domingo, 12 de maio de 2013

Cláudia Dimer (Eu Quis Ver Deus)


Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 30. Ainda a Rosa

A rosa que o meu amigo velho me dera anteontem ainda estava hoje bem passável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto, e achei-lhe um encanto dorido de mulher bonita que, em pleno solstício de encantos, de repente se vê marcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.

Esborrifei-lhe um pouco de água, e disse-lhe: "Que será de si amanhã, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e entender o que elas dizem não é preciso amar alguma senhora, como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respondeu: "Que será de mim? Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo são as mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinidades de rosas desabrochadas e por desabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eu sou todas, e não desapareço, nem sucumbo".

Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida l'espace d'un matin, e entretanto é geralmente sabido que ela pode durar dois ou três dias, e mais. Mas também está geralmente convencionado que, para os efeitos poéticos, há de durar uma só manhã.

Verdades duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está cheio delas.

A borboleta, símbolo da volubilidade na poesia, é com efeito uma excelente imagem da
constância, porque só faz indefinidamente a mesma coisa.

A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, é a representação mais fiel da inflexibilidade de princípios, pois que não visita senão as flores que lhe forneçam matéria-prima, e delas não quer senão a pequenina dose de matéria-prima que possam dar.

O gato considerado como um animal de caráter independente, vive de fato na estreita dependência própria dos parasitas, não sabendo senão estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada.

À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Não há o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode dar às coisas os adjetivos que quiser, não havendo contrariedade declarada; mas é muito de notar que, assim como a palmeira é esbelta e senhoril, também poderia ser senhoril e esbelto um espanador de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como sumamente prosaicos.

O boi, símbolo da força, é um colosso tão frágil que passa da mocidade à decrepitude em meia dúzia de anos, e possui muitíssimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga. E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vive nas alturas, é menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparação com o castor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal dos rios.

Enfim, não se contam as verdades, duplas que todo o mundo enxerga, ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques. E não só no que respeita ao mundo objetivo, mas também no que se refere ao próprio domínio subjetivo da experiência moral.

A economia é uma virtude, quando se põem sobre ela os óculos simpáticos da generalização poética; a economia, em seus casos concretos, é sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais.

"O amor é a mais bela e a mais santa das coisas desta vida": mas ninguém torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça.

"A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na realidade, a calúnia é um vício tão generalizado e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está no perpétuo risco de passar por idiota ou por "jesuíta".

Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade são úteis, porque correspondem a duas tendências fundamentais do espírito humano: a que visa a adaptação deste à natureza, e a que procura a sua adaptação à sociedade.

A primeira procede por via de indagações meticulosas e serenas; a segunda marcha por meio de conceituações imediatas e sínteses arrojadas.

A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida, leve e encantadora.

A primeira fornece exercício a uma minoria de cabeças, especializa e desmembra funções, e como que pulveriza a continuidade e a fluência do real numa infinidade de corpúsculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginação e a simpatia, dando a todas a mesma concepção aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente fácil, ampla e satisfatória.

A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessárias de amanhã; a segunda alarga o domínio das verdades agradáveis e convencionais provisórias para uns, perpétuas para a maior parte.

Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmãos inimigos, que não podem viver um sem o outro.

Posta de parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de já meio fanada. -Precisei, para tanto, de um pouco de decisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audácia de carneiro. Atrevimento de cágado.

Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia de uma pétala pendente, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrão a despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Não se fez de rogada.

"Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homem e da natureza... Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e à mão humana.

Sou um produto da terra e da civilização: duplamente flor de cultura.

Sou ao mesmo tempo a glória de Flora e a mais perfeita das flores artificiais. Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras mãos de operárias tristes, mãos febris de moças namoradas.

O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambições, seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso. Assim, uma infinidade de forças diversas vêm-se coordenando e vêm colaborando, através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores - florindo e reflorindo em mim.

De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade não tanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitiva permanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.

Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores e pulcritudes.

Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. O homem inumerável, incomportável e indefinível. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão perder-se nas constelações.

Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases. Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos uma promessa de perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não devas perdoar.

Se tudo, nele, coopera na produção destes milagres de melindroso e incorruptível prestigio!

Milagres em que o fugitivo se confunde com o permanente, e o encanto de uma hora é um sorriso dos séculos.

Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se os impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha deliciosa insignificância, Como a última confidência de ternura e de beleza que as gerações legam umas as outras através dos abismos do tempo.

Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nem guerras nem sinistros que me atinjam.

Vê como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfo comum das energias contraditórias derramadas pela face da terra!

Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lágrima e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comédia, e da infinita alegria do universo...

Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei ao pé de ti, se o quiseres. Busca-me, achar-me-ás. Eu só desapareço de teus olhos para que em ti se renove a ânsia pela minha presença.

Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir uma espuma de rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.

Colhe, beija e sorri.

Nesse minuto estarás num pináculo da vida e num ponto luminoso da eternidade.

Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha da terra vil e do homem desgraçado..."

Fonte:
Domínio Público

Lima Barreto (Um e outro)

(A Deodoro Leucht)
Não havia motivo para que ela procurasse aquela ligação, não havia razão para que a mantivesse. O Freitas a enfarava um pouco, é verdade. Os seus hábitos quase conjugais; o modo de tratá-la como sua mulher; os rodeios de que se servia para aludir à vida das outras raparigas; as precauções que tomava para enganá-la; a sua linguagem sempre escoimada de termos de calão ou duvidoso; enfim, aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularidade, aquele equilíbrio davam-lhe a impressão de estar cumprindo pena.

 Isto era bem verdade, mas não a absolvia perante ela mesma de estar enganando o homem que lhe dava tudo, que educava sua filha, que a mantinha como senhora, com o chaufleur do automóvel em que passeava duas vezes ou mais por semana. Por que não procurara outro mais decente? A sua razão desejava bem isso; mas o seu instinto a tinha levado.

 A bem dizer, ela não gostava de homem, mas de homens; as exigências de sua imaginação, mais do que as de sua carne, eram para a poliandria. A vida a fizera assim e não havia de ser agora, ao roçar os cinqüenta, que havia de corrigir-se. Ao lembrar-se de sua idade, olhou-se um pouco no espelho e viu que uma ruga teimosa começava a surgir no canto de um dos olhos. Era preciso a massagem... Examinou-se melhor. Estava de corpinho. O colo era ainda opulento, unido; o pescoço repousava bem sobre ele, e ambos, colo e pescoço, se ajustavam sem saliências nem depressões.

 Teve satisfação de sua carne; teve orgulho mesmo. Há quanto tempo ela resistia aos estragos do tempo e ao desejo dos homens? Não estava moça, mas se sentia ainda apetitosa. Quantos a provaram? Ela não podia sequer avaliar o número aproximado. Passavam por sua lembrança numerosas fisionomias. Muitas ela não fixara bem na memória e surgiam-lhe na recordação como cousas vagas, sombras, pareciam espíritos. Lembrava-se às vezes de um gesto, às vezes de uma frase deste ou daquele sem se lembrar dos seus traços; recordava-se às vezes da roupa sem se recordar da pessoa. Era curioso que de certos que a conheceram uma única noite e se foram para sempre, ela se lembrasse bem; e de outros que se demoraram, tivesse uma imagem apagada.

 Os vestígios da sua primitiva educação religiosa e os moldes da honestidade comum subiram à sua consciência. Seria pecado aquela sua vida? Iria para o inferno? Viu um instante o seu inferno de estampa popular: as labaredas muito rubras, as almas mergulhadas nelas e os diabos, com uns garfos enormes, a obrigar os penitentes a sofrerem o suplício.

 Haveria isso mesmo ou a morte seria...? A sombra da morte ofuscou-lhe o pensamento. Já não era tanto o inferno que lhe vinha aos olhos; era a morte só, o aniquilamento do seu corpo, da sua pessoa, o horror horrível da sepultura fria.

 Isto lhe pareceu uma injustiça. Que as vagabundas comuns morressem, vá! Que as criadas morressem, vá! Ela, porém, ela que tivera tantos amantes ricos; ela que causara rixas, suicídios e assassinatos, morrer era uma iniqüidade sem nome! Não era uma mulher comum, ela, a Lola, a Lola desejada por tantos homens; a Lola, amante do Freitas, que gastava mais de um conto de réis por mês nas cousas triviais da casa, não podia nem devia morrer. Houve então nela um assomo íntimo de revolta contra o destino implacável.

 Agarrou a blusa, ia vesti-la, mas reparou que faltava um botão. Lembrou-se de pregá-lo, mas imediatamente lhe veio a invencível repugnância que sempre tivera pelo trabalho manual. Quis chamar a criada: mas seria demorar. Lançou mão de alfinetes.

 Acabou de vestir-se, pôs o chapéu, e olhou um pouco os móveis. Eram caros, eram bons. Restava-lhe esse consolo: morreria, mas morreria no luxo, tendo nascido em uma cabana. Como eram diferentes os dois momentos! Ao nascer, até aos vinte e tantos anos, mal tinha onde descansar após as labutas domésticas. Quando casada, o marido vinha suado dos trabalhos do campo e, mal lavados, deitavam-se. Como era diferente agora... Qual! Não seria capaz de suportá-lo mais... Como é que pode?

 Seguiu-se a emigração... Como foi que veio até ali, até aquela cumiada de que se orgulhava? Não apanhava bem o encadeamento. Apanhava alguns termos da série; como porém se ligaram, como se ajustaram para fazê-la subir de criada a amante opulenta do Freitas, não compreendia bem. Houve oscilações, houve desvios. Uma vez mesmo quase se viu embrulhada numa questão de furto; mas, após tantos anos, a ascensão parecia-lhe gloriosa e retilínea. Deu os últimos toques no chapéu, concertou o cabelo na nuca, abriu o quarto e foi à sala de jantar.

 - Maria, onde está a Mercedes? perguntou.

 Mercedes era a sua filha, filha de sua união legal, que orçava pelos vinte e poucos anos. Nascera no Brasil, dois anos após a sua chegada, um antes de abandonar o marido. A criada correu logo a atender a patroa:

 - Está no quintal conversando com a Aída, patroa.

 Maria era a sua copeira e Aída a lavadeira; no trem de sua casa, havia três criadas e ela, a antiga criada, gostava de lembrar-se do número das que tinha agora, para avaliar o progresso que fizera na vida.

 Não insistiu mais em perguntar pela filha e recomendou:

 - Vou sair. Fecha bem a porta da rua... Toma cuidado com os ladrões.

 Abotoou as luvas, concertou a fisionomia e pisou a calçada com um imponente ar de grande dama sob o seu caro chapéu de plumas brancas.

 A rua dava-lhe mais força de fisionomia, mais consciência dela. Como se sentia estar no seu reino, na região em que era rainha e imperatriz. O olhar cobiçoso dos homens e o de inveja das mulheres acabavam o sentimento de sua personalidade, exaltavam-no até. Dirigiu-se para a Rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido. Era manhã e, embora andássemos pelo meado do ano, o sol era forte como se já verão fosse. No caminho trocou cumprimentos com as raparigas pobres de uma casa de cômodos da vizinhança.

 - Bom dia, "madama".

 - Bom dia.

 E debaixo dos olhares maravilhados das pobres raparigas, ela continuou o seu caminho, arrepanhando a saia, satisfeita que nem uma duquesa atravessando os seus domínios.

 O rendez-vous era para a uma hora; tinha tempo, portanto, de dar umas voltas à cidade. Precisava mesmo que o Freitas lhe desse uma quantidade maior. Já lhe falara a respeito pela manhã quando ele saiu, e tinha que buscá-la ao escritório dele.

 Tencionava comprar um mimo e oferecê-lo ao chauffeur do "Seu" Pope, o seu último amor, o ente sobre-humano que ela via coado através da beleza daquele "carro" negro, arrogante, insolente cortando a multidão das ruas, orgulhoso como um deus.

 Na imaginação, ambos, chauffeur e "carro", não os podia separar um do outro; e a imagem dos dois era uma única de suprema beleza, tendo a seu dispor a força e a velocidade do vento.

 Tomou o bonde. Não reparou nos companheiros de viagem; em nenhum ela sentiu uma alma; em nenhum ela sentiu um semelhante. Todo o seu pensamento era para o chauffeur, e o "carro". O automóvel, aquela magnífica máquina, que passava pelas ruas que nem um triunfador, era bem a beleza do homem que o guiava; e, quando ela o tinha nos braços, não era bem ele quem a abraçava, era a beleza daquela máquina que punha nela ebriedade, sonho e a alegria singular da velocidade. Não havia como aos sábados em que ela, recostada às almofadas amplas, percorria as ruas da cidade, concentrava os olhares e todos invejavam mais o carro que ela, a força que se continha nele e o arrojo que o chauffeur moderava. A vida de centenas de miseráveis, de tristes e mendicantes sujeitos que andavam a pé, estava ao dispor de uma simples e imperceptível volta no guidão; e o motorista que ela beijava, que ela acariciava, era como uma divindade que dispusesse de humildes seres deste triste e desgraçado planeta.

 Em tal instante, ela se sentia vingada do desdém com que a cobriam, e orgulhosa de sua vida.

 Entre ambos, "carro" e chauffeur, ela estabelecia um laço necessário, não só entre as imagens respectivas como entre os objetos. O "carro" era como os membros do outro e os dois completavam-se numa representação interna, maravilhosa de elegância, de beleza, de vida, de insolência, de orgulho e força.

 O bonde continuava a andar. Vinha jogando pelas ruas em fora, tilintando, parando aqui e ali. Passavam carroças, passavam carros, passavam automóveis. O dele não passaria certamente. Era de "garage" e saía unicamente para certos e determinados fregueses que só passeavam à tarde ou escolhiam-no para a volta dos clubes, alta noite. O bonde chegou à Praça da Glória. Aquele trecho da cidade tem um ar de fotografia, como que houve nele uma preocupação de vista, de efeito de perspectiva; e agradava-lhe. O bonde corria agora ao lado do mar. A baía estava calma, os horizontes eram límpidos e os barcos a vapor quebravam a harmonia da paisagem.

 A marinha pede sempre o barco a vela; ele como que nasceu do mar, é sua criação; o barco a vapor é um grosseiro engenho demasiado humano, sem relações com ela. A sua brutalidade a violenta.

 A Lola, porém, não se demorou em olhar o mar, nem o horizonte; a natureza lhe era completamente indiferente e não fez nenhuma reflexão sobre o trecho que a via passar. Considerou dessa vez os vizinhos. Todos lhe pareciam detestáveis. Tinham um ar de pouco dinheiro e regularidade sexual abominável. Que gente!

 O bonde passou pela frente do Passeio Público e o seu pensamento fixou-se um instante no chapéu que tencionava comprar. Ficar-lhe-ia bem? Seria mais belo que o da Lúcia, amante do Adão "Turco"? Saltava de uma probabilidade para outra, quando lhe veio desviar da preocupação a passagem de um automóvel. Pareceu ser ele, o chauffeur. Qual! Num táxi? Não era possível. Afugentou o pensamento e o bonde continuou. Enfrentou o Teatro Municipal. Olhou-lhe as colunas, os dourados; achou-o bonito, bonito como uma mulher cheia de atavios. Na avenida, ajustou o passo, concertou a fisionomia, arrepanhou a saia com a mão esquerda e partiu ruas em fora com um ar de grande dama sob o enorme chapéu de plumas brancas.

 Nas ocasiões em que precisava falar ao Freitas no escritório, ela tinha por hábito ficar num restaurant próximo e mandar chamá-lo por um caixeiro. Assim ele lhe recomendava e assim ela fazia, convencida como estava de que as razões com que o Freitas lhe justificara esse procedimento eram sólidas e procedentes. Não ficava bem ao alto comércio de comissões e consignações que as damas fossem procurar os representantes dele nos respectivos escritórios; e, se bem que o Freitas fosse um simples caixa da casa Antunes, Costa & Cia., uma visita como a dela poderia tirar de tão poderosa firma a fama de solidez e abalar-lhe o crédito na clientela.

 A espanhola ficou, portanto, próximo e, enquanto esperava o amante, pediu uma limonada e olhou a rua. Naquela hora, a Rua Primeiro de Março tinha o seu pesado transito habitual de grandes carroções, pejados de mercadorias. O movimento quase se cingia a homens; e se, de quando em quando, passava uma mulher, vinha num bando de estrangeiros recentemente desembarcados.

 Se passava um destes, Lola tinha um imperceptível sorriso de mofa. Que gente! Que magras! Onde é que foram descobrir aquela magreza de mulher? Tinha como certo que, na Inglaterra, não havia mulheres bonitas nem homens elegantes.

 Num dado momento, alguém passou que lhe fez crispar a fisionomia. Era a Rita. Onde ia àquela hora? Não lhe foi dado ver bem o vestuário dela, mas viu o chapéu, cuja pleureuse lhe pareceu mais cara que a do seu. Como é que arranjara aquilo? Como é que havia homens que dessem tal luxo a uma mulher daquelas? Uma mulata...

 O seu desgosto sossegou com essa verificação e ficou possuída de um contentamento de vitória. A sociedade regular dera-lhe a arma infalível...

 Freitas chegou afinal e, como convinha à sua posição e à majestade do alto comércio, veio em colete e sem chapéu. Os dois se encontraram muito casualmente, sem nenhum movimento, palavra, gesto ou olhar de ternura.

 - Não trouxeste Mercedes? perguntou ele.

 - Não... Fazia muito sol...

 O amante sentou-se e ela o examinou um momento. Não era bonitos muito menos simpático. Desde muito verificara isso; agora, porém, descobrira o máximo defeito da sua fisionomia. Estava no olhar, um olhar sempre o mesmo, fixo, esbugalhado, sem mutações e variações de luz. Ele pediu cerveja, ela perguntou:

 - Arranjaste?

 Tratava-se de dinheiro e o seu orgulho de homem do comércio, que sempre se julga rico ou às portas da riqueza, ficou um pouco ferido com a pergunta da amante.

 - Não havia dificuldade... Era só vir ao escritório... Mais que fosse...

 Lola suspeitava que não lhe fosse tão fácil assim, mas nada disse. Explorava habilmente aquela sua ostentação de dinheiro, farejava "qualquer coisa" e já tomara as suas precauções.

 Veio a cerveja e ambos, na mesa do restaurant, fizeram um numeroso esforço para conversar. O amante fazia-lhe perguntas: Vais à modista? Sais hoje à tarde? -ela respondia: sim, não. Passou de novo a Rita. Lola aproveitou o momento e disse:

 - Lá vai aquela "negra".

 - Quem?

 - A Rita.

 - A Ritinha!... Está agora com o "Louro", croupier do Emporium.

 E em seguida acrescentou:

 - Está muito bem.

 - Pudera! Há homens muito porcos.

 - Pois olha: acho-a bem bonita.

 - Não precisavas dizer-me. És como os outros... Ainda há quem se sacrifique por vocês.

 Era seu hábito sempre procurar na conversa caminho para mostrar-se arrufada e dar a entender ao amante que ela se sacrificava vivendo com ele. Freitas não acreditava muito nesse sacrifício, mas não queria romper com ela, porque a sua ligação causava nas rodas de confeitarias, de pensões chics e jogo muito sucesso. Muito célebre e conhecida, com quase vinte anos de "vida ativa", o seu college com a Lola, que, se não fora bela, fora sempre tentadora e provocante, punha a sua pessoa em foco e garantia-lhe um certo prestígio sobre as outras mulheres.

 Vendo-a arrufada, o amante fingiu-se arrependido do que dissera, e vieram a despedir-se com palavras ternas.

 Ela saiu contente com o dinheiro na carteira. Havia dito ao Freitas que o destinava a uma filha que estava na Espanha; mas a verdade era que mais de metade seria empregada na compra de um presente para o seu motorista amado. Subiu a Rua do Ouvidor, parando pelas montras das casas de jóias. Que havia de ser? Um anel? Já lhe havia dado. Uma corrente? Também já lhe dera uma. Parou numa vitrine e viu uma cigarreira. Simpatizou com o objeto. Parecia caro e era ofuscante: ouro e pedrarias - uma cousa de mau gosto evidente. Achou-a maravilhosa, entrou e comprou-a sem discutir.

 Encaminhou-se para o bonde cheia de satisfação. Aqueles presentes como que o prendiam mais a ela; como que o ligavam eternamente à sua carne e o faziam entrar no seu sangue.

 A sua paixão pelo chauffeur durava havia seis meses e encontravam-se pelas bandas da Candelária, em uma casa discreta e limpa, bem freqüentada, cheia de precauções para que os freqüentadores não se vissem.

 - Faltava pouco para o encontro e ela aborrecia-se esperando o bonde conveniente. Havia mais impaciência nela que atraso no horário. O veículo chegou em boa hora e Lola tomou-o cheia de ardor e de desejo. Havia uma semana que ela não se encontrava com o motorista. A última vez em que se avistaram, nada de mais íntimo lhe pudera dizer. Freitas, ao contrário do costume, passeava com ela; e só lhe fora dado vê-lo soberbo, todo de branco, casquette, sentado à almofada, com o busto ereto, a guiar maravilhosamente o carro lustroso. impávido, brilhante, cuja niquelagem areada faiscava como prata nova.

 Marcara-lhe aquele rendez-vous com muita saudade e vontade de vê-lo e agradecer-lhe a imaterial satisfação que a máquina lhe dava. Dentro daquele bonde vulgar, num instante, ela teve novamente diante dos olhos o automóvel orgulhoso, sentiu a sua trepidação, indício de sua força, e o viu deslizar, silencioso, severo, resoluto e insolente, pelas ruas em fora, dominado pela mão destra do chauffeur que ela amava.

 Logo ao chegar, perguntou à dona da casa se o José estava. Soube que chegara mais cedo e já fora para o quarto. Não se demorou muito conversando com a patroa e correu ao aposento.

 De fato, José estava lá. Fosse calor, fosse vontade de ganhar tempo, o certo é que já havia tirado de cima de si o principal vestuário. Assim que a viu entrar, sem se erguer da cama, disse:

 - Pensei que não viesses.

 - O bonde custou muito a chegar, meu amor.

 Descansou a bolsa, tirou o chapéu com ambas as mãos e foi direita à cama. Sentou-se na borda, cravou o olhar no rosto grosseiro e vulgar do motorista; e, após um instante de contemplação, debruçou-se e beijou-o, com volúpia, demoradamente.

 O chauffeur não retribuiu a carícia; ele a julgava desnecessária naquele instante. Nele, o amor não tinha prefácios, nem epílogos; o assunto ataca-se logo. Ela não o concebia assim: resíduos da profissão e o sincero desejo daquele homem faziam-na carinhosa.

 Sem beijá-lo, sentada à borda da cama, esteve um momento a olhar enternecida a má e forte catadura do chauffeur José começava a impacientar-se com aquelas filigranas. Não compreendia tais rodeios que lhe pareciam ridículos

 - Despe-te!

 Aquela impaciência agradava-lhe e ela quis saboreá-la mais. Levantou-se sem pressa, começou a desabotoar-se devagar, parou e disse com meiguice:

 - Trago-te uma coisa.

 - Que é? fez ele logo.

 - Adivinha!

 - Dize lá de uma vez.

 Lola procurou a bolsa, abriu-a devagar e de lá retirou a cigarreira. Foi até ao leito e entregou-a ao chauffeur. Os olhos do homem incendiaram-se de cupidez; e os da mulher, ao vê-lo satisfeito, ficaram úmidos de contentamento.

 Continuou a despir-se e, enquanto isso, ele não deixava de apalpar, de abrir e fechar a cigarreira que recebera. Descalçava os sapatos quando o José lhe perguntou com a sua voz dura e imperiosa:

 -Tens passeado muito no "Pope" ?

 - Deves saber que não. Não o tenho mandado buscar, e tu sabes que só saio no "teu".

 - Não estou mais nele.

 - Como?

 - Saí da casa... Ando agora num táxi.

 Quando o chauffeur lhe disse isso, Lola quase desmaiou; a sensação que teve foi de receber uma pancada na cabeça.

 Pois então, aquele deus, aquele dominador, aquele supremo indivíduo descera a guiar um táxi sujo, chocalhante, mal pintado, desses que parecem feitos de folha-de-flandres! Então ele? Então... E aquela abundante beleza do automóvel de luxo que tão alta ela via nele, em um instante, em um segundo, de todo se esvaiu. Havia internamente. entre as duas imagens, um nexo que lhe parecia indissolúvel, e o brusco rompimento perturbou-lhe completamente a representação mental e emocional daquele homem.

 Não era o mesmo, não era o semideus, ele que estava ali presente; era outro, ou antes, era ele degradado, mutilado, horrendamente mutilado. Guiando um táxi... Meu Deus!

 O seu desejo era ir-se, mas, ao lhe vir esse pensamento, o José perguntou:

 - Vens ou não vens?

 Quis pretextar qualquer cousa para sair; teve medo, porém, do seu orgulho masculino, do despeito de seu desejo ofendido .

 Deitou-se a seu lado com muita repugnância, e pela última vez.

Alcântara Machado (Gaetaninho)

- Xi, Gaetaninho, como é bom!

 Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford.

 O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.

 - Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.

 Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.

 - Subito!

 Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.

 Êta salame de mestre!

 Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.

 O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.

 Mas se era o único meio? Paciência.

 Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.

 Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho.

 Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.

 Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.

 Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.

 Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.

 Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.

 O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.

 - Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?

 - Meu pai deu uma vez na cara dele.

 - Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!

 O Vicente protestou indignado:

 - Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!

 Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.

 O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.

 - Passa pro Beppino!

 Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.

 - Vá dar tiro no inferno!

 - Cala a boca, palestrino!

 - Traga a bola!

 Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.

 No bonde vinha o pai do Gaetaninho.

 A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.

 - Sabe o Gaetaninho?

 - Que é que tem?

 - Amassou o bonde!

 A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

 Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.

 Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Charles Dickens (Horácio Sparkins) Parte I

Conto em duas partes.–––––––––––––––––––––––
Com efeito, meu querido, ele deu muita atenção a Teresa no último sarau - disse a Sra. Malderton dirigindo-se ao marido, o qual, após as canseiras do dia na City, sentado com um lenço de seda na cabeça, os pés sobre o guarda-fogo, bebia seu vinho. - Muita atenção, realmente; e repito que se deve dar-lhe todo e qualquer estímulo. Não há dúvida que ele deve ser convidado para jantar aqui.

 - Quem? - perguntou o Sr. Malderton.

 - Bem, você sabe, meu querido, a quem estou me referindo: àquele moço de suíças pretas e gravata branca que há pouco veio ao nosso clube e de quem todas as moças falavam. É o jovem... meu Deus! como se chama mesmo?... Mariana, lembra-me o nome dele, - disse a Sra. Malderton voltando-se para a filha mais nova, que estava ocupada em fazer uma bolsa de tricô e olhar sentimentalmente.

 - Sr. Horácio Sparkins, mamãe - respondeu Mariana com um suspiro.

 - Isso mesmo! Horácio Sparkins - disse a Sra. Malderton.

 - Decididamente é o jovem mais elegante que já vi na minha vida. No casaco tão elegante que ele usava a noite passada, parecia-se com... com...

 - Com o príncipe Leopoldo, mamãe... tão nobre, tão cheio de sentimento! - sugeriu Mariana, entusiasmada.

 - Você não deve esquecer, meu querido - resumiu a Sra. Malderton - que Teresa tem agora 28 anos. É da maior importância que se faça alguma coisa.

 A Senhorita Teresa Malderton era uma jovem muito pequena, gorducha, de faces avermelhadas, mas de bom humor e ainda sem compromisso, embora - para fazer-lhe justiça - tal desgraça não decorresse absolutamente de sua falta de perseverança. Em vão tinha namorado durante 10 anos. Em vão o Sr. e a Sra. Malderton mantinham assiduamente relações com grande número de rapazes solteiros e elegíveis de Camberwell, e até de Wandsworth e Brixon, sem falar daqueles que ocasionalmente apareciam na cidade. A Sra. Malderton estava tão conhecida como o leão do topo de Northumberland House e tinha a mesma probabilidade de "sair".

 - Estou certa de que você gostará dele - continuou a Sra. Malderton. - Ele é tão galante!

 - E tão hábil - acrescentou Mariana.

 - E tão eloqüente - observou Teresa.

 - Tem muito respeito a você, meu querido - disse a Sra. Malderton ao esposo.

 Ele tossiu e olhou para o fogo.

 - Sim, estou certo de que ele tem o maior interesse em conhecer papai - declarou Mariana.

 - Sem a menor dúvida - ecoou Teresa.

 - É verdade, ele me disse confidencialmente - voltou a Sra. Malderton.

 - Está bem - replicou o Sr. Malderton, algo lisonjeado. - Se o encontrar amanhã no clube, talvez o convide. Naturalmente ele sabe que moramos em Oak Lodge, não, minha querida?

 - Naturalmente. Sabe também que você tem uma carruagem de um cavalo.

 - Vou ver isso - disse o Sr. Malderton, dispondo-se a uma soneca.

 O Sr. Malderton era um homem cujo campo de idéias estava limitado ao Lloyd's, à Bolsa, à Indian Houve e ao Banco. Algumas especulações bem sucedidas o levaram de uma situação de obscuridade e relativa pobreza a um estado de abastança. Como tantas vezes acontece em tais casos, suas idéias e as da sua família foram-se exaltando em extremo, ao passo que lhe crescia a fortuna; todos afetavam elegância, bom-gosto, e outras tolices, imitando seus superiores, e tinham um horror muito decidido e característico a tudo quanto pudesse eventualmente ser considerado baixo. Era hospitaleiro por ostentação, liberal por ignorância, e cheio de preconceitos por presunção. O egoísmo e o amor à exibição faziam-no manter mesa excelente; a conveniência e o amor às coisas boas da vida asseguravam-lhe grande número de convivas. Gostava de ter à mesa homens hábeis ou que considerava tais, pois eram grande tema para conversação, mas nunca pôde suportar aqueles a quem chamava "camaradas espertos". Provavelmente conseguiu comunicar este sentimento a seus dois filhos, que nesse ponto não causavam nenhuma inquietação ao responsável progenitor. A família tinha a ambição de travar conhecimentos e relações em qualquer esfera social superior à sua, e uma das conseqüências de tal desejo, facilitada pela extrema ignorância em que estavam de tudo quanto ficava além de seu estreito círculo, era que toda pessoa pretendia conhecer gente da alta sociedade tinha seguro passaporte para a mesa de Oak Lodge.

 O aparecimento do Sr. Horácio Sparkins no clube provocou, entre os freqüentadores assíduos, extraordinária surpresa e curiosidade. Quem podia ser? Ele era evidentemente reservado e visivelmente melancólico. Um eclesiástico? Mas dançava bem demais. Um advogado? Mas dizia que ainda não fora chamado a praticar. Empregava palavras muito finas e era grande conversador. Seria algum estrangeiro distinto vindo à Inglaterra que freqüentava jantares e bailes públicos a fim de conhecer a alta-roda, a etiqueta, o requinte inglês? Mas não tinha sotaque. Era um cirurgião, um colaborador de revistas, um autor de romances, um artista? Não: a cada uma dessas suposições, como ao conjunto delas, havia alguma objeção válida. "De qualquer maneira - concordavam todos - ele deve ser alguém.: - "Deve ser, com certeza - dizia com seus botões o Sr. Malderton - , uma vez que percebe a nossa superioridade e nos dá tamanha atenção."

 A noite seguinte a conversa que acabamos de relatar era noite de reunião. A carruagem recebeu ordem de estar à porta de Oak Lodge às nove horas em ponto. As Senhoritas Malderton estavam vestidas de azul-celeste ornado de flores artificiais, e a Sra. Malderton (que era baixa e gorda), idem, idem, parecendo sua filha mais velha multiplicada por dois. O Sr. Frederico Malderton, o filho mais velho, em traje de rigor, representava o beau idéal de um garçom elegante, e o Sr. Tomas Malderton, o mais jovem, de gravata branca de gala, paletó azul, botões brilhantes e fita de relógio vermelha, de perto se parecia com Jorge Barnewll. Todos do grupo estavam interessados em cultivar a amizade do Sr. Horácio Sparkins. A Senhorita Teresa preparava-se para mostrar amável e interessante como em geral o são as moças de 28 anos à procura de um marido. A Sra. Malderton ia ser toda sorrisos e graças. A Senhorita Mariana lhe pediria o favor de escrever alguns versos em seu álbum. O Sr. Malderton tomaria sob sua proteção, o grande desconhecido, convidando-o a jantar em sua casa. Tom dispunha-se a averiguar a extensão de seus conhecimentos em matéria de rapé e charutos. O próprio Sr. Frederico Malderton, a autoridade da família em tudo o que dizia respeito à elegância do traje e das maneiras, e ao bom gosto; que possuía seu apartamento próprio na cidade; que tinha ingresso livre no teatro Covent Garden; que se vestia sempre com formalidade com a moda do mês; que ia às águas duas vezes por semana, durante a estação; que tinha um amigo íntimo que outrora conhecera um cavalheiro que tinha vivido no Albany - ele mesmo declarou que o Sr. Horácio devia ser um sujeito famoso e que lhe daria a honra de desafiá-lo para uma partida de bilhar.

 O primeiro objeto que feriu os olhos ansiosos da expedita família, ao entrarem no salão, foi o interessante Horácio, com os cabelos atirados sobre a fronte e os olhos fixos no chão, recostado numa das cadeiras em atitude contemplativa.

 - Ei-lo, meu querido, - cochichou ao marido a Sra. Malderton.

 - Como se parece com Lord Byron - murmurou Teresa.

 - Ou com Montgomery - segredou a Senhorita Mariana.

 - Ou com os retratos do capitão Cook! - sugeriu Tom.

 - Tom, não seja burro! - disse o pai, que o morigerava a cada passo, provavelmente com o intuito de o impedir de se tornar "esperto", coisa totalmente desnecessária.

 O elegante Sparkins continuava em sua atitude afetada, de admirável efeito, até que a família cruzou a sala. Então se levantou precípite, com o ar mais natural de surpresa e enlevo, aproximou-se da Sra. Malderton com a maior cordialidade, cumprimentou as moças de modo encantador, inclinou-se perante o Sr. Malderton, cuja mão apertou com respeito que raiava a veneração, e retribuiu a saudação dos dois rapazes com um jeito meio agradecido, meio protetor, que acabou convencendo-os que ele devia ser uma personagem importante mas condescendente ao mesmo tempo.

 - Senhorita Malderton - disse Horácio após os cumprimentos de praxe e inclinando-se profundamente - é-me lícito conceber a esperança de que me permitirá ter o prazer de...

 - Não sei se já estou comprometida - disse a Senhorita Teresa com terrível afetação de indiferença - mas realmente... assim... tão...

 Horácio ostentou uma expressão primorosamente lastimável.

 - Terei muito prazer - externou por fim a interessante Teresa. O rosto de Horácio brilhou de repente como um velho chapéu sob a chuva.

 - É realmente um moço muito distinto - declarou o Sr. Malderton, quando o obsequioso Sparkins e seu par se dirigiram para a quadrilha que se formava.

 - Ele tem, de fato, boas maneiras - observou o Sr. Frederico.

 - Sim, é um rapaz notável - interveio Tom, que não deixava passar oportunidade de meter os pés pelas mãos. - ele fala que só um leiloeiro.

 - Tom, disse o pai com solenidade, suponho já lhe ter pedido que não seja tolo.

 Tom ficou tão contente como um galo em manhã escura.

 - Como é delicioso - dizia à sua dama o interessante Horácio - enquanto passeavam pela sala depois da contradança - , como é delicioso, repousante, abrigar-nos das tempestades nebulosas das vicissitudes, dos dissabores da vida, embora apenas por alguns instantes fugazes, e passar esses instantes por mais efêmeros e rápidos que sejam, no delicioso, no abençoado convívio de um ser - cujo franzir de sobrancelhas seria a morte, cuja frieza seria a loucura, cuja falsidade seria a ruína, cuja constância seria a ventura, e cuja afeição seria a recompensa mais brilhante e elevada que os Céus pudessem outorgar a um homem!

 - Quanto ardor! Quanto sentimento!"- pensava a Senhorita Teresa, apoiando-se com força no braço de seu cavalheiro.

 - Mas basta, basta! - resumiu o elegante Sparkins com ar teatral. - Que foi que eu disse? Que tenho eu... que ver... com sentimentos como este? Senhorita Malderton - aqui ele parou de repente - , posso esperar o consentimento para oferecer-lhe o humilde tributo de...

 - Na verdade, Sr. Sparkins - retrucou a enlevada Teresa, corando na mais deliciosa confusão - tem que falar com papai. Eu nunca poderia sem o consentimento dele atrever-me a ...

 - Decerto ele não fará objeção alguma...

 - Ora, o Sr não o conhece ainda! - interrompeu-o a Senhorita Teresa, bem sabendo que não havia nada a temer, mas desejosa de transformar a cena em um romance romântico.

 - Ele não poderá fazer objeção alguma a que eu lhe ofereça um copo de sangria - volveu o adorável Sparkins com certa surpresa.

 - "Era apenas isso? - pensou Teresa desiludida - Quanto barulho por nada!"

 - Terei o maior prazer, senhor, em vê-lo a jantar em Oak Lodge, Camberwell, domingo próximo, às cinco horas, se não tiver compromisso melhor, - disse o Sr. Malderton no fim da reunião, quando ele e os filhos conversavam com o Sr. Horácio Sparkins.

 Este curvou-se agradecendo e aceitando o convite.

 - Devo-lhe confessar - continuou o pai, oferecendo rapé ao novo conhecido - que gosto muito menos destas reuniões que do conforto, ia quase a dizer do luxo, de Oak Lodge. Elas não têm grandes encantos para um homem de certa idade.

 - Aliás, senhor, que é afinal o homem? - perguntou o metafísico Sparkins. - que é o homem? Digo eu.

 - Ah, isso mesmo - disse o Sr. Malderton - , isso mesmo.

 - Sabemos que vivemos e respiramos - continuou Horácio - que temos aspirações e desejos, anelos e apetites...

 - Sem dúvida - replicou o Sr. Frederico Malderton com ar profundo.

 - Sabemos que existimos, digo eu - repetiu Horácio, levantando a voz - mas aí nos detemos; ai está o fim do nosso conhecimento, o limite do nosso alcance, o termo de nossos fitos. Que mais sabemos?

 - Nada - respondeu o Sr. Frederico.

 E realmente ninguém tinha mais direito que ele de fazer tão afirmativa. Tom ia arriscar um reparo, mas, a bem de sua reputação, percebeu o olhar zangado do pai e escapuliu-se como um cão apanhado em flagrante de furto.

 - Palavra de honra - disse o Sr. Malderton pai quando a família voltava para casa na carruagem - este Sr. Sparkins é admirável. Quantos conhecimentos! Que amplidão de informações! Que maneira esplêndida de se exprimir!

 - Para mim ele deve ser alguém disfarçado - declarou a Senhorita Mariana. - Que encantadoramente romântico!

 Tom arriscou:

 - Ele fala forte e muito bem. Apenas não entendo exatamente o que ele quer dizer.

 - Quase começo a desesperar de você entender qualquer coisa, Tom - disse o pai, o qual, naturalmente, ficara edificadíssimo com a palestra do Sr. Horácio Sparkins.

 - Tenho a impressão, Tom - disse a Senhorita Teresa - de que você foi bastante ridículo esta noite.

 - Sem a menor dúvida! - gritaram todos.

 E o pobre Tom procurou reduzir-se ao menor volume possível. Naquela noite o Senhor e a Senhora Malderton conversaram longamente sobre as perspectivas e o futuro de sua filha. A Senhorita Teresa foi deitar-se perguntando a si mesma se, caso desposasse um aristocrata, devia incentivar as visitas de suas conhecidas atuais, e sonhou a noite inteira com gentis-homens disfarçados, grandes recepções, plumas de avestruz, presentes nupciais e Horácio Sparkins.

 Na manhã do domingo se aventaram diversas conjecturas acerca da condução que o ansiosamente esperado Horácio iria adotar. Ia tomar um cabriolé? Montaria a cavalo? Preferiria a diligência? Tais e outras mais hipóteses de igual importância absorveram a atenção da Sra. Malderton e de suas filhas durante toda a manhã, depois do ofício divino.

 - palavra de honra, minha querida, aborrece-me que o simplório do seu irmão tenha convidado a si mesmo para jantar aqui hoje - disse o Sr. Malderton à mulher. - Por causa da visita do Sr. Sparkins eu me abstive, de propósito, de convidar fosse quem fosse, além de Flamwell. E agora pensar que seu irmão... um lojista... não, é insuportável. Não gostaria que fizesse qualquer referência à loja diante do nosso convidado... não, nem por mil libras! Preferiria que tivesse o bom senso de esconder a desgraça que ele representa para a família, porém ele gosta tanto do seu horrível negócio que não deixará de falar a respeito.

 O Sr. José Barton, a pessoa em apreço, era dono de um grande armazém, homem vulgar e tão despido de sensibilidade que não tinha o menor escrúpulo em confessar que não estava acima do seu negócio; juntara seu dinheiro graças a ele, e não fazia questão de encobri-lo.

 - Ah, Flamwell, meu caro amigo, como vai? - perguntou o Sr. Malderton ao ver um homenzinho azafamado, de óculos verdes, entrar na sala. - Recebeu o meu bilhete?

 - Recebi sim, e estou aqui às suas ordens.

 - Não conhecerá de nome, por acaso, esse Sr. Sparkins? Você conhece todo o mundo.

 Era o Sr. Flamwell um desses cavalheiros de relações extremamente vastas que a gente encontra de quando em quando na sociedade, os quais pretendem conhecer a todos mas na verdade não conhecem ninguém. Em casa dos Maldertons, onde qualquer história sobre gente distinta era acolhida com ouvidos gulosos, estimavam-no especialmente. Vendo com que espécie de pessoas tratava, levou ao extremo a paixão de exibir as suas relações. Tinha um modo peculiar de contar as suas maiores mentiras num parêntese, com ar de quem se desmente a si mesmo, como se estivesse receando parecer egoísta.

 - Bem, não o conheço por esse nome - , replicou em voz baixa e com um jeito de imensa importância. - No entanto, devo conhecê-lo, sem a menor dúvida. É alto?

 - É de estatura mediana - disse a Senhorita Teresa.

 - Cabelos pretos? - perguntou Flamwell, arriscando uma suposição arrojada.

 - Sim - respondeu a Senhorita Teresa ansiosamente.

 - De nariz bastante arrebitado?

 - Não - replicou Teresa com desaponto. - tem um nariz romano.

 - Pois não foi o que eu disse, um nariz romano? - disse Flamwell. - Não é um moço elegante?

 - É.

 - De maneira excessivamente simpáticas?

 - Sim - exclamou a família toda. - Naturalmente você o conhece.

 - Foi o que pensei: naturalmente você o conhece, se ele é "alguém", - triunfou o Sr. Malderton. - Quem pode ser ele?

 - Bem, pela descrição de vocês - disse Flamwell ruminando e baixando a voz até o cochicho - ele se parece de modo estranho com o nobre Augustus Fitz-Edward Fitz-John Fitz-Ozborne. É um rapaz de muito talento e bastante excêntrico. É muitíssimo provável que tenha mudado de nome por algum motivo especial.

 O coração de Teresa batia forte. Seria mesmo o nobre Augustus Fitz-Edward Fitz-John Fitz-Ozborne? Que nome para ser gravado elegantemente em dois cartões acetinados, atados com uma fita de cetim branco! A nobre senhora Augustus Fitz-Edward Fitz-John Fitz-Ozborne! Só o pensar nisso dava um êxtase!
–––––––––-
continua…

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Juraci Siqueira (Encavernado)

Chove sobre a cidade. Chuva densa, impiedosa. Chuva que exerce sobre mim o estranho poder de conduzir-me às brenhas de mim mesmo qual animal acuado à procura da toca. Troglodita indefeso em busca do ventre pétreo da caverna...

Mergulho em meus comigos a cismar sobre o destino da Terra e do Homem – esse construtor de estradas para lugar nenhum. Mas quando a antevisão do caos me deixa apavorado e triste, transponho os muros do real e vou colher, no pomar dos sonhos, os pomos dourados da poesia.

Poetas somos, em nosso ofício, criaturas solitárias por razões que bem não atino. Talvez pela necessidade de estarmos a sós com a palavra no momento mágico da concepção da poesia, para que nenhum mortal possa testemunhar a dor ou a alegria estampadas em nossas faces na hora do parto do poema.

Chove. Cerco-me de palavras para tentar esquecer que neste momento o planeta é oferecido em holocausto aos deuses do progresso e que, em nome de Deus e da Justiça, homens sacrificam-se mutuamente como se fosse possível conceber guerra justas e santas!...

Tento desesperadamente convencer-me de que a poesia está acima do bem e do mal, acima dos homens, de suas leis, crenças e ideologias. Digo a mim mesmo que os poetas somos seres privilegiados, que não devemos, por isso, deixar que a voz das armas fale mais alto aos nossos ouvidos que a voz do vento, que a voz do mar, que a voz do nosso coração. Mas é impossível enganar-se a si mesmo quando se tem o peito dilacerado por uma bala ou por uma lâmina de baioneta que, sem pedir licença, invadem nossos lares via satélite. Impossível não escutar as trombetas do Apocalipse anunciando que mais cordeiros serão imolados para saciar a sede de modernos e sádicos vampiros.

A chuva faz-me regredir no tempo e voltar à caverna, jardim de infância da humanidade onde o homem rabiscou a primeira flor, domou a primeira fera, articulou a primeira palavra, fabricou a primeira arma e, seguramente, organizou a primeira batalha contra seus semelhantes...

Os ruídos da chuva misturam-se ao som do televisor que exibe imagens de um conflito qualquer. Imagens cruéis, animalescas. Fatos que fazem com que eu me sinta, verdadeiramente, um troglodita cercado de feras e condenado aos limites de minha própria caverna. Humana e trágica caverna a se fechar, cada vez mais, em torno de meus medos, meus delírios, minhas convicções...

E é assim que vejo a alegoria platônica da caverna realizar-se em mim. Atualizar-se com o regresso do homem ao seu primitivo útero de pedra. Mas, ao contrário do mito, já não há boas novas para anunciar. Apenas a triste constatação de que o homem moderno, a despeito de sua avançada tecnologia que lhe permite destruir seu semelhante e o meio em que vive com o auxílio do átomo, não conseguiu ser um pouco melhor que seus ancestrais que já faziam o mesmo com paus e pedras. É triste admitir que em plena era da informática as armas continuem a falar mais alto que as palavras e que estas sirvam de instrumento para promover a discórdia entre os povos, para inverter e perverter valores, para transformar a liberdade numa “calça velha, azul e desbotada...”

A chuva passou mas eu continuo entrincheirado entre palavras. Afundo e confundo-me nelas para proteger-me das garras do ódio, para resistir às leis das armas. Com elas fabrico, quixotescamente, meu escudo e minha lança para investir contra os moinhos da insensibilidade humana.

Os poetas somos criaturas solitárias a esgrimir com o verbo. E precisamos, urgentemente, de paz para continuar semeando amor e poesia nos canteiros do mundo, nos pomares da vida, nos corações dos homens.

Fonte:
http://blogdobotojuraci.blogspot.com.br/

Raimundo de Araujo Chagas (Folhas Poéticas)

Espaço Das (facebook)
JUDAS
 
Antes de vir o Sol, a vila já alarmada,
mostra em cada garoto um grande espadachim,
que anda de rua em rua, em louca disparada,
atrás de um Judas vil, de crânio de capim;

De um Judas moleirão de cara amarrotada,
de pança desconforme e cheia de estopim,
que liga um buscapé a uma bomba encerada,
pronta para estrugir, em honra do festim.

Num bulício infernal, a garotada infrene,
espera com prazer, do sino a voz solene
para então reduzir em cinzas o espantalho!...

E os vampiros reais, os judas elegantes,
vivem sempre a cantar, como viviam dantes,
desdenhando do Bem, da Vida e do Trabalho.

O CANÁRIO DE BERTHA
 

Júlia tinha um canário, tu bem viste,
mas Bertha tinha um outro extraordinário
que muitas vezes o seu canto ouviste
como se fosse um sonho imaginário.

Júlia tratava os dois de modo vário!
Tanto assim que o de Bertha fez-se triste
porque ela dava alpiste ao seu canário
dando arroz ao de Bertha em vez de alpiste.

Como o canário original de Bertha,
estristeci, vendo na vida incerta
esse grupo de cínicos que existe,

que estende a mão de amigo sendo algoz,
vão criando canários com arroz
e alimentando amigos com alpiste...

FASES DO ANO

Janeiro! Eleva-se o rio.
Fevereiro — alaga os campos.
Março e Abril! Noites de frio,
bordadas de pirilampos.

Maio! Festa... sacramentos.
Junho — geme o órgão dos ventos,
buscando o luar de agosto.

Setembro e Outubro. É o verão.
Novembro, espalha alegrias
nas praias de Amarração.

Natal! Dezembro. O ano expira.
Trezentos e muitos dias
só de ilusões ... de mentira!

SAUDADE

Eu vivo como o mar, bebendo os rios,
rios da Dor que crescem, com certeza,
em meu ser, quando o inverno da Tristeza
chega e vence ao cair dos tempos frios.

Eu vivo como os pássaros sombrios,
dos quais a tempestade em luta acesa
roubou dos ninhos frágeis e macios,
isolando-os da própria natureza.

Eu vivo como as águas das cascatas
que a força eterna de um tremendo fado
desfia em prantos no painel das matas.

Eu vivo sem viver, esta é a verdade,
pois não pode viver um torturado
que se alimenta apenas da saudade!...

O HOMEM
 

Garboso rei supremo das quimeras,
que vieste, por momentos, como eu vim,
a este orbe, onde por grande que pareças,
um dia hás de ter sempre o mesmo fim

que têm as borboletas, os vampiros,
as lesmas, as serpentes e os abutres.
No entanto,à luz de exemplos tão frisantes,
somente de vaidades, enfim, te nutres.

Se comercias, ninguém mais honesto
no serviço do peso ou da medida.
Tens filho? — Hás de supor que os teus parecem
as almas mais perfeitas desta vida.

Contudo és grande: regulaste o tempo,
mediste a terra, devastaste o espaço.
Tudo tens feito aos rasgos do teu gênio
seguido pela força do teu braço.

E assim te elevas, orgulhosamente.
Do mundo gozas todos os conceitos.
Tudo sabes fazer, mas, por desgraça,
não sabes conhecer os teus defeitos!

Baixa, pois, desce até chegar aos vermes.
Busca o teu nível, sofre e te consola.
Não julgues nunca que és alguma cousa
diante do pobre que te pede esmola.

Humilha-te, portanto, ante os humildes.
Sonda tua alma, purga os teus pecados.
“Os que se humilham neste mundo, no outro
serão pelos feitos exaltados”.

Fonte:
O BEMBÉM, Ano 1,  N. 8, N. 8, Parnaíba, Piauí, 21 de agosto de 2008. Disponivel em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/piaui/r_petit.html

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Herberto Sales (Os Pareceres do Tempo)

Herberto Sales (Andaraí, BA, 1917- Rio de Janeiro,RJ,1999) surge no panorama literário brasileiro, em 1944, com o seu primeiro romance, Cascalho, a nos apresentar os crimes e lutas inerentes aos garimpos, num contexto de violência e aventura, numa moderna retomada da temática de Lindolfo Rocha, regionalista do princípio do século XX. Quarenta anos depois de Cascalho, precedidos pela publicação de contos e outros romances do autor, surgem Os Pareceres do Tempo, “romance de duas velhas famílias que se enredam em episódios vividos por uns tantos membros dela: os Golfões e os Rumecões, na antiga região denominada Cuia d’Água.” O cenário principal de Os Pareceres do Tempo é a Bahia do final do século XVIII.

O romance tem como ponto de partida a vinda para o Brasil do português Antônio José Pedro Policarpo Golfão – “mais crescido nos prenomes, que no sobrenome” (LIVRO I, p. 11) – que recebe uma sesmaria no município de Cachoeira, como reconhecimento do rei de Portugal por seu pai, um fidalgo, cujo nome não nos é dado a conhecer, ter morrido ainda no mar, indo para a Índia, em missão portuguesa. Ou numa “outra versão da morte do fidalgo: a que ele, entre os da família do tão célebre apelido Golfão, o mais antigo ancestral na tradição referido, encontrou a morte, não no mar, mas na batalha de Alcácer-Quibir, batendo-se contra o gentio, no elevado propósito de no incréu incutir a Fé, com a ajuda eficaz da Espada; isso, sob o comando superior e piedoso de El-Rei D. Sebastião, que ali, desgraçadamente, também pereceu”.

Este é, pois, fato cuja veracidade é incerta:

Conquanto não haja documentos que indiquem, sob a grave proteção dos arquivos, haver existido em qualquer tempo esse fidalgo, não ousamos pôr em dúvida tão respeitável versão, que até nos chegou sem discrepância, robustecida por mais de dois séculos de tradição local”. (LIVRO I, p.11)

E, como está nos REGISTROS FINAIS (p. 409), segundo o narrador:

“Estes registros fizemo-los depois de visitarmos em Cuia d’Água a antiga fazenda do capitão Policarpo, já praticamente em ruínas. Braulino José foi o nosso principal informante. Levou-nos até ao cemitério da fazenda, em parte já invadido pelo mato”.

O enredo de Os Pareceres do Tempo é construído com base na tradição oral interna da obra, através do depoimento do filho de Policarpo – Braulino José, aos 132 anos de idade – dado ao narrador; depoimento este aliado à dinâmica do panorama da Bahia dos anos de setecentos. Mas

“a dualidade de versões do óbito infortunado fidalgo e – já agora, por que não dizer? – também possível guerreiro, de quem em linha direta descendia Policarpo Golfão, não alterou o desfecho do reconhecimento póstumo que por justiça a pátria lhe tributou, aquinhoando, como de fato aquinhoou, o seu filho único e legítimo com a já competentemente citada sesmaria no alto serão da Bahia, então sede do governo colonial do Brasil”. (LIVRO I, p. 13)

Eram, portanto, as terras do Brasil de quem aqui chegasse munido de documento de doação concedido pelo rei de Portugal.

Desde Cascalho, verificamos esse gosto do autor pela oralidade popular:

“Nos barulho do Coxó
Briga até as lagartixa
- Os calango de combléia
E elas de manulicha...” (p. 47).

“Viva Santa Rita,
Que é Santa mulher,
No céu e na terra,
Ela faz o que quer!” (p.78).


Em Os Pareceres do Tempo, a construção da vida de Policarpo, refletida no seu estado de espírito, nos vai sendo apresentada pela ótica popular, em pequenos versos:

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão”. (LIVRO XVII, p. 94)
“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Com Liberata no coração”. (LIVRO XLIX, p. 350)

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
De volta da sua vingança
Com Liberata na lembrança (LIVRO LII, p. 372)

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Levando com devoção
A sua igreja no coração”. (LIVRO LIV, p. 398)


Conta-nos o narrador – tão ironicamente distanciado do autor no prefácio – como as três raças que compõem a mestiçagem brasileira conviviam, mas não se misturavam, procurando conservar suas características sociais e culturais.

“E foram todos, depois, para a mesa, com o Fidalgo sentado à cabeceira, e Policarpo a seu lado. O padre Gumercindo e o padre Salgado, e mais o Quincas Alçada, ocuparam os outros lugares. Isto no corpo principal da mesa; porque, continuando-a, no seu desdobramento festivo, democraticamente franqueado aos principais auxiliares de Policarpo na fundação da fazenda e na edificação da casa-grande, outros lugares havia, reservados ao mestre-de-obras Dinis e a seu filho Serafim, e ao capitão-do-mato José do Vale e ao seu auxiliar Bertoldo. E abriram-se garrafas de vinho, e com generosidade o serviram, as garrafas transitando na mesa e esvaziando-se no degustado e comovido suceder dos goles, que o vinho, a todos apetecendo, também lhes lembrava, no enlevo de seus vapores, o tão distante quanto amado Portugal. (...)

(...) Os escravos e os índios comiam à parte, servindo-se duns fumegantes caldeirões comandados pelo índio Nicodemus (ex-Sinimu), disso encarregado por Quincas Alçada. (...)” (LIVRO XXIII, p. 134-5)


Ainda neste almoço, os escravos cantaram e dançaram:

“Taratatara kundê / Ogum de lê / Oyá jamba / Maion gangê / Kawô / Kawô / Oyá ajô”

E comenta o narrador:

“Ninguém entendia o que diziam, o que cantavam eles; mas as palavras, os sons da cantoria deles impressionavam pela tristeza profunda e doce, pela dorida melancolia que comunicavam, ao mesmo tempo em que eram carregados duma aspereza de imprecações dramáticas”.

E diz mais o narrador:

r
“Ao contrário dos negros, os índios conservavam-se em silêncio, no mesmo lugar onde desde o começo estavam. Trocavam entre si, às vezes, um olha, mas, entre si, não se falavam. Ou falavam entre si com os olhos.” (LIVRO XXIII, p. 135-6)

Essa reação dos índios de não se deixarem dominar nem aculturar é-nos mostrada mais à frente da narrativa de modo decisivo:

“Policarpo reconheceu-o:
- Gonçalo!
- Não sou Gonçalo! – respondeu o índio, evidentemente zangado. Meu nome é Icurê. Gonçalo foi o nome que padre botou em índio. Gonçalo é nome de branco. Icurê não é branco. Índio é índio. Meu nome é Icurê.” (LIVRO I, p. 358)


Nessa narrativa nós, leitores, somos conduzidos pelos passos do tentacular Policarpo – “consta que era alto, e corpulento; era branco, e louro, com viçoso bigode e barba farta, emparelhados com basta cabeleira cacheada. Um homem bonito; um soberbo varão, segundo registro da mais fundamentada tradição oral.” (LIVRO I, p. 12) – até a cruel realidade de um contexto onde “o levar ou o trazer escravos assim acorrentados e amarrados, (...) era fato assaz corriqueiro naqueles tempos, nas ruas da Bahia; ninguém lhes prestava atenção, ou quase ninguém”. (LIVRO XI, p. 58).

Nesse mundo antiético, onde o caos e o cotidiano se justapõem – o vai-e-vem de escravos acorrentados, estranhos transeuntes traficados da África nas ruas da Bahia, a esbarrarem-se com as famílias portuguesas que, se por um lado mostravam religiosidade, temor a Deus, por outro, faziam tráfico de escravos, na sua maioria:

“Explicou, ainda, o Almeidão a Policarpo Golfão que, tendo em vista que a hospedaria não lhe proporcionava a ele satisfatórios lucros, resolvera, para não ter de resignar-se ao ganho dum sustento sem futuro, buscar em outra atividade a necessária complementação de renda. E que a escolha dessa atividade recaíra no tráfico de escravos, por ser ela, além de lucrativa, de muita respeitabilidade na Bahia. Ademais, quase todos que a ela se entregavam eram portugueses, não os de inferior condição, mas, ao contrário, os de mais representação na colônia; e, tanto isto era verdade, que os portugueses traficantes de escravos tinham mesmo a sua Irmandade própria, que cuidava dos seus interesses deles na sociedade civil e no Foro; e que constituía a dita Irmandade, em suma, uma respeitabilíssima entidade sócio-jurídica, que se organizara sob a grave invocação de São José. Enfim, a ninguém repugnava – fosse português o sujeito, fosse ele até mesmo brasileiro – a ninguém repugnava traficar com escravos, visto ser esta atividade, no comércio baiano, quiçá do Brasil, um dos ramos mais lucrativos.” (LIVRO III, p. 20)

O tráfico de escravos praticado pelo padre Salviano Rumecão é por ele cinicamente narrado ao seu amigo Quincas Alçada; justificando-se:

“A propagação da fé, dos ensinamentos da Igreja; o empenho em manter os fiéis à salvaguarda do Demônio, pregando-lhes a palavra de Jesus, e ensinando-lhes a serem justos uns para com os outros: o piedoso pastoreio das almas, para manter em fervorosa união o rebanho de Deus – se, de fato, todas essas altas atribuições dignificavam e elevavam a missão do sacerdote, não havia, na prática, como preterir, no exercício delas, a pecúnia, a remuneração, o santo e rico dinheirinho (...) E os mártires, como se sabia, tendiam, com o progresso, a desaparecer de todo.” (LIVRO V, p. 27-8)

Tudo a transcorrer dissimuladamente, num misto de profanação e religiosidade, compondo o decoro hipócrita de uma sociedade impudentemente barroca.

Os Pareceres do Tempo são também uma história de amor. Duas mulheres amam Policarpo: Liberata Rumecão e a escrava Gertrudes. Mas o triângulo amoroso não se consolida de fato, em nenhum momento da narrativa, talvez por preconceito ou por ser Poli carpo realmente fiel ao seu amor por Liberata, até mesmo depois da morte dela. Em determinado momento ele diz à Gertrudes:

“- Sabes que podias ter tido um filho meu? – perguntou-lhe Policarpo, olhando-a com ternura.
Ela baixou a cabeça. Ele, com um sorriso embaraçado:
- Esquece o que te disse. Hoje somos compadres. Hoje somos apenas amigos. De resto, Liberata te estimava muito, e sabia que eu te estimava. Esquece o que te disse. Liberata estará sempre entre mim e ti”. (LIVRO LIV, p. 393)


E é pelo amor de Liberata que Policarpo se enche de vigor, de coragem, de energia para realizar todos os seus empreendimentos, para viver. Liberata vivia no Solar dos Sete Candeeiros e a sua presença, com seus “cabelos muito negros” que “caíam-lhe em tranças sobre o busto, emoldurando-lhe o rosto gracioso” (LIVRO VI, p. 32) é sempre, para Policarpo, a luz que ilumina a áspera realidade daquele contexto “uma formosa jovem que, mostrando-se ao sol, e tendo por ele realçada a sua beleza (...) pareceu-lhe ela a Policarpo Golfão como se fora uma flor, ou uma luz, porque era luzente como uma estrela a sua figura gentil.” (LIVRO VI, p. 32)

E, no decorrer da narrativa:

“Era a donzela Liberata que entrava. Então, a nave acendeu-se em ouro e púrpura, e em ouro acesa iluminou nos altares os crisântemos, no teto a fímbria das cornijas, na capela-mor os tocheiros perfilados. (...)
- Liberata... As letras daquele mágico nome: forma e cor e luz saindo ordenados dum resplandecente maço de emoções que uma fita desatasse” (LIVRO XXVIII, p. 172-3). “Como uma luz que na sombra de repente se acendesse.” (LIVRO XXXVIII, p. 250)


Herberto Sales incorpora ao seu romance a figura de mestre Manuel, do saveiro Viajante Sem Porto – personagem de Jorge Amado

- “que nasceu em saveiro e morou sempre em saveiro, aparenta trinta anos, ninguém lhe dá os cinqüenta que traz no costado, todo ele é de uma cor só, um bronze escuro, e é tão difícil dizer se é branco, negro ou mulato; é um marinheiro que raramente fala e que é respeitado em toda a zona do cais do porto da Bahia e em todos os pequenos portos onde pára seu saveiro.”

Configura-se, aqui, uma personagem mítica, alegórica, semelhando-se, em alguns aspectos, a Caronte, o barqueiro que transportava as almas para o Hades, o inferno grego.

Em Os Pareceres do Tempo, mestre Manuel, num diálogo com Policarpo, explica a origem do nome do seu barco:

“- Mas, Manuel, que te deu na telha para batizares o teu barco com o nome de Viajante Sem Porto? Olha que estranhei esse nome! Então não tens tu um porto para ti e o teu barco? – tornou Policarpo Golfão, sorrindo e fazendo sorrir também o Almeidão e Quincas Alçada.
- É que esse nome foi dum barco do meu pai – disse mestre Manuel. Enfim, se isto é verdade, também verdade é que vivo de porto em porto com o meu barco, como se porto não tivéssemos ele e eu: quando chego a um, já tenho que partir para outro. Não me parece mau esse nome Viajante Sem Porto. Não o acho nada estranho. E só espero é que o Manuelzito, meu único filho homem, quando mais tarde lhe houver chegado a vez de me substituir, que seja também um mestre e que tenha também o seu Viajante Sem Porto, que haverá de tomar o lugar do meu.” (LIVRO X, p. 55)


E comenta o narrador de Os Pareceres do Tempo, numa clara referência a Jorge Amado:

“Praza a Deus que, em dias que hão de vir, encontre essa bela região do Recôncavo baiano um escritor que a descreva num livro tão belo quanto ela, que corra o Brasil e o próprio mundo; e que, captando toda a poesia que docemente a impregna, fale dos seus saveiros e da sua gente, talvez dum novo Viajante Sem Porto, talvez dum novo mestre Manuel”. (LIVRO XII, p. 66)

Conclusão

Os Pareceres do Tempo são uma obra de ficção, cujo contexto narrativo é a Bahia do final do século XVIII. O enredo deste romance é tecido aliando ficção e realidade; uma ficção construída com base na tradição oral interna da obra.

Os Pareceres do Tempo conta-nos histórias de amor, de dominação, mas, sobretudo, a história da formação de um povo; da construção de um país, do Brasil.

Herberto Sales, em Os Pareceres do Tempo, através da humanidade de suas figuras, apresenta-nos uma história cheia de força, vigorosamente atual, numa expressão e linguagem tão equilibradas, que fazem deste romance uma síntese da narrativa genuinamente brasileira.

Fonte:
http://www.seruniversitario.com.br

Darcy França Denófrio (Livro de Poesias)

Biblioteca Manuel Antonio Pina
 À SOMBRA DE EVA

I

Era um tempo de trevas
e de brumas sobre o meu corpo.
Um tempo de pesadas vestes:
uma única janela para o meu rosto.

Um cavalo avassalava
minhas planícies e vales,
me punha bridas e loros,
depois um cinto de castidade.

Eu não falava: minha língua
guardava-se em ostra
e o estro silenciava-se
numa lira que dormia.

Meu amo determinava:
eu só ouvia.
Meu amo vociferava:
eu encolhia.

II

Com a roca e o fuso
e um cesto da mais pura lã,
adestrava meus dedos
para tecer a manhã.

Sozinha no burgo,
(ah! bem longe era o meu Senhor)
embalava no berço
a balada que eu compus.

E meu canto se alçava
e com ele também eu,
enquanto durava a paz
que a guerra me podia dar.

Eu não lia nem soletrava
sobre uma távola redonda;
só adestrava meus dedos
para tecer a manhã.

E num bosque bem fundo,
numa grota dentro de mim,
meu estro se formava
numa lira eólia
que acordava.

E eu enredava no fuso
(horário) outra manhã.

III

Quantos séculos dormiu meu canto?
Quem estrangulou minha garganta
afiada para solar, meu canto?

Era um pássaro mudo
engolindo a cascata
aérea de seu canto.

Um pássaro na gaiola
ferindo as asas —
sonata a debater-se.

Um pássaro preso
a olhar o céu (arquiteto)
e seu aceno de poesia.

PROCURA-SE

Quero um amigo verdadeiro
a quem possa vomitar
a alma e o coração inteiro.

Que me ouça sem interromper,
sem condenar nem defender,
que apenas me ouça o mais profundo.

E depois, sem nada cobrar,
seja terno, seja puro, só amigo,
bebendo comigo, sem dividir nem multiplicar,
a grande solidão de meus segredos.

O RISCO DAS PALAVRAS
(Para Moema de C. e Silva Olival)

Ah! a miséria da oficina das palavras!
Onde pescar a que melhor convém?
                                       Maiakovski


Diante de você sempre emudeço.
Tenho as palavras batendo, ba-ten-do
ao peito mais que à garganta.
Mas é tão grande o risco das palavras
que, delas, finjo que me esqueço.

Ah, as palavras, se não houvesse o risco,
eu diria todas, tropeçando em pedras
como algumas cachoeiras, mas jorrando
sem parar a urgência de suas águas.

Mas as palavras acordam até mesmo
os deuses mais adormecidos
e é melhor não dizê-las, guardá-las
como pedras, mesmo ferindo o peito.

Se eu não as disse algum dia,
alguém lhe dirá sem medo do risco,
porque há os que abrem as comportas
e extravasem sem reservas suas águas.

Mas eu sou dessas barragens
que não se entregam nem extravasam,
mesmo com a maior das enchentes.

LIÇÃO

Embaixo, a rede.
Em cima, a lição
de um caramanchão.

Um trançado de cipós
camadas secas sobrepostas
nenhum sinal de vida
                                havida.

Sobre lianas mortas
outra explosão de verde
outra explosão em flor.

E um pássaro em concerto.

POEMA DA DOR SEM NOME

Essa mágoa
ói tão fundo
como se houvesse
perfurado o abismo
interior de meu  mundo.

Dela, não serei vassala
só quero lançá-la
como um fio infinito
que se joga no abismo
até vomitar de vez
o início da ponta.

Depois, chegar
à íntima alegria
sem sentir a broca
perfurando a rocha
de meu poço artesiano.

À alegria de alcançar
as águas tranquilas
minhas mais profundas
reservas humanas.

 E ouvir o íntimo silêncio
águas entre rochas calcárias
sem nenhuma pressa
águas que não estremecem
nem trincam
                     o espelho da alma.

ÍNVIO LADO

Tell all the truth but tell it slant -
Success in circuit lies.
                         Emily Dickinson


Há um lado da flor
que não penetramos:

 talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.

 Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.

 E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua quota de reserva.

 É do outro lado
(do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.

 É lá que se contorceu
e guardou a sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre)carrega.

 Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado
                              inviolado.

 ESCAPE


 A raça humana
não pode suportar muita realidade.
T.S. ELIOT


 Conheço a distância
que vai entre o sonho
e a dura realidade.

 E conheço a fórmula
de amortecer o susto
e a queda do último piso.

Olhar sem crer lá fora
esse vidro que corta
e fechar, atrás de si, a porta.

 Plantar, como sempre faço,
essas flores no paredão do muro
para deslumbrarem os meus olhos.

 E, nessa lente distorcida,
em que capto a beleza,
mesmo aquela que não existe,

 ficar musgo sobre a rocha
— véu veludoso verde veludo —,
cobrindo essa faca que cega o corte.

OS PEIXES DE MEU RIO
 Não, não é fácil escrever. É duro como
quebrar rochas.
          Clarice Lispector


 Eu me desnudo e me visto
neste duro ofício de entrega.

 Se as vestes revelam o corpo,
há o pudor e a dissimulação

 no trançado desse tecido
que é teia e tato antes de tudo.

 Eu me desnudo e me visto.
e nem assim eu me preservo.

 Sob o vestido há sempre a pele
que transpira e se revela;

 há outra dimensão do signo
que corcoveia e se rebela.

 Sob o tecido há sempre um corpo
que se amotina e se entrega.

 POEMA

 No reverso, a história de meus versos.
No avesso, a pura canção de gesso,
que se sustenta no azul da lenda,
no equilíbrio do fio que (entre)teço.

 Na superfície, a frauta noturna
de sustenidos ais e bemóis.
Na superfície, a fraude fria
e a neblina sobre mil lençóis.

 E no fundo d'água, nos peraus,
que moram os peixes de meu rio.
É no remanso que alguma iara
sempre se esquiva solitária.

 De repente, o susto da cilada,
um anzol recurvo — aço e isca —
mas os meus peixes não se entregam,
apenas provam de leve, triscam.

PONTO FINAL

Se não há mais nada a fazer
é isto mesmo - em frente.
Não importa a direção
a que se ande (já disseram)
desde que seja para frente.
Se a última palavra
já foi pronunciada
não cabe vírgula
nem outros sinais de pontuação
a não ser o ponto final

A VERDADE DENTRO

Se não houvesse
esse pacto secreto
de silêncio de chumbo

ou essa oclusão completa
de um travo-de-ferro
na grota da garganta,

a verdade fluiria fluida
do flanco da montanha
ou do poço da garganta.

Mas esse silêncio
foi fabricado, dentro,
não por mim ou você,

mas por oceanos de mãos,
segurando bridas e freios,
esmagando goelas e anseios,

desde a mais remota manhã
em que o potro selvagem
ensaiou sua disparada na planície.

Fonte:
Antonio Miranda

terça-feira, 7 de maio de 2013

José Lins do Rego (Fogo Morto)

José Lins do Rego é um dos escritores mais importantes do chamado Neo-Realismo Regionalista Nordestino, que integra a segunda fase do Modernismo brasileiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos, na prosa, e Drummond, na poesia.

O romance modernista dos anos 30 recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freire, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local. O livro mais importante de Gilberto Freire é Casa Grande e Senzala (1933).

Fogo Morto (1943) é a obra-prima de José Lins do Rego. Como romance de feição realista, esse livro procura penetrar a superfície das coisas e revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro, num largo período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a Abolição, até as primeiras décadas do século XX.

O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. O romance conta a história de um poderoso engenho, o Santa Fé, desde sua fundação até o declínio, quando se transforma em "fogo morto", expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos. Retomando o espírito de observação realista, o autor produz um minucioso levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba. Em virtude do apego ao cotidiano da região, Fogo Morto apresenta não apenas valor estético, mas também interesse documental.

Fogo Morto não se esgota na classificação de romance regionalista, embora essa seja uma noção correta. Há outros componentes importantes na obra, a partir dos quais se pode enquadrá-la numa tipologia consagrada. Talvez o mais ilustre antecedente de Fogo Morto na literatura brasileira seja O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Em que sentido? No sentido de tomar uma personagem coletiva como objeto de análise. Assim como Aluísio investiga o nascimento, vida e morte de um cortiço do Rio de Janeiro, José Lins penetra no surgimento, plenitude e declínio do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba. Com efeito, o engenho parece possuir vida própria, embora suas células sejam as pessoas que o formam. Como análise quer dizer decomposição, o autor decompõe as pessoas como forma de expor a constituição do todo. Por essa perspectiva, Fogo Morto tanto pode ser entendido como um romance social quanto psicológico. Em rigor, uma categoria não existe sem a outra. O livro é forte em ambas as dimensões.

Embora Fogo Morto apresente uma estória muito movimentada, não se trata de um romance de ação: pretende atrair pela problematização social e existencial, e não pela surpresa dos acontecimentos. O estilo da obra é modernista, pois baseia-se na linguagem cotidiana, revestindo-se de oralidade espontânea, isto é, o autor procura escrever como se fala. Resulta daí a impressão de vivacidade e dinamismo. Possui força dramática e senso do real. Poucas vezes um autor obteve tanto êxito na manipulação da frase curta e elementar, com palavras extraídas do uso diário. Seu ritmo sintático e narrativo é nervoso, quase frenético, imitando o vaivém das pessoas pelas estradas do engenho. Pertence ao Regionalismo Nordestino, porque aborda a paisagem específica dessa região, mas as questões abordadas transcendem os limites regionais, o que é comum nas obras bem realizadas.

Em Fogo Morto, o autor soube transformar em ficção a vida real dos engenhos nordestinos. Trata-se de uma sociedade decadente, marcada pelo ressentimento, pelo desajuste e pela revolta. Domina em tudo uma atmosfera de ruína social e depauperamento psicológico, embora persistam aqui e ali sinais de uma felicidade antiga, restrita aos habitantes da casa-grande. Sem pertencer propriamente ao famoso Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto é uma retomada mais densa da matéria dos romances que o compõem: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), e Usina (1936). Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. Todavia, em Fogo Morto, ainda não há sinais de industrialização na produção de açúcar. Quanto a José Amaro, sim, sua decadência decorre em parte do processo de industrialização das selas, que já ocorre nos centros urbanos.

A fábula do livro não apresenta rigorosa unidade, isto é, não conta apenas uma estória, mas diversas, porque o propósito do romance é investigar e revelar o variado tecido social de um engenho típico da Paraíba. Assim, o livro divide-se em três partes: "O Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha".

Na primeira parte domina a figura do seleiro Zé Amaro, morador revoltado do Engenho Santa Fé, que enfrenta enorme problema de inadaptação com o mundo. Na verdade, está praticamente se despedindo da vida. Em aguda crise existencial, pressente a morte nos mínimos detalhes. Permanece sentado na tenda de trabalho em frente de casa, à beira da estrada, por onde passam os diversos moradores do engenho.

A segunda parte de Fogo Morto traça os antecedentes da situação de José Amaro, que é semelhante à de seu compadre Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cujo destino também se confunde com a vida do engenho. Nesta parte, há um longo flashback ou retrospectiva da formação do latifúndio, em que se evocam as lutas do fundador, Capitão Tomás Cabral, para o estabelecimento daquela unidade econômica.

A terceira parte concentra-se nas aventuras do Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo de justiça. Nesse particular, irmana-se a José Amaro. Mas é radicalmente contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, empregava a valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua figura resulta numa mescla de momentos sublimes com momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões, é a única personagem gloriosa no romance.

Personagens que não sofrem alteração são consideradas sem profundidade psicológica. Por isso são chamadas planas, das quais os tipos são uma variação. José Passarinho é personagem plana, pois mantém sempre o mesmo estatuto, do princípio ao fim do romance. Por outro lado, trata-se de personagem secundária, cuja função é apoiar a existência das demais. Assim são o pintor Laurentino, o aguardenteiro Alípio, o negro Floripes e outros coadjuvantes.

Tipo é a personagem que se confunde com o estereótipo, no qual se condensam características genéricas de uma certa categoria de pessoas. Capitão Antônio Silvino é um tipo revestido de significação alegórica. Funciona como uma espécie de emblema, representando a força da subversão, o poder de uma justiça ilegal porém legítima. Tira dos ricos para dar aos pobres. O Tenente Maurício é semelhante ao cangaceiro, pois também representa uma instituição, a força legal do governo, manchada de mando ilegítimo.

As personagens que sofrem mudança substancial possuem mais densidade psicológica, sendo por isso chamadas de esféricas. As três personagens principais de Fogo Morto são esféricas, pois toda a trama do romance decorre das transformações de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a personagem, mais rico o seu significado. Num certo sentido, essas três personagens podem ser consideradas loucas, embora em diferentes graus e com sintomas diversos.

A eficiência das situações e personagens de Fogo Morto decorre também do fato de o autor escrever em tom memorialístico, como se fizesse uma crônica sobre o que vivenciou em sua experiência com a realidade do povo da Paraíba, sua terra natal. Sendo um neo-realista, só poderia escrever sobre fatos observados empiricamente.

Fogo Morto é uma obra caracterizada pela captação da vida interior das personagens. Nela, a paisagem externa é importante, mas as vivências interiores recebem mais atenção do artista. Há muita ruminação psicológica no livro. Tal investigação do universo mental processa-se sobretudo através do discurso indireto livre, pelo qual se chega a densos monólogos interiores, que se confundem com o fluxo de consciência.

Fonte:
www.seruniversitario.com.br