferira o sossego das bodegas onde o dinheiro vinha ter pela lógica fatal das bebedeiras. Agora, diziam-no rico, senhor de bastantes haveres e traficante até das galeras que iam buscar o negro ao vasto deserto branco das plagas africanas.

Enriquecera principalmente depois da chegada de d. João VI, quando a real comitiva de fidalgos se derramara pela velha cidade de Mem de Sá, com uma enorme praga de orgias e depredações. Fazia-se modesto, rindo com bom sorriso galhofeiro, quando alguém alevantava o valor de suas fazendas. Dizia que não! que mais luzia do que havia!

Mas não andava disposto para as longas vigílias da taverna no serviço de borrachos retardados. E, naquela noite, já por três vezes tentara despedir a freguesia. Os fregueses bebiam, monossílabos raros e sonolentos ouviam-se apenas de espaço a espaço. E o barulho contínuo da água, regular e metódico na tristeza da noite.

O Trancoso principiava a cochilar, quando a porta se abriu de repente: uma lufada sacudiu violentamente os velhos candieiros, que rangeram nas correntes de ferro. E leve, rápido como o vento que o trouxera, d. Álvaro Bias saltou no meio da sala, gotejante como uma biqueira de telhado.

Saltou, parou, e mirou-se. No chão, em roda dos sapatos puídos de d. Bias, formou-se logo uma poça d'água. D. Bias, magro e esgalgado, no velho gibão de veludo sem pêlo, parecia um guarda-chuva fechado, depois de um aguaceiro formidável.

D. Bias, fidalgo espanhol da mais pura linhagem, perseguido pelos credores e pelos alguazis em todas as bodegas das margens dos Mansanares, pulou um dia a fronteira e foi tentar a vida em Portugal. Não houve serão de convento que não procurasse - em vão! - saciar-lhe a fome secular: o primeiro avô conhecido de d. Bias era tenente de Cid Campeador, e entrava em combate com um alforje às costas, carregado de olla podrida. A família de d. Bias não era uma família: era a arvore genealógica da fome.

Em Portugal, d. Bias comeu, d. Bias bebeu. Com esses predicados, ganhou as boas graças de d. João VI, que em 1808 o trouxe com sua corte para o Brasil.

Este D. Bias, segundo reza a crônica, logo que chegou de Lisboa, foi morar na rua do Lavradio, na casa hoje no 40, pertencente a Antônio José Viana, à razão de 8$ por mês, cujo aluguel nunca pagou. E tais tratantices fez, combinado com o desembargador - ouvidor Francisco Alves de Andrade, que se ficou com o prédio e terrenos.

O mesmo praticou com o carpinteiro Custódio Pinto de Oliveira, que lhe não querendo vender dous lotes de terrenos contíguos e que fazem face com a rua, de acordo com a mulher deste Custódio, formou-lhe culpa de mancebia e meteu-o na cadeia em princípio do ano de 1811. D. Bias se ficou com a mulher e a filha de Custódio, e na posse dos bens deste depois do desquite.

Custódio, sem sua mulher e filha, e seus bens, foi viver do jornal que lhe dava o célebre escultor Ângelo Pallingrini, por alcunha o Satanás.

O Trancoso rosnou uma praga, quando o fidalgo lhe apareceu. Mas d. Bias enganchou-se num banco. E, uma vez servido, pôs-se a beber fidalgamente a sua zurrapa, levantando os braços para não emporcalhar na mesa os seus manguitos sujos. A sala recaiu no silêncio. A água continuou a bater, os fregueses continuaram a bebei; o Trancoso continuou a cochilar, e d. Bias, esgotado o pichel, cravou dous olhos compridos e sôfregos no gordo chouriço que fulgurava no balcão.

- Traga outra medida, gritou a voz avinhada de um sujeitinho baixo e gordo, tão baixo que tinha as pernas a oscilar dependuradas do mocho, e tão gordo que parecia um tonel cuidadosamente suspenso do chão para não se estragar com a umidade.

O Trancoso remexeu os ombros num esgar sonolento de desprezo.

- Melhor fariam vocês todos em limpar-me a casa de suas borracheiras! disse. E, depois de uma pausa, acrescentou:

- Demais, por estas horas tardias da noite, eu não vendo mais fiado! Ponham dinheiro no balcão se querem a boa da pinga! Súcia de malandros que a polícia d'el-rei bem devia vir buscar para uma dormida na rua da Vala!

Um belo movimento de solidariedade fez-se então entre toda aquela gente que o Trancoso assim maltratava com o desplante dos homens fortes e enriquecidos pela canalha miúda dos pobretões de gibão esburacado.

E o Carniça - um mulato esguio e de maus bofes, que vivia de sovar os negros nas casas de família - saiu à frente das reclamações.

- Que assim não se tratava à gente séria! gritou esmurrando a mesa onde as garrafas e os copos dançaram.

- Ninguém se teme da polícia d'el-rei! fez d. Bias, fanfarrão, saltando para o meio da bodega com a mão nos copos da espada e um largo gesto arrogante.

- Qual el-rei, nem pêra el-rei! vociferou o Carniça, pondo-se também de pé, muito avinhado e bêbado. - Nós aqui já estamos fartos de aturar toda essa corja portuguesa! Eu cá não faço mistério para gritar: Viva o príncipe regente!

E gritou, com e feito, o grito revolucionário daquele tempo, num grande berreiro forte de convicção popular.

Os outros entreolharam-se, já desarmonizados em pensamento. A questão deslocara-se. Já não era a rusga de uns fregueses retardatários contra um dono de taverna que queria fechar a casa, e não fiava mais. A luz baça e fedorenta dos candieiros que rangiam nas correntes, ofegava agora o hálito quente das revoluções.

- Qual d. Pedro! Mandam as cortes. E ele há de partir para abater a cerviz de vocês outros, canalhas de brasileiros! rosnou o homem-pipa que dera origem à contenda.

Os fregueses dividiram-se em dous grupos. De um para outro voaram imediatamente os copos e as garrafas. E d. Bias, que se ficara no mesmo lugar, entre os contendores, levou o melhor do primeiro arremesso. Rolou até pelo chão quando o Carniça investiu manhoso para tomar-lhe a durindana. E lá do balcão, o Trancoso, abrindo uma larga e forte navalha catalã, veio para o meio do barulho numa neutralidade agressiva de quem queria pôr no olho da rua toda aquela comitiva brigalhona de ébrios esbodegados.

- Que fossem se haver lá para a lama do Piolho!

Nisto, veio de lá de fora um retinir de armas. Ouviu-se um grito de agonia, e mais outro, e mais outro ainda. Correram todos para a porta. Matava-se ali por perto.

E d. Bias, muito lambuzado de poeira e vinho no seu roupão de veludo sem pêlo, ergueu-se e foi para o fundo da casa, aproveitando a confusão do momento para esconder o chouriço por debaixo da camisa.

A porta, todos alongaram os olhos pela noite escura. A chuva estiara um pouco. Sem iluminação, a rua do Piolho desenhava indecisamente os seus perfis de casas baixas. E a alguma distância da taverna, via-se redemoinhar um grupo confuso de homens que se batiam. Mais alto que o tinir das espadas soavam as pragas dos combatentes.

Era positivo que um dos combatentes se defendia de todos os outros, com uma coragem de leão.

Os fregueses do Trancoso ficaram sem movimento contemplando a luta. E Trancoso encolheu os ombros e voltou para seu posto no balcão, rosnando entre dentes que melhor que se matassem todos uns aos outros aqueles vagabundos que tiravam a espada por qualquer patifaria.

Os outros ficaram sem intervir. O Carniça entusiasmou-se: um dos combatentes acabava de cair varado por um bote do que se defendia. E o mulato, diante daquele espetáculo delicioso para seu temperamento de galo de briga, berrou, batendo palmas:

- Aí, bravo!

Os dous agressores perdiam terreno. A espada do desconhecido girava multiplicando os botes, e pondo-lhe diante do peito um muro de aço em que vinham bater inofensivas as armas dos outros dous. Mais um ferido. E o último rodou sobre os calcanhares, fugindo, seguido de perto pelo inimigo.

Nesse momento, d. Bias indignou-se da covardia em que estavam todos, vendo um bater-se com tantos.

- Caramba! não se dirá que um fidalgo de Espanha deixou de ir em auxilio de um fraco!

E abalou de durindana em punho para o lado em que o desconhecido perseguia o fugitivo. Mas o fidalgo viu a sua bravura sem proveito. O desconhecido já vinha de volta, e daí a pouco, quando entrou na tasca, o Trancoso, ao ver-lhe a fisionomia, acercou-se dele com um ar de respeito e carinho. Os fregueses cumprimentaram-no também. Sentou-se a um mocho, e atirando a espada ensangüentada sobre o balcão, ordenou ao taverneiro:

- Limpa isto e dá-me vinho!
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continua

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia IX)

INTERVALO

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer !
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não !

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

NÃO DIGAS NADA!

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Não: não digas nada!

Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha 's'prança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

O MAESTRO SACODE A BATUTA

O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo. e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

Lourenço do Rosário (O Coelho e o Leão)

O coelho e o leão eram amigos.

Um dia, o leão foi a casa do coelho para o convidar a acompanhá-lo a casa dos futuros sogros como seu ajudante.

No fundo, o que o leão queria era humilhar o coelho e acabar de uma vez para sempre com as suas malandrices. O coelho aceitou ir com ele.

No dia combinado, partiram os dois. A meio do caminho, disse o leão apontando para as folhas de um arbusto: "Olha, coelho, se, por acaso, durante a refeição, eu me queimar com a comida e gritar por remédio, já sabes, vens a correr e colhes o que te pedir deste arbusto". O coelho, sem se perturbar, disse que sim. No entanto, tratou de se prevenir porque lhe cheirou logo a uma armadilha. Deixou cair uma faca e continuou viagem com o amigo. Já as casas estavam à vista quando o coelho exclamou: "Oh! mas eu não trago aqui a minha faca. Voltemos para procurá-la". Ele sabia que o leão não aceitaria a ideia de ter de voltar só para procurar pela faca. "Vai sozinho. Não estou para perder tempo indo procurar por uma faca que não se sabe onde a perdeste", respondeu-lhe o leão. O coelho queria exactamente aquilo. Correu logo e foi para junto do arbusto. Cortou folhas, raízes, partes de tronco. Secou algumas folhas, fumou outras e o mesmo fez com o caule e as raízes.

Quando chegou a casa, encontrou o leão a conferenciar com os futuros sogros mais a rapariga pretendida. O coelho chegou a tempo de ouvir o pai da rapariga dizer: "Não pense senhor leão que é o único. Por isso eu darei a minha filha ao pretendente que demonstrar maior esperteza. O tempo que ficar cá há-de estar em constante prova".

Durante o almoço, o leão começou a gritar: "Salva-me amigo". O coelho percebeu logo o que o leão queria, correu e foi buscar tudo quanto tinha trazido do arbusto. Apresentou primeiro as folhas. O leão pediu: "Quero-as fumadas, trouxeste verdes não prestam". O coelho apresentou de imediato as folhas fumadas. O leão percebeu que o coelho não tinha caído na armadilha, mas experimentou pedir cinzas do caule do arbusto. O coelho trazia-as. O leão pediu as raízes cortadas às rodelas. O coelho trazia-as. Ao fim e ao cabo, o coelho trazia tudo quanto o leão quis pedir. Não teve outro remédio senão fazer um chá com tudo aquilo e toma-lo. Enquanto isso, o coelho saboreava a comida dos dois.

À noite, a mãe da rapariga apresentou uma boa esteira e uma casca de árvore. O coelho, que sabia que aquilo fazia parte das provas para casar com a rapariga, aceitou logo a casca de árvore, pensando o leão que aquele gesto era de respeito para com ele. O leão disse para consigo: "Ainda bem que o miúdo aceitou a casca de árvore, assim não se discute quem vai dormir na esteira..."

Durante a noite, enquanto dormiam, a esteira onde se encontrava o leão foi-se transformando em cordas que se enrolavam no leão, manie-tando-o totalmente. O coelho, esse, dormia profundamente na sua casa de árvore.

No dia seguinte, o leão acordou ridiculamente amarrado e envergonhado com a figura que estava a fazer perante a sogra e fugiu para não voltar. O coelho foi recebido como genro e casou com a rapariga.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

João Cabral de Melo Neto (Tecendo a Manhã)

 1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
 ele precisará sempre de outros galos.
 De um que apanhe esse grito que ele
 e o lance a outro; de um outro galo
 que apanhe o grito de um galo antes
 e o lance a outro; e de outros galos
 que com muitos outros galos se cruzem
 os fios de sol de seus gritos de galo,
 para que a manhã, desde uma teia tênue,
 se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
 E se encorpando em tela, entre todos,
 se erguendo tenda, onde entrem todos,
 se entretendendo para todos, no toldo
 (a manhã) que plana livre de armação.
 A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
 que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Esopo (A Raposa e o Bode)

Uma raposa caiu em um poço e foi obrigada a permanecer ali.

Um bode, levado pela sede, aproximou-se do mesmo poço e, vendo a raposa, perguntou-lhe se a água estava boa. E ela, regozijando-se pela circunstância, pôs-se  a elogiar a água, dizendo que estava excelente e o aconselhou a descer.

Depois que, sem pensar e levado pelo desejo, o bode desceu junto com a raposa e matou a sede, perguntou-lhe como sair.

A raposa tomou a palavra e disse:

– “Conheço um jeito, desde que nos salvemos juntos. Apóia, pois, teus pés da frente contra  a parede e deixa teus chifres retos. Eu subo por aí e te guindarei.”

Tendo o bode se prestado de boa vontade à proposta dela, a raposa, subindo pelas pernas dele, por seus ombros e seus chifres, encontrou-se na boca do poço, saltou e se afastou.

Como o bode a censurasse por não cumprir o combinado, a raposa voltou-se e disse ao bode:

– “Ó camarada, se tivesses tantas idéias como fios de barba no queixo, não terias descido sem antes verificar como sair.”

Assim também, é preciso que os homens sensatos primeiro verifiquem o resultado de uma ação antes de pô-la em prática.

A. A. de Assis (A Trova na Imagem II)


Regina Chamlian (O Amigo Secreto)

A turma reuniu-se na sala enfeitada.

Martinha carregava um pacote enorme, cheio de laços. Suzana e Antônio conversavam animados. Mariana pediu para Juju começar a brincadeira. Cada um devia explicar antes porque escolhera o presente para seu amigo secreto.

Quando Juju terminou de falar, um tênis, que mais parecia uma nave espacial, foi parar nas mãos de Felipe. Este contou porque comprou o CD importado para o Luís. Que explicou porque escolheu a bermuda de surfista para o Bruno.

— Bruno! — a turma gritou. — Agora é você!

Bruno pôs-se a falar:

— Bom, pessoal. Na primeira semana de dezembro, tarde da noite, lá em casa, ouvimos um grito de filme de terror.

Todo mundo saltou da cama: "O que foi? O que foi?"

Minha mãe apontou, soluçando: "A ge-la-de-dei-ra!

Ela que-que-brou!"

"O técnico avisou que, se ela enguiçasse de novo, já era", disse meu pai.

"Não faço questão de geladeira", minha irmã falou.

"O que não dá é ficar sem computador."

Aí, minha mãe disse: "Se a gente fosse esquimó, jogava a caça sobre a neve, cobria com gravetos pros lobos não roubarem, e pronto. Mas, em pleno verão brasileiro, geladeira é prioridade. Precisamos comprar uma nova".

"E daí?", minha irmã perguntou.

"E daí que o mesmo dinheiro não sai da mesma carteira duas vezes", disse meu pai.

"Então o computador dançou?!", eu perguntei.

Meu pai respondeu: "O computador e outras coisinhas. Nossa geladeira é dúplex, ela custa mais caro".

"E o presente do amigo secreto", minha irmã lembrou.

"Bolem um presente criativo e que não custe nada", falou meu pai.

— Foi aí que eu tive a idéia — continuou Bruno, abrindo a mochila e tirando de lá um pequeno pacote.

— Espero que meu amigo secreto goste. Ele é o Rafa.

— Aí, Rafa! Vai lá! — gritou a turma.

Rafa começou a abrir o pacote. O silêncio era total.

— Não acredito que você guardou esta foto, cara!

Que idade a gente tinha?

— Mostra! Mostra!

E a foto emoldurada de Bruno e de Rafa, quando tinham 6 anos de idade, foi passando de mão em mão.

O maior sucesso.

— Puxa, Bruno. Só faltou uma coisa — disse Rafa.

— O quê?

— Um abraço, cara. Gosto de você! Bom fim de ano!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 12. Apêndice do Gato

Meu Deus, como a arte de escrever é difícil e como eu faço bem de não escrever senão para mim mesmo! À medida que vou enchendo estas minhas costaneiras de almaço, trezentas coisas que eu dantes não suspeitava, se me apresentam, -pequenos e grandes problemas de composição e de expressão, de lógica e de verdade, de método e de maneira. Enxergando-os, palpando-os, sentindo-os bulir sobre a lauda como insetos descobertos e espicaçados pelo bico da pena, surpreendo-me de os ver tão numerosos e tão estranhos; e gozo um indefinível prazer:

o prazer de não ser obrigado por coisa nenhuma, a atormentar-me com eles. Um exemplo de inadvertência galucha: falando de animais bonitos e nobres, dei a minha preferência, precipitadamente, depois do gato, ao cavalo e ao elefante. Entretanto, seria tão natural que tivesse refletido em que os vertebrados, geralmente, são belos e que os há tão encantadores como aqueles! Tanto mais quanto Remy de Gourmont, nas suas Dissociações, já o fizera notar. Na verdade, só há um animal feio, é o homem. O Esporte, que se aplica em fomentar a beleza física da espécie, tem nesse ponto fracassado, uniformemente, em toda a parte do mundo. Só apresenta indivíduos bonitos quando os colheu da natureza. Belos, sempre muito raros, ele não os revela em maior número do que o simples Acaso. O aspecto ordinário das suas legiões é desencorajante. – Os esportes particulares deformam, dando excessivo desenvolvimento a certas aglomerações musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando o atletismo completo: vão-se com isso criando deformações generalizadas.

Veja-se entretanto um coelho, um veado, uma onça, um porco-do-mato em condições normais de desenvolvimento e saúde: cada qual, dentro dos princípios da sua construção respectiva, é uma obra deliciosa de acerto, de rêussite, de precisão sem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços de esforço nem de intenção, com a corrente naturalidade de um descuido! - Conformação e movimento permanecem dentro de uma lógica infrangível, de uma unidade perfeita, de uma economia necessária, onde cada coisa tem um valor e entretanto, se engolfa e se dissimula na totalidade. Nada que estale, bambeie, descaia, descole, descontinue; um admirável concerto de transições e transformações simultâneas e sucessivas. O jogo das massas e dos contornos perde-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem emerge da precedente como numa espiral de fumo, dissolve-se na seguinte como num caleidoscópio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilidade, afinação, fusão, correnteza, equilíbrio, tudo aquela suprema simplicidade que é o nome familiar da complexidade infinita na perfeição.

Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso de Rufina. A imagem da moça do bonde se interpunha entre mim e os bichos, o som da sua voz golpeava cada momento a membrana fragílima das minhas idéias, os seus gestos rápidos rebentavam a todo instante o meu colar de miçangas. Embalde eu protestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita do que uma leitoa. Embalde eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto como a aranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos de luxo, suspender-me a essas teias, atar as minhas arrobas ao vôo dessas borboletas extraterrenas. E, na verdade, nem agora consigo exconjurar aquele demônio.

Fonte:
Domínio Público

Pe. Antônio Vieira (Sermão da Sexagésima)

O Sermão da Sexagésima foi um dos mais famosos, entre tantos. Foi proferido na Capela real de Lisboa em março de 1655. Através dele, o pregador esmerou-se na retórica, contando com sua memória prodigiosa e rara habilidade no domínio da palavra.

As palavras de Vieira transformaram-no em um orador digno de fé e despertavam nos ouvintes uma paixão transformadora.

O sermão é um todo de 10 pequenos capítulos e é considerado seu mais importante sermão: uma crítica monumental ao estilo barroco, sobretudo ao Cultismo. Como foi pregado na Capela Real, em Portugal, podemos concluir que o auditório era particular, composto por católicos da nobreza portuguesa da época. O autor procura se aproximar do auditório dirigindo-lhe perguntas que ele mesmo, o autor, responde. O autor procurou no sermão a adesão do auditório à sua tese principal de que se não havia conversões em massa ao catolicismo na sua época era por culpa dos pregadores de então.

O tema do Sermão da Sexagésima é a “Parábola do semeador”, tirada do Evangelho segundo São Lucas: Semen est verbum Dei (A semente é a palavra de Deus). Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Vieira resume e comenta a parábola: um semeador semeou as sementes que caíram pelo caminho, pelas pedras ou entre os espinhos. Apenas parte delas caiu em terra boa. Nele Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Traçando paralelos entre a parábola bíblica sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra (que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores contemporâneos seus (e que muito bem caberia em políticos atuais), que pregavam mal, sobre vários assuntos ao mesmo tempo (o que resultava em pregar em nenhum), ineficazmente e agradavam aos homens ao invés de pregar servindo a Deus. Vieira examina a culpa do pregador, considerando sua pessoa, sua ciência, a matéria e o estilo de seus sermões e sua voz.

No Sermão, seu autor interessava saber o motivo de a pregação católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. Sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa, pergunta ele, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Depois de muito argumentar, Vieira conclui que a culpa é dos próprios padres. Eles pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus, afirma. Dito de outra maneira, o jesuíta reclama daqueles que torcem o texto da Bíblia para defender interesses mundanos. No sermão proferido, o Padre também procura criticar a outra facção do Barroco, logo a utilizar o púlpito como tribuna política.

Padre Antônio Vieira, um mestre da persuasão, ensinava que “o sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria”. É a regra daunidade do discurso persuasivo.

Pe. Antonio Vieira empregava diversos elementos de retórica no sermão analisado e podemos afirmar que sua palavra produziu muito fruto, visto que sua obra se mantêm como pensamento válido depois de 300 anos de sua morte.

O assunto básico do sermão, à primeira vista, é a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores. Um olhar mais profundo mostra que o autor vai além do objetivo da catequese, adotando atitude crítica da codificação da palavra. Percebe-se, também, que o Sermão é usado como instrumento de ataque contra a outra facção do Barroco, representada pelos chamados cultistas ou gongóricos.

Em O Sermão da Sexagésima, Vieira expôs o método que adotava nos seus sermões:

1. Definir a matéria.
2. Reparti-la.
3. Confirmá-la com a Escritura.
4. Confirmá-la com a razão.
5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos "argumentos contrários".
6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar.

Nota: O contexto histórico da época do Padre, uma época onde várias atitudes tomadas pelo catolicismo eram apoiadas inclusive pelo próprio poder temporal - já que não é simples separar a Igreja e o Estado português neste momento da história -, como converter almas ao cristianismo.

Nessa época, o mundo assistia a Santa Inquisição atuando a pleno vapor, que inclusive fez visitações ao Brasil colonial nas regiões Nordeste e Norte, além de em outras terras pertencentes ao Império Colonial Português como Angola, Madeira e Açores, e que Goa possuía o seu próprio tribunal do Santo Ofício; também assistia-se a imposição do cristianismo para muitos índios no Brasil; além dos negros africanos que para cá foram trazidos e também foram-lhes imposto o catolicismo.

Considerando o contexto de conversões forçadas da época do Padre Vieira e analisando apenas o sermão que fora pregado em 1655, o padre aparenta ser contra a conversão forçada que imperava no período. No entanto, em alguns sermões ele justifica a escravidão, tanto indígena quanto a negra, com argumentos religiosos, como o de que no juízo final esses escravos terão suas almas salvas, no Céu serão servidos pelo próprio Deus, ou ainda, a comparar o sofrimento dos escravos ao martírio do próprio Cristo.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/s/sermao_da_sexagesima

IV Seletiva para a IV Coletânea Século XXI – 2013 (Prazo: 5 de Março de 2013)

Homenagem (Aceita e Autorizada pela Autora) -
Olga Savary (Belém, 21 de maio de 1933)

É poeta, como gosta de ser chamada, contista, romancista, crítica, tradutora e ensaísta.

Inscrições de 1º de FEVEREIRO a 5 de MARÇO de 2013

(Preferencialmente pela INTERNET ou pelos Correios)

A PoeArt Editora de Volta Redonda RJ, institui a IV Coletânea Século XXI (depois do sucesso da I, II, III e das Antologias Poéticas de Diversos Autores, Vozes de Aço da I A XIII e do livro Cardápio Poético, primeira e segunda edição), para premiar autores de ambos os sexos, maiores de dezoito anos, amadores ou profissionais, somente residentes no país, na categoria: Poesia, em língua portuguesa, tendo como objetivo principal à descoberta de novos autores e o intercâmbio cultural entre os participantes.

SEM TAXA DE INSCRIÇÃO: (ATÉ 3 POESIAS)

Ao efetuar a sua inscrição, o autor estará concordando com as regras do Concurso, e, se selecionado, autorizando a publicação dos trabalhos na IV Coletânea Século XXI – 2013. Em caso de cópia indevida e demais crimes previstos na Lei do Direito Autoral, será responsabilizado judicialmente.

Tema e Apresentação:

- O tema é livre OU HOMENAGEM À AUTORA.

- Cada autor poderá inscrever de uma a 3 poesias (versos livres ou poema com forma fixa), cada uma em uma página, inéditas ou não, máximo de até 30 versos cada, fonte Times New Roman, corpo 12, digitadas somente em um dos lados da folha, onde deverá constar o título de cada poesia. Não é necessário pseudônimo.

- Uma via de cada trabalho, no mesmo envelope, mais um CD (se for enviar pelos correios) com as poesias gravadas e uma foto de perfil recente em alta resolução (que será usada no livro).

- Em anexo um envelope menor, lacrado, sem qualquer identificação do lado de fora, contendo:

- Nome completo, nº do RG, nome do concurso, títulos dos trabalhos, endereço completo, dados biográficos

(no máximo dez linhas), telefone e e-mail.

- As obras que chegarem sem esses dados não serão consideradas inscritas.

- Todos os trabalhos enviados (selecionados ou não) serão incinerados, após a divulgação do resultado.

Forma de Inscrição:
As obras deverão ser enviadas (preferencialmente pela INTERNET para: poearteditora@gmail.com)

ou pelos correios para:
PoeArt Editora: Caixa Postal: 83967 – Cep: 27255-970 – Volta Redonda – RJ.

Premiação:

Os cinco melhores poemas serão publicados sem qualquer ônus na IV Coletânea Século XXI – 2013 –, cada um dos cinco autores premiados receberá 3 exemplares da obra pelos direitos autorais, diploma e a sua foto colorida no livro.

OBS: A partir do 6º trabalho selecionado, os autores serão convidados a participar do livro pelo sistema de cooperativismo, pois serão escolhidos no máximo cem trabalhos de até cinqüenta autores.

Jean Carlos Gomes / Organizador e Editor / Contatos: 24 - 9993-0615 | 33457352 (depois das 18h)

E-mail: poearteditora@gmail.com.br/ poearteditora.blogspot.com

Organização e Realização: PoeArt Editora de Volta Redonda – RJ

Apoiadores: Reprográfica Barrense, Colégio Garra Vestibular, Lex Print – Suprimentos de Informática, Teatro GACEMSS 67 Anos de Cultura, GREBAL – Grêmio Barramansense de Letras, Academias: Barramansenses de Letras e História, Art Nouveau, Val Lourenço – Cabelo e Corpo, Jornais: O Universo, Volta Cultural, Jornal do Interior, MaioIrdade, A Voz da Cidade e Diário do Vale, Clube Foto Filatélico e Numismático de VR – Ponto de Cultura, Zênite Publicidade, Usina Gráfica – Design e Propaganda, Câmara Municipal de VR e Deputado Federal Zoinho.

Fonte:
Clevane Pessoa

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia VIII)

GLOSA

Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor ?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor ?

Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor ?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava ?"

GOMES LEAL

Sangra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmbea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração.
E, erguido , o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas da loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura !

Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura :
É a lua além de Deus, álgida e ignota.

GRANDES MISTÉRIOS HABITAM
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

GUIA-ME A SÓ A RAZÃO

Guia-me a só a razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão ?
Só ela me alumia.

Tivesse quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
<> ?

Como olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão-
Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.

ILUMINA-SE A IGREJA POR DENTRO DA CHUVA
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro ...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste ...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa ...

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Lourenço do Rozário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Leão)

O coelho e o leão eram amigos.

O coelho indicava onde estavam os animais e o leão ia caçá-los.

Um dia disse o coelho: 

- "Sabes amigo, arranjei uma maneira de caçar animais sem precisares de ter de caminhar".

- "Como assim?" perguntou o leão admirado. 

"Olha, na base da montanha é o lugar mais indicado. Tu ficas cá em baixo num lugar que te vou indicar e eu vou lá acima espantá-los. Verás que até os apanhas com os olhos fechados". 

O leão concordou satisfeito e até achou graça a essa de poder apanhar os animais de olhos fechados.

No dia conbinado, lá foram. O coelho colocou o leão num lugar por ele escolhido e foi lá acima onde deslocou uma grande pedra. Esta começou a rolar com estrondo. Quando o pedregulho se aproximou do lugar onde estava o leão, o coelho gritou: 

- "Fecha os olhos para os animais não verem o seu brilho. Apanha-os todos". 

O leão assim fez e apanhou com o pedregulho na cabeça, tendo ficado esmagado. 

O coelho foi-se embora.

Desde esse dia, os leões não gostam do coelho.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

Trova 249 – Wagner Marques Lopes (MG) (Trova da rãzinha brincalhona)


Imagem: Juventude Esperantista da Noruega

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 11. O Gato

Sentei-me hoje ao pé de uma velhota embrulhada num xale. Logo notei, sem ter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo da manta. -Como foi que cheguei a isso? não o sei ao certo. Um movimento de suas mãos ocultas a arrepanharem o xale sobre o regaço... o seu ar demasiado "inocente"... sei lá.

Eu podia ter-me ufanado da minha perspicácia. Mas não. Nem houve propriamente perspicácia alguma; ou, se houve, foi toda inconsciente: pouco se me dava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock por vontade, por estudo, por aplicação determinada e metódica da inteligência, é um esporte razoável, embora não me seduza. Mas esta espécie de "suspicácia" inata e vulgar é aborrecível como todas as inclinações tolas e baixas.

Senti-me desgostoso de mim, e mal me consolei com a reflexão, que fiz em seguida, de que o dom não me era particular, nada tinha de diferencialmente pessoal, Pois que alheio a todopensamento, a toda vontade e a toda tendência definida. É qualidade humana, com raízes fundas na camada mais funda da nossa humanidade. Todos temos dentro de nós um bicho indiscreto e malévolo, em simbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às vezes o ignora ou faz por ignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.

Arrastado pela curiosidade, antes que acabasse de refletir, não me custou perceber que de fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era um gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito grandes estriados por um chuvisco de luz entre vegetações de esmeralda e ouro. Tinha um ar pouco amigável, meio enfezado, meio suplicante. -Percebi tudo isso num ápice, porque tenho a vista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileção, o único semovente que me agrada sem reservas.

Gostaria também bastante dos cavalos de raça desde o possante Brabançon até o árabe naturalizado e aperfeiçoado nos haras de Inglaterra, por seu instinto da atitude pictórica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho de gatos e se pudessem ter dentro de casa, pôr ao colo e deixar correr por cima das mesas. -O defeito desse animal é ser excessivamente grande. Isto o reduziu ao papel pouco distinto de mero acessório do homem, e tornou-o um prosaico objeto de utilidade ou de ostentação.

Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa fantasia inutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala das dimensões, no reino animal.

Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos; ao mesmo tempo, pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes grandes e belos são relativamente fracalhões. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos do tamanho de girafas, besouros do volume de vacas holandesas, pulgas das dimensões de bezerros; que motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto, escusava que os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verdade os bibelots da natureza, fossem condenados ao estábulo, à estrebaria, ao amanho da terra, à tração de veículos, ao trabalho bruto, à escravidão humilhante.

Essa a justiça da grande Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamente com os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, -é o alvo e a presa da matilha esfaimada dos instintos. Vende-se nos mercados. Aprisiona-se. Condena-se a ser uma forma vazia, ornada de vermelhão, de pó-de-arroz e de jóias, com a noite dentro, como a cabaça mágica do bugre. Talento, gênio, bondade, amor, -tudo capturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmente reduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entre o delírio e a confusão da macumba retumbante e frenética.

Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo, em determinadas regiões, com a espécie humana, esse, contudo, guarda a dignidade de um escravo testarudo e resignado -obediente, fiel, mas inamoldável, sempre intransigentemente elefante. Não tem a elegância do nobre equus (elegância, aliás, já um pouco desacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas lá tem a sua, que lhe é própria e, além de própria, intransferível, por mais que haja indivíduos humanos a quererem tomar-lha, na classe que compreende os grandes vendeiros, os desembargadores e os clérigos.

A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há bibelots de louça, marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidência da luz. Hierática, cheia, pesada, a massa liga-se às proporções e aos contornos numa sóbria unidade de concepção e de fantasia, e tudo é um só élan de inspiração enternecida e brincalhona. A gravidade unida ao peso, a paciência ao volume, a doçura à simplicidade, e um quê de majestoso, e um quê de ingênuo, e um quê de gaiato. -Apenas falta a essas composições o indefinível encanto da vida, esse encanto que resulta da nossa perversa inclinação para só gostar completamente das coisas que sofrem.

O certo é que, se eu pudesse possuir um elefante em casa, aí com umas dez ou doze polegadas de altura, e que me viesse comer à mão, e brincasse com o meu bichano, às correrias por baixo de mesas e cadeiras, isto me seria um verdadeiro enlevo na minha solidão povoada de imagens inertes. -O pior é que um dia... Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria possível que o meu bibelot animado devolvesse antes de mim a sua porção de fluido vital ao laboratório do universo. O meu bichano havia de andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheira talvez enxugaria lágrimas, às escondidas, ao ver-me acariciar o Romão, à hora das refeições, na ausência do outro.

Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam uma casa. Desisto do elefantinho.

A verdade é que tenho um fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no que a mulher do bonde faria daquele. Iria deitá-lo fora? Iria dá-lo a alguém que lhe destinasse o indigno emprego de caçador de ratos?

Eu estou convencido de que os gatos não querem mal ao gênero mus. Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessidade de brincar. E se preferem esses a quaisquer outros, é apenas porque o rato, de todos os bichos proporcionados ao felino doméstico, é, o que mais radicalmente difere deste.

O gato só pode compreender o rato como uma coisa sem afinidade alguma com ele, mais ou menos como nós encaramos os peixes, aos quais não concedemos nenhuma sobra de respeito, nem de simpatia, nem de piedade. São objetos de um outro mundo, criações de um outro plano, obras de uma outra série. A teoria que Malebranche sustentava com referência à sua triste cadela -cujos latidos de dor eram no seu entender simples passagem do ar pelo mecanismo da garganta -é por todo o mundo imemorialmente e inconscientemente aplicada aos peixes. O próprio dilúvio, condenação e aniquilamento de todos os viventes não embarcados, deixou à margem, isto é, dentro da água, esses interessantes autômatos.

O rato, roedor meticuloso, destruidor frio, amigo das sombras, dos recantos ocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e recônditos, grande trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estúpido, o rato é o antípoda psicológico e moral deste príncipe dos quadrúpedes, deste poeta de pelo, deste artista de garras, deste sonhador indolente e desdenhoso, que compreendeu a imensa utilidade de não fazer nada, amigo do sol, das noites de lua, dos jardins floridos, dos telhados altos e desertos.

Este, quando procura a penumbra e o aconchego, é no borralho familiar onde o fogo deixou um pouco da sua alma quente e errante, é entre cobertas moles e cariciosas, é no regaço quieto das pessoas pensativas, ternas ou tristes.

Acusam-no de ser desamoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal do gato está unicamente em não ser nem servil nem serviçal. O homem só compreende as afeições no seu tríplice aspecto de promessa, desejo ou saudade de serviços. (Triste de quem as concebeu algum dia como um culto e um puro gozo interior, esquecendo-se de que a vida que vale é a que se processa e corre da periferia do corpo para fora!)

O gato saboreia melhor do que os próprios donos a fina flor da humanidade, aquilo que há em nós de mais seleto, e despreza tranqüilamente o farelo. Por isso é que se apega mais à casa do que ao habitante, como alguém, de refinado olfato, que preferisse, numa paisagem, o ar embalsamado por um resto de perfume de flores ausentes.

O homem canta -Home, sweet home!, e vai para a pândega, a dissipação, o tráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaidades: o gato fica, adorando com recolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, a Casa, a Casa onde o fogo prisioneiro canta a ária encantatória das coisas perpétuas, verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano em paz no meio da tormenta, as paredes de onde pendem alfaias e recordações, as portas em cuja tela de penumbra se enquadraram vultos amigos que nunca mais vieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão chegar a todo momento, que andam ali perto, ali. -A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante que passa, ao hóspede mofino de uns dias fugazes; ilha de estabilidade, de composição, de recolhimento, de segurança e de amor, no meio da instabilidade, da precariedade, da confusão, do desperdício, da angústia e da loucura universal.

O homem faz a sua casa e foge dela; ainda lá dentro, foge em espírito; não chega a compreender nem a sentir que fez um mundo, um mundo maravilhoso, para o qual todo o mundo grande, desde tempos imemoriais, vem acumulando infinitos elementos; um pequeno mundo sensível e supra-sensível onde a soma dos elementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos outros, onde cada pedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra uma saturação imensa de humanidade e de vida vivida e vem a ser mais rica em poder irradiante do que a mais carregada petchblenda...

Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos. E não têm. O que há é que são antípodas uns dos outros. O bichano vê no rato um simples mecanismo, bom para esporte e brinquedo.

É verdade que das brincadeiras resulta muitas vezes o óbito da presa. Mas é natural que um gato não tenha idéias claras acerca dos sofrimentos e da morte.

Nós, que somos gente, ou tendemos a isso, apenas sentimos que há dor no mundo por
experiência própria e individual, e nada nos custa como acreditar que a experiência dos outros possa coincidir com a nossa.

Por isso o rancor é dez mil vezes mais comum do que a piedade; além de que a piedade é freqüentemente uma forma de rancor fatigado.

Quanto à morte, pode-se muita vez duvidar que seja motivo de mágoa para algum dos que ficam; ao passo que se tem a certeza de que é festa para os herdeiros, pão para os gato-pingados, rócio para várias indústrias, e espetáculo para os vizinhos do falecido.

Tive ganas de ver se a dona quereria vender-me o gatinho, mas deteve-me a dificuldade do transporte. Se eu o levasse na mão até à secretaria, rir-se-iam de mim pelo caminho e na repartição. Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar a casa, despesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista e econômico em matéria de prazeres do coração.

Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damas imaginárias, sob o pretexto de que as de osso e carne são imperfeitas, mas na realidade por uma questão de economia: pus-me a pensar amorosamente num gato ideal. E desfiei de memória aquilo de Beaudelaire:

Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux,
Retiens les griffes de ta patte.

Logo o enxerguei junto de mim, grande, perfeito, maravilhosamente gato, lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente perdido no borborinho das ruas, e como que a repetir aquela sentença grave de Eurípedes: "Zeus aborrece os homens atarefados e os que se agitam demais".

O gato é uma das mais completas expressões de beleza dadas ao mundo. Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial, nem o próprio acabou de se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, é uma obra-prima, feita pela Natureza no caprichoso intento de mostrar como aquela que faz montanhas e mares é também capaz de compor coisas de paciência, de fantasia graciosa e de gosto quintessencial.

Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza, mas o próprio Deus quem modelou esses objetos com os próprios dedos, para humilhar o homem e divertir os anjos. E que os anjos os deixaram cair à terra por descuido, ou para os destruir. -É talvez por isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho de devotos irônicos, e aquele ânimo desconfiado e áspero que faz com que se irritem e escancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, é pela mesma razão que os gatos conservam essa aura de humana nostalgia que os distingue, essas atitudes de insatisfação gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis e solitários, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na desesperada esperança de ver cair alguma traga migalha do paraíso perdido!

Fonte:
Domínio Público

A. A. de Assis (Trova na Imagem I)


Millôr Fernandes (O Cavalo e o Cavaleiro)

Pois ainda que pareça incrível, quando o homem chegou às portas do céu, São Pedro disse:

– “Não pode entrar!”

– “Como não posso entrar? Tenho folha corrida de bons antecedentes e tenho bons antecedentes mesmo.” 

– “Sei” – respondeu  Saint Pierre – “mas no céu ninguém entra sem cavalo.”

      E o homem, não podendo argumentar com Saint Peter, voltou. No caminho encontrou um velho amigo e perguntou aonde ele ia. Disse o amigo que ao céu. Ele lhe explicou então que, sem cavalo, “neca”. O amigo então sugeriu:

– “Olha aqui, Saint Pietro já está velho. Você fica de quatro, eu monto em você. Ele não percebe nada porque já está velho e míope e nós entramos no céu.”

E assim fizeram.
Na porta, o Santo olhou o nosso herói:

“Opa, você de novo? Ah, conseguiu cavalo, heim? Muito bem, amarre aí fora e pode entrar.”

MORAL: BURRO NÃO ENTRA NO CÉU.

Patrícia Engel Secco (Paradoxos)

A vida parecia cada vez mais complicada para Alberto. Não ruim, pelo contrário, mas cada vez mais difícil.

Há alguns anos, ele não tinha com o que se preocupar... Bastava se entregar aos estudos e às descobertas. Ah! Como ele estava seguro em meio aos seres invertebrados, aos redemoinhos, às constelações, aos tubos de ensaio e aos elementos químicos...

A cada dia que passava, Alberto compreendia mais e mais as razões e o funcionamento de tudo no mundo. Tudo.

A formação do Universo, estrelas anãs e gigantes brancas, buracos negros, novos planetas e até mesmo um novo anel em algum planeta conhecido... Nada passava despercebido para Alberto, que, sem ter muito tempo para atividades que não levassem a alguma conclusão científica, não participava dos jogos do recreio e não usava, de maneira nenhuma, a internet para o lazer e para o diletantismo, atitude que ele considerava simplesmente ultrajante!

Então por que dentre todos os jovens da escola justamente ele tinha sido o escolhido pela mais linda e encantadora menina do grupo?

A vida parecia, sim, mais estranha para Alberto, que, sem entender o porquê de seu comportamento, ficou quase duas horas tentando montar uma imagem real da atmosfera de Saturno, que, recentemente, descobriram ser colorida devido aos gases que a compõem. Uma imagem bela o suficiente para tocar o coração de qualquer menina!

Duas horas perdidas tentando montar uma foto enquanto o mundo científico estava em polvorosa com o registro de uma colisão de galáxias! E ele ainda assim tinha certeza de que o tempo perdido tinha valido a pena!

Alberto guardou com carinho a fotografia em uma pasta e seguiu o caminho da escola, pensando em uma deliciosa frase de seu ídolo maior, Einstein, que naquele momento lhe servia de consolo:

"A verdade científica é sempre um paradoxo se julgada pela experiência cotidiana, que se agarra à aparência efêmera das coisas".

De acordo com Einstein, são paradoxos a Terra se mover em torno do Sol e a água ser constituída por dois gases altamente inflamáveis...

Quem sabe paradoxos tão grandes como este que ele agora está vivenciando: saber que tudo o que lhe interessa na vida são as explicações científicas e que não existe explicação científica para o que mais lhe interessa neste momento, o amor.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (Maria, a Ceifeira)

(IMITAÇÃO DE UHLAND)

«Bons-dias, Maria: da lida do prado
«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»

Promessa é do rico, soberbo rendeiro:
Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.

Soou meio-dia: que ardente secura:
Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.

O sol esmorece, bateram trindades:
Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:

O orvalho desliza; desponta a seu turno
A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.

Os dias e as noites assim por tais modos,
Nutrida d'amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d'esp'rança a chorar.

«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!
«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»

Tal disse, e passava... no peito constante,
Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.

Um ano a coitada, sozinha consigo,
Vivendo de frutos, vagou sem falar...
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Simone Pedersen (Ave Maria)

O meu sonho sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas nasci com asas, sem ser anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua casa.

Antes de a noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum”, escuto o coração do convento pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se voassem, sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu sinto o aroma de café.

O convento é um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os telhados e sentir o calor que irradia pelas suas janelas. O próprio sol visita as suas dependências e depois se esparrama pelos seus pátios e frestas. Fico tão emocionada, que arrulho de encantamento.

Às vezes, sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante sentir odores tão diferentes! A maresia, que salga as narinas. O café quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um lado para outro, como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O vento traz  folhas da mata, que acariciam os rostos dos homens. O chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.

Outro dia, muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes, convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados. Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.


Eu sempre quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra santa.

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51b.html

Pe. Antônio Vieira (Sermão do Bom Ladrão)

O Sermão do Bom Ladrão, foi escrito em 1655, pelo Padre Antônio Vieira. Ele proferiu este sermão na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte. Lá também estavam os maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros.

Observa-se que em num lance profético que mostra o seu profundo entendimento sobre os problemas do Brasil – ele ataca e critica aqueles que se valiam da máquina pública para enriquecer ilicitamente. Denuncia escândalos no governo, riquezas ilícitas, venalidades de gestões fraudulentas e, indignado, a desproporcionalidade das punições, com a exceção óbvia dos mandatários do século 17.

Vieira usou o púlpito como arauto das aspirações públicas, à guisa de uma imprensa ou de uma tribuna política. Embora estivesse na Igreja da Misericórdia, disse ser a Capela Real e não aquela Igreja o local que mais se ajustava a seu discurso, porque iria falar de assuntos pertinentes à sua Majestade e não à piedade.

O padre adverte aos reis quanto ao pecado da corrupção passiva/ativa, pela cumplicidade do silêncio permissivo. O sermão apresenta uma visão crítica sobre o comportamento imoral da nobreza, da época.

Eis alguns fragmentos:

Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.
Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.

Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos contra aquele auditório repleto pela nobreza. E continuou enfático:

A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se perdoa sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum.

Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda verdade é a restituição do alheio sob pena de salvação, não só obrigando aos súditos e particulares, senão também aos cetros e as coroas. Cuidam ou deveriam cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; enquanto lei divina também os obriga; porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles.

Estribado no pensamento filosófico de Santo Tomás de Aquino, de que os príncipes são obrigados a devolver o que tiram de seus súditos, sem ser para a preservação do bem da coletividade, lembrou Vieira terem sido punidos com o cativeiro dos assírios e dos babilônios os reinos de Israel e Judá, porquanto os seus príncipes, em vez de tomarem conta do povo como pastores roubavam o povo como lobos: "Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam” (Ezech. XXII, 27).

Invocando o pensamento de Santo Agostinho, mostrou a diferença entre os reinos, onde se comprovam opressões e injustiças, e as covas dos ladrões: naqueles os latrocínios ou as ladroeiras são enormes; nestes os covis dos ladrões representam-se por reinos pequenos, e comprova essa afirmação narrando de uma passagem histórica com Alexandre Magno:

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se atrevesse uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nosso oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.

Prosseguindo ainda nessas considerações, lança verrinas contra os poderosos:

O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.
Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos... Quantas vezes se viu em Roma a enforcar o ladrão por ter roubado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província?... De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Nom cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse, e digo levam consigo os reis ao inferno.

Novamente Vieira vai invocar as palavras de Santo Tomás de Aquino:

(...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.

Imprimindo uma faceta satírica e anedótica, Vieira comenta o seguinte episódio:

Dom Fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm nesta piedade? Se é pobre, dê-lhe uma esmola honesta com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico?!

Numa outra parte, ao comentar as investidas portuguesas na Índia, fala sobre a informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando aquele santo denunciava que naquela região, bem assim em outras, os responsáveis pela administração pública conjugavam o verbo rapio em dos os modos.

Escreveu Vieira:

O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas... Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.

Com coragem e convicção, aponta o seu verbo ao rei de corpo presente:

Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.
Onde encontrar, a não ser num Santo Ambrósio, num São Bernardino de Sena ou num Savanarola, outra voz que terrivelmente assim bradasse perante el-rei conivente de algum modo com as malversações de seus súditos, registrando o pregador, noutro sermão, não se haver sem motivo observado que enquanto os magnetes atraem o ferro, os magnatas atraem o ouro?
O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a fazenda real ou a dos particulares; e uma e outra têm obrigação de restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são obrigados a restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do rei não é sua, senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e erário da república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.

Neste sermão nos vemos diante de um diagnóstico que parece mesmo atemporal, desnudando os desmandos e a mistura dos interesses públicos e privados que infestam a administração pública brasileira desde o início da colonização, contexto em que os Sermões são escritos, até os dias que correm. Note:

O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (...) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. - Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.

Ele acusa os colonos e os governantes do Brasil de roubarem escandalosamente:

Grande lástima será naquele dia, senhores, ver como os ladrões levam consigo muitos reis ao Inferno: e para esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora como os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os ladrões ao Paraíso. Parecerá a alguém, pelo que fica dito, que será cousa muito dificultosa, e que se não pode conseguir sem grandes despesas; mas eu vos afirmo e mostrarei brevemente que é cousa muito fácil e que sem nenhuma despesa de sua fazenda, antes com muitos aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que modo? Com uma palavra; mas a palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões, os quais não costumam restituir, restituam efetivamente tudo o que roubaram.

Vieira foi um autor barroco e pode-se encontrar em suas obra as características desse movimento, tais como o uso de contínuas antíteses, comparações, hipérboles etc. Seu texto é essencialmente persuasivo e, enquanto tal, os jogos de palavras obedecem a uma finalidade prática, isto é, a retórica em função de seu discurso crítico. Vieira colocou-se contra o uso da palavra num sentido apenas lúdico, para provocar prazer estético.

Percebe-se que o autor preocupava-se com temas de caráter social e de dimensão política. Neste sermão, ele aproxima e compara a figura de Alexandre Magno, grande conquistador do mundo antigo, com a do pirata saqueador, evidenciando assim sua crítica aos valores morais e sua visão ideológica.

A persuasão em Vieira alcança o raio da alegoria — de resto, um recurso típico da tradição medieval — como reforço à grandeza dos padrões sociais e éticos. Consubstanciada pelo modelo do pregador, alimenta-se também da ironia, da sátira, do ataque (sutil ou explícito) contra vícios morais e administrativos dos representantes do rei na Colônia do Brasil, como citado. O suporte alegórico do bom ladrão é a demonstração pouco corrente, escolhida pelo pregador para testemunhar melhor dos erros de sua época, dos crimes de superiores e nobres e de colonizadores reles, distantes da justiça reinol e divina.

Em seus sermões Vieira mostrava certa independência nas palavras, atitude completamente contrária ao dogma fundamental da Companhia de Jesus, que era o da obediência cega às ordens superiores. Ele trabalhava por conta própria, e pensava mesmo em introduzir reformas na Companhia, coisa que os mais antigos viam com muito maus olhos. Daí resultou que seus superiores lhe ordenassem positivamente que partisse para as missões do Maranhão.

Fonte:
Passeiweb

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 10. Rufina (3)

Hoje de manhã, ao tomar o bonde, lobriguei lá dentro um vulto de mulher e, com a instantaneidade do raio, enxerguei a imagem de Rufina. Trêmulo, sentei-me, e verifiquei: o vulto era uma velha gorda e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecer-me da velha e de Rufina ejusdem farínae, afinal de contas! -e comecei a resolver o seguinte problema: qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinha em tráfego quatrocentos bondes, cada bonde transportando em média vinte e cinco passageiros? A questão me interessava, porque estou tratando de redigir uma reclamação para a imprensa contra certas irregularidades do serviço.

-Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que são 4.000, mais... Ru-fi-na... cinco por duzentos, que são mil... Erre, um = Ru.... Quatro mil mais mil, cinco mil; cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos... -Desisti das contas. A matemática é inconciliável com o coração. É inconciliável com a vida.

Como é que Newton pôde ser pai de família, ter uma esposa, ter filhos, ter afetos, preocupações, desejos, e calcular continuamente? Eu, quando alguma vespa me pica, faço até as máquinas de cálculo errar uma adição. Tudo aquilo em que ponho as mãos desconcerta, extravaga. Até o Melquíades, meu servente, que em matéria de calma e paciência e um urso de bazar, fica esparavonado, entorta, arrebita e disparata!

Preciso esforçar-me para me corrigir. Não tanto, porém, que me torne apto a maquinar friamente com a cabeça no meio das tormentas e das delícias da vida. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu prefiro sonhar com Rufina a cavar uma celebridade em cálculo diferencial.

Fonte:
Domínio Público