domingo, 28 de abril de 2013

Nilto Maciel (O Público do Teatrinho de Marionetes)

O público do teatrinho de marionetes crescia dia a dia. Ao final de cada peça, Raul Marinho apresentava suas mágicas sensacionais. As crianças aplaudiam cada número do espetáculo.

Os sediciosos, no entanto, chamavam o mágico de feiticeiro e ilusionista. Para o comendador, Raul não passava de um falso milagreiro, desdenhador da religião católica, um enganador do povo, como os comunistas. Segundo padre Gregório, o homem tinha pauta com o maligno.

Chegou o dia, entretanto, de ser lembrado como um possível aliado na luta contra o inimigo poderoso e invisível. Ora, se fazia surgirem coelhos do interior de cartolas, se transformava lenços brancos em pombas voadoras, se retirava tiras e mais tiras de pano da boca, por que não poderia fazer com que os comunistas se mostrassem em carne e osso à plena luz do dia? Ana Souto se mostrou incrédula: E se não fossem de carne e osso?

Outra importante contribuição de Raul se daria após a vitória do Movimento ou quando todos os comunistas tivessem sido achados e presos. Só ele, com sua capacidade de dominar as pessoas, faria com que os bolchevistas de Palma confessassem seus planos diabólicos, suas ligações secretas com a Rússia, a China, Cuba, onde se escondiam seus arsenais etc.

O juiz contestou o plano: Ora, não precisavam de mágica para conseguir aquilo.

Toda a sala se pôs à escuta. A palavra sábia da Justiça certamente conhecia poderes maiores do que os da Magia. Com um ou dois socos na boca do estômago...

Nenhuma palavra latina saiu dos lábios do juiz.

Interrompeu-o Emílio do Vale. Queria acrescentar algumas informações de ordem científica à explanação do amigo. E durante bom tempo falou do açoite, da marcação com ferro em brasa, do tronco, da golilha, dos “anjinhos”, do cavalete, do suplício da roda e da crucificação. Durante o III Reich desenvolvemos diversas...

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Raul Marinho se dizia conhecedor dos segredos da mente, das artes mágicas e outras antiguidades. E provava seus conhecimentos por isso mais aquilo, em palcos improvisados, para qualquer plateia. Ainda assim preferia o público de cidades, lugarejos e vielas próximas a Palma. Emílio não o via com bons olhos: Não passa de um espertalhão. Jurema completava: Um ilusionista de quinta categoria.

Convidado a demonstrar se realmente conseguia hipnotizar alguém, o mágico apresentou-se de fraque e cartola. Padre Gregório cruzou os braços diante do homem: Queremos ver para crer.

Raul se dispôs a pôr em prática seus conhecimentos, enquanto os dirigentes da entidade o crivavam de perguntas. Como Emílio: Possível também fazer uma lavagem cerebral?

O hipnotizador ou se fez de mal-entendido ou realmente não alcançou o significado da pergunta. E pediu mais clareza ao chefe do Movimento. Seria possível converter ao bom caminho os enganados, ludibriados, seduzidos pelos comunistas?

Outras e outras questões científicas surgiram: como interrogariam os vermelhos durante a hipnose, se alguém podia despertar quando se sentisse ofendido, se seria possível colher informações sigilosas do hipnotizado...
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A primeira mágica realizada por Raul deixou todos de boca aberta: o cigarro aceso entre os lábios do juiz apareceu entre os dedos do promotor. Emílio se impacientou. Queria ver logo a sessão de hipnotismo. O mágico encarou a pequena plateia: Quem se apresentava primeiro? O prefeito olhou para trás, Eunápio baixou a vista, Aniceto cochilou, Emílio cutucou o padre, o promotor cheirou os dedos, o juiz acendeu um cigarro, e nenhum outro se fez voluntário. Raul apontou para o padre: Venha cá o senhor.

Com dois ou três sussurros ao pé do ouvido, o vigário dormia profundamente e fazia tudo o que bem queria Raul. Coce a ponta do nariz, reverendo.
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Como as reuniões costumavam terminar pela meia-noite, após esta hora a cidade começou a se inquietar. Portas e janelas se abriam de mansinho, luzes se acendiam, cochichos zuniam. Mais uma hora, e escancaravam-se portas, iluminavam-se salas, falavam línguas sem peias. Desperta Palma, mulheres, rapazes e crianças iam e vinham pelas ruas, para cá e para lá. Uns procuravam a Casa Paroquial, outros a Delegacia, mais outros o Hospital.

Tudo em vão. A casa do padre fechada. O delegado não sabia de ninguém preso ou esfaqueado naquela noite. No hospital enfermeiras e pacientes dormiam. Para o tenente, os homens da cidade deviam estar na casa de Seu Emílio.

Hilda também andava preocupada, insone e impaciente, sem saber onde se metera o marido.

A Associação Comercial parecia mais escura e silenciosa do que o cemitério. Uma vizinha da entidade, alvoroçada diante do clamor popular, explicava: Aí não esteve ninguém hoje.

Na verdade, a reunião realizava-se aos fundos da Casa Paroquial, onde nunca acontecia nenhum encontro político do Movimento. Além disso, Raul Marinho conseguiu hipnotizar todos os presentes, tendo também dormido, até que o sol raiou de novo sobre Palma.

Naquela noite, como em muitas outras, Lucas não quis comparecer à reunião da entidade, alegando, mais uma vez, acúmulo de afazeres. A correspondência andava atrasada.

E se enfurnou em casa, depois de tomar um fogoso banho no riacho do quintal. Deu ordens à criada para o não importunar, trancou-se no quarto e debruçou-se sobre a escrivaninha. De manhã, como a porta continuasse fechada por dentro, a velha, preocupada, chamou por Lucas, bateu à porta, bateu mais, forçou a fechadura e conseguiu derrubar a chave. E pelo buraco viu o rapaz estirado ao chão. Desesperada, saiu à rua, aos gritos. Enquanto corria e chorava, alertava o povo para a nova desgraça: Luquinha parece que morreu, minha gente.

Fonte:
Nilto Maciel. Os Luzeiros do Mundo. Fortaleza/CE: Editora Códice, 2005.

Olivaldo Junior (De Véspera)

Dizem que a véspera é melhor que o dia “D”. Depois de certo tempo, não há mais nenhuma espera, nem de véspera.

A véspera, para um homem, é motivo de trégua. Esconde os cascos e esgarça o sorriso. Mas nem todo homem. Existe um que eu bem conheço que não descansa faz tempo. O tempo não tem mais tempo para o rio que ribeira, a beira que esbarra nos pés de um poeta, um célebre das rimas, sem rumo nenhum, mas cheio de métodos. Metáforas só tem sentido quando fora.

Esse homem descobriu-se poeta para ver se era alegre ter parte com as letras e com todos os milhões de coisas que elas tocam. Mas não foi nada disso que achou. Não era um tesouro o ouro da escrita. Os outros poetas não eram sempre amistosos. Ficou desgostoso e se pôs a andar. Era hora.

Buscou quem pudesse ser o amigo que ele sempre quis. Andava a se lembrar dele mesmo aos pés da vitrola, de olho na porta, para ver se chegava alguém. Nunca chegava. O Natal estava perto. Néctar.

Olhando o chão da praça da cidade, notou que nele estavam mil e um folhetos com dizeres encantados provocando o consumo. Aquele homem se encolhia diante dos monstros que habitavam os shoppings e as lojas que só pensam no que os outros vão comprar de mais custoso. Desanimou-se. Não tinha o amigo que sempre quis. O mundo não o tinha em conta. Via Crúcis de si.

Assim que ficou noite, deitou-se num banco qualquer. Podiam tê-lo como um mendigo. Ele bem o era. Sequer sabia quem era Francisco, mas franciscano bem o seria. Sim, era véspera de Natal. O homem, pouco antes da meia-noite, deu de acordar e foi para junto da grande cruz, no meio da praça, enraizada. Ao lado dela, uma árvore um tanto maior indicava quem era o dono do mundo. O mundo dentro dele ruía, e não era, a noite, feliz. Chorou tudo o que não tinha chorado até os... Não, não contava a idade dele a ninguém. Não era do tempo. Chorou.

Deu meia-noite. O homem, de frente para a cruz, ressurreto em próprio pranto, batizado em próprias lágrimas, deitou-se de abertos braços aos pés do Cristo e, todo exangue, sangrou sem sangue toda a tristeza e todo o segredo de nunca ter sido feliz. O amigo não veio. Esquece-se dele agora.

Não nasceu nenhuma rosa no lugar em que se expôs aquele homem, Nenhuma pedra se interpôs a quem fizesse aquilo. Logo que o sol se estirou, ninguém deu pela falta do cara que se fizera desencantar.

Mas houve, em algum lugar, talvez no topo do Monte Everest, alguém que dele guardou uma lágrima num verso pernóstico, num resto de adeus, num rosto em retratos que o morto não viu. Houve um amigo.

Moji Guaçu, SP, seis de dezembro de 2012.

Fonte:
O Autor

Franklin Jorge (Nilto Maciel: O Universo Mágico dos Gregotins)

Publiquei neste domingo na coluna que assino no Novo Jornal e o reproduzi em minha página na web, pequeno e despretensioso comentário contendo minhas impressões de leitura de Nilto Maciel, um prolífico escritor de Baturité que se recolheu à Fortaleza, de onde irradia-se em sortilégios literários de que é prova cabal esse livro que não pode faltar na biblioteca dos pesquisadores e dos amantes da literatura.

Em Gregotins de Desaprendiz [Editora Bestiário, Porto Alegre, 2013], uma compilação que creio bastante resumida da colaboração do autor em diversos veículos que acolhiam a literatura contemporânea. Nesse livro que constitui um grato reencontro com autores e companheiros de geração, escritores que estrearam naqueles anos 70 do século passado, por todo o país. À página 140 e na segunda orelha, transcreve Nilto palavras de admiração que tenho escrito sobre sua atividade intelectual ímpar e benfazeja.

Nilto leu centenas de livros, milhares talvez; leu e opinou sobre os mesmos, e agora, em edições bem cuidadas, os divulga, cônscio de que a arte começa com o exercício da generosidade. Nesse livro, reitero, o leitor arguto e sensível, perspicaz e infatigável, desperta-nos a curiosidade por esses autores circunscritos, majoritariamente, em suas províncias natais, autores sem editoras, sem distribuição, sem mídia e sem leitores, que predominam nos escritos desse escritor cearense que há mais de 40 anos difunde a literatura brasileira contemporânea.

Devotou-se o autor de Gregotins a devorar e divulgar os impressos recebidos como doação, presente, mimo, como o confessa na apresentação à pág. 7: “Poucos dos escritores por mim lidos naquele período tiveram sobras divulgadas por editoras de grande porte”. Desde aquele ano de 1976, quando pôs em circulação e editou O Saco que colocou a literatura marginal no circuito das discussões, Nilto não parou mais e com isso tem prestado inestimável serviço às letras.

Assim, graças aos seus registros sobre autores, deparei-me à pág. 14 com uma curta e perspicaz resenha sobre a escritora Socorro Trindad, enfocada a partir da leitura do livro Cada Cabeça uma Sentença e descobre, na autora nascida em nossa pacata e ilustre Nísia Floresta, a antiga Papary (RN), duas virtudes essenciais: a capacidade de misturar o trigo e o joio e esplêndida cultura literária. E fico imaginando o que diria o autor – se é que não o disse em um outro texto – sobre o livro de estreia de Trindad, Os Olhos do Lixo, que eu possuía com o autógrafo da autora.

Nessa colaboração advinda de publicações diversas, algumas já extintas, o registro de uma atividade intelectual que se destaca e encoraja-nos a pesquisar e conhecer esse movimento que deu vida à produção literária da época. Resenhas e ensaios dispersos em publicações como o Suplemento Minas Gerais; O Povo e O Unitário [Fortaleza]; Suplemento da Tribuna da Imprensa [Rio de Janeiro]; Correio Braziliense e Jornal de Brasília; Suplemento Cultural O popular, Folha de Goiaz e Opção [Goiânia]; Jornal da Semana e Diário do Comércio [Recife], estão reunidas aqui, por Nilto Maciel, que enumera 42 autores dentre os inumeráveis que perfilou em centenas de resenhas que suponho ainda inéditas em livros. São eles, assim nominados em Gregotins: Francisco Carvalho: um poeta maior; O universo fabuloso de Juarez Barroso; Socorro Trindad: misturando o joio e o trigo; Joanyr de Oliveira: um poeta quase bíblico; Miguel Jorge: veias e vinhos; Nagib Jorge Neto: cordeiros e lobos; José Alcides Pinto: ordem e desordem; Caio Porfírio Carneiro: a incandescência do sal; Adrino Aragão: o suor da escrita; O pássaro de luz de Guido Heleno; Carlos Emílio Corrêa Lima: epopeia e mito; Emanuel Medeiros Vieira: desespero e morte; O engenho poético de Batista Lima; Aguinaldo Silva: reflexos grotescos; Enéas Athanázio: histórias catarinenses; Salomão Sousa: a lógica do pessimismo; Glauco Rodrigues Corrêa: literatura policial com L maiúsculo; Silveira de Souza: nós e o fogo; Dimas Macedo: poemas das lavras de um poeta; José Lemos Monteiro: crônica de uma era monstruosa; Avarmas de Miguel Jorge; Luís Martins da Silva: a fertilidade da poesia; O filão de Luciano Barreira; Valdomiro Santana: concisão e profusão no dia do juízo; Diogo Fontenelle: um topógrafo da poesia; Naomar de Almeida: o homem como natureza; O laboratorista Paulo Nunes Batista; Ubirajara Galli: êxtase fabular; O. G. Rego de Carvalho: entranhas da alma; Wilson Pereira: narrativas poéticas; Floriano Martins: poesia da paisagem; W. J. Solha: a lucidez possível; José Peixoto Júnior: sobre o Cariri; A poesia de Sérgio Campos; Jesse Navarro Jr: o poder da síntese ou a síntese do poder; Antonio Possidônio Sampaio: documentário do ABC.

O livro conclui com a publicação de alguns pequenos e consistentes ensaios sobre temas correlatos, a saber: 64 D.C. (antologia); Elefante enjeitado; Outros poetas do Ceará; Mais nove romancistas; Outros poetas de Goiás; Outros contistas; Duas antologias de poemas; Duas antologias de contos; e, mais, informações precisas sobre o autor [dados biográficos, livros publicados, fragmentos da volumosa Fortuna Crítica que bem a merece o escritor Nilto Maciel.
(O santo ofício, www.osantoofício.com, 21/4/2013)

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/04/o-universo-magico-dos-gregotins.html

Wagner Marques Lopes/MG (Fábula o Lobo e o Cocheiro)

À margem de uma estrada rural, um lobo abordou um cocheiro:

- Vim caçar longe de meu covil e perdi meu caminho. Moro lá nos altos rochedos e se eu continuar fora da estrada poderei me extraviar de vez... Posso acompanhá-lo até as proximidades de minha furna?

O cocheiro refletiu:

- Um lobo, bicho que possui tanto faro, perdendo o caminho de casa?!... Isso é muito estranho!...Se eu deixar ele caminhar ao lado da carruagem, com muita agilidade, ele poderá atacar um de meus cavalos!...

       E veio a solução:

- Vou ajudá-lo... Você pode me acompanhar, mantendo uma distância de cinquenta metros da carruagem, pois o caminho está muito seco. Se você me seguir muito perto do coche, seus olhos poderão ficar prejudicados pela poeira!...

Sem saída, o lobo acatou a sugestão. E lá se foram. Em paz, o cocheiro e os cavalos... Menos o lobo.

Moral em trova

Cautela tem seu lugar –
o prudente é o mais feliz.
Há lobos que vão cear
distantes de seus covis!
1

1. Trova sobre o provérbio latino:
“QUANDO O LOBO VAI FURTAR,
LONGE VAI CEAR”.

Alphonse Daudet (O Segredo de Mestre Cornille)

 Nossa região, meu caro leitor, não foi sempre um sítio morto e sem canções, como é hoje. Antigamente havia aqui um ativo comércio de farinha. De dez léguas ao redor, os granjeiros nos traziam seu trigo para moer. Por toda parte, à volta da aldeia, as colinas estavam cobertas de moinhos de vento. À direita e à esquerda, só se viam asas de moinhos que volteavam ao sopro do mistral; acima dos pinheiros, filas de burricos carregados de sacos, subindo e descendo ao longo dos caminhos; e a semana inteira era o prazer de ouvir o estalido dos chicotes, o ruído seco do tecido dilacerado e o “Dia hue!” dos ajudantes dos moleiros. Aos domingos, íamos em bandos aos moinhos. Lá no alto, os moleiros pagavam o muscat. As moleiras eram belas como rainhas, com seus fichus de rendas e suas cruzes de ouro. Eu levava meu pífaro, e até altas horas da noite dançavam-se farândolas. Aqueles moinhos, como o senhor vê, eram a alegria e a riqueza da nossa terra.

 Infelizmente, franceses de Paris tiveram a idéia de estabelecer uma moagem a vapor, na estrada de Tarascon. Tudo belo, tudo novo! O povo tomou o hábito de enviar o trigo aos novos moageiros, e os pobres moinhos de vento ficaram sem trabalho. Durante algum tempo tentaram lutar, mas o moinho a vapor foi o mais forte. Um após outro — pobrezinhos! — foram todos obrigados a fechar. Não se viu mais virem os burrinhos. Nada de vinho!... Nada de farândolas!... O mistral soprava forte, as asas permaneciam imóveis... Depois, um belo dia, a municipalidade mandou demolir todas essas ruínas, e semearam-se em seu lugar vinha e oliveiras.

 Entretanto, em meio à derrocada, um moinho se havia mantido e continuava a girar corajosamente, sobre a colina, nas barbas dos moageiros. Era o moinho de Mestre Cornille, este mesmo onde estamos fazendo serão, neste momento.

 Mestre Cornille era um velho moleiro. Havia sessenta anos vivia metido na farinha. A instalação das moagens a vapor tinha-o deixado como louco. Durante oito dias viram-no correr pela aldeia, a reunir em tumulto toda a gente à sua volta, e a gritar, com todas as suas forças, que queriam envenenar a Provença com a farinha dessas fábricas.

 — Não vão lá embaixo — dizia ele. — Aqueles bandidos, para fazer o pão, servem-se de vapor, que é uma invenção do diabo, enquanto que eu trabalho com o mistral e o transmontano, que são o hálito do bom Deus!...

 E ele encontrava, como estas, uma quantidade de belas palavras em louvor dos moinhos de vento, mas ninguém as escutava.

 Então, com uma raiva maligna, o velho fechou-se no moinho e viveu completamente só, como um animal selvagem. Nem mesmo quis conservar junto de si a neta, Vivette, uma menina de quinze anos, que, mortos os pais, não tinha ninguém senão o avô no mundo. A pobre pequena foi obrigada a ganhar a vida e a se empregar ora aqui, ora ali, nas fazendas, para a colheita, os bichos-da-seda ou os olivais. Entretanto o avô parecia amá-la muito. Chegava a fazer freqüentemente quatro léguas a pé, na soalheira, para ir vê-la na casa em que trabalhava. Uma vez junto dela, passava horas inteiras a contemplá-la, chorando...

 Pensava-se, na região, que o velho moleiro, deixando sair Vivette, agira por avareza. Não o honrava ter consentido que a neta assim deambulasse de uma fazenda para outra, exposta às brutalidades dos vaîles e a todas as misérias que cercam as jovens, nessas condições de trabalho. Achava-se também muito malfeito que um homem da reputação de Mestre Cornille, que até ali era respeitado, fosse agora pelas ruas como um verdadeiro boêmio, pés nus, o boné furado, a faixa da cintura em tiras... O fato é que, no domingo, quando o víamos entrar para a missa, tínhamos vergonha por ele, nós outros os velhos; e Cornille o sentia tão bem, que não mais ousava vir sentar-se no banco dos administradores da paróquia. Ficava sempre no fundo da igreja, junto à pia de água-benta, com os pobres.

 Na vida de Mestre Cornille havia alguma coisa obscura. Havia muito tempo ninguém, na aldeia, lhe levava mais trigo, e no entanto as asas do seu moinho iam sempre fazendo seu ofício, como antes. À tarde, encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, tangendo à sua frente o burro carregado de grandes sacos de farinha.

 — Boas tardes, Mestre Cornille! — gritavam-lhe os camponeses. — Então, sempre vai indo a moagem?

 — Sempre, meus filhos — respondia o velho com ar altivo. — Deus seja louvado, não é trabalho o que nos falta.

 Então, se lhe perguntassem de onde podia vir tanto trabalho, ele colocava um dedo sobre os lábios e respondia gravemente:

 — Silêncio! Eu trabalho para a exportação...

 Jamais se pôde tirar mais nada dele, além disso. Quanto a meter o nariz no seu moinho, nem se devia sonhar. A própria Vivette não entrava ali. Quando se passava diante dele, via-se a porta sempre fechada, as grandes asas sempre em movimento, o velho burro retouçando a erva, sobre a plataforma, e um gatão magro que tomava sol no peitoril da janela e olhava para a gente com um ar maldoso.

 Tudo isso sugeria mistério e fazia tagarelar o mundo. Cada um explicava à sua maneira o segredo de Mestre Cornille, mas o rumor geral era que ele tinha em seu moinho mais sacos de dinheiro que de farinha.

 Com o decorrer do tempo, entretanto, tudo se descobriu. Eis como:

 Fazendo dançar a mocidade com o meu pífaro, percebi um belo dia que o mais velho dos meus rapazes e a pequena Vivette se haviam enamorado um do outro. No fundo, eu não ficara nem um pouco zangado, porque, apesar de tudo, o nome de Cornille era honrado entre nós; e dar-me-ia prazer ver saltitar em minha casa essa linda avezinha de Vivette. Somente, como nossos namorados tinham freqüentemente ocasião de estar juntos, eu quis, de medo de acidentes, regular o negócio imediatamente; e subi até o moinho, para trocar sobre o assunto duas palavras com o avô.

 Ah! o velho feiticeiro! Era preciso ver de que maneira me recebeu! Impossível fazê-lo abrir a porta. Expliquei-lhe minhas razões, mal-e-mal, através do buraco da fechadura; e durante o tempo em que lhe falei, ficava esse ladrão de gato magro a soprar como um diabo, acima da minha cabeça. O velho não me deu tempo de terminar, e me gritou muito malcriadamente que retornasse à minha flauta; caso tivesse pressa de casar o rapaz, fosse procurar moças na fábrica...

 O senhor imagine como o sangue me subia, ao ouvir essas más palavras. Contudo eu tive até bastante prudência para me conter, e, deixando o velho louco em sua mó, voltei para anunciar aos jovens o meu humilhante insucesso. Os pobres cordeirinhos não podiam acreditar. Pediram-me que lhes permitisse subirem os dois juntos ao moinho, para falar ao avô. Não tive coragem de recusar, e eis os namorados a caminho.

 Justamente quando chegaram ao alto, Mestre Cornille acabava de sair. A porta estava fechada com duas voltas; mas o velho, ao sair, deixara a escada fora. Imediatamente os moços tiveram a idéia de entrar pela janela, para verem o que havia nesse famoso moinho.

 Coisa singular! O quarto da mó estava vazio. Nem um saco, nem um grão de trigo; nem a menor farinha nos muros, nas teias de aranha... Não se sentia nem mesmo esse bom cheiro quente do grão de trigo triturado, que embalsama os moinhos. A braçadeira estava coberta de pó, e o gatão dormia em cima dela.

 A peça de baixo tinha o mesmo ar de miséria e de abandono: um mau leito, alguns trapos sujos, um pedaço de pão sobre um degrau da escada; e, finalmente, num canto, três ou quatro sacos furados, de onde escapavam caliça e areia.

 Era o segredo de Mestre Cornille! Era esse entulho que ele passeava à tarde pelas estradas, para salvar a honra do moinho e fazer crer que ali se produzia farinha... Pobre moinho! Pobre Cornille! Havia muito tempo os moageiros tinham-no feito perder os últimos negócios. As asas viravam sempre, mas a mó girava no vazio.

 Os mocinhos voltaram, lavados em lágrimas, para me contar o que tinham visto. Senti o coração machucado ao ouvi-los. Sem perder um minuto, corri à casa dos vizinhos, contei-lhes a coisa em duas palavras, e concordamos todos em que era preciso levar imediatamente ao moinho de Cornille tudo que houvesse de grão em nossas casas. Tão logo foi dito, logo se fez. Toda a aldeia se pôs a caminho, e chegamos ao alto com uma procissão de burros carregados de trigo — trigo verdadeiro!

 O moinho estava completamente aberto. Diante da porta, Mestre Cornille, sentado num saco de gesso, chorava, com a cabeça entre as mãos. Acabava de perceber, entrando, que durante sua ausência alguém penetrara em sua casa e surpreendera seu triste segredo.

 — Pobre de mim! — dizia ele. — Agora não me resta senão morrer... O moinho está desonrado.

 E soluçava de cortar o coração, chamando seu moinho por todas as espécies de nomes, falando-lhe como a uma pessoa viva.

 Nesse momento os burros chegaram à plataforma, e nós nos pusemos todos a gritar bem alto, como nos belos tempos dos moleiros:

 — Eh! Ó do moinho!... Ei! Mestre Cornille!

 De súbito os sacos se acumulam diante da porta, e o belo grão ruivo rola abundantemente pela terra, de todos os lados.

 Mestre Cornille arregalava os olhos. Apanhara um pouco de trigo no côncavo da velha mão, e dizia, rindo e chorando ao mesmo tempo:

 — É trigo!... Senhor Deus! Trigo verdadeiro!... Deixem-me contemplá-lo...

 Depois, voltando-se para nós:

 — Ah! Eu sabia que vocês voltariam...

 Queríamos levá-lo em triunfo até a aldeia.

 — Não, não, meus filhos! É preciso, antes de tudo, que eu vá dar de comer ao moinho... Pensem! Há muito tempo que nada lhe pomos entre os dentes!

 E todos nós tínhamos lágrimas nos olhos, de ver o pobre velho agitar-se para a direita e para a esquerda, destripando os sacos, vigiando a mó, enquanto o grão arrebentava e a fina poeira do trigo subia para o teto.

 Justiça nos seja feita: a partir desse dia, nunca deixamos faltar trabalho ao velho moleiro. Depois, certa manhã, Mestre Cornille morreu, e as asas do nosso derradeiro moinho cessaram de virar, para sempre desta vez. Morto Cornille, ninguém continuou sua obra...

Fonte:
Alphonse Daudet. Contos. SP: Cultrix, 1993.

Joyce Cavalccante (O Cão Chupando Manga)

Sob o provocativo título de O Cão Chupando Manga, foi publicado pela editora Bertrand Brasil mais um surpreendente romance de Joyce Cavalccante. O Cão Chupando Manga é uma expressão muito usada no nordeste para definir qualquer coisa superlativa. Zezito, personagem maior dessa história, é feio ao ponto de ofender mas incrivelmente capaz de se dar bem, daí a autora ter se apoderado dessa frase característica do colorido e imagético linguajar do povo lá de cima do mapa, para oferecer à literatura brasileira este delicioso e divertidíssimo romance que tem como cenário a cidade de São Paulo entre os anos 1971 e 1985, movimentada pela ambição dos políticos, pela ganância dos empresários, pelo amor livre dos jovens e por um audacioso garçon cearense.

Narrada em linguagem fluente e agradável, a exemplo das melhores obras clássicas, essa ficção faz seus personagens atravessarem quase quinze anos de real história brasileira, que aqui é usada como pano de fundo para as fortes emoções tecidas nos corações das personagens. O final é surpreendente, comprovando título tão bem escolhido.

Joyce sempre foi conhecida como autora de obras, no mínimo, polêmicas que envolvem temas transgressores como a sexualidade feminina, a luta da mulher para se afirmar num mercado de trabalho adverso, os problemas enfrentados por elas quando tentam sobreviver num mundo concebido apenas no masculino. Aqui, além de confirmar essa tendência, a autora confirma também seu estilo literário maduro e estimulante que vem encantando os leitores, não só do Brasil, mas também do exterior.

322 PÁGINAS.
web page da autora:
http://www.JoyceCavalccante.com

Fonte:
REBRA

Samuel da Costa (Cris e o Dragão: o olhar dela postados em mim... )

...
pois é difícil enxergar a verdade!
Não gosto de ficar sozinha...
E não tenho tempo para joguinhos!
Patrícia Raphael 

 
Para Andersom Luis ‘’Jamaica’’ da Silva

– O que tu vai fazer, hoje de noite, Cris meu anjo? – A pergunta era um misto de pura inocência e total perdição. E Cris não soube, naquela hora, o que era pior: A pergunta moleca, o sorriso inocente ou os olhos verdes e arregalados e cheios de má intenção da moça. O cabelo cheio, vermelho claro, encaracolado e jogado para frente, as mãos pequenas postadas no joelho, as unhas pintadas de verde-musgo, os dedos finos e desnudos, no pescoço uma fina gargantilha de prata e um pingente incrustado de semi-joias, onde podias se ler a inscrição: Carolina, em fonte manuscrita e em itálico, a blusa branco celeste transparente com estampa floral, que revelava mais do que deveria revelar, o shorts jeans desbotado, os pés pequenos e delicados estavam descalços, pois, o sapato de salto alto quinze neon verde fluorescente, se encontrava no chão, a pele amendoada e delicada completavam o quadro que tirou Cris do ar, estava em êxtase.

– Cris... Cris meu anjo, acorda meu doce! – A voz aguda e irritante de Carolina explodiu nos ouvidos de Cris com toda a força do mundo.

– O que foi Diaba? Fala! – A voz de Cris era pura irritação.

– Não me chama assim, quanta mal criação meu Deus do céu. Não vai vestir as luvas? Não sei por onde, essas tuas mãos talentosas andaram voando! Hei... faz o favor de tirar as luvas do estojo na minha frente. A agulha também, nada de re-aproveitar essas coisas descartáveis, em nome da economia, Cris meu bem. O meu corpo é santo e é sagrado, Cris meu doce de gente. – A voz estridente e teatral de Carolina soou com um pesadelo ao vivo e a cores, nos ouvidos de Cris. A imaginação de Cris voou longe e transportou, aquela beldade, para um palco de teatro ou tablado qualquer, cheio de luzes, aplausos e gente gritando.

De volta para a realidade, Cris se deu conta, que o seu profissionalismo naquela altura, estava um pouco negligenciado. E uma olhada rápida, na sua mais nova cliente, sentada em cima da maca, com o contorno do dragão, em forma de serpente, tatuado na perna já pronto, que esperava o retoque final. Cris vestiu as luvas cirúrgicas, os óculos de proteção individual, também uma mascara cirúrgica e por fim tirou a agulha descartável do invólucro e anexou na máquina, tudo preparado com todo o excesso de zelo, para clientes da estirpe de Carolina.

Cris bem queria acabar com o trabalho, o mais rápido possível e da forma mais profissional possível. E de fato, a máquina de aço deu as cores no dragão, em forma de serpente, tatuado na panturrilha esquerda de Carolina. O barulho do aparelho, só era interrompido quando Cris limpava a agulha com um lenço de papel toalha não reciclado, e mergulhava a agulha, nas pequenas tinas rasas de porcelana chinesa, que continham tintas importadas do extremo oriente. Elas eram quatro e, estavam perfiladas em simetria, em uma pequena bancada de vidro ao lado da maca, as tinas tinham inscrições em uma língua oriental. Carolina pensou, na possibilidade, que fossem os nomes das cores das tintas, nas pequenas tinas rasas e na remota possibilidade de Cris poder dominar aquele idioma oriental, Carolina não estava em toda enganada. A máquina de aço, parecia leve e, ter vida própria, Cris estava em êxtase naquela altura, ao contrário de Carolina, que parecia não se importar com mais nada, além da existência de Cris, ali na sua frente e, literalmente, aos seus pés.

– Então? Tira essa mascara horrorosa da cara, esses óculos fora de moda, quero ver esse teu rostinho lindo e me responde logo. Responde de uma vez! – Cris parou o trabalho, olhou para a cliente por uns instantes, deu uma longa suspirada e voltou para finalizar o trabalho. Nessa altura, a única coisa que importava para Cris, era terminar o trabalho e mandar a criatura perturbadora e diafona embora de uma vez. Era assim que Cris pensava, naquela hora derradeira.

– Cris, tu vai para onde nessa tediosa e enfadonha noite de outono? Nãoooo! Não vai me dizer, que és uma pessoa solitária e sozinha. Se és, eu posso resolver ‘’esse’’ teu probleminha, de uma vez por todas! – Cris pareceu não se importar, com o falatório da moça, que mais parecia um texto extraído de uma peça teatral burlesca. Cris passa o lenço de papel sobre uma parte da tatuagem, para tirar o excesso de tinta, e dá o trabalho por encerrado. Sem ao menos saber, como o trabalho ficou pronto, tão rápido e como sua mais nova ‘’cliente’’, apesar da aparência delicada e frágil, ela não esboçou uma única queixa de dor, nem uma única suspiro leve sequer, como era usual, quando essas criaturas delicadas resolvem fazer uma tatuagem. Mas, o trabalho estava terminado e Carolina estava mais que pronta para se despachada para longe da vida de Cris de uma vez por todas. Cris tirou a mascara, os óculos e por fim, contemplou o trabalho finalizado, por vários ângulos. Cris, em um arrebatamento não usual e não profissional, parecia querer entender o trabalho que acabara de finalizar. Para Cris um trabalho, era sempre mais um trabalho e nada para além de um trabalho. Ou para ser mais exato, um caminhar natural para a perfeição de que um profissional, em qualquer área, naturalmente busca em seu ofício diário.

– As cores vão se definir daqui há alguns dias, e não tire este plástico, que ‘’estou’’ colocando na tua perna. Não tira até amanhã cedo, pelo menos... se bem que... te pego amanhã, as oito-e-meia, sua Diaba! Hoje não dá! Não dá mesmo. Tenho uns assuntos, não acabados para resolver hoje, que não podem ficar para depois. Se queres diversão, vou te dar uma boa ‘’dose’’ de fortes emoções, amanhã quando à noite cair, sua Diaba! Se tens crença em algum Deus, clame por ele desde já meu bem..

– Nossa! Um pouco de emoção de verdade afinal de contas. Ei! Já não te disse para ter modos? Não me chama de Diaba! Tu beijas a tua mãe com esta tua boca suja? Beija? Uhm... Uhm... e este plástico na minha perna! Até parece que eu fui comprada, no açougue do seu Maneca, ali, na esquina da minha casa. – Carolina olhou, usando um pequeno espelho, por vários ângulos, para a tatuagem como uma criança, que acabara de ganhar um brinquedo novo.
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Samuel da Costa é contista em Itajaí /SC

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 15

CAPÍTULO CXI / CONTADO DEPRESSA

Achei-lhe graça, e não lhe nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos sucessos ocorridos, e da tal ou qual simpatia ao rato que acho em mim; teve graça. Não me pesa dizê-lo; os que amam a natureza como ela quer ser amada, sem repúdio parcial nem exclusões injustas, não acham nela nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei em os fazer viver juntos, mas vi que são incompatíveis. Em verdade, um rói-me os livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes perdoe, se já perdoei a um cachorro que me levou o descanso em piores circunstancias. Contarei o caso depressa.

Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé dela, e três cães na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente. nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando eles me viram, afastaram-se, dous desceram para o lado da Praia do Flamengo, um ficou a curta distancia, como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos sinais de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como eu continuasse, ele veio a mim, devagar, mexendo a cauda, que é o seu modo de rir deles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não me quis atribuir perfídia ao gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se livrou.

Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, suponho, mas não as recusaria também. O que faria com certeza era ir atrás dos cães, a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por aquele batalhador futuro.

--Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia. mas papai em moço era assim também; mamãe é que contava.

--Sim não sairá maricas, repliquei, eu só lhe descubro um defeitozinho gosta de imitar os outros.

--Imitar como?

--Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...

Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era preciso emendá-lo. Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe que era só imitar por imitar, como sucede a muitas pessoas grandes, que tomam as maneiras dos outros; e para que não fosse mais longe...

--Também não vamos mortificá-lo. Sempre há tempo de corrigi-lo.

--Há, vou ver. Você também não era assim, quando se zangava com alguém...

--Quando me zangava, concordo; vingança de menino.

--Sim, mas eu não gosto de imitações em casa.

--E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.

A resposta de Capitu foi um riso doce de escárnio, um desses risos que não se descrevem, e apenas se pintarão, depois estirou os braços e atirou-mos sobre os ombros, tão cheios de graça que pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu fiz o mesmo aos meus, e senti não haver ali um escultor que nos transferisse a atitude a um pedaço de mármore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo saem bem, ninguém quer saber de modelo, mas da obra, e a obra é que fica. Não importa; nós saberíamos que éramos nós.

CAPÍTULO CXIII / EMBARGOS DE TERCEIRO

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim. senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.

A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por não achar da minha parte correspondência aos seus afetos que me explicou daquela maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam também, não muitos, e não digo nada sobre eles, tendo aliás confessado a princípio as minhas aventuras vindouras, mas eram ainda vindouras. Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. A minha própria mãe não queria mais que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estréia de ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar, saí, mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.

--Vinha falar-te, disse-me ele.

Expliquei-lhe que tinha saído para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.

--Doente de quê? perguntou Escobar.

--Queixava-se da cabeça e do estômago.

--Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...

Eram uns embargos de terceiro; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele jantado na cidade, não quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria depois...

--Não, falemos já, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.

Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:

--A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.

CAPÍTULO CXIV / EM QUE SE EXPLICA O EXPLICADO

Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou explicado, mas não bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de música de S. Paulo que me escrevesse a toada daquele pregão de doces de Mata-cavalos. Em si, a matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto mais dous; mas há matérias tais que trazem ensinamentos interessantes, senão agradáveis. Expliquemos o explicado.

Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em momento de grande ternura, e o tabelião divino sabe as cousas que se juram em tais momentos, ele que as registra nos livros eternos.

--Você jura?

--Juro, disse ela estendendo tragicamente o braço.

Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminário. Quando fui para S. Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo inteiramente; consegui recordá-la e corri ao professor, que me fez o obséquio de a escrever no pedacinho de papel.

Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas hás de crer que quando corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também não me lembrava já da toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu pecado; esquecer, qualquer esquece.

Ao certo, ninguém sabe se há de manter ou não um juramento. Cousas futuras! Portanto, a nossa constituição política, transferindo o juramento à afirmação simples, é profundamente moral. Acabou com um pecado terrível. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a alguém que tenha mais temor a Deus que aos homens não lhe importará mentir, uma vez ou outra, desde que não mete a alma no purgatório. Não confudam purgatório com inferno, que é o eterno naufrágio. Purgatório é uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, até que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam todos os pecados grandes e pequenos.

CAPÍTULO CXV / DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS

Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que custa escrevê-los, quanto mais contá-los. Da circunstancia nova que Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não valia nada.

--Nada?

--Quase nada.

--Então vale alguma cousa.

-- Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você vai tomar comigo.

--É tarde para tomar chá.

--Tomaremos depressa.

Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim descer fiado, como se cuidasse que eu recusava a circunstancia nova para forrar-me a escrevê-la, mas tal suspeita não ia com a nossa amizade.

Quando ele saiu, referi as minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina que possuía, um jeito uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de Olímpio.

--Seria o negócio dos embargos, concluiu; e ele que veio até aqui. a esta hora, é que está impressionado com a demanda.

--Tens razão.

Palavra puxa palavra, falei de outras dúvidas. Eu era então um poço delas; coaxavam dentro de mim, como verdadeiras rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu.

--Já disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãezinha tem ciúmes de você; logo que eles passem e as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando o neto...

--Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel Quando ele vai comigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças.

--Quem sabe se não anda doente?

--Vamos nós jantar com ela amanhã?

--Vamos... Não... Pois vamos.

Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os seus cabelos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse comparativamente fresco- era uma espécie de mocidade qüinquagenária ou de ancianidade viçosa, à escolha... Mas nada de melancolias; não quero falar dos olhos molhados, à entrada e à saída. Pouco entrou na conversação. Também não era diferente da costumada. José Dias falou do casamento e suas belezas, da política, da Europa e da homeopatia, tio Cosme das suas moléstias, prima Justina da vizinhança, ou de José Dias, quando este saía da sala.

Quando voltamos, à noite, viemos por ali a pé, falando das minhas dúvidas. Capitu novamente me aconselhou que esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava, recrudescia de ternura. Dali em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infância. Ezequiel às vezes estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver o ósculo da chegada e da saída. e ele enchia-me a cara de beijos.

CAPÍTULO CXVI / FILHO DO HOMEM

Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado. Não havia nada, nem podia haver cousa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que ele ouvia "à bela e virtuosa Capitu."

--Agora, quando os ouço, entro também no coro, mas a princípio ficava envergonhadíssimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento, era duro confessar que ele foi uma verdadeira bênção do céu. Que digna senhora nos saiu a criança travessa de Mata-cavalos. O pai é que nos separou um pouco, enquanto não nos conhecíamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D. Glória elogia a sua nora e comadre...

--Então mamãe?...

--Perfeitamente!

--Mas, por que é que não nos visita há tanto tempo?

--Creio que tem andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tem feito muito frio... Imagine a aflição dela, que andava o dia inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que lá tem o seu mal...

Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza quando íamos nós a Mata-cavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do agregado. José Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na véspera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe: "Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?" "Queres comer doce, filho do homem?"

--Que filho do homem é esse? perguntou-lhe Capitu agastada.

--São os modos de dizer da Bíblia.

--Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.

--Tem razão, Capitu, concordou o agregado. Você não imagina como a Bíblia é cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vais, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?

--Não, atalhou Capitu; já lhe vou tirando esse costume de imitar os outros.

--Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que ela lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu ando?

--Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer.

Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das mãos e pés de Escobar, ultimamente, até apanhara o modo de voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começamos a falar de outra cousa, saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias:

--O senhor anda assim.

Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa que fechou a cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.

--Não quero isso, ouviu?

CAPÍTULO CXVII / AMIGOS PRÓXIMOS

Já então Escobar deixara Andaraí e comprara uma casa no Flamengo, casa que ainda ali vi, há dias, quando me deu na gana experimentar se as sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizê-lo bem, porque os sonos, quando são pesados, confundem vivos e defuntos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas pode ser que fosse do mar, meio agitado. Enfim, passei, acendi um charuto, e dei por mim no Catete, tinha subido pela Rua da Princesa, uma rua antiga... o ruas antigas! ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso dizer que no mau sentido, no sentido de velho e acabado.

Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo número. Não digo que número é para não irem indagar e cavar a história. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de contar. Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só casa- eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Mata-cavalos, com o seu muro de permeio.

Um historiador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei bárbaro algumas palavras mansas, quando os portugueses lhe propunham estabelecer ali ao pé uma fortaleza, dizia o rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros, não perto, para se não zangarem como as águas do mar que batiam furiosas no rochedo que eles viam dali. Que a sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela seja verdadeira. Provavelmente foi o mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita. Eu creio que o mar então batia na pedra, como é seu costume, desde Ulisses e antes. Agora que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente há inimigos contíguos, mas também há amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda não era do seu tempo) esquecia o adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter os corações agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passávamos as noites cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. Os dous pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Glória.

Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que até já se iam parecendo. Eu expliquei:

--Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças que se freqüentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados.

CAPÍTULO CXVIII / A MÃO DE SANCHA

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis, ao contrário, a idéia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito, dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquelas construções quase eternas.

O nosso castelo era sólido, mas um domingo... Na véspera tínhamos passado a noite no Flamengo, não só os dous casais inseparáveis, como ainda o agregado e prima Justina. Foi então que Escobar, falando-me à janela, disse-me que fôssemos lá jantar no dia seguinte; precisávamos falar de um projeto em família, um projeto para os quatro.

--Para os quatro? Uma contradança.

--Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã.

Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu, veio ter comigo. Perguntou-me de que é que faláramos- disse-lhe que de um projeto que eu não sabia qual fosse, ela pediu-me segredo e revelou-me o que era: uma viagem à Europa dali a dous anos. Disse isto de costas para dentro, quase suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca.

--Vamos todos? perguntei por fim.

--Vamos.

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraterais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.

Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhum passavam. Tal se dá na rua entre dous teimosos. A cautela desligou-nos eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive um certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencível... Invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa, que a gente recebe e repete em si mesma.

--O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.

--Você entra no mar amanhã?

--Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões disse ele batendo no peito, e estes braços; apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nem só os apalpei com essa idéia, mas ainda senti outra cousa, achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar.

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume

A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma sanção ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser. mas o fluido particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.

-- ...Uma senhora deliciosíssima, concluiu José Dias um discurso que vinha fazendo.

--Deliciosíssima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me: Realmente, uma bela noite!

--Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Cá fora, não, cá fora o mar está zangado; escute.

Ouvia-se o mar forte,--como já se ouvia de casa,--a ressaca era grande e, a distancia, viam-se crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante, detiveram-se numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro, mas eu conversava mal. Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos. Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do Daho intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós à porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei mais que de costume.

O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo, rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me afirmava que houvesse alguma intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão amigas que seria um prazer mais para elas irem juntas. Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante, destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro pecado, nem têm maior duração. Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e apertando...

Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atração. A timidez pode ser que fosse outra causa daquela crise; não é só o céu que dá as nossas virtudes, a timidez também, não contando o acaso, mas o acaso é um mero acidente; a melhor origem delas é o céu. Entretanto, como a timidez vem do céu, que nos dá a compleicão, a virtude, filha dela, é, genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim refletiria se pudesse, mas a princípio vaguei à toa. Paixão não era nem insinuação. Capricho seria ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me- vi-lhe a atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me.

CAPÍTULO CXIX / NÃO FAÇA ISSO, QUERIDA!

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.

CAPÍTULO CXX / OS AUTOS

Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima Justina saíram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a demanda- consultei Dalloz, Pereira e Sousa...

Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um ano antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costas do cartão: "Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70." Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos daquela manhã, e espancaram de todo as recordações da véspera. Naquele tempo a minha vista era boa; eu podia lê-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.
–––––––––-
continua…

2a. Antologia “Logos” da Fénix (Convite para Participação até 3 de Maio)

Queridos Amigos,

Após o êxito da nossa 1ª Antologia "LOGOS" de Março último, voltamos a ter o prazer
de endossar-lhes o nosso Convite de participação

na 2ª Antologia "LOGOS" DA FÉNIX.

Agradecemos o seu envio imediato com data limite até 3 de Maio próximo.

Leia abaixo as respectivas instruções no texto integral do nosso CONVITE.

Esperamos por vós, prezados Poetas e Prosadores!

Com o nosso abraço.
Carmo Vasconcelos e Henrique Lacerda Ramalho

Fénix
DE
CARMO VASCONCELOS
E
HENRIQUE LACERDA RAMALHO

Convite

2ª ANTOLOGIA "LOGOS"
Ano 2013

Prezados Escritores, Poetas e Amigos,
É com muito prazer que vimos convidá-los a participarem da 2ª Antologia "LOGOS" da "Fénix" - Ano 2013.

(COMO SEMPRE, PARTICIPAÇÃO GRATUITA)

A Antologia será sob TEMA LIVRE, EM PROSA OU VERSO (1 único trabalho), em Word, sem formatação, acompanhado duma foto do autor, em anexo. Quem já enviou foto para a 1ª Antologia, fica dispensado deste envio.

As participações deverão ser remetidas, se possível com aviso de recepção, e unicamente para o seguinte e-mail
carminhov@hotmail.com
até ao dia 03 de Maio de 2013


A Fénix aguarda os vossos trabalhos, e desde já agradece a gentil participação.

Fonte:
Carmo Vasconcelos

sábado, 27 de abril de 2013

Gislaine Canales (Caderno de Trovas)

A minha vida é uma Trova,
trova de ilusão perdida,
pois a vida é grande prova,
que prova a Trova da vida!

Amor à primeira vista,
foi isso, mar, que eu senti!
Ninguém há que te resista,
quando está diante de ti!

Caminhei pelo infinito,
vaguei por milhões de espaços...
Até lá estava escrito
o meu regresso aos teus braços!

É contrastante a ironia,
nesta verdade contida:
lindo o entardecer do dia,
triste o entardecer da vida!
 
É mais que um deslumbramento
ver o sol nascer no mar,
é mágico esse momento
que vem as águas dourar!

Eu gosto de navegar
nesse mar de azul infindo
formado por teu olhar.
Não existe mar mais lindo!

Não posso viver em vão,
eu preciso um filho ter,
plantar em fecundo chão
e um livro bom, escrever!

Nesta vida tão inquieta,
o meu consolo é pescar.
Sou pescadora – poeta,
que pesca versos no mar!

Numa troca de carinhos,
dois sorrisos se irmanaram,
e os dois, antes, tão sozinhos,
juntos, pra sempre, ficaram !
O brigadiano velhinho
gemia e quase chorava,
quando a velha, de mansinho,
seu cacetete... lustrava!  
 
Olhando o mar, eu diviso,
a areia branca a esperar
um beijo feito sorriso,
que as mansas ondas vêm dar!

Olhava o mar com temor,
numa espera preocupada:
nem peixes...nem pescador!
Tão só o vazio do nada!
O magro e a magra dançando...
Osso com osso batia...
E quem estava escutando
pensava ser bateria...

O magro era tão magrinho,
magrinho de fazer dó...
seu pijama listradinho
era de uma listra só!

O mais bonito sorriso,
que eu ganhei, cheio de afeto,
revelar nem é preciso !
Foi do meu primeiro neto!

O meu viver enfadonho,
só de amarguras composto,
põe as rugas do meu sonho
sobre as rugas do meu rosto!

O trovador que em verdade,
faz da trova uma oração,
coloca com amizade
“A trova no Coração”!

Para mim, não há segredos,
meu mar, de infinito azul,
nós convivemos sem medos,
nas belas praias do Sul!

Quero cantar pelo espaço
e, nas estrelas, rever
todas as trovas que eu faço.
Trova é prece em meu viver!

Sou pescador de ilusões,
e nesse pescar me ponho,
conquistando corações
com os anzóis do meu sonho!

Sou tão triste e tão sozinha,
que o eco do meu lamento,
desta saudade tão minha,
escuto na voz do vento!

Um bombeiro consciente,
alto, loiro, bonitão,
apaga o fogo da gente
mesmo sem água na mão!

Um gemido de dar medo,
eu ouvi... que coisa estranha!
Cravou o espeto no dedo,
em vez de ser na picanha! 

 Um segredo que me assusta:
-Não saber, se após a morte,
há uma vida boa e justa,
que não dependa da sorte!

Vamos a vida encantar
com nossa Trova querida,
e na Trova, então cantar,
um hino de amor à vida!