sábado, 2 de março de 2013

A. A. de Assis (Revista Vrtual de Trovas "Trovia" - março 2013)

Meu amor por ti (que mágoa!)
se evaporou de repente,
tal que fosse um pingo d’água
caído num ferro quente...
Américo Falcão
Meu lenço, na despedida,
tu não viste, em movimento:
lenço molhado, querida,
não pode agitar-se ao vento.
Carlos Guimarães
Quem diz moço diz loucura;
quem diz velho, sensatez.
Mas eu queria a esta altura
enlouquecer outra vez.
Ildebrando Sisnando

Meu Deus, abençoa o espinho,
a raiz, o fruto, a flor,
o galho que embala o ninho
e o ninho – berço do amor
Iracy do Nascimento e Silva
Duas vidas todos temos,
muitas vezes sem saber:
a vida que nós vivemos
e a que sonhamos viver.
Luiz Otávio

De gota em gota, pingando,
sem ver que a chuva parou,
goteira é a casa chorando
porque você não voltou.
Rubens de Castro

Mais criatividade. Mais fraternidade. Menos competição.

– Esse biquíni agarrado...
Meu bem, o que aconteceu?
– Foi na água que, molhado,
rapidinho se encolheu...
Gasparini Filho – SP

Não botem fogo na cana,
peço ecologicamente –,
que a cana boa e bacana
é que põe fogo na gente...
Héron Patrício – SP

No seu biquíni, apertado,
Maria me deixa mudo,
pois nunca vi “tanto nada”
cobrindo tão pouco... “tudo”...
Izo Goldman – SP

Depois de fazer a ronda,
o galo ficou danado:
a galinha, tão redonda,
quis botar ovo quadrado!
Luiz Carlos Abritta – MG

Depois de um beijo molhado,
sentiu algo diferente...
Perguntou ao namorado:
– Onde foi parar meu dente?
Mª Lúcia Godoy Pereira – MG

Meu cãozinho, eu sempre achei-o
um tanto ou quanto esquisito:
– O talzinho era tão feio,
que chegava a ser bonito...
Osvaldo Reis – PR

Faz regime... e, por fazê-lo,
se desespera a coitada,
pois sempre tem pesadelo
com rodízios... de salada!...
Pedro Mello – SP

Palpite não é dinheiro,
mas se fosse eu estava bem...
Pois o que há de palpiteiro,
só me enchendo, como tem!
Roberto Acruche – RJ

Num mundo onde tantos agem
deixando em seu rastro a dor,
louvada seja a coragem
dos que ainda creem no amor!
A. A. de Assis – PR

Que bom, chegando aos sessenta,
saber, revendo os meus passos,
que é o bom Deus que me sustenta
e me carrega em Seus braços...
Almir Pinto de Azevedo – RJ
De bom exemplo um só grama
vale muito, muito mais,
que uma arenga que se inflama
com mil conselhos banais.
Amilton Maciel – SP

Quantos sonhos e ilusões
tecemos na mocidade;
mas, nas cinzas das paixões,
nos resta apenas saudade!
Angela Stefanelli – RJ

Na velha casa vazia,
onde entrei, com ansiedade,
só o silêncio respondia
ao chamado da saudade...
Angelica Villela Santos – SP

Na escuridão em que sigo,
no meu passo caracol,
aquele que vai comigo
é meu imenso farol.
Antonio Cabral Filho – RJ

Se houver alguém precisando
de que você faça um bem,
não se importe com o “quando”,
nem o “como”, nem “a quem”.
Antonio Colavite Filho – SP

Mãos tristes, temendo ausências,
se despedem com revolta...
– Nosso adeus tem reticências
que acenam gritando: – Volta!
Carolina Ramos – SP
O que eu vibrei em teus braços
minha alma vibra agora...
ouvindo o som dos teus passos,
mais que depressa, indo embora!
Clenir Neves – Austrália

Transformei em lindo adorno
os ritos do meu sonhar...
Andei, vaguei sem retorno,
me acampei no teu olhar.
Conceição Abritta – MG

Senhor, neste amanhecer,
louvo a tua criação:
da aurora ao entardecer,
eu te encontro em meu irmão.
Cônego Telles – PR

Prego o bem por onde passo,
paz e amor semeio ao léu
e em cada trova que faço
chego mais perto do céu.
Dáguima Verônica – MG
Contendo ideia completa
e pregando o bem geral,
um só verso de um poeta
pode torná-lo imortal!
Dari Pereira – PR

Boca amarga! Tudo gira...
Brindei com vinho, e em excesso,
à dolorosa mentira
que seria o teu regresso...
Darly O. Barros – SP
A trova, de qualquer jeito,
chega forte e vai bem fundo:
em seu contexto perfeito
já percorre todo o mundo!
Diamantino Ferreira – RJ

Com as “notas” da alegria
ou “dissonância” sofrida,
Deus compõe a melodia
da partitura da vida,
Domitilla B. Beltrame – SP

Paixão, fina taça cheia
de champanhe borbulhante;
fascínio que nos tonteia
e se esvai no mesmo instante.
Dorothy Jansson Moretti – SP

A paixão com hora incerta
e urdida de angústias lentas
é feito um mar que desperta
em dolorosas tormentas!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Quantas bênçãos recebidas
quando se caminha aos pares:
um ideal, duas vidas,
dois corações similares.
Eliana Jimenez – SC

Eu sou guerreira e não nego
meu instinto lutador,
mas renuncio e me entrego
se a luta for por amor!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Essa lágrima sentida
que nos teus olhos aflora
é uma prova enternecida
de que um homem também chora!
Ercy Marques de Faria – SP

Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
Francisco Garcia – RN

Paciência traz virtude,
que vem aninhar-se na alma
de quem domina a atitude
quando a vida exige calma.
Gabriel Bicalho – MG

Deus reprova os arrogantes,
pois, para o espanto de alguns,
sempre esconde os diamantes
entre as pedras mais comuns!
Gerson Cesar Souza – PR

Passa a brisa e satisfeito
sentindo-a relembro quando
tu repousada em meu peito
fechava os olhos sonhando...
Gilvan Carneiro – RJ
Vejo a tua silhueta
na sombra, bem definida,
e abro, em meu peito, a gaveta
de uma saudade escondida!
Gislaine Canales – SC

A tristeza que atordoa
não esquecemos jamais.
Vem de leve, chega à toa,
e do peito não sai mais.
Humberto Del Maestro – ES

Enorme sabedoria
vem nesta simples lição:
doar afeto e alegria,
pra driblar a solidão.
Jeanette De Cnop – PR

Cansado de tanto errar,
nessa procura infeliz,
já nem sei se ao te encontrar
eu me sentirei feliz.
João Costa – RJ

Meu pai me ensinou: "Reflita".
Nunca esqueci a lição:
"A velhice não se evita,
maturidade é opção!"
J.B. Xavier – SP

Faça pelo menos uma trova por dia. É bom até para a saúde.

Mesmo se é pobre a mobília
e às vezes falta alimento,
é na casa da família
que a esperança encontra alento.
Jorge Fregadolli – PR

Ontem…Florestas…Encanto…
Flores a desabrochar.
Hoje pinheiros em pranto,
um grito parado no ar.
José Feldman – PR

Aqui, neste mundo incréu,
chamam pobreza castigo,
e Deus faz festa no céu
pra receber um mendigo!
José Lucas de Barros – RN

No refúgio enclausuradas,
as mágoas choram quietinhas,
por tanto amor de mãos dadas
e as minhas mãos... tão sozinhas!
José Messias Braz – MG
 

Depois de uma certa idade
fui te esquecendo, meu bem;
chega um tempo em que a saudade
perde a memória também!
José Ouverney – SP
 

Chego a perder a esperança,
vendo ao relento, a dormir,
uma sofrida criança
sem lar, sem paz, sem porvir!
José Valdez – SP
O que você faz pela trova é tão importante quanto as trovas que você faz.

Quando criança, eu ficava
olhando o céu, a cismar:
– quem, tão alto, a luz ligava
para acender o luar!
Lisete Johnson – RS

Pode ir embora, querida...
que eu guardo a dor compulsória
de ter que arrancar da vida
quem tatuei na memória...
Manoel Cavalcante – RN

Fecho os meus olhos e sinto
a alma inundada de luz.
É Deus presente ao destino
nesta fé que me conduz!
Mª Luíza Walendowsky – SC

À espera do teu regresso,
deixei a vida passar...
Envelheci, mas... confesso:
– Valeu a pena esperar!!!
Mª Madalena Ferreira – RJ

Há um momento em que a bondade
forja a mentira bonita,
porque sente que há verdade
que jamais pode ser dita!...
Maria Nascimento – RJ
 

Não há no mundo distância
que faça um dia esquecer
a terra de nossa infância,
o sol que nos viu nascer!
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Um romântico poeta
tem seu dia, sim senhor,
e por ser do amor esteta,
com certeza é um Trovador!
Maurício Friedrich – PR

A flor caiu dos cabelos
da jovem que ali passava
e levada foi sem zelos
para o mar que a cobiçava.
Mifori – SP

A trova é a poesia do século 21: moderna, enxuta,
difícil de fazer mas fácil de entender e de memorizar.


Não choro, não xingo, eu luto!
Caso a tristeza me oprima,
o meu coração, astuto,
dá logo a volta por cima.
Nélio Bessant – SP
Faça chuva ou faça sol,
barro ou poeira na estrada,
se você for meu farol,
continuo a caminhada.
Olga Agulhon – PR

Nasceu no campo, algodão...
Virou fio... foi tecido...
Ganhou cor e confecção...
Está pronto o seu vestido!
Renato Alves – RJ

Quanta angústia se reparte
no momento da partida,
se a renúncia de quem parte
parte o sonho de uma vida!...
Thereza Costa Val – MG

Tantas juras... de mãos dadas.
Mas a vida, em seus desvãos,
ao namoro armou ciladas
e separou nossas mãos!
Therezinha Brisolla – SP

Juraste-me ser fiel;
desse nosso amor, contudo,
hoje resta o velho anel
num estojo de veludo.
Vanda Alves – PR

Ao raiar de um novo dia,
quantas razões de viver!
A esperança se irradia
nas brumas do amanhecer!
Wagner Lopes – MG
 

Já não sei se nos dói mais,
na estrada de tantos trilhos,
soltar-se da mão dos pais...
ou soltar a mão dos filhos.
Wandira F. Queiroz – PR

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 15. Canudo-de-Pito

A manhã, hoje, era uma festa, e o meu bairro, todo em manchas aéreas e frescas de paredes claras, telhados vermelhos, jardins verdes, morros azulegos e violáceos a derreterem-se na distância como caramelos, me divertia como uma paisagem refletida numa bola de cristal. Eu não tinha senão olhos, enquanto o bonde corria. "Corre mais devagar, bonde do diabo! que assim como vais se me atrapalha tudo. -Corre mais depressa, bonde do inferno! que assim lentamente a desfilada das coisas mal se liberta da rigidez e do peso."

De repente, do meio da grande nuvem escura de um velho bosque, saltou como de um capulho, uma nuvem amarela, a fronde arredondada de uma árvore de ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesário da Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipê!" O meu vizinho deu uma olhadela e informou friamente: "Canudo-de-pito".

O fato de se tratar de um canudo-de-pito, e não de ipê, madeira de lei, influía decisivamente na reação da sua sensibilidade ante aquele quadro fugente e alucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se a uma coleção de conceitos, ou a um dicionário ilustrado. Costa não foi composto para comunicar diretamente com as coisas, no absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo e surpreendente aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso e menos triste do que o Além por onde vagam os Fabianos.

A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato e regenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam de longe e de viés, através dos tipos, modelos, noções, definições, poeira brumosa de abstração, sob a qual a intimidade fluente e jovial do mundo se desvanece, e a alma encantada da criação foge como um Ariel zombeteiro. Diante de uma paisagem, não vêem a paisagem, mas uma coleção de objetos e de efeitos conhecidos e explicados, formando um conjunto visual de acordo com meia dúzia de normas laboriosas. Diante de um ser vivo, desarticulam as partes, (como se um ser vivo, como se as coisas tivessem na realidade partes) examinam, medem, subdividem, espedaçam, e cada ato desses decorre de uma idéia feita, de um critério preconcebido, de uma prefiguração normativa, de uma série de operações mentais anteriores ou presentes. A grande descoberta instantânea tornou-se impossível. O delicioso milagre só se revela a quem confia, franciscanamente, na luminosa estupidez do seu instinto e dos seus sentidos, e ingenuamente se lhes abandona, como o pássaro se deixa librar nas suas asas.

Por isso, um imenso repositório de beleza jaz inexplorado e ignorado no mundo e na vida. Quanta mulher feia por definição não é por natureza uma coisa formosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, não guarda, um poucochinho mais além desses acidentes, dissimulado como um seixo branco no fundo de um rio, uma harmoniosa, surpreendente disposição fundamental de linhas, de relevos e de contornos! E a quantidade de beleza que não se vê porque o objeto em si mesmo é desprezível ou repugnante! Um charco é uma imagem intelectual e oratória de dissolução, de paralisia, de morte, de decadência; é um foco pestilento, uma chaga aberta na terra, tapada de moscas, de vermes, de batráquios: um horror "por conseqüência". Uma cobra -puh! medonha! Entretanto, olhemos para isso tudo como uma criança, com a atenção e a curiosidade nuas de uma criança que não conhece nada, não sabe nada, não teme nada. O charco talvez nos apareça, cheio de azul, como um buraco da terra sobre um abismo sem fundo, todo lavado de claridade e povoado de numes joviais. A superfície da água, aqui lisa, ali borbulhante, além com placas e refegos de nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por um bicho que se mexeu, toda betada de sombras movediças e de reflexos morrentes, golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, -como se andasse ali a dissolver-se uma taxada de luminosidades, de negruras e de cores, pode ser um retalho fresco e maravilhoso de beleza arrancado ao monturo da realidade intelectiva.

A cobra, essa é positivamente um objeto encantador. Vê-la enrodilhar-se é apreender a nitidez perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente à cambiante contínua. Vê-la caminhar é ter a impressão de um liquido que se solidificou conservando a propriedade de escorrer.

Vai tão sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno, que se diria que a cobra não existe, é um simples movimento ondulatório do solo, um fragmento funiforme de sismo, uma estilha perdida e deslizante de terremoto. Esse corpo sem membros parece também não ter ossos, e apenas se percebe que é formado de anéis ou forma anéis à medida que se move, e que esses anéis se desmancham, mal se desenharam em outros que vão desvanecer-se de igual maneira: um devaneio maluco objetivado.

É um pau que se fez cipó e um cipó que parece querer voltar aos enlaces e aos balanços com as ramas. Irritado, arroja o bote com a fulminante rapidez e a fatalidade mecânica de um galho seco atirado pela raiva súbita da rajada. Como se tivesse barbatanas e asas invisíveis, bóia, nada, voa pela superfície da terra, e, quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela dentro.

Vejamo-la em repouso: é uma obra esquisita de tapeçaria, com desenhos tão bem arabescados e cores tão bem distribuídas, que os nossos olhos se espreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer se enrodilha e se esquece nas suas próprias roscas, e sonha.

Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre:

Il n'est pas de serpent ni de monstre odjeur,
Qui, par l'art imité, ne puísse plaire aux yeux,


-mas quais são os monstros odiosos para os meus olhos? não têm ódios nem amores. Tudo é natureza, tudo é espetáculo, tudo é necessário, tudo é expressão da multiplicidade sem fim na unidade substancial do infinito mistério e da infinita beleza.

No meio desse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos um tanto à maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palácios, nos pátios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do conto oriental. Príncipes, vizires, xeques, mercadores, ganhões, todos alheios à magia do espetáculo colorido e móbil do mundo, eles próprios mero espetáculo para os olhos de um triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira.

Fonte:
Domínio Público

Antonio Virgilio de Andrade (Poesias)

POETAR

A fotografia
É um momento ímpar
Capturado pelo olho mágico
Do fotógrafo.

A poesia,
Um momento inesquecível
Imortalizado nos versos
Do poeta.

LEMBRANÇAS

A Fernando Pessoa

Eu lembro,
Partiste num ontem;
Mas há quanto tempo sofro.

No refúgio da minha “Ribatejo”,
Tua lembrança quebra a frieza da minh’alma
E ascende o fogo do desejo.

Como dizer que nosso amor é findo,
No lenço guardo teu cheiro,
E nele vou me consumindo.

Beijos nunca dados sinto.
São doces lembranças,
Fantasias e instinto.

SIMPLES

Amar é simples
Quando se ama simplesmente

São aromas, sons, cores e gestos simples
Que ficam com a gente,
Como aquele olhar cúmplice
Ou um desolhar simplesmente.

Ela cruzou o meu caminho
E foi me possuindo, possuindo-me simplesmente

Ofertou-me sua candura
E com jeitos indecentes,
Levou-me a fazer toda sorte de loucuras
Ser feliz simplesmente.

Mas o tempo passou naquele lugar simples
Foi passando, passando simplesmente

Um dia ... meu mundo ruiu,
Foi tudo tão de repente!
Como veio, partiu...
Abandonou-me simplesmente.

A MOÇA DO DÉCIMO PRIMEIRO

À musa do Palácio do Desenvolvimento, Brasília
Por onde andará a moça
A moça do décimo primeiro;
Que me flechou com sorrisos e beijos
E se escondeu por trás do espelho.

Por onde andará a moça
A moça do décimo primeiro;
Que dançando na retina do meu olho
Verticalizou minha caneta tinteiro.

Será que ela não vem
Será que é pra nunca mais?
O mundo encobertou-se em sombras
Negrou o sonho de um bom rapaz.

Seu corpo exala cheiro dos campos
Dos campos das Minas Gerais;
A tez cor da cor de pequi maduro
Colhido nas terras do Goiás.

Não, mais sei se ela é mineira
Ou baiana como seus pais;
Ouvi dizer que é “Candanga”
Foi manchete nos jornais.

Será que ela não vem
Será que é pra nunca mais?
Será que partiu naquele novo trem (da alegria)
Pro paraíso dos deuses congressionais?

NO VÁCUO DA PAIXÃO
Você avançou o sinal
Não deu seta;
Te procurei pelas ruas da capital
A cidade ficou deserta.

Você foi audaz e veloz
Foi fugaz com seu bólido cor de vinho;
Deixou no vácuo um cálido perfume atroz
Tristeza e solidão no meu caminho.

Você avançou o sinal
Não deu seta;
Te procurei pelas ruas da capital
A cidade ficou deserta.

Espero na “lombada eletrônica” te encontrar
-Aquela que teima em engarrafar o “Eixinho”-;
Que me revele o número do celular
E escreva seu nome no meu colarinho.

Você avançou o sinal
Não deu seta;
Te procurei pelas ruas da capital
A cidade ficou deserta.

PROMÍSCUA

Quando me comes com teus olhos de menino pidão
Prazerosamente, deixo-me comprazer;
Se o calor obsceno domina minh’alma
Sinto o corpo entorpecer.

Tu me enlouqueces quando sopras um beijo inocente
Quando se faz de ausente, respiro a acidez do teu cheiro;
Meu olhar indiscreto desnuda um desejo cúmplice
Te possuo de corpo inteiro.

Quando a noite cai, invades meus sonhos
Desatinada e trôpega me deixo possuir;
Se teus úmidos lábios besuntam meu corpo
Do teu, sorvo licor e perfume.

BELEZA MORTA

A Jorge Viera Eschriqui
Química
Suor,
Formas em criação.

Cores
Fragrâncias,
Folhas e pétalas em harmonia.

Emoção
Fascínio,
Sentidos em confusão.

PLÁSTICO?!

NÁUFRAGO
Ainda corro contra o tempo,
Ele me é implacável...
Ainda navego sentimentos,
Ele me é indomável...
Ainda choro enquanto você sorri.

Ontem me fiz pranto,
Acordou-se em mim uma dor antiga...
Hoje me pego cantando,
Escondendo tristezas da vida...
Ainda me confortam pedaços de nostalgia.

Na parede um retrato adolescente envelhece
No cabideiro as traças devoram a casimira
No espelho entrevejo um rosto pálido
No travesseiro sinto o hálito forte de bebida.
Ainda descaminho no meu caminho.

DE CADENTE

Zuni um verso na escuridão;
Desenhou uma parábola
E despencou na noite fria.

O noctívago que contava estrelas
Descortina o facho de fogo.
Era um meteoro que caía.

Ébrio nas curvas do paralelepípedo
Acorda um resto de esperança;
Vislumbra sua estrela guia.

EM QUATRO ESTAÇÕES

Já se faz verão
Minhas folhas caem;
Já se foram tantos anos
Que nem me lembro mais.

Você foi a flor que alegrou a minha vida,
Postes minha eterna primavera
E minha melhor amiga.

Não nos frutificamos em nosso outono
Não germinaram as sementes no teu ovário;
Foram contidas em eterno sono
Sob a foice do lavrador cesáreo.

Nunca foi tão frio nosso inverno
Sempre nos sobrou um pouco de calor;
Hoje aquecemos ilusões e um outro cobertor.

DESEJOS

Quantos suspiros a suspirar;
Nossas mãos a se tocar.

Quantos arquejos a arquejar;
Nossos corpos a bailar.

Quantos orgasmos a sentir;
Nossos corpos a se fundir.

Quantas energias consumidas
Neste gozo da vida.

Quantos pecados a se pecar;
Se ela se casar.

Quanta dor irei guardar;
Se ela me abandonar.

Quantos sonhos a se sonhar;
Se cruzarmos um distante olhar.

Quantos versos irão compor
Ao viver seu desamor.

QUARESMEIRAS
Às vezes me faço abelha
Para colher o néctar da tua flor.
Às vezes me faço borboleta
Outras, beija flor.

AGUERRIDA

Já faz tempo que o sol não acorda,
É tudo um negro anoitecer.
Há quanto tempo nesta trincheira
Não se faz um amanhecer.
Já faz tempo, já faz tempo...

Já faz tempo que não te olho,
Com meus olhos de bom rapaz.
Há quanto tempo não te vejo
Nas páginas dos jornais.
Já faz tempo, já faz tempo...

Já faz tempo que não te toco, não te ouço,
Carícias tuas, não me trás.
Há quanto tempo sem teu corpo
Que a sua lembrança não me satisfaz.
Já faz tempo, já faz tempo...

Já faz tempo que semeiam bombas,
Cultivando o ódio do passado.
Há quanto tempo neste jardim de sombras
Colho corpos mutilados.
Já faz tempo, já faz tempo...

Fonte:
Antônio Virgílio de Andrade. Rastilho de Prosas. Ed. Virtual Books.2002.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte III

III
O PARAÍSO DE SATANÁS

O Satanás seguiu toda a Rua do Piolho e enveredou pela do Conde Lourenço da Cunha. Quase ao chegar ao campo de Santana, parou à porta de uma casinha modesta, de varanda pintada de verde, e bateu três vezes com os copos da espada.

Era ali, desconhecido e afastado, que fulgurava para o Satanás, o que ele chamava - o seu paraíso: era ali que o escultor escondia, como um avarento esconde o seu tesouro, a filha adorada única afeição pura da sua vida.

Ângelo Pallingrini, o Satanás, como mestre d'armas do príncipe, dedicara-se a guiar-lhe e fortificar-lhe o pulso; e quando o príncipe se fez homem, quando o seu altivo temperamento cavalheiresco se desenvolveu, ávido de amores e de façanhas, o Satanás passou sem transição do ofício de mestre d'armas ao ofício de alcoviteiro, e depois de guiar-lhe o pulso, começou a guiar-lhe o coração. Dentro do bolso do seu gibão havia sempre a certeza de se encontrar pelo menos um bilhetinho amoroso do real conquistador. O Satanás desbravava o caminho, aplanava-o, desembaraçava-o de todas as dificuldades.

Quando o príncipe chegava, estava tudo feito: via e vencia - e, logo perto, ficava o servidor fiel, de espada em punho, vigiando os amores do seu amo, para não deixar que os fosse perturbar a fúria de um pai rebarbativo ou a inconveniência de um marido indignado.

Desse lodo de todos os dias, purificava-se à noite o escultor, indo beijar a filha que ali vivia, guardada por uma velha espanhola, dona Emerenciana.

Assim que conseguia deixar o príncipe entretido nos braços de alguma rapariga condescendente, lá ia, embuçado na sua capa, pedir ao seu anjo da guarda um beijo purificador. Via-a, beijava-a, e voltava a correr aventuras com d. Pedro.

Na cidade, rosnava-se que o Satanás tinha amores ocultos com uma criatura divina que o amava até à loucura; porque, por mais precauções que tomasse o escultor para esconder as visitas noturnas à casinha colonial já começavam a fazer sobre o caso um tecido caprichoso de suposições. D. Bias, que todos sabiam muito amigo do Satanás, tomava uns ares misteriosos quando a esse respeito o interrogavam.

- Então?! diga cá, d. Bias: são amores, heim?

- E que é que tem a arraia-miúda com os amores de um cavalheiro digno? Pois, que sejam amores... E então? O que não se pode dizer, é como a bela se chama. É uma senhora que conhece de cor os nomes gloriosos de cinqüenta avós, e cujo nome não deve, portanto, andar na boca do populacho! Sim! que nós cá, fidalgos de raça, não nos sujamos com mulheres de meia-tigela: queremos sedas e jóias, e beijos fidalgos como nós!

Mas o Satanás deixava que a bisbilhotice de todos se perdesse em conjeturas, e redobrava de precauções.

Naquela noite, foi d. Emerenciana quem lhe veio abrir a porta. O Satanás, seguido pela espanhola, subiu a escada estreita e escura que levava ao sobrado, e entrou na sala, onde a filha, assim que o viu, atirou sobre a mesa o bordado e correu a dependurar-se-lhe do pescoço, num grande abraço carinhoso. Pela dura face do espadachim rolaram duas lágrimas silenciosas e os seus olhos embeberam-se, úmidos e sôfregos, nos dous céus azuis dos olhos da filha.

Branca teria quando muito 16 anos. Era já uma deliciosa mulher, esbelta, talhe gracioso de palmeira, seios tufados provocadoramente e grandes olhos azuis, dando uma encantadora expressão de ternura a sua face pálida e doentia de moça educada com rigor, sem distrações, sem grandes passeios ao ar livre. Mas o que a tornava mais bela, o que constituía o seu maior encanto, eram os cabelos cor de ouro, longos e finíssimos, cabelos que, quando soltos, cobriam-lhe todo o corpo, da cabeça aos pés, como um grande manto tecido de raios de sol.

Educada pela velha Emerenciana, com uma severidade terrível, Branca aos 15 anos ainda tinha uma alma de criança ingênua, que não sabe o que é a vida. Os seus grandes olhos azuis abriam-se curiosamente para o mundo, sem compreendê-lo.

Emerenciana cumpria fielmente as ordens do Satanás, que não queria que Branca chegasse à janela nem saísse à rua, muito cioso da virtude da filha, muito receoso da depravação dos fidalgos portugueses que d. João VI deixara no Brasil com o príncipe regente. De maneira que Branca se fizera mulher entre quatro paredes, tendo como únicas distrações os seus bordados e a conversa com d. Emerenciana, que, apesar do seu papel de vigilante rigorosa, tinha pela moça verdadeira afeição de mãe.

Foi mesmo a instâncias de Emerenciana que o Satanás consentiu que a filha, depois dos 15 anos, desse alguns passeios, raros e curtos, pela cidade. De um desses passeios nasceu para Branca uma nova era de sensações nunca até então experimentadas nem sonhadas pela sua inocência de reclusa.

Foi justamente um ano antes da noite cujos sucessos se estão desenrolando aos olhos do leitor. Era o dia da procissão de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Toda a cidade escovara os fatos, sacudira as sedas, brunira as arrecadas, e abalara para o Outeiro, que às duas horas da tarde, apresentava o mais pitoresco aspecto que é possível imaginar.

Desde o adro da ermida que em 1671 a piedade do ermitão Caminha erigira no alto do Outeiro, até à pequena praça em que vinha alargar a rua da Glória, toda a ladeira se apendoava de arcos de folhagens e bandeirolas. As famílias sentavam-se em bancos toscos, em um grande espalhafato de sedas novas, enquanto, de pé, os moleques e as negrinhas, vestidos de branco, muito sérios, carregavam cestos cheios de pão e galinha assada. Porque a gente daquele tempo sofrera a influência de d. João VI, que não podia ir a festa nenhuma sem fartas provisões de viveres.

Branca fora também ver a procissão, com a velha Emerenciana. E estava muito contente, com vontades infantis de bater palmas, gozando aquele grande prazer do contato da multidão, saciando-se de vida, de barulho, de agitação. Fez-se um movimento no povo. Era a procissão que descia.

Primeiro, um padre trazia o crucifixo entre dous acólitos, que empunhavam grandes varas de prata, em cuja extremidade uma vela de cera ardia no meio de um tufo dê rosas artificiais. Depois vinha a irmandade, precedendo o andor vagarosa, fazendo cair ao chão as grandes lágrimas brancas das tochas acesas. Todos se ajoelharam. Nossa Senhora passava, muito branca e muito serena, guirlandada de raios de prata, de mãos cruzadas ao peito, de olhos erguidos ao céu radiante daquela tarde formosa, sobre o andor dourado, transbordante de flores. Depois, o pálio, oscilando... Ouviam-se já, no couce do préstito, os acordes da banda militar.

Branca admirou o talhe esbelto de d. Pedro, que vinha fardado, empunhando uma das varas... Por um acaso qualquer, o batalhão parou mesmo diante de Branca.

E Branca sentiu de repente que o sangue lhe galopava à face e que o coração lhe batia no peito, vendo o capitão que comandava a tropa, cravar-lhe na face dous olhos negros e ávidos, que a abrasavam toda no primeiro rubor amoroso.

Paulo de Andrade, capitão das guardas do príncipe regente d. Pedro, era um belo moço de 27 anos, desempenado e forte, belo exemplar de homem e soldado. Foi desse cruzamento instantâneo do seu olhar com o de Branca que nasceu a paixão que o devia para sempre unir a ela e que o devia matar: paixão nascida num minuto, dessas paixões que, por aparecerem muitas vezes nos romances, parecem hoje absurdas e incríveis na vida real.

Branca seguiu-o com os olhos, até vê-lo desaparecer numa volta da ladeira. E já ele tinha desaparecido e ainda ela o via, alto e bonito, na farda abotoada, com a espada ao ombro, fulgurando à frente dos soldados.

Quando entrou em casa, a moça ia triste, de uma tristeza cuja causa ela mesmo não compreendia bem. Nessa noite, nem os beijos do pai a alegraram. Retirou-se para o seu quarto, onde, em frente à cama virginal, uma Nossa Senhora da Conceição abria os braços, num pequeno oratório de vinhático. Ajoelhou-se para rezar. Mas as palavras da reza confundiam-se-lhe na cabeça. O que ela via ali, no pequeno oratório de vinhático, não era a Senhora da Conceição: era outra, a da Glória, precedida da irmandade, seguida do príncipe e de um belo capitão, cujos olhos ainda agora a abrasavam.

Despiu-se e deitou-se. Mas embrulhou-se muito, com muito pudor, como se receasse que alguém a estivesse vendo. Quis dormir: o sono não veio.

Dentro dela, alguma cousa cantava, alguma cousa gemia, alguma cousa gritava. Ouvia sair de dentro de si um grande clamor de exigências e de desejos: parecia que o sangue lhe rufava nas veias, entre estridores frenéticos de clarins, o hino vitorioso da sua puberdade despertada. E estremecia, julgando sentir na boca ansiosa o contato rude dos grandes bigodes negros do capitão das guardas. Por fim, um grande pranto lhe subiu aos olhos: e ela enterrou a cabeça no travesseiro, sacudida por soluços que não podia reprimir, com um grande medo do amor, que sentia nascer dentro de si e que só agora começava a compreender.

Com o correr dos dias, Branca e Paulo de Andrade viram-se de novo. O acaso, que é o maior alcoviteiro do mundo, arranjou meios de os aproximar cada vez mais. E, d. Emerenciana, seduzida pela simpatia que lhe soube inspirar o capitão e pelo grande afeto que tinha à moça, prestou-se a auxiliar-lhes o amor.

De modo que, nessa noite em que o Satanás ao sair da bodega do Trancoso foi à casa da rua do Conde, já havia muito tempo que o capitão tinha entrevistas com Branca mas eram entrevistas puras, a que sempre a velha assistia. E estavam todos à espera da primeira ocasião oportuna em que a velha pudesse contar tudo ao Satanás e em que Paulo pudesse pedir-lhe a mão da filha em casamento.

O Satanás, depois de abraçar a filha, chamou a velha de parte. Era assim todas as noites: queria saber de tudo que tinha havido, se nenhum vulto suspeito tinha aparecido a rondar a casa, se a filha tinha estado à janela.

Emerenciana tranqüilizou-o: a velha não achava conveniente referir-lhe as pretensões do capitão - preferia esperar e levá-lo com jeito, receosa que o gênio arrebatado e brigalhão do Satanás deitasse tudo a perder.

O Satanás retirou-se. Voltava para o lodo, depois de curta parada no céu. Ia de novo encontrar o amo, que deixara ocupado a encher de consolo a noite de uma formosa cigana, que morava para as bandas do Valongo.

E apertando muito a filha nos braços, o escultor beijou-a na fronte, fez novas recomendações a d. Emerenciana, e, descendo a escada, tornou a mergulhar de novo nas trevas da noite o seu vulto misterioso.
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continua

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XI)

Primeiro Fausto

Primeiro Tema
O Mistério do Mundo
I
Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó Dor, aonde me irei?
II
O mistério de tudo
Aproxima-se tanto do meu ser,
Chega aos olhos meus d'alma tão [de] perto,
Que me dissolvo em trevas e universo...
Em trevas me apavoro escuramente.
III
O perene mistério, que atravessa
Como um suspiro céus e corações...
IV
O mistério ruiu sobre a minha alma
E soterrou-a... Morro consciente!
V
Acorda, eis o mistério ao pé de ti!
E assim pensando riu amargamente,
Dentro em mim riu como se chorasse!
VI
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.
VII
Mundo, confranges-me por existir.
Tenho-te horror porque te sinto ser
E compreendo que te sinto ser
Até às fezes da compreensão.
Bebi a taça [...] do pensamento
Até ao fim; reconhecia pois
Vazia, e achei horror. Mas eu bebi-a.
Raciocinei até achar verdade,
Achei-a e não a entendo. Já se esvai
Neste desejo de compreensão,
Inalteravelmente,
Neste lidar com seres e absolutos,
O que em mim, por sentir, me liga à vida
E pelo pensamento me faz homem.
E neste orgulho certo
Fechado mais ainda e alheado
Me vou, do limitado e relativo
Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.
VIII
Cidades, com seus comércios...
Tudo é permanentemente estranho, mesmamente
Descomunal, no pensamento fundo;
Tudo é mistério, tudo é transcendente
Na sua complexidade enorme:
Um raciocínio visionado e exterior,
Uma ordeira misteriosidade —
Silêncio interior cheio de som.
IX
Já estão em mim exaustas,
Deixando-me transido de terror,
Todas as formas de pensar [...]
O enigma do universo. Já cheguei
A conceber, como requinte extremo
Da exausta inteligência, que era Deus...
Já cheguei a aceitar como verdade
O que nos dão por ela, e a admitir
Uma realidade não real
Mas não sonhada, [como o] Deus Cristão.
Falhados pensamentos e sistemas
Que, por falharem, só mais negro fazem
O poder horroroso que os transcende
A todos, [sim,] a todos.
Oh horror! Oh mistério! Oh existência!
X
O segredo da Busca é que não se acha.
Eternos mundos infinitamente,
Uns dentro de outros, sem cessar decorrem
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.
Tudo é sempre diverso, e sempre adiante
De [Deus] e Deuses: essa, a luz incerta
Da suprema verdade.
XI
Nos vastos céus estrelados
Que estão além da razão,
Sob a regência de fados
Que ninguém sabe o que são,
Ha sistemas infinitos,
Sóis centros de mundos seus,
E cada sol é um Deus.
Eternamente excluídos
Uns dos outros, cada um
É universo.
XII
Num atordoamento e confusão
Arde-me a alma, sinto nos meus olhos
Um fogo estranho, de compreensão
E incompreensão urdido, enorme
Agonia e anseio de existência,
Horror e dor, [agonia] sem fim!
XIII
Fantasmas sem lugar, que a minha mente
Figura no visível, sombras minhas
Do diálogo comigo.
XIV
Não, não vos disse ... A essência inatingível
Da profusão das coisas, a substância,
Furta-se até a si mesma. Se entendesses
Neste ou naquele modo o que vos disse,
Não o entendesses, que lhe falta o modo
Por que se entenda.
XV
Do eterno erro na eterna viagem,
O mais que [exprime] na alma que ousa,
É sempre nome, sempre linguagem,
O véu e capa de uma outra cousa.
Nem que conheças de frente o Deus,
Nem que o Eterno te dê a mão,
Vês a verdade, rompes os véus,
Tens mais caminho que a solidão.
Todos os astros, inda os que brilham
No céu sem fundo do mundo interno,
São só caminhos que falsos trilham
Eternos passos do erro eterno.
Volta a meu seio, que não conhece
os deuses, porque os não vê,
Volta a meus braços, melhor esquece
que tudo só fingir que é.
XVI
Ondas de aspiração [...]
Sem mesmo o coração e alma atingir
Do vosso sentimento; ondas de pranto,
Não vos posso chorar, e em mim subis,
Maré imensa, numerosa e surda,
Para morrer da praia no limite
Que a vida impõe ao Ser; ondas saudosas
De algum mar alto aonde a praia seja
Um sonho inútil, ou de alguma terra
Desconhecida mais que o eterno [amor]
De eterno sofrimento, e aonde formas
Dos olhos de alma não imaginadas
Vogam essências [...]
Esquecidas daquilo que chamamos
Suspiros, lágrimas, desolação;
[Ondas] nas quais não posso visionar
Nem dentro em mim, em sonho, [barco] ou ilha,
Nem esperança transitória, nem
Ilusão nada da desilusão;
Oh, ondas sem brancuras nem asperezas,
Mas redondas, como óleos, e silentes
No vosso intérmino e total rumor —
Oh, ondas das almas, decaí em lago
Ou levantai-vos ásperas e brancas
Com o sussurro ácido da esperança ...
Erguei em tempestades a minha alma!
Não haverá,
Além da morte e da imortalidade,
Qualquer coisa maior? Ah, deve haver
Além da vida e morte, ser, não ser,
Um inominável supertranscendente,
Eterno incógnito e incognoscível!
Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo.
Pr'a que pensar, se há de parar aqui
O curto vôo do entendimento?
Mais além! Pensamento, mais além!
XVII
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
Com seu tempo e seu 'spaço, é um astro, e nesse
Alguns há, outros universos, outras
Formas do Ser com outros tempos, 'spaços
E outras vidas diversas desta vida...
O espírito é outra estrela. . . O Deus pensável
É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos
De outras essências de Realidade ...
E eu precipito-me no abismo, e fico
Em mim... E nunca desço ... E fecho os olhos
E sonho — e acordo para a Natureza
Assim eu volto a mim e à Vida
Deus a si próprio não se compreende.
Sua origem é mais divina que ele,
E ele não tem a origem que as palavras
Pensam fazer pensar...
O abstrato Ser [em sua] abstrata idéia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério — face a face...
XVIII
No meu abismo medonho
Se despenha mudamente
A catarata de sonho
Do mundo eterno e presente.
Formas e idéias eu bebo,
E o mistério e horror do mundo
Silentemente recebo
No meu abismo profundo.
O Ser em si nem é o nome
Do meu ser inenarrável;
No meu mudo Maëlstrom
O grande mundo inestável
Como um suspiro se apaga
E um silêncio mais que infindo
Acolhe o acorrer do vago
Que em mim se vai esvaindo.
Por mais que o Ser, que transcende
Criatura e Criador,
Se esse Ser ninguém entende
Ele, a mim e ao meu horror,
Menos. Vida, pensamento,
Tudo o que nem se adivinha,
É tudo como um momento
Numa eternidade minha.
XIX
Abre-me o sonho
Para a loucura a tenebrosa porta,
Que a treva é menos negra que esta luz.
O terror desvaria-me, o terror
De me sentir viver e ter o mundo
Sonhado a laços de compreensão
Na minha alma gelada.
XX
A qualquer modo todo escuridão
Eu sou supremo. Sou o Cristo negro.
O que não crê, nem ama — o que só sabe
O mistério tornado carne.
Há um orgulho atro que me diz
Que Sou Deus inconscienciando-me
Para humano; sou mais real que o mundo,
Por isso odeio-lhe a existência enorme,
O seu amontoar de coisas vistas.
Como um santo devoto
Odeio o mundo, porque o que eu sou
E que não sei sentir que sou, conhece-o
Por não real e não ali.
Por isso odeio-o —
Seja eu o destruidor! Seja eu Deus ira!
XXI
Sou a Consciência em ódio ao inconsciente,
Sou um símbolo incarnado em dor e ódio,
Pedaço de alma de possível Deus
Arremessado para o mundo
Com a saudade pávida da pátria...
Ó sistema mentido do universo,
Estrelas nadas, sóis irreais,
Oh, com que ódio carnal e estonteante
Meu ser de desterrado vos odeia!
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro,
Pregado na cruz ígnea de mim mesmo.
Sou o saber que ignora,
Sou a insônia da dor e do pensar
XXII
Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto
Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo
O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.
Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais,
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo
XXIII
Ah, que diversidade,
E tudo sendo. O mistério do mundo,
O íntimo, horroroso, desolado,
Verdadeiro mistério da existência,
Consiste em haver esse mistério.
XXIV
Essa simplicidade d'alma
Possuída não só dos inocentes
Mas até dos viciosos, criminosos...
essa simplicidade
Perdi-a, e só me resta um vácuo imenso
Que o pensamento friamente ocupa.
XXV
Tremo de medo:
Eis o segredo aberto.
Além de ti
Nada há, decerto,
Nem pode haver
Além de ti,
Que [só] tens essência
Nem tens existência
E te chamas [...] Ser.
XXVI
Mais que a existência
É um mistério o existir, o ser, o haver
Um ser, uma existência, um existir —
Um qualquer, que não este, por ser este —
Este é o problema que perturba mais.
O que é existir — não nós ou o mundo
Mas existir em si?
XXVII
Não é a dor de já não poder crer
Que m'oprime, nem a de não saber,
Mas apenas [e mais] completamente o horror
De ter visto o mistério frente a frente,
De tê-lo visto e compreendido em toda
A sua infinidade de mistério.
É isto que me alheia, que me [traz]
Sempre mostrado em mim como um terror
E maior terror há-o?
XXVIII
Para mim ser é admirar-me
de estar sendo.
XXIX
Há entre mim e o real um véu
A própria concepção impenetrável.
Não me concebo amando, combatendo,
Vivendo com os outros. Há, em mim,
Uma impossibilidade de existir
De que [abdiquei], vivendo.
XXX
Tornei minha alma exterior a mim.
XXXI
Tarde! Não poder
Adivinhar o teu segredo
E o teu mistério ilúcido. Ignorar
Esta emoção,
Vaga desesperança quase amarga,
Da sensação que dás.
XXXII
Qu'importa? Tudo é o mesmo. A mim quer seja
Manhã inda d'orvalho arrepiada,
Dia, ligeiro ao sol, pesado em nuvens,
A tarde,
A noite misteriosa,
Tudo, se nele penso, só me amarga
E me angustia.
XXXIII
Acordado, abro os olhos.
Vivo! Sou vivo ainda! Torno a ver-te,
Pálida luz, silente luz da tarde,
Que ora me [enches] de um cálido horror!
Onde estou? Onde estive? Ferve em mim,
Numa quietação indefinida,
Um eco de tumultos e de sombras
E uma coorte como de fantasmas
[Gritantes]. E luzes, cantos, gritos,
Desejos, lágrimas, chamas e corpos,
Num referver [tumultuoso] e misturado,
Numa esvaída confusão noturna —
Como tendo piedade de deixar-me —
Sinto passar em mim, como visões.
Nem com esforço recordar-me posso
Se são fantasmas ou vagas lembranças;
Não me lembro de vida alguma minha
E o necessário esforço, desejado
P'ra recordar-me, não o posso ter.
Acabar. Nem desejo nem espero
Nem temo, n'apatia do meu ser.
Para que pois viver? Quero a morte,
E ao sentir os seus passos
Alegremente e apagadamente
Me voltarei lento para o seu lado,
Deixando enfim cair sobre o meu braço
Minha cabeça, olhos cerrados, quentes
Do choro vago já meio esquecido.
Mas onde estou? Que casa é esta? Quarto
Rude, simples — não sei, não tenho força
Para observar — quarto cheio da luz
Escura e demorada, que na tarde
Outrora eu... Mas que importa? A luz é tudo.
Eu conheço-a.
XXXIV
Basta ser breve e transitória a vida
Para ser sonho. A mim, como a quem sonha,
E escuramente pesa a certa mágoa
De ter que despertar — a mim, a morte,
Mais como o horror de me tirar o sonho
E dar-me a realidade, me apavora,
Que como morte. Quantas vezes [quantas],
Em sonhos vazios conscientemente
Imerso, me não pesa o ter que ver
A realidade e o dia!
Sim, este mundo com seu céu e terra,
Com seus mares e rios e montanhas,
Com suas árvores, aves, bichos, homens,
Com o que o homem, com translata arte,
De qualquer construção divina, fez
— Casas, cidades, coisas, modas [...] —,
Este mundo, que [nunca] reconheço,
Por sonho amo, e por ser sonho o [quero]
Ou [tenho] que deixá-lo e ver verdade,
— Me toma a gorja, com horror de negro,
O pensamento da hora inevitável,
E a verdade da morte me confrange.
Pudesse eu, sim, pudesse, eternamente
Alheio ao verdadeiro ser do mundo,
Viver sempre este sonho que é a vida!
Expulso embora da divina essência,
Ficção fingindo, vã mentira eterna,
Alma-sonho, que eu nunca despertasse!
Suave me é o sonho, e a vida [...] é sonho.
Temo a verdade e a verdadeira vida.
Quantas vezes, pesada a vida, busco
No seio maternal da noite e do erro,
O alívio de sonhar, dormindo; e o sonho
Uma perfeita vida me parece
[...] ..., e porventura
Porque depressa passa. E assim é a vida.
XXXV
E o sentimento de que a vida passa
E o senti-la passar
Toma em mim tal intensidade,
De desolado e confrangido horror,
Que a esse próprio horror, horror eu tenho
Por ele e por senti-lo,
E por senti-lo como tal.
XXXVI
Aborreço-me da possibilidade
De vida eterna; o tédio
De viver sempre deve ser imenso.
Talvez o infinito seja isso...
Já o tédio de o pensar é horroroso.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Padre Antonio Vieira (Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda)

O sermão do Padre Antônio Vieira, intitulado Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, trata-se de um texto religioso redigido pelo sacerdote, com vistas à pregação que realizou no Brasil, no ano de 1640, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia.

Pela leitura do sermão, observa-se que seu tema se relaciona com a época da turbulência social vivida pelo país. Era em 1640; a Baía estava a ponto de cair sob o jugo holandês. Arrebatado por uma inspiração patriótica, Vieira quis reanimar os brios dos Brasileiros e fazer ao Céu uma santa violência. Num sublime transporte de génio compôs essa obraprima, verdadeiramente única no seu género, repleta das sublimes audácias de Moisés e dos Profetas. Seja qual for a idéia que façamos da pregação, é impossível não sentir a grandeza e a originalidade de tal eloquência.

Motivado pelo firme propósito de tentar impedir o jugo holandês, o Padre Antônio Vieira constrói seu sermão e dirige-o ao povo que fomentou o projeto expansionista, povo católico, impregnado de religiosidade, fiéis dominados pelas virtudes da fé, em nome da qual ampliavam suas conquistas e, conseqüentemente, suas riquezas.

Convém observar que a pretensão de dominar o desconhecido vigorou em sua plenitude por ocasião das grandes navegações. O temor de navegar por mares "virgens" foi superado pela audácia dos portugueses. Corajosos, ambiciosos, arrostaram perigos e não hesitaram em pôr em risco suas vidas, conforme as próprias palavras de Vieira:

Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo (...).

Mas a primazia ora alcançada pelos desbravadores estava sob ameaça. À fartura suceder-se-ia, devido à falta da infra-estrutura necessária para a manutenção do império conquistado, uma perda inominável: o Brasil se vê na iminência de passar à propriedade dos holandeses. Eis o motivo que propicia a alegação de Vieira de estar o Brasil passando para as mãos dos "hereges", ao redigir seu sermão.

Assim posicionado, o sacerdote prega o sermão argumentando com Deus e repreendendo-O, a fim de que Ele conceda aos portugueses a vitória que engrandecerá a glória divina:

(...) Pequei, que mais Vos posso fazer? E que fizestes vós, Job, a Deus em pecar? Não Lhe fiz pouco; porque Lhe dei ocasião a me perdoar, e perdoandome, ganhar muita glória. Eu dever-Lhe-ei a Ele, como a causa, a graça que me fizer; e Ele dever-me-á a mim, como a ocasião, a glória que alcançar. (...). Em castigar, vencei-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar, vencei-Vos a Vós mesmo, que sois todo-poderoso e infinito. Só esta vitória é digna de Vós, porque só vossa justiça pode pelejar com armas iguais contra vossa misericórdia; e sendo infinito o vencido, infinita fica a glória do vencedor. (...). (VIEIRA, 1959, p. 322-323).

Entretanto, não se pode perder de vista que esse sermão se destinava a "reanimar os brios dos brasileiros", entendidos aqui como os brasileiros nascidos no Brasil, os colonos portugueses e o corpo de milícias que defendia a Bahia de todos os Santos.

Estes são, pois, o auditório universal de Vieira. Contudo, havia um auditório "intermediário" composto por um único ser e interlocutor virtual: Deus, pois Vieira não fala diretamente aos fiéis; ao contrário, dirige-se a Deus, que é seu "interlocutor": “Não hei-de pregar hoje ao povo, não hei-de falar com os homens, mais alto hão-de sair as minhas palavras ou as minhas vozes: a vosso peito divino se há-de dirigir todo o sermão.” (VIEIRA, 1959, p. 301).

A cena se passa como se o pregador estivesse em um grande palco: ele dirige-se indiretamente à platéia – os brasileiros – e “contracena” com Deus – o “ator” imaterial. Após estruturar as bases da analogia entre o seu próprio discurso e o do Profeta Rei, o padre passa a apresentação dos argumentos propriamente ditos, construindo o sermão.

No Sermão da Sexagésima, Vieira pretendia ensinar aos colegas sacerdotes um meio eficaz de seduzir os fiéis e atraí-los para a seara do Cristo e no sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, Vieira pretende seduzir Deus e atraí-lo para a sua própria “seara”, a dos portugueses.

No sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, as Sagradas Escrituras são o meio de prova dos argumentos arrolados por Vieira
e também o veículo que aproxima o orador do seu auditório real para assegurar a fidelidade deste, pois a Bíblia, por representar a palavra de Deus, consubstancia
os anseios do orador e do seu auditório, naquele momento histórico.

Como pode-se observar, a tese a ser defendida por Vieira está explícita no próprio título do sermão; o sacerdote advoga que Deus retome a aliança com os portugueses para que estes possam derrotar os holandeses.

Notas importantes

1. A formação discursiva, por excelência persuasiva, se faz presente no referido texto, pois o contexto deixa claro que Portugal está perdendo o Brasil para os holandeses e Vieira pretende incitar os brasileiros à luta armada; para isto, prega o sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda. Para persuadir os brasileiros, Vieira dirige-se diretamente a Deus e “repreende-O” pelo que Ele está “permitindo” que aconteça com os portugueses.

2. O sermão constitui o lugar onde se instalam todas as condições para o exercício de dominação pela palavra, pois, ao “argumentar” com um interlocutor do plano espiritual, Vieira está, na verdade, monologando, uma vez que Deus não vai “contra-argumentar” com o padre. Assim, em nenhum momento, Vieira terá um “opositor”.

3. O texto se caracteriza como um discurso exclusivista por não haver espaço para mediações ou ponderações. Assim, os signos são fechados e o discurso fixa-se em um jogo parafrásico. Repete-se uma fala já sacramentada pela instituição, neste caso a Igreja, e é à sua interpretação da Bíblia Sagrada que Vieira recorre para compor o seu discurso. Nele não há espaço para mediações ou ponderações porque a voz da Bíblia é universalmente aceita como o fundamento do pensamento cristão e o instrumento de acesso a Deus e a Seu Filho. Qualquer “ponderação” que se fizesse, conforme demonstramos no decorrer desta tese, seria
considerada herética, já que, por ser fruto do raciocínio, discordaria do discurso do sacerdote.

4. O texto se apresenta como o lugar do monólogo, em detrimento do diálogo, pelo fato de o padre argumentar com um ser do mundo espiritual. E ainda que assim não fosse, só por basear-se na Bíblia, o pregador eliminou qualquer possibilidade de diálogo, uma vez que a Bíblia Sagrada é a “palavra de Deus” e contra ela ninguém haverá de se levantar, sob pena de incorrer em pecado grave e correr o risco de “arder nas chamas do Inferno”, de acordo com a crença difundida entre os fiéis pela própria Igreja Católica.

5. O"tu" se transforma em mero receptor e, por conseguinte, não tem nenhuma possibilidade de interferir ou modificar o que está sendo dito. Essa característica pode ser comprovada pelo fato de ninguém poder se insurgir contra a “palavra de Deus”. Para os receptores reais do discurso de Vieira, isto é, os brasileiros, o padre intermedeia a mensagem divina e, portanto, é um representante de Deus, o que bloqueia as comunicações desses fiéis e cria uma “ilusão de reversibilidade”.

Fonte:
Cláudia Assad Álvares, Doutora em Filologia e Língua Portuguesa. Disponivel em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/s/sermao_pelo_bom_sucesso_das_armas

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Macaco)

O coelho e o macaco eram muito amigos.

Um dia, o coelho disse: "Amigo, vamos abrir uma machamba de amendoim". "Está bem", respondeu o macaco.

Havia muita fome na povoação.

Quando começaram a abrir o campo, o macaco ria, saltava, brincava e trabalhava pouco. O coelho tirou o capim, cavou, semeou quase toda a machamba praticamente sozinho.

Chegou a altura da colheita. O coelho tirava o amendoim e punha no saco. O macaco tirava-o e comia imediatamente.

O coelho ficou furioso e resolveu castigar o companheiro porque se continuassem daquela forma, estava a ver que não tiraria qualquer proveito do seu trabalho. Aproveitou então uma altura em que o macaco estava a saborear uma grande quantidade de amendoim e enterrou-lhe a cauda de forma a que não pudesse tirá-la.

Na altura de largar o trabalho, disse o coelho: "Ó amigo macaco, hoje tenho para o jantar amendoim com carne. Aparece".

O coelho fingiu que tinha muita pressa e foi-se embora logo daí. O macaco tentou também ir-se embora e viu que estava preso pela cauda.

O macaco gritou chamando por ajuda. Passado algum tempo, apareceu o coelho todo ofegante. "O que foi, amigo macaco?" "Tira-me daqui", pediu o macaco. O coelho fingiu que o ajudava, fez algum esforço. De repente, desistiu: "Paciência, amigo macaco, não há nada a fazer, eu tenho pressa, o jantar está à espera. A cauda está muito enterrada, só cortando-a, senão ficas aí toda a noite e nunca se sabe quando é que passa por aqui o leopardo..." Quando o macaco ouviu o nome do leopardo, pôs-se aos gritos e suplicou ao coelho que lhe cortasse a cauda. "Prefiro viver sem a cauda do que ser comido..." Era o que o coelho queria. Cortou-lhe a cauda e levou-a consigo.

Quando chegou a casa, cozeu-a juntamente com o amendoim que ia oferecer ao macaco. Este, apesar das dores, como era comilão, apresentou-se em casa do coelho para o jantar.

Começou a comer com sofreguidão até verificar que aquela carne não passava da sua própria cauda. Ficou furioso, quis agredir o coelho; este fugiu. A lamentar-se com as dores, foi-se embora.

Desde esse dia que o macaco e o coelho não cultivam juntos.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

A. A. de Assis (A Trova na Imagem 4)


Waldir Araújo (Salvo pela Morte)

Carlos Nhambréne regressava de mais uma viagem à cidade de Bissau, onde tinha ido tratar de negócios ligados à venda de gado. No caminho para a sua região natal, a cidade de Bafatá, sentou-se confortavelmente na carrinha “Toca-Toca”* que levava cerca de duas dezenas de fatigados passageiros. Abriu cuidadosamente o jornal que ainda não tinha tido tempo de ler e, como sempre faz, foi directamente para às páginas da necrologia. Era um hábito, um vício ou qualquer outra coisa que o valha, mas o certo é que era um ritual. Tão bizarro quanto fatal. Mal abria um jornal, Carlos Nhambréne ia directamente para as páginas dos mortos. Tinha um estranho prazer em ver aquelas páginas. Saber quem deixou o mundo dos vivos. Apreciar a foto escolhida pela família do defunto para, pela última vez, mostrá-la a todo o mundo. Todos os dias de manhã, à hora do seu mata-bicho, mandava o pequeno Bubácar comprar o Djamburéré e já com o jornal na mão, repetia o seu ritual de leitura. Ia de imediato para as páginas da cruz e só depois lia a informação geral espalhada no jornal. Sem nunca antes deixar de apreciar todos os dados dos mortos diariamente anunciados. Conhecia os nomes e os estilos necrológicos das agências funerárias. Apreciava deleitemente os textos:

»A Família Enlutada Informa...«; »A todos os amigos e conhecidos a agência funerária Deus i Garandi informa do desaparecimento de...«; »A empresa Glória da Guiné informa aos clientes e amigos que o seu Digníssimo gerente deixou o mundo dos vivos.«

Nesse dia de regresso à casa depois de mais um excelente negócio, abriu o Djamburéré e foi directo às páginas do seu delírio. Carlos Nhambréne não queria acreditar. Mal começou a ler gelou de espanto. Numa coluna em destaque, com uma foto que lhe era muito familiar leu:

»Faleceu Carlos Nhambréne - A Família enlutada e amigos informam que o seu ente querido faleceu no passado dia 15 de Abril de 1992. O corpo encontra-se em câmara ardente da Igreja Matriz de Bafatá«.

Nhambréne perdeu o fôlego. Era a sua foto estampada na página da necrologia do Djamburéré, o jornal mais lido em toda a região Leste da Guiné-Bissau. Voltou a ler a mensagem ilustrada com um retrato que tirara há pouco mais de um mês na Foto do Leste, do seu vizinho Djibril Mané. Fechou a página impulsivamente. Olhou sorrateiramente para o restante dos passageiros que seguiam no »Toca-Toca«, quatro deles liam o mesmo jornal.

Carlos Nhambréne foi subitamente invadido por uma ira fulminante, um sentimento de ódio indescritível. Quem teria feito uma brincadeira de tamanha bizarria? Quem teve a coragem de provocar um dos homens mais temidos da região? Anunciar a morte de alguém que nunca se sentiu tão vivo? Enquanto o transporte, já cansado de muitos quilómetros galgar, percorrendo as massacradas estradas do interior, o comerciante mais proeminente de Bafatá e arredores preparava em silêncio ardente o plano de vingança. »Ah, mas quem fez isto vai pagá-las ou não me chamo Nhambréne Mon di Ferro«. Alcunha pela qual era conhecido em toda a região leste da Guiné-Bissau, Nhambréne »Mon di Ferro«. Por ser um patrão rude e ditador. Por ser um sovina de primeira água. Por se gabar de resolver tudo a pulso. E – por último, mas não menos revelador «, por ter uma prótese de metal que lhe completa o braço direito subtraído em consequência do acidente que sofrera em 1969, quando o camião militar que conduzia pisou uma mina do Colón**, junto à localidade de Candjambari, nos idos e gloriosos tempos da »Luta pela Liberdade da Pátria«. O acidente salvou-lhe a vida. Foi graças a esta desgraça que o triunfante »partido do povo« lhe atribuíra o almejado estatuto de »Combatente da Liberdade da Pátria« e um chorudo subsídio ad-eternum, o que lhe permitiu abrir um negócio de gado numa enorme Ponta que comprou e ainda três fábricas de gelo espalhadas pelas caloríficas localidades de Bafatá, Bambadinca e Gabú.

Nhambréne dobrou sorrateiramente o jornal, guardou-o na pasta preta que trazia sempre consigo e pôs-se a conjecturar. Sabia que inimigos não lhe faltavam. Amigos, só mesmo os que as circunstâncias emprestavam. Era mais fácil começar pelos últimos tempos. Quem teria motivos para pregar uma partida fúnebre como esta? Tinha dificuldades em ordenar as ideias. É que se trata de tarefa difícil encontrar uma acção deste homem que não tenha magoado fulano ou ofendido sicrano. O temperamento do homem trai qualquer gesto. Exímio gestor dos seus bens, Nhambréne Mon di Ferro era também excessivamente exigente e descaradamente ambicioso. Dormia apenas quatro horas por noite e o resto do tempo aplicava-o a tratar de enriquecer. Não se lhe conhecia filhos nem mulher oficial. Dormia com as empregadas e fazia tudo convencido de que ninguém sabia das suas desventuras nocturnas. Das mulheres que tivera por algumas horas ou noites, apenas uma marcou o homem. Aminata Sadjó, uma belíssima comerciante de Bambadinca, localidade a escassos quilómetros de Bafatá. Aminata conhecera Nahmbréne numa das viagens de negócios de gado. O homem ficou fascinado com a beleza dessa mulher de etnia mandinga. Uma beleza adornada por uma notória inteligência e capacidade de encantar. No encontro Aminata levou a melhor ao conseguir comprar mais cabeças de gado, deixando Nhambréne enraivecidamente enfeitiçado. O envolvimento entre os dois aconteceria dias depois. Mas foi sol de pouca dura. Não tardou muito, Aminata começara a encontrar no homem mais defeitos que virtudes. Depois de algumas desfeitas do comerciante, pequenas traições e mentiras mal formuladas, Aminata Sadjó nunca mais quis ver Nhambréne de perto. Enquanto isso, a paixão do comerciante de Bafatá por esta linda e misteriosa mulher de Bambadinca não conhecia limites. Mas estava de parte a hipótese de ser a Aminata a autora da fúnebre mensagem. Isto porque a mulher tinha mais que fazer. Detestava a arrogância de Mon di Ferro, mas votava-o ao desprezo. Aliás, o nome de Aminata só surgiu na mente ferida do homem porque é talvez a pessoa mais importante -ou será menos irrelevante?- da sua desinteressante vida.

Depois pensou no seu mais acérrimo rival. Samba Dabó, comerciante de cabeças de gado, dono de duas concorridas lojas em Bafatá e respeitado por toda a comunidade muçulmana do Leste. Nhambréne e Dabó cresceram juntos. O ódio de um pelo outro também. Com o passar do tempo, cada um foi à sua vida e voltariam a encontrar-se anos depois. Os dois feitos homens e comerciantes. Tirando os sinais exteriores que o tempo lhes foi deixando no corpo, mantinham o mesmo carácter. Samba Dabó, sério, trabalhador e pragmático. Carlos Nhambréne, trabalhador, sim, mas pouco sério e muito menos pragmático. Nhambréne fez de tudo para que o negócio de Dabó fracassasse. Até foi ter com o velho Serifo Camará, conhecido Muru*** da zona Leste. Pediu ao velho que utilizasse os seus dons de murundadi**** para atrasar a vida do seu inimigo de estimação. Mas saiu de lá com uma descasca. O Velho Serifo Camará repreendeu-lhe e disse que não utilizava os seus dons para fazer mal a um homem bom. Enquanto isso, Samba Dabó continuou a viver em Bafatá ignorando por completo a existência de Nhambréne. Sabia dos truques e dos constantes actos que este fazia para prejudicá-lo, mas em troca Samba apostava em manter o seu bom nome, a sua melhor defesa. Com tantos afazeres e até pela pouca importância que passou a dispensar ao seu concorrente de negócios, Samba não tinha assim grandes razões para constar na lista dos suspeitos. Bem, assim sendo, só se fosse o novo Governador da região. Jovem recém-nomeado e humilhado por Nhambréne desde o primeiro dia que assumiu o novo posto. Toumane Embalo tinha sido nomeado há poucos meses para substituir um antigo Governador que entendeu que chegara a hora de largar tudo e ir dormitar nas propriedades que foi acumulando ao longo dos tempos do poder. Toumane vinha cheio de energia, com ideias de mudar as coisas, instalar o rigor e desenvolver a região. Sonhos! Mal chegou enfrentou a teoria de conspiração instalada e fomentada por Carlos Nhambréne. Os habitantes mais influentes, comandados pelo Mon di Ferro, começaram logo por questionar a capacidade do jovem, a troçar da sua tenra idade e curto currículo. Porém, Toumane tentou não se deixar intimidar, mas teve dificuldades em dar início aos trabalhos. Os seus subordinados olhavam-no com um ar de desconfiança e fingiam não entender a sua linguagem de dinâmica e mudança. Cedo, o jovem administrador identificou o alvo número um, o obstáculo-mor do seu trabalho: Carlos Nhambréne. Mas sabia que a solução não deveria ser hostilizar o homem. Apesar de toda a arrogância e maldade, Nhambréne Mon di Ferro era, sem sombras de dúvidas, dos homens mais poderosos e temidos de Bafatá. A estratégia de Toumane era ter o homem como um aliado, pelo menos nos primeiros tempos. Carlos Nhambréne começara, aliás, a reconhecer o esforço do jovem, que lhe facilitava todas as burocracias relacionadas com o negócio e que lhe convidava para todas as cerimónias oficiais, apresentando o Mon di Ferro como »o nosso mais exímio comerciante e dos mais brilhantes cidadãos da região«. Toumane Embalo estava fora da lista dos suspeitos.

Enquanto procurava idealizar outro suspeito voltou a abrir sorrateiramente a página que anunciava a sua morte. Desta vez fixou bem a notícia. Não conseguia relacionar o estilo da escrita necrológica com nenhuma das agências funerárias da região. Fixou a sua fotografia e começou a pensar na sua vida. Quem era Carlos Nhambréne? Um homem duro e só. Por momentos vislumbrou toda a sua infância. As dificuldades que enfrentara desde os primeiros anos. A morte da mãe e a fuga do pai. Mais tarde a separação dos dois irmãos que decidiram partir para o Senegal à busca de melhor futuro, mas onde acabariam por encontrar a morte. Um tio austero acolheu-o educando sob a lei do chicote e da exploração, mas ensinando-lhe também toda a arte da pastorícia e dos negócios do gado. Era esse tio que viria a deixar tudo em nome de Nhambréne. Uma herança que honrou, fazendo crescer o negócio. Mas o duro passado moldou-lhe a alma e toldou-lhe o sentimento. A dureza passou a ser a palavra de ordem e guia dos seus actos. As relações com as pessoas que o circundavam era meramente mecânica, de puro interesse. Pensou nas maldades que fez sem se aperceber. Nas pessoas que procuravam despertar-lhe o sentimento da amizade e do amor. Pessoas a quem ele sempre respondera com desprezo. Nos empregados que serviram-lhe com dedicação e a quem ele sempre pagou míseros tostões. No pequeno Bubácar que lhe foi entregue para criação, por um casal desfavorecido que julgava que assim protegeria o futuro do rapaz. Criança que hoje não passa de um sujo e maltratado moço de recados. Pensou em tudo mais, mas só se lembrava de actos menos dignos, momentos de maldade de uma vida oca em virtudes. Sentiu-se invadido por um sentimento de remorso do tamanho do mundo. E, de repente, aconteceu algo de incrível. Começou a chorar. Carlos Nhambréne a chorar de remorsos! Chorou compulsivamente ignorando as pessoas que iam sentados a seu lado. Pouco depois sentia-se um homem novo, de alma lavada e coração aberto. Imaginou pela primeira vez como seria tudo diferente se ele desse um pouco de si aos outros. E sorriu. Carlos Nhambréne sorriu por ter bons pensamentos!

E de repente lembrou-se do sorriso que jamais esquecera. O sorriso da Aminata Sadjó. Breve no gesto, mas eterno na memória de Nhambréne.

Finalmente, quando o cansado Toca-Toca parou em Bafatá, Mon di Ferro reparou que era o único passageiro a descer naquele destino. Voltou para trás e viu apenas mais quatro passageiros sentados na carrinha. Eram as quatro pessoas que também vinham a ler o Djamburéré. Ainda tinham os jornais abertos a tapar-lhes a cara. Já de lado de fora do Toca-Toca, olhou de novo para dentro da carrinha e viu as mesmas pessoas, desta feita com as caras destapadas. Reconheceu a sua mãe, o seu pai e os dois irmãos. Gelou de espanto, imóvel tal qual uma estátua. A carrinha desapareceu por entre as poeiras das estradas do Leste da Guiné-Bissau. Abriu de novo o jornal na página da necrologia. Já lá não estava a sua morte. Carlos Nhambréne nunca mais foi o mesmo homem. Ainda hoje, quando compra o jornal, continua a ir directo para as páginas da necrologia.

Como se à espera de encontrar algo...

––––
Notas:
*“Toca-Toca” - Carrinha de transporte colectivo de passageiros.
**Colón - Diminutivo de Colonialismo. Termo com sentido depreciativo.
*** Ponta - Propriedade rural (equivalente a Fazenda, no Brasil)
****Muru - Curandeiro (Pai de Santo)
*****Murundadi - Trabalho de curandeiro.


Fonte:
Waldir Araújo.Admirável Diamante Bruto e outros contos. Portugal: Editora Livro do Dia Editores, 2008.

Waldir Araújo (1971)

Waldir Araújo nasceu em Bissau, Guiné-Bissau, a 14 de Julho de 1971.

Estudou Direito em Lisboa, na Universidade Moderna, curso que não chega a concluir por ter trocado o estudo das Leis pelo Jornalismo.

Fez o curso de Jornalismo no Cenjor, Centro Protocolar para Formação de Jornalistas.

Iniciou a carreira jornalística na Revista VALOR, EM 1996.

Colabora em publicações como Diário Económico, África Lusófona, Africanidades, entre outros.

Presentemente é jornalista quadro da RDP-África, uma importante emissora portuguesa que emite para toda a África lusófona.

Em 2005 recebe uma Bolsa de Criação Literária, do Centro Nacional de Cultura português para realizar uma investigação literária sobre a comunidadecabo-verdiana dos "Rabelados de Santiago".

Em Fevereiro de 2006, no importante encontro de escritores de expressão ibérica, "Correntes D'escritas", na Póvoa do Varzim, Portugal, como escritor convidado da Guiné-Bissau.

Tem vários textos (contos, prosas e poemas) publicados em várias publicações ligadas à Literatura.

Actualmente reside em Lisboa.

Fonte:
http://novacultura.de/wb/pages/literatrip/salvo-pela-morte.php

Ruth Rocha (Quem tem medo de dizer ”não”?)

A gente vive aprendendo
A ser bonzinho, legal,
A dizer que sim pra tudo,
A ser sempre cordial...
A concordar, a ceder,
A não causar confusão,
A ser vaca-de-presépio
Que não sabe dizer não!
Acontece todo dia,
Pois eu mesma não escapo.
De tanto ser boazinha,
Tô sempre engolindo sapo...
Como coisas que não gosto,
Faço coisas que não quero...
Deste jeito, minha gente,
Qualquer dia eu desespero...
Já comi pamonha e angu,
Comi até dobradinha...
Comi mingau de sagu
Na casa de uma vizinha...
Comi fígado e espinafre,
De medo de dizer não.
Qualquer dia, sem querer,
Vou ter de comer sabão!

Eu não sei me recusar,
Quando me pedem um favor.
Eu sei que não vou dar conta,
Mas dizer não é um horror!
E no fim não faço nada
E perco toda razão.
Fico mal com todo mundo,
Só consigo amolação.
Quando eu estudo a lição
E o companheiro não estuda,
Na hora da prova pede
Que eu dê a ele uma ajuda.
Embora ache desaforo,
Eu não consigo negar...
Meu Deus, como sou boazinha...
Vivo só para ajudar...
Se alguém me pede que empreste
O disco do meu agrado,
Sabendo que não devolvem
Ou que devolvem riscado...
Sou incapaz de negar,
Mas fico muito infeliz...
Qualquer um, se tiver jeito,
Me leva pelo nariz...

Depois que eu estou na fila
Pra pagar o supermercado,
Já estou lá há muito tempo...
Aparece um engraçado...
Seja jovem, seja velho,
Se mete na minha frente,
Mas eu nunca digo nada...
Embora eu fique doente!
A gente sempre demora
A entender esta questão.
Às vezes custa um bocado
Dizer simplesmente não!
Mas depois que você disse
Você fica aliviada
E o outro que lhe pediu
É que fica atrapalhado...
Mas não vamos esquecer
Que existe o "por outro lado"...
Tudo tem direito e avesso,
Que é meio desencontrado...
Quero saber dizer NÃO.
Acho que é bom para mim.
Mas não quero ser do contra...
Também quero dizer SIM!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 14. Lenço Perdido

Quando eu acabava de saltar do bonde, esta manhã, ouvi atrás de mim um pchiu!, voltei-me, e um passageiro, homem do povo, esticando o braço até no meio da rua, me apresentou um lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não me faltava lenço nenhum. Tive pena de que o objeto não me pertencesse, porque pareceu-me que sem isso o meu agradecimento não encaixaria perfeitamente com a amabilidade do homem. Por um instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceu o austero dever, tirei o chapéu, agradeci, e fui-me. O homem ainda me pediu desculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.

Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão -que ainda há muito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestidade do ato, valha a verdade, não era grande. Os objetos transviados são quase sempre restituídos, quando de pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria. A honestidade, afinal, é uma obrigação. Tem um princípiopassivo. É uma astúcia do egoísmo socializado, que evolveu para virtude, como o réptil se fez pato. Mas a galantaria é soberana: impulso livre, ação de luxo e primor, dom incompulsório, fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vontade senhora de si mesma. - O excesso da medida justa vale a medida inteira.

Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, num passo vagaroso de quem vê que carrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar num café, dei com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho. Sorriu-se, descobriu-se e, inclinando a cabeça para um lado:

-"Seu doutor, não tem aí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar um pingado?"

Dei-lhe os nicolaus.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) II - O Satanás

Tinha uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual todos respeitosamente se acercavam.

Por sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e com esporas de grandes rosetas.

E aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se, indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida restante.

Chamavam-no Satanás e tinha a sua história.

De origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada, entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.

Ângelo Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego, autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos, passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço, matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante dos serões. E apaixonou-se pela tia - uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.

Mas quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por entre os quais se afincava o punhal assassino.

Junto ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da espada - sentinela da honra no campo da morte.

Ângelo Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas, aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.

E antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.

O rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.

Ângelo, italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele nem tinha aprendido a respeitar.

A idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz, fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.

Lá em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente no gozo lascivo dos serralhos.

O Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.

Noticias, porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio aventureiro de fidalgo.

Cumpria-se, entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de Nápoles.

E foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.

Foi ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas de seus filhos.

Na corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de seu porte e pelo aventureiro de seu viver.

E nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia onde.

Aqui no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que andava pela amizade de d. Pedro.

Velho embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.

E por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.

Com o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro, que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.

Por isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.

Apenas d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após a troca. de algumas palavras.

E o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.

- Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.

Mas ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.

Depois ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:

- Pague isso em bebidas a esta gente.

E saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer, chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.
--------------
continua