segunda-feira, 1 de abril de 2013

Jorge de Andrade (A Moratória)

O texto teatral A Moratória, de Jorge Andrade, aborda a ruína de uma família proprietária de cafezais no interior do estado de São Paulo, em decorrência da crise financeira e da produção cafeeira, por volta dos anos de trânsito da década de 1920 para a 1930. Escrita em 1954, encenada pela primeira vez no ano seguinte, a peça emerge como um dos “fantasmas” da infância do autor.

A obra constitui um ato de reflexão sobre a realidade paulista em seus aspectos sociais, morais e psicológicos. O tema da decadência dos latifúndios cafeeiro representa o fim de toda uma classe patriarcal e semifeudal de aristocratas sucumbidos à crise econômica de 1929 e a nova ordem social imposta por Vargas em 1930. Ao mesmo tempo, focaliza em seu interior o conflito de gerações, o conflito de valores tradicionais em uma sociedade que vive a rápida mudança provocada pelo êxodo rural, pelo dilatamento das cidades e pelas mudanças das elites.

Centralizando o conflito está o velho Quim, um coronel à antiga, que vê os filhos e a mulher minguarem, saudosos dos velhos tempos e sem perspectivas de futuro. Ambientada em dois momentos - os anos de 1929 e 1932, antes e depois do desastre econômico, a estrutura dramatúrgica intercala cenas na casa da fazenda e cenas na pequena casa da cidade, onde a família passa a viver dos modestos ganhos dos filhos, especialmente de Lucília, que se torna costureira. Esse recurso permite ao autor apresentar o verso e o reverso das situações, justificando comportamentos e projetando expectativas. A alternância entre os dois momentos, mostrados simultaneamente, constitui-se no trunfo maior da arquitetura cênica de A Moratória.

Os diálogos são curtos, diretos, ora carregados de tensão, revolta, ora de ternura. Há poucos monólogos um pouco mais longos. A linguagem simples, coloquial justifica-se pelas cenas familiares reproduzidas.

ESPAÇO

A peça ocorre em dois planos: em um, uma sala espaçosa de uma antiga e tradicional fazenda de café; em outro, uma sala modesta mobiliada onde se vê, em primeiro plano, uma máquina de costura. É através desses dois cenários que o autor consegue fazer o presente e o passado próximo. O espectador, em um mesmo instante, através da mudança de planos, entra em contato com duas realidades distintas, ligada somente pelas personagens. Para efeito do resultado, a estória será narrada linearmente.

O espaço está associado a um passado heróico, aos antepassados, às famílias fundadoras. Joaquim rememora:

[...] Era um lugar virgem! Era um sertão virgem! A única maneira de se ganhar dinheiro era fazer queijos. Imagine, Lucília, enchiam de queijos um carro de bois e iam vender na cidade mais próxima, a quase duzentos quilômetros! Na volta traziam sal, ferramentas, tudo que era preciso na fazenda. Foram eles que, mais tarde, cederam as terras para fundar esta cidade. (1º Ato, p. 124).

Mas é a fazenda que alimenta os sonhos do cafeicultor: Nós vamos voltar para lá... (1º Ato, p. 130). E, às vezes, de sua filha Lucília: Replantaremos o nosso jardim! (1º Ato, p. 146). Morando na cidade, o ex-fazendeiro compra sementes de dálias (aliás, falido, troca um prendedor de gravata pelas sementes), cultiva um pé de jabuticabeira, a árvore tão presente na obra de Jorge Andrade, em um forte simbolismo das raízes.

A cidade é o lugar em que fica o banco para o qual Joaquim deve. É o lugar, também, onde trabalha Marcelo, seu filho, no frigorífico dos ingleses. Matamos mil e quinhentos bois por dia, dona Helena! (1º Ato, p 133), se exibe o filho para a mãe, Helena. Mas a mãe estranha esta atividade: [...] já imaginou a convivência que ele [Marcelo] tem lá no frigorífico? (1º Ato, p. 133). O filho, no entanto, ama a cidade, que “nunca esteve tão divertida!”

Ante a crise, aflora o temor da perda do lugar pelo que ele significa. Meu marido, meus filhos nasceram aqui..., se desespera Helena (1ºAto, p. 146). E aduz:
Sem a fazenda ele [o marido] não será ninguém. Vai se sentir inútil. (2º Ato, p. 151).

Helena tenta achar uma solução, explicando à filha o que a terra representa:

Se seu tio arrematar a fazenda, o Quim poderá continuar, trabalhar, morrer em suas terras. Há homens que não sabem, não podem viverfora de seu meio. Seu pai sempre morou na fazenda. Para nós, o mundo se resume nisto. Toda a nossa vida está aqui. (2º Ato, p. 151).

Mas Joaquim não aceita esta posição humilhante. A propriedade da terra, ser o dono dela fala tão mais forte que não entende como o seu endividamento poderia levá-lo à perda:

Meus direitos sobre essas terras não dependem de dívidas. Nasci e fui criado aqui. Aqui nasceram meus filhos. Aqui viveram meus pais. Isto é muito mais do que uma simples propriedade. É meu sangue! Não podem me fazer isto! (2º Ato, p. 166).

Várias leituras podem ser feitas deste trecho. Da manutenção de um status, a uma percepção de quem se considera com direito adquirido intocável e imutável até a incapacidade do ex-cafeicultor de compreender como a posição da sua classe havia sofrido um forte deslocamento, perdendo a posição na pirâmide social para outros segmentos que estão emergindo no mundo urbano. Como não compreende, Joaquim desdenha, desqualifica: [...] Uma gentinha, que não sei de onde veio, tomou conta de tudo! [...] Vivíamos muito bem sem elas. Gentinha! (2º Ato, p. 177).

TEMPO

Muitas marcas, ao longo do texto, apontam o confronto de tempos. Assim, no 1° Ato, Lucília, a filha do dono das terras de café, costura com pressa porque “meu serviço está atrasado”, enquanto o pai – Joaquim – responde: “Cada coisa em sua hora”, logo replicado pela filha: “Para quem tem muito tempo”. Ritmos de tempo diferenciados, entre a pressa e um tempo mais lento, encarnado em duas gerações diferentes.

O pai reafirma o seu tempo, quer prolongá-lo: “Pensa que sou igual a esses mocinhos de hoje?” “O médico disse que ainda tenho cem anos de vida”. Distingue-o
do tempo presente, por uma qualidade em detrimento deste: “Quando meus antepassados vieram de Pedreira das Almas para aqui, ainda não existia nada. Nem
gente desta espécie”. Mas as mudanças estão acontecendo. E para pior, como neste trecho representacional, em que os personagens se posicionam de forma diferente:

HELENA (mulher de Joaquim): Não suporto mais essa incerteza (1º Ato, p. 127), expressando a dificuldade de entender o que se passa;

ELVIRA (a irmã de Joaquim): Você não pode imaginar a situação em que estamos; [dirigindo-se a Helena (sua cunhada)]: A situação não é boa [...] São muito graves os acontecimentos. Vamos atravessar uma grande crise (1º Ato, p. 144), anunciando/enunciando o torvelinho que virá;

LUCÍLIA: Acontece que precisamos encarar a situação de frente, não há outra saída. [...] Aos poucos a situação melhora (1º Ato, p. 140), expressa o enfrentamento da crise e a esperança que as coisas mudem;

JOAQUIM: Ainda somos o que fomos (1º Ato, p. 141), manifesta a permanência, ou a vontade de, não acreditando que as coisas mudem.

As marcas textuais sinalizam, sob a forma de diálogos, um tempo de crise. Na parte final do 1º Ato, no diálogo entre as quatro personagens acima referidas, se
explicita a historicidade da crise: a queda dos preços do café, a não continuidade da política de defesa do produto pelo Governo “do Ditador”, o endividamento dos cafeicultores junto ao “Banco” (assim mesmo, grafado com Maiúscula, significativamente).

Presentes diversos tempos e diversos espaços na narrativa, a sua inter-relação é construída de forma original, não linear, com a predominância de uma temporalidade ou de outra em cada cena, ora o presente ora o passado, porém, com o “atravessamento” de um pelo outro. Em quase todas elas, há um contraponto com a outra temporalidade, não predominante. Em quase todas as cenas, há um fio que junge os dois tempos e os entrelaça.

O movimento entre os tempos, quando parte do presente como predominante, recua para um passado bem próximo e vai deslizando para um passado cada vez mais distante [do mais presente ao mais passado]. Quando o passado é o predominante, o tempo caminha cada vez mais para o futuro [do mais passado ao mais presente]. Assim, o binômio presente-passado foi estruturado de forma vertical e horizontal. A vertical consiste na leitura de um só tempo (presente ou passado) de cena para cena, apontando esse recuo ou esse avanço, conforme se enfoque o presente ou o passado. A horizontal consiste na leitura entre presente-passado e vice-versa no âmbito da mesma cena, apontando como o intervalo entre os tempos vai se estreitando.

SÍNTESE DO MOVIMENTO DOS TEMPOS

1º ATO - No 1º Ato, Jorge Andrade coloca todos os personagens do drama: Joaquim, Helena, Lucília, Marcelo, Elvira, e dois ausentes, mas referenciados – Augusto e Arlindo – que, não casualmente, serão as duas figuras que, de modos diferenciados, se relacionam com a ruína de Joaquim. Este parte da trama articula o tempo e o espaço com as seguintes marcas: 1ª cena: o processo de Joaquim no presente – Helena rezando na fazenda; 2ª cena: a religiosidade de Helena – a crise e a dívida; 3ª cena: Marcelo e seu trabalho, o trabalho de Lucília – o recado de Helena a Elvira; 4ª cena: A preguiça de Marcelo e o recado para Elvira, a indagação por Olímpio; 5ª cena: o casamento irrealizado de Lucila – a conversa do pai com Marcelo; 6ª cena: a conversa de Joaquim com Marcelo sobre o trabalho e a notícia do namoro de Lucília – Joaquim lendo jornais; 7ª cena: crítica à política, ao “Ditador” e ao PRP - Elvira chega à fazenda; 8ª cena: a crise relatada por Elvira – a moratória.

2º ATO
- o 2º Ato, tempo e espaço são marcados por alguns acontecimentos preponderantes: 1ª cena: a alegria de Joaquim, esperançoso – o desânimo de Helena, desesperançada; 2ª cena: continua a situação da cena anterior; 3ª cena: a crise e a situação de Joaquim se perder a fazenda – a situação de Joaquim diante da irmã; 4ª cena: notícia da perda da fazenda e a relação com o casamento de Lucília – a expectativa da comemoração e o conflito com Marcelo; 5ª cena: o duro conflito entre Joaquim e Marcelo, com a ordem para sair de casa – simultaneamente, a ordem para Olímpio sair da casa de Joaquim; 6ª cena: a fuga de Arlindo, a briga com Augusto e a esperança de Joaquim – a desesperança de Lucília; 7ª cena: a sentença do Tribunal indeferindo o pedido de nulidade – o começo do trabalho de Lucília como costureira.

3º ATO - No 3º Ato, as marcações entre passado e presente deram relevo a: 1ª cena: a consumação da perda da fazenda e as evocações do lugar – a possibilidade de Lucília parar de trabalhar; 2ª cena: a perda do processo por Joaquim e o conflito com Elvira – Joaquim com o galho da jabuticabeira; 3ª cena: preparativos para a saída da fazenda – a expectativa de dar a notícia sobre o processo a Joaquim; 4ª cena: o desfecho da narrativa, deixando a dúvida se Joaquim sabe – a evocação da fazenda.

PERSONAGENS

Joaquim - Protagonista da peça. Aparentemente autoritário, estúpido, prepotente, é, na verdadem um personagem lírico, que só mantém suas atitudes em função do papel que representa - coronel e pai. É capaz de gestos ternos, como arrumar os figurinos da filha, catar alfinetes e falar com carinho da terra. Tudo gira em torno dele; os outros são secundários.

Helena
- Esposa de Joaquim. Mulher prática, acostumada à materialidade e à ceitação ou submissão, encara as mudanças da fortuna de forma mais natural. Compartilha o saudosismo do marido em relação ao passado, mas também têm consciência de que viveram afastados e não evoluíram.

Marcelo - Nunca se interessara pela fazenda. Não permanece em nenhum emprego e ainda gasta o dinheiro suado na boemia, explorando a mãe. É o filho desesperançado, inadaptado, aquele que vive uma outra realidade que não a do pai, aquele que é capaz de proferir palavras rudes e no entanto, verdadeiras, apontando a terrível realidade: 'O senhor finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que nosso mundo está irremediavelmente destruído... As regras para viver são outras, regras que não compreendemos nem aceitamos... tudo agora é diferente, tudo mudou. Só nós é que não. Estamos aqui morrendo lentamente...'

Lucília - Realista diante dos reveses da sorte, trabalha para sustentar a família. A esta devotada, adia o casamento e ataca a tia por não ter ajudado o pai.

Elvira
- Tia de Lucília e Marcelo, irmã de Joaquim. Pouco aparece, mas representa a aristocracia que faz pequenas caridades humilhantes e se nega a ajudar o irmão na necessidade.

Olímpio
- Noivo de Lucília, é bacharel. Conseguiu cortar o cordão umbilicar da terra, saiu, viajou, e vê a situação com objetividade e senso crítico.

RESUMO

Quim [Joaquim] é fazendeiro de café, afeiçoado a terra, mas acaba sendo levado à ruína, por maus negócios. Tem setenta anos e representa o orgulho de um nome, já sem encontrar respaldo entre os cidadãos de uma cidade que está transformada com a presença de elementos estranhos à casta tradicional. Diz Joaquim: 'Não sei como, minha filha, mas de repente, senti como se estivesse só naquela cidade. Parecia que todas as portas estavam fechadas para mim. Eu não conhecia mais ninguém. Percebia que atrás das janelas todos me olhavam e... ninguém... ninguém...' Mergulhado em sua solidão, nutrido pela esperança de recuperação, só encontra amparo na família. A mulher Helena é a mais corajosa, soube enfrentar melhor a situação, e a filha Lucília tornou-se o arrimo da família, agora vivendo dos proventos de sua costura, uma vez que o irmão, Marcelo, não se adapta a nenhum emprego.

Fora da família estão Olímpio, advogado, filho do rival político de Quim, mas apaixonado Poe Lucília. Elvira, irmã de Quim, mulher rica e 'caridosa' que entrega café e outras coisas que vêm da fazenda em troca das costuras 'grátis' da sobrinha. Não tem filhos e vive envolvida com a assistência dada a um asilo. Nesse pequeno universo, as personagens vão sendo colocadas à mercê de um destino cruel. Quim, em torno do qual a história gira, alimenta uma esperança de retornar à fazenda, que foi à praça, para saldar as dívidas. A crise do café não permitiu a venda, a florada não foi boa; a chuva tardou, o governo não fixou um teto mínimo para o café, não há dinheiro. Só resta a esperança de poder recuperar a fazenda, a esperança de uma moratória que todos sabem não vir.

Lucília é filha solteirona que vê seu casamento com Olímpio frustrado pelo autoritarismo paterno. Não se entrega aos sonhos e às esperanças do pai, que acha poder reaver a fazenda. É ela que, com força e convicção, recupera a dignidade da família, costurando furiosamente. É ela que procura lutar pela realidade bruta, protegendo o pai contra as intempéries:

Se a senhora [Elvira] merecesse respeito, teria tido um pouco de amor por seu irmão, piedade ao menos. Gostaria que tivesse assistido à chegada deles, quando vieram da fazenda. Só aí poderia compreender até que ponto sofreram! Com o relógio, os quadros e esse... esse galho de jabuticabeira nas mãos... pareciam duas crianças assustadas, com medo de serem repreendidas. Através de cada gesto, de cada olhar, havia um pedido de perdão, como se eu... eu pudesse censurá-los em alguma coisa. Egoísta! A senhora é uma mulher má. Papai é mesmo de boa-fé, tem bom coração, caso contrário teria posto à senhora daqui para fora. O que eles sofreram, você e tio Augusto hão de pagar.

Com simplicidade, Jorge Andrade vai chegando ao clímax da peça, a hora da revelação e, conseqüentemente, a hora em que Joaquim se depara com a verdade / realidade, que nós, espectadores, conhecemos desde o primeiro momento. É pujante a dor de homem e a ela estamos irmanados pela indescritível capacidade da arte de fazer o tempo / espaço identificar-se com outro espaço / tempo do espectador.

Fonte:
Rosa Maria Godoy Silveira, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em História do Brasil - Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Profª Célia A. N. Passoni, Editora Núcleo | Itaú Cultural
Disponível em Passeiweb

Alexandre Dumas Filho (O Enforcado de La Piroche)

Alexandre Dumas Filho
 O leitor conhece La Piroche? Certamente não. Nem eu. Portanto, não se preocupe em que eu abuse de minha ciência, fazendo uma descrição. Sobretudo porque — digamos, cá entre nós — as descrições são muito aborrecidas. A menos que se trate das selvas virgens da América, como em James Fenimore Cooper, ou do Mississippi, como em Chateaubriand. Isto é, países que não estão ao alcance da mão, e para os quais a imaginação precisa da ajuda dos viajantes poetas, que os visitaram a fim de poder descrevê-los melhor em todos os detalhes.

 Em geral, as descrições não servem para grande coisa, e estão aí para que o leitor as salte. A literatura tem sobre a pintura, a escultura e a música a tríplice vantagem de poder fazer por si só um quadro com um epíteto, uma estátua com uma frase, uma melodia com uma página. Mas não está certo que abuse desse privilégio, e deve-se deixar a cada arte o seu campo específico.

 De minha parte, confesso que — salvo melhor opinião — quando me acho no caso de ter de descrever um país que todo mundo pode ter visto, ou que todo mundo pode ver, seja porque está próximo, seja porque não difere em muita coisa do nosso, prefiro deixar ao leitor o prazer de recordá-lo, se já o viu, ou de imaginá-lo, se ainda não o conhece. O leitor gosta que lhe deixemos sua parte criadora, na obra que está lendo. Isso o lisonjeia, e o faz acreditar que poderia fazer todo o resto. Lisonjear o leitor tem suas vantagens. Além disso, todo mundo sabe o que é o mar, uma planície, um bosque, um pôr-de-sol, um efeito da lua, uma tempestade. Para que tornar o texto pesado com essas coisas? Mais vale traçar a paisagem com uma só pincelada, como Rubens ou Delacroix — digo-o sem querer estabelecer qualquer tipo de comparação — e guardar o valor do nosso pincel para os personagens aos quais queremos dar vida.

 Por mais que empanturremos páginas inteiras com descrições, jamais daremos ao leitor uma impressão igual à que experimenta o mais ingênuo burguês passeando um belo dia de abril pelo bosque de Vincennes; ou ainda a mais ignorante donzela que, às onze horas da noite, atravessa as avenidas sombrias do bosque de Romainville ou do parque de Enghien, de mãos dadas com seu noivo.

 Todos temos no espírito e no coração uma galeria de paisagens com nossas recordações, que podem servir de fundo a todas as histórias do mundo. Basta dizer uma simples palavra — dia ou noite, inverno ou primavera, tempestade ou bom tempo, planície ou montanha — para que logo imaginemos a paisagem completa.

 Só direi, portanto, que quando começa esta história o sol atinge o meio-dia, estamos em maio, o caminho por onde vamos passar tem à direita umas plantações e à esquerda o mar. Isso basta para entender o que quero dizer: que os plantações são verdes, o mar murmura, o céu está azul, o sol está bem quente e a estrada coberta de poeira. Só preciso acrescentar que a estrada corre ao longo da costa normanda, de La Poterie a La Piroche; que La Piroche é uma aldeia que não conheço, mas deve ser como todas as outras; que a ação se desenrola em pleno século XV, justamente em 1448; que um dos dois homens é o pai do outro, ambos camponeses, e vão trotando em seus cavalos a uma velocidade até razoável, tendo em vista que carregam camponeses.

 — Será que chegaremos a tempo? — perguntava o filho.

 — Sim. Vai ser às duas horas, e pela posição do sol deve ser ainda meio-dia.

 — Não quero perder, pois tenho muita curiosidade em ver como é. Vão enforcá-lo com a armadura que roubou?

 — Exatamente.

 — Onde já se viu, o sujeito ter a idéia de roubar uma armadura!

 — O difícil não é ter a idéia...

 — É ter a armadura, eu bem sei — atalhou o filho, aderindo à brincadeira do pai. — E a armadura era boa?

 — Dizem que era magnífica, toda marchetada de ouro.

 — E o pegaram quando a levava?

 — Sim. É fácil compreender que uma armadura não concorda em ser roubada sem montar um escarcéu de todo tamanho. Ela não queria abandonar o dono.

 — Era de aço, e deveria ser muito pesada.

 — O ruído que ela produzia despertou o pessoal do castelo.

 — E logo puseram a mão no ladrão?

 — Não exatamente assim. Primeiro ficaram com medo.

 — Quem é roubado sempre sente medo dos ladrões. Se não fosse assim, os ladrões não levariam nenhuma vantagem.

 — E também as vítimas não sofreriam nenhuma emoção. Mas o caso é que o pessoal do castelo não se julgava diante de ladrões.

 — Diante de quem, então?

 — De um fantasma. O infeliz era muito forte, e carregava a armadura de pé, na frente do próprio corpo, mantendo a cintura dela na altura da própria cabeça. Quem via, na obscuridade, tinha a impressão de um gigante. Acrescente a isso o ruído surdo que o ladrão ia fazendo por detrás da ferragem, e entenderá o espanto dos criados. Por azar dele os criados foram acordar o senhor de La Piroche, que não tem medo de vivos nem de defuntos. Ele sozinho o prendeu, amarrou-lhe as mãos e pés e o entregou à sua própria justiça.

 — E a sua própria justiça...

 — Condenou-o a ser enforcado, revestido da armadura em questão.

 — Por que puseram esta cláusula na condenação?

 — Ah! Porque o senhor de La Piroche, além de ser um valoroso capitão, é um homem de bom senso, engenhoso, e quis transformar a execução num exemplo para os demais e em proveito para si próprio. Segundo dizem, aquilo que esteve em contato com um enforcado se transforma em talismã para seu dono, e ele quis o delinqüente dentro da armadura para poder recolhê-la depois, e assim contar com uma proteção a mais durante as próximas guerras.

 — Bem engenhoso, de fato. Mas é bom nos apressarmos, porque não quero perder o espetáculo.

 — Não vale a pena cansar os cavalos, pois vamos prosseguir viagem uma légua depois de La Piroche, e depois ainda voltar a La Poterie.

 — Sim, mas como só voltaremos à noite, nossos cavalos poderão descansar umas cinco ou seis horas.

 Pai e filho prosseguiram caminho conversando, e meia hora depois chegaram a La Piroche. Havia grande afluxo de gente na ampla praça diante do castelo, onde se havia erguido o patíbulo: uma preciosa forca de madeira muito boa, na verdade pouco alta, mas o suficiente para que a morte desenvolvesse o seu trabalho entre o solo e a extremidade da corda.

 O condenado podia contar com um lindo panorama para morrer, pois ficaria com o rosto voltado para o oceano. Seria um consolo, embora me pareça bem insuficiente. O mar estava azul, e de vez em quando deslizava pelo azul do céu uma nuvem branca, como um anjo que dirigisse a Deus uma prece.

 Os dois companheiros se aproximaram do patíbulo o quanto puderam, para não perder nenhum detalhe do que ia acontecer. Tinham a vantagem de estar montados, e podiam ver melhor sem se cansar. Não esperaram muito. Pouco antes das duas horas abriu-se a porta do castelo e apareceu o condenado, precedido da guarda e seguido do carrasco. Vinha com a armadura, montado de costas em um burro sem arreios. As mãos estavam amarradas às costas. A julgar pela postura, tendo em vista que o rosto estava encoberto pelo elmo, devia estar pouco à vontade, e fazendo as mais tristes reflexões.

 Levaram-no até o patíbulo, e começou a desenrolar-se ante o réu uma cena pouco agradável. O verdugo acabava de encostar a sua escada na forca, e o capelão lia o processo do alto de um estrado. O condenado não se movia, e espalhou-se o boato de que ele resolvera morrer antes de ser alçado à forca, para desgosto dos espectadores. Mandaram que ele apeasse do animal e se aproximasse do verdugo, mas ele continuou imóvel. Indecisão que compreendemos facilmente. Então o verdugo o agarrou pelos cotovelos, desceu-o do burro e o pôs de pé no chão. Ao dizer que o pôs de pé, não mentimos, mas mentiríamos se disséssemos que permaneceu assim, pois em dois minutos havia percorrido dois terços do alfabeto, o que na linguagem corrente quer dizer que em vez de permanecer reto como um I, havia chegado ao Z.

 Durante esse tempo o capelão terminara a leitura da sentença.

 — O condenado tem algo a pedir? — perguntou.

 — Sim — respondeu o desgraçado, com voz rouca e triste.

 — O que deseja?

 — Quero meu indulto.

 Não sei se a palavra farsante já havia sido inventada, mas a ocasião para isso era sem dúvida muito boa.

 O senhor de La Piroche deu de ombros e ordenou ao verdugo que pusesse mãos à obra. Este começou a subir decididamente a escada do patíbulo, com toda a força de que dispunha para separar uma alma do corpo. Tratou também de fazer subir na frente o condenado, o que não era tarefa fácil, pois os condenados inventam toda sorte de dificuldades para morrer. Para fazê-lo subir, o executor da justiça teve de recorrer ao meio de que já se valera para fazê-lo descer do animal: agarrou-o pela cintura e o foi empurrando para cima.

 — Bravo! — gritou a multidão.

 Não havia recurso, e ele teve de subir. Então o verdugo passou destramente o nó corrediço da forca em torno do pescoço, deu um empurrão nas costas do condenado e o lançou no espaço. Um imenso clamor acolheu esse desenlace previsto, e um estremecimento correu a multidão.

 Por grande que seja o crime que tenha cometido, um homem que morre na forca está sempre, ao menos durante um instante, acima dos que o vêem morrer. O enforcado balançou durante dois ou três minutos na ponta da corda. Como tinha direito a isso, debateu-se, contorceu-se, e depois ficou imóvel — o caminho inverso do Z ao I. Os espectadores ficaram olhando ainda durante algum tempo, logo se dividiram em grupos e tomaram caminho de casa.

 Os dois camponeses também retomaram o caminho.

 — Ser enforcado por não ter podido roubar uma armadura é um pouco caro, não acha? — perguntou o pai.

— Gostaria de saber o que ele teria feito com a armadura, se tivesse conseguido levá-la.

 — De fato ele foi mais castigado por um crime que não cometeu.

 — Sim, mas teve a intenção de cometê-lo.

 — E basta a intenção para...

 — É perfeitamente justo.

 Chegando ao alto de uma montanha, olharam para trás, a fim de contemplar pela última vez a silhueta do desconhecido. Vinte minutos depois chegaram ao povoado seguinte, de onde deviam voltar à noite.

 Quando amanheceu o dia seguinte, dois soldados saíram do castelo para remover o cadáver do enforcado e recolher a armadura. Mas encontraram uma situação que nem de longe poderiam imaginar: tudo estava no lugar, mas o enforcado e a armadura haviam desaparecido. Julgaram que estavam sonhando, esfregaram os olhos, mas o fato era real. O enforcado e a armadura haviam sumido. E o mais extraordinário é que a corda não estava cortada nem rompida, permanecia como antes do enforcamento.

 Os soldados foram anunciar ao senhor de La Piroche o que viram, mas este não quis acreditar, e decidiu confirmar com seus próprios olhos. Sendo tão poderoso, pensava que um mísero enforcado não ousaria desobedecer-lhe, e o encontraria onde o mandara ficar. Mas não viu nada além do que os outros haviam visto. Que teria acontecido? Não havia dúvida de que na véspera o sentenciado ficara bem morto ante os olhos de todos. Teria um outro ladrão aproveitado as trevas noturnas para roubar a armadura? Mas se fosse assim, teria deixado o cadáver, que de nada lhe adiantaria. Será que os amigos e parentes do morto quiseram dar-lhe uma sepultura cristã? A hipótese não era absurda, mas o delinqüente não tinha amigos nem familiares. Mesmo se os tivesse, eles teriam se limitado a carregar o cadáver, deixando a armadura. O que pensar do ocorrido?

 Desolado pela perda da armadura, o senhor de La Piroche mandou publicar a promessa de uma recompensa de dez moedas de ouro, para quem entregasse o culpado, desde que com a roupa usada na execução. Ninguém se apresentou. Foram revistadas todas as casas, mas nada se encontrou. Fizeram então vir de Rennes um sábio, e lhe puseram a pergunta:

 — Como é que um enforcado morto pôde fazer para livrar-se da corda que o mantinha no ar?

 Depois de oito dias de meditação o sábio respondeu:

 — Ele não conseguiu soltar-se.

 Apresentaram-lhe então a seguinte pergunta:

 — Um ladrão que não conseguiu roubar enquanto vivo, e que foi condenado à morte por roubo, pode roubar depois de morto?

 O sábio respondeu que sim. Indagado como poderia ter conseguido essa façanha, respondeu que não sabia. E era o maior sábio da época, naquelas paragens.

 O sábio foi embora, e as pessoas preferiram ficar com a convicção de que o enforcado era um feiticeiro.

 Passou-se um mês de inquéritos, buscas e consultas, enquanto a forca permanecia no mesmo lugar, humilhada, triste e desprezada por sua atitude inominável de abuso de confiança. O senhor de La Piroche já se dispunha a resignar-se com a perda da armadura, quando num certo dia, ao despertar, ouviu um alarido na praça da execução. Logo depois o capelão entrou espavorido nos seus aposentos.

 — Senhor, sabeis o que aconteceu?

 — Não, mas gostaria de saber.

 — O enforcado reapareceu, e está lá na forca.

 — Com a armadura?

 — Sim, com a vossa armadura.

 — E está morto?

 — Completamente. Mas...

 — Mas o quê?

 — Quando foi enforcado ele usava esporas?

 — Não.

 — Pois agora usa. Além disso, agora o elmo não está na cabeça, como no dia da execução. Está enforcado com a cabeça descoberta, e o elmo está cuidadosamente colocado no chão.

 — Vamos ver logo tudo isso, senhor capelão.

 O senhor de La Piroche correu à praça, já cheia de curiosos. De fato lá estava o enforcado com o pescoço no laço da corda, e logo abaixo o corpo revestido da armadura. Era prodigioso.

 — Arrependeu-se e voltou a enforcar-se — dizia um.

 — Sempre esteve aí — dizia outro. — Nós é que não o víamos.

 — Mas por que usa esporas? — perguntou um terceiro.

 — Sem dúvida por que vem de longe, e quis chegar rápido.

 — Se fosse comigo, não importa se longe ou perto, eu não teria voltado de jeito nenhum.

 Entre comentários sérios e outros nem tanto, todos olhavam a cara contorcida do morto. Quanto ao senhor de La Piroche, só pensava em assegurar a posse da sua preciosa armadura. O cadáver foi descido, retirada a armadura, e depois o recolocaram para ser comido pelos corvos. O que sem dúvida nos lembra versos como os que colocávamos na primeira página dos nossos livros escolares:

 Morreu Pierrô enforcado
 Por ter um livro roubado.
 Não corra tão grande risco,
 Devolva este ao Francisco.

 Que teria acontecido, para possibilitar ao ladrão escapar depois de enforcado, e depois voltar a enforcar-se? Várias hipóteses foram levantadas, mas uma delas me parece a mais digna de crédito. Vou relatá-la como me foi contada.

 Quando os dois camponeses, pai e filho, regressavam à noite para casa, resolveram passar perto do castelo, para dar uma última olhada ao enforcado. Ao aproximar-se, ouviram gemidos e uma espécie de oração, que pareciam vir do cadáver. Um tanto apavorados, resolveram pegar a escada do verdugo, e o filho subiu por ela até a altura da cabeça do enforcado.

 — É você que está se queixando?

 — Sim.

 — Portanto você ainda está vivo?

 — Acho que sim.

 — E está arrependido do que fez?

 — Sim.

 — Então vou retirá-lo daí. Como o Evangelho manda socorrer os que sofrem, e você está sofrendo, vou socorrê-lo para que empregue a vida em fazer o bem. Deus prefere uma alma arrependida a um corpo castigado.

 O pai e o filho desataram a corda, e só então entenderam por que estava ainda vivo. Em vez de apertar o pescoço do ladrão, a corda apertava o pino de encaixe do elmo. Por isso ele ficara suspenso, mas não enforcado. A cabeça havia encontrado uma espécie de ponto de apoio dentro do elmo, permitindo-lhe respirar e viver até o momento em que os dois camponeses regressaram.

 Recolheram o enforcado com a armadura e voltaram para La Poterie, onde o ladrão ficou aos cuidados das mulheres da casa, mãe e filha.

 Mas não é coisa freqüente um ladrão mudar de condição. Na casa só havia duas coisas roubáveis: o cavalo e a moça, donzela de dezesseis anos. O ex-enforcado resolveu levar ambos, pois precisava de um cavalo e se enamorara da moça. Uma noite ele arreou o cavalo, vestiu a armadura, calçou esporas para fazer o cavalo andar mais depressa, e foi buscar a moça, com intenção de levá-la na garupa. A jovem despertou e começou a gritar. Pai e filho acudiram logo e o ladrão tentou escapar, mas era tarde. Os dois o pegaram e decidiram fazer justiça por sua própria conta, completando o mau trabalho do verdugo. Amarraram o ladrão montado no cavalo e o levaram à praça de La Piroche. Penduraram-no na mesma forca, mas desta vez pelo pescoço do condenado, e não pelo da armadura, que não tinha nenhuma culpa no cartório para ser enforcada, e o elmo foi cuidadosamente depositado no chão.

 Se alguém conhece uma explicação melhor para o mistério, estou pronto a aceitá-la, mas esta me pareceu suficiente.

Fonte:
Alexandre Dumas Fº, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953.

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXIII)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)

051

Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influíam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:

— Ditoso seja o dia e hora, quando
tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar se em seu desejo traspassando!

Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corria
tão ligeira que quase era invisível.

Converteu se me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível.

041

Aquela fera humana que enriquece
sua presuntuosa tirania
destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal que falta quando crece;

Se nela o Céu mostrou (como parece)
quanto mostrar ao mundo pretendia,
porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte s'enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,
Senhora, com vencer me e cativar me:
fazei disto no mundo larga história.

Que, por mais que vos veja maltratar me,
já me fico logrando desta glória
de ver que tendes tanta de matar me.

098
Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança,
contrária a sua honra e qualidade

(venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança
porque ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade!),

de si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.

[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !
Que, dando breve morte ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!

091

Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certissimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!

116

Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou s'estarão aquele alegre dia
que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!

038

Arvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.

160

À sepultura de del-Rei dom João Terceiro
Quem jaz no grão sepulcro, que descreve
tão ilustres sinais no forte escudo?
- Ninguém; que nisso, enfim, se toma tudo
mas foi quem tudo pôde e tudo teve.

Foi Rei?- Fez tudo quanto a Rei se deve;
pôs na guerra e na paz devido estudo;
mas quão pesado foi ao Mouro rudo
tanto lhe seja agora a terra leve.

Alexandre será?- Ninguém se engane;
que sustentar, mais que adquirir se estima.
- Será Adriano, grão senhor do mundo?

Mais observante foi da Lei de cima.
- E Numa?- Numa, não; mas é Joane:
de Portugal terceiro, sem segundo.

096

Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras,
de manhoso mo negas, e mo juras
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,
e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras,
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
me possa inda cegar um Moço cego!

003

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

120

Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

103

Cantando estava um dia bem seguro quando,
passando, Sílvio me dizia
(Sílvio, pastor antigo, que sabia
pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,
oprimir-te virão em um só dia
dous lobos; logo a voz e a melodia
te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou
quanto gado vacum pastava e tinha,
de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou
a cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua saudade da alma minha!

086

Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto
que possam prometer te longa história
daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.

159

Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplandor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,
por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já “se” lhe devia.

097

Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
depois vim a chorar porque cantara
e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas que passara
tenho pola mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 29. Uma Rosa

Ganhei uma rosa e uma experiência. Deu-me aquela, no bonde, um homem velho, rude e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos sexuais, de uma ondulação distante do culto da mulher.

De fato o é; mas também pode ser outra coisa, como me prova este velho puído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor.

Quem sabe se ele põe agora neste afeto um afã meio inconsciente de recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como a natureza, contra toda lógica e toda expectativa, pode achar saídas novas e elegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela uma capacidade virgem e indefinível de com que não costumam contar os analisadores de almas, que pensam desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senão jogar com esquemas e conceptos.

Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a prostração. Idade, doenças, decepções, rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar no desânimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente, um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas. Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade.

Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco do seu passado, em montão, a consumir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse lá em baixo uma semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os destroços apodrecidos para vir oferecer à luz a flâmula verde de uma frondezinha viçosa.

A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem de que é a Vida que vive em nós... A Vida, senhora eterna de todas as germinações.

Fonte:
Domínio Público

Afonso Arinos (Assombramento) Parte IV, final

O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.

Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecoavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.

Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.

- Eh, gente! o orvalho 'stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co'aquele macho "pelintra". Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.

- E a "Andorinha"? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.

A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.

- Que é da giribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.

- Uma hora é frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo ! - gritou o Venâncio.

- Largue da vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um cachorro velho.

- Tá bom, tá bom, não quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta noite ! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse suceder a só Manuel. Deus é grande!

Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.

Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.

Nesse instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.

Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco alto:

- É bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.

Seguiram os três, calados, pelo campo a fora, na luz

Suave de antemanhã. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranqüilo; cada qual, escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.

José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:

A barra do dia ai vem!
A barra do sol também,
Ai!

E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito Da véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e não cedeu.

Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.

Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do sôlho. A caliça que caia encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros - e a porta escancarou-se.

Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.

- Mau, mau, mau! - exclamou Venâncio não podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo.

Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.

- Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? - exclamou o Venâncio.

Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras.

Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.

A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.

- Nossa Senhora ! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo, estirado!

Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:

O arneiro, ensangüentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.

- Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!

Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.

- Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P'ra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre!

- Qual, tio Venâncio - disse por fim José Paulista.- Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Aí é que está a Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p'r'amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!

E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam ê que quer que fosse - "para as ondas do mar" ou "para as profundas, onde não canta galo nem galinha".

Enquanto conversavam iam procurando levantar do chão o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Ás vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta.

- Ah ! Patrão, patrão ~ Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom-Jesus do Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! - gemia o Venâncio.

O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o corpo do arneiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José Paulista:

- Eu não pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.

Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.

- É alto deveras! Que tombo! - disse de si para si. - Que há de ser do patrão? Quem viu sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!

O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.

José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arneiro.

As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.

Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe o chapéu".

Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.

À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.

Às vezes ouvia-se um grito: - Toma, diabo! - e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.

Quando lá do rancho se avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do ôlho-d'água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.

O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.

Foram chegando e José Paulista chegou por último. tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?

O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.

Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.

Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lágrimas, exclamou aos parceiros:

- Minha gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! - E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um - "Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!" - E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe à boca.

Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de almas, um apelo fremente "in excelsis", na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.

De feito, não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto às alturas infinitas: - "Meu coração está ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!... Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua súplica..."

E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao "Agios Ischiros", ao formidável "Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth".

Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.

Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.

Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta... e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:

- Eu mato!... Mato!... Ma...

FIM

I Tertúlia Literária do Instituto Memória


Anthony Leahy – Editor do Instituto Memória – Curador da Tertúlia Literária

Mais de 200 participantes, entre jornalistas, professores universitários, cineastas, historiadores e leitores em geral, lotaram o Palacete dos Leões para prestigiarem aos 15 lançamentos de livros e os mais de 40 autores participantes. Uma bonita festa entre livros e amigos! Já no terceiro ano consecutivo com eventos mensais promovendo a cultura brasileira e dando Vez e Voz aos autores nacionais.

Segundo o Instituto Caros Ouvintes de Estudos das Mídias: “ Literatura e arte às dúzias! Sonho, ilusão, quimera ou Khimaira para lembrar a origem grega do substantivo? Errou. É a I Tertúlia Literária Instituto Memória promovida pelo próprio em parceria com o BRDE já no seu terceiro ano.”

A escritora e psicóloga Lígia Guerra resume com o brilhantismo que lhe é característico: "Foi muito bacana o nosso encontro entre amigos. Franz Kafka afirmou que “um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós. “ Eu acrescentaria que ele quebra gelos e constrói pontes. Nós fizemos isso ontem. foi uma honra ter feito parte desse momento histórico da Cultura Paranaense".

Verifique as opiniões sobre o evento:
jornalista José Aparecido Fiori: “Concorridíssimos os eventos tertúlicos e telúricos realizados com pompa e garra pelo curitibaiano e maior editor deste país, Anthony Leahy, agora há pouco, no Solar dos Leões. Muito bom o ágape, o reencontro com amigos há tempos escondidos, nem vou citar nomes, senão farei injustiça a outros.“

advogado e escritor Jocelino Freitas: “Evento memorável, palacete lotado. É em ocasiões como essa que penso que a cultura ainda tem jeito. Parabéns por mais esta iniciativa do Instituto Memória”

escritor e Desembargador do Trabalho Luiz Eduardo Gunther: “Os eventos do Instituto Memória estão ocupando um importante espaço antes vago na cultura curitibana. Importante e meritoso trabalho!”

escritora Neyd Montingelli: “Uma alegre família reunida em uma bonita festa!”

jornalista e escritor Willy Schumann: “Um ambiente inspirador!”

escritor Sergio Arzua: “Já virou uma tradição!”

Eri Kunrath Presidente do Rotary Club de Curitiba: “Eu admiro a persistência e coerência do Anthony. Alguém tem que ‘comprar’ esta luta e ninguém melhor do que ele.”

escritor Ubiratan Lustosa: “Foi uma honra e um orgulho participar!”

escritora Carolina Vila Nova: “Tudo de maravilhoso!”

A Tertúlia Literária, segundo Jornalista Aroldo Murá – Jornal Indústria & Comércio

O editor Anthony Leahy tomou a iniciativa de encomendar crônicas de viagem a um grupo heterogêneo de pessoas, incluindo nomes conhecidos no mundo literário paranaense e outros nem tanto. O Senador Álvaro Dias, por exemplo, provavelmente terá publicada a primeira crônica que escreveu na vida. O volume “E agora?”, lançado juntamente com outros livros, no Palacete dos Leões, na noite de terça feira – 26/03/13 -, enfeixa textos do Senador, de Lígia Guerra (psicóloga, escritora e consultora da RPC/Rede Globo), Marcos Meier (educador, escritor e Consultor da RPC/Rede Globo), Marcos Cordiolli (escritor, presidente da Fundação Cultural de Curitiba), Anthony Leahy (escritor, palestrante e editor), Eloi Zanetti (escritor e publicitário), Helio de Freitas Puglielli (jornalista e professor UFPR), Jocelino Freitas (escritor e advogado), Neyd Montingelli (escritora e palestrante), Willy Schumann (escritor, jornalista e cineasta), Carlos Fernando Mazza (ator e jornalista), Adauto Suannes (escritor e Desembargador/SP), Sérgio Luiz Sottomaior Arzua Pereira (escritor e palestrante) e Inara Francisco (psicológa e palestrante). O editor promete dar continuidade à publicação de coletâneas de crônicas, já com outros volumes em planejamento para integrar a coleção “Rumos”.

Cabe um agradecimento especial à ACP - Associação Comercial do Paraná - que enviou os itens para sorteio e aos amigos da Receita Federal – representada pelo Auditor Luis França Filho - que promoveram e prestigiaram ao evento.

A II TERTÚLIA LITERÁRIA INSTITUTO MEMÓRIA SERÁ NO PRÓXIMO DIA 30/04/2013. NÃO PERCA!
Anthony Leahy – Editor
Conselheiro da Academia Brasileira de Arte, Cultura e História - SP
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e da Academia de Cultura de Curitiba

Site e Livraria Virtual:

http://www.institutomemoria.com.br/
Blog do Editor
http://teiadehistorias.blogspot.com.br/

Fonte:
Anthony Leahy

Ditados Populares do Brasil (Letra Q)

Quem vê cara, não vê coração
Quando a barriga está cheia toda goiaba tem bicho.
Quando a cabeça não pensa o corpo padece
Quando a esmola é grande até o santo desconfia
Quando a festa é boa, de véspera já dá sinal.
Quando me vires abraçado com mulher feia, pode apartar que é briga.
Quando o diabo atrapalha, Deus ajuda.
Quando mais sobe o homem, mais teme a queda.
Quem ama não esquece, quem esquece não ama.
Quem anda as pressas não vai longe.
Quem anda depressa passa por cima do que precisa.
Quem aperta mesmo é laço de casamento.
Quem dá do que tem faz o bem.
Quem diz e não faz, não diz o que faz.
Quem dorme no volante acorda no cemitério.
Quem fala de mim tem inveja ou paixão.
Quem espera por sapato de defunto morre descalço.
Quem gosta de macho é trem.
Quem gosta de pó é cara de moça.
Quem guarda o que não presta tem tudo o que precisa.
Quem mal faz não quer a paz.
Quem manda é a cabeça, mas quem a leva pra onde quer é o pescoço.
Quem manda na casa é ela, quem manda nela sou eu.
Quem bebe não vê.
Quem desconfia de si não acredita nos outros.
Quem em Deus confia não se angustia.
Quem em Deus espera não desespera.
Quem empresta não presta.
Quem não confia no futuro desespera no presente.
Quem planta flores colhe amor.
Quem quer a rosa agüenta o espinho.
Quem se arrasta aos pés de mulher é véu de noiva.
Quem semeia amor colhe saudade.
Quem tem defunto ladrão não fala em roubo de vivo.
Quem tem pena de angu não cria cachorro.
Quem trabalha de graça pra macho é relógio.
Quem vive de esperança morre de fome.
Quem vive de esperança morre desiludido.
Quem gosta de cochicho é rosário.
Quem ver o mar pegar fogo pra comer peixe assado.
Quando a razão fala presta atenção no que diz
Quando Deus dá a farinha, o Diabo esconde o saco.
Quando o dono sai de casa, os ratos promovem a festa.
Quando um burro fala o outro abaixa a orelha
Quando um não quer dois não brigam
Quanto maior a altura maior o tombo
Quanto maior a nau, maior a tormenta.
Quanto maior é o coqueiro maior o tombo do coco
Quanto maior o desafio, maior a vitória.
Quanto mais reza, mais assombração.
Quanto mais se abaixa, mais se ve o cu
Quanto mais se faz, menos merece.
Quanto mais se vive, mais se aprende.
Que seria de mim, se não fosse eu?
Quem à boa árvore se chega, boa sombra o cobre.
Quem agasalha cobra morre picado.
Quem ama a rosa suporta os espinhos
Quem ao feio ama, bonito lhe parece.
Quem apanha de mulher não se queixa a delegado.
Quem avisa amigo é
Quem cala consente.
Quem canta seus males espanta.
Quem casa quer casa, longe da casa de casa.
Quem casa um filho perde o filho; quem casa uma filha ganha um filho
Quem com ferro fere, com ferro será ferido
Quem com muitas pedras bole, uma lhe cai na cabeça.
Quem com porcos se mistura farelo come.
Quem come do meu pirão apanha do meu cinturão.
Quem come e guarda, come duas vezes.
Quem compra terra não erra.
Quem conta um conto aumenta um ponto.
Quem corre atrás engole poeira.
Quem corre cansa, quem anda alcança.
Quem cospe pra cima, na cara lhe cai.
Quem dá aos pobres empresta a Deus.
Quem de uma escapa cem anos vive.
Quem desdenha quer comprar.
Quem diz o que quer ouve o que não quer
Quem dorme com criança acorda molhado
Quem dorme no ponto, é chofer.
Quem é bom já nasce feito
Quem é coxo parte cedo.
Quem é vivo sempre aparece
Quem empresta não presta.
Quem engole corda é cacimba.
Quem espera sempre alcança
Quem está na chuva é pra se molhar
Quem está vivo um dia aparece.
Quem fica até o fim da festa não presta
Quem foi pra Portugal perdeu lugar
Quem foi rei sempre é majestade.
Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é barão.
Quem gosta de menino é lombriga.
Quem guarda ficando com fome, o rato come.
Quem lhe dói o dente vai à casa do barbeiro (Provérbio antigo quando o barbeiro era também dentista).
Quem meu filho beija minha boca adoça.
Quem morre de vespera é peru de natal
Quem muito quer tudo perde.
Quem muito se verga os fundilhos mostra.
Quem não ajuda não atrapalha
Quem não arrisca não petisca.
Quem não belisca não petisca.
Quem não chora não mama
Quem não deve não teme
Quem não houve conselhos rara vez acerta.
Quem não muda de caminho é trem.
Quem não ouve conselhos ouve “coitado!”
Quem não se enfeita, por si se enjeita.
Quem não te conhecer, que te compre.
Quem não tem cão, caça com gato.
Quem não tem competência não se estabelece. (Provérbio português.)
Quem não usa a cabeça cansa os pés.
Quem nasceu para vintém nunca passa pra tostão. (Hoje seria: “Quem nasceu para um centavo nunca passa pra um real).
Quem nasceu pra dez réis não chega a vintem
Quem nunca comeu mel quando come se lambuza.
Quem o alheio veste, na Praça o despe.
Quem o feio ama, bonito lhe parece
Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é burro, ou não entende da arte.
Quem pode mais pode menos.
Quem pode manda, quem não pode faz
Quem procura acha
Quem procura sarna quer se coçar.
Quem puxa aos seus não degenera.
Quem quer comer gordo traz de casa.
Quem quer vai, quem não quer manda
Quem quer vai, quem não quer manda.
Quem ri por ultimo ri melhor
Quem sai aos seus não degenera.
Quem semeia ventos colhe tempestade.
Quem te viu, e quem te vê.
Quem tem boca vai a Roma.
Quem tem com que me pagar não me deve nada.
Quem tem dois tem um, quem só tem um não tem nada.
Quem tem padrinho rico não morre pagão
Quem tem pressa come cru
Quem tem quem lhe chore morre todo dia.
Quem tem telha de vidro não sacode pedra.
Quem tem telhado de vidro não joga pedras no vizinho
Quem tiver o seu segredo não diga a mulher casada que a mulher diz ao marido e o marido ao camarada.
Quem tudo quer tudo perde.
Quem usa cuida.
Quem vai ao ar perde o lugar.
Quem vai ao vento perde o assento.
Quem vai pra chuva é pra se molhar.
Quem vê a barba do vizinho arder põe a sua de molho.
Quem vê cara não vê coração
Quem vem atrás que feche a cancela.
Quem vive na ignorancia, aporta na escuridão
Quer conhecer o vilão? Ponha-lhe o bastão na mão.

sábado, 30 de março de 2013

Trova 257 - Mário de Sá-Carneiro (Lisboa/Portugal)


A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas “Trovia” n. 160 – Abril de 2013)


A mais triste solidão
que os seres humanos têm
é abrir o seu coração...
olhar e não ver ninguém!
Ademar Macedo – RN

Eu creio em Deus, com profundo
sentido de lucidez...
Mas, no Deus que fez o mundo,
não no Deus que o mundo fez!
Alfredo de Castro – MG

Não é quando vais embora
que tenho ciúmes assim.
É quando estás como agora,
pensativo, junto a mim...
Carolina de Castro

O livro, a cerveja ao lado,
o rádio, o abajur antigo...
Eu deixo tudo arrumado,
fingindo que estás comigo.
Maria Tereza Noronha

Foi por falta de carinho
que errei e perdi meus passos,
mas bendigo o “mau caminho”
que me levou aos teus braços...
Nádia Huguenin

Por aparências não deve
ninguém tirar conclusões:
conheço seios de neve
tendo o calor dos vulcões...
Oscar Batista

 

O velho tudo trocava
(de namorada, também).
– Como vassoura – explicava –,
a nova é que varre bem!
Adélia Woellner – PR

– Quando saiu… a maninha
foi com “mãinha” ou foi só?
– Sei não! Mas voltou “mãinha”,
quando chegou do forró!
Jaime Pina da Silveira – SP

Ao fazeres repreensão,
não te esqueças do lembrete:
melhor que "passar sabão"
será  "passar sabonete"...
José Fabiano – MG

O terapeuta sugere:
– “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
– “Tô” fora!... Pimenta, não!
Lucília Decarli – PR

Quem quer agradar a dois
e em cima do muro fica
perde o primeiro, e depois
o segundo... e se trumbica.
Osvaldo Reis – PR

Tem três fases na gaveta
da vida de um velho pai:
a de rei, a de careta,
e a de bom, quando ele vai.
Raymundo Salles Brasil – BA

Moderninha como quê,
vovó diz no "facebook":
– Quero entrar no BBB!...
Vou dar "upgrade" em meu "look"!
Renato Alves – RJ

 
Que tristeza ouvir um santo,
um sábio, um poeta, um rei,
ao peso do desencanto,
dizer ao mundo: – Cansei!
A. A. de Assis – PR

Costumo dizer que a trova
é diminuta poesia,
mas que sempre põe à prova
a nossa sabedoria.
Agostinho Rodrigues – RJ

Que a verdade não se cale
ou que sempre nos lembremos
de que nossa vida vale
pelos amigos que temos!
Aluízio Quintão – MG

Meu amor, botão ainda,
desabrochou na alvorada,
e agora é uma rosa linda,
mas de saudade orvalhada...
Amaryllis Schloenbach – SP

Enquanto o tempo ameaça
com seus bloqueios constantes,
o amor entorna uma taça
no banquete dos amantes.
Antonio Cabral Filho – RJ

Vou sem rumo, de partida,
nas águas do meu sonhar;
– a jangada é minha vida,
vou remando além do mar.
Ari Santos de Campos – SC

A praia é sempre pisada,
mas nos dá grande lição,
pois, mesmo sendo humilhada,
massageia o coração.
Arlene Lima – PR

A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
Carolina Ramos – SP

Por timidez, dei as costas
ao amor que eu sempre quis...
– E a vida deu-me as respostas
às perguntas que eu não fiz!...
Clenir Neves – Austrália

No meu giro de lembranças,
as pequenas coisas tecem
doce teia de esperanças,
e as saudades se amortecem...
Clevane Pessoa – MG

Entre o sonho e a realidade,
vendo o meu filho eu pensei:
eis a mais bela verdade
de tudo quanto sonhei.
Conceição de Assis – MG

El mundo gira hechizado,
baila samba su tesoro
de Brasil su enamorado,
!No lo cambia ni por oro!
Cristina Oliveira (Colibrí) – USA

Cem vezes tu repetiste
que me amavas loucamente...
Cem vezes tu me mentiste
e cem vezes eu fui crente!
Delcy Canalles – RS

Lua, que vagas, serena,
na amplidão do azul celeste,
traz consolo à minha pena,
leva a dor que me trouxeste!
Diamantino Ferreira – RJ

A minha grande alvorada
será eterna... eu suponho:
– Se um sonho não der em nada
eu troco por outro sonho!
Dilva Moraes – RJ
 Quero ser sempre a criança
com desejo de estudar,
curiosa e na esperança
de nunca me completar...
Dinair Leite – PR

A vovó não tem memória:
perde os óculos... na testa!
Mas jamais esquece a história
da varanda... e uma seresta!...
Domitilla B. Beltrame – SP


Sou livre, sem restrição,
mas afinal, para quê?
Mil vezes a escravidão...
mas juntinho de você.
Dorothy J. Moretti – SP

Já tive família e nome,
posição...luxo também,
mas de mim fiz um pronome
indefinido: ninguém!
Élbea Priscila – SP

Urge o tempo, faz-se escasso,
e, ao sofrer na despedida,
o nosso amor, sem espaço,
mostra a vida não vivida.
Eliana Jimenez – SC

Eu não me prendo à verdade
e à razão sempre me imponho,
porque toda a realidade
antes de tudo foi sonho!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Este silêncio, tão mudo,
que o nosso olhar escondia,
nos fez sentir quase tudo
de tudo o que eu já sentia!
Eva Yanni Garcia – RN

Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
Flávio Stefani - RS


Minha renúncia...Quem sabe...
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!
Francisco Garcia – RN

Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
Nó que se dá, no passado,
e se desfaz no presente.
Francisco Pessoa – CE

Meia-noite e eu te espero...
É grande a minha ansiedade.
Vem, amor! Vem que eu te quero;
és minha felicidade!
Gislaine Canales – SC
 

Na resposta, que não veio,
certeza e desilusão;
você não quis que o correio
fosse cúmplice de um não!
Istela Marina – PR

Precisa o mundo, imperfeito,
saber o quanto é capaz
a ausência de preconceito
de ser prenúncio de paz.
Jeanette De Cnop – PR

Com meus sonhos mais singelos,
embalados na esperança,
venho erguendo meus castelos
desde os tempos de criança.
Jessé Nascimento – RJ
 

O tempo passa, não para,
mas meu amor por você
é como o canto da Iara:
um coração… à mercê.
José Feldman – PR

A preguiça dos ponteiros
de meu velho carrilhão
mostra os minutos ronceiros
das noites de solidão!
José Lucas de Barros – RN
 

Sonhei um sonho tão triste!...
Sonhei que o mundo acabou...
– Logo depois, tu partiste,
e o sonho se confirmou...
José Ouverney – SP
 

Em cada nota eu receio,
na pauta que a vida escreve,
que transformem nosso enleio
numa simples semibreve.
Luiz Carlos Abritta – MG

Trovadores... luz... ribalta!
No cenário: a poesia.
Trova nasce... verso salta...
na maior coreografia.
Mª das Graças Stinglin – PR

Em tua ausência, a esperança
põe seus véus na realidade,
mas quem vive de lembrança
morre aos poucos... de saudade!
Maria Lúcia Daloce – PR
 

Para escrever os sentidos,
companheiros de ilusão,
não servem versos contidos:
tem que abrir o coração.
Mário Zamataro – PR

Um romântico poeta
tem seu dia, sim senhor,
e por ser do amor esteta,
com certeza é um trovador!
Maurício Friedrich – PR

Lá fora nada me importa,
e esqueço da vida ingrata,
quando você fecha a porta...
e tira o nó da gravata!
Neide Rocha Portugal – PR
 

Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.
Neiva Fernandes – RJ

Coragem: medo vencido...
Fé em Deus, em nós, na lida.
Nunca nada está perdido
se há amor em nossa vida.
Olga Agulhon – PR

Tua imagem refletida
no espelho do nosso quarto
mostra a saudade sentida
que só contigo reparto.
Olga Ferreira – RS
 

Entre esperas e procuras,
encontros e despedidas,
somadas, nossas loucuras
dão mais vida a nossas vidas!
Rodolpho Abbud – RJ
 

Um coração congelado
pega fogo de repente,
quando o amor, fósforo alado,
risca faíscas na gente!
Roza de Oliveira – PR

Quem dera se a vida fosse
mais simples de ser vivida:
nem todo regresso é doce,
nem sempre é amarga a partida...
Selma Patti Spinelli – SP

Nas noites frias, um drama
que a miséria perpetua:
alguns chamarem de cama
o que outros chamam de... rua !
Sérgio Ferreira da Silva – SP

Tira-me o sono um passado
não distante do presente:
– Eu tomei o “bonde errado”
do teu sorriso inocente.
Thalma Tavares – SP

Somos dois... mas  somos um!
Temos tanta afinidade
que, entre nós, tudo é comum,
até  mesmo a identidade...
Thereza Costa Val – MG
 

O peso do tempo é brando,
se carrego este preceito:
Ao poente vou chegando,
mas tenho auroras no peito.
Vanda Queiroz – PR
 

Reconheço que a razão
me exerce extremo fascínio,
mas, se acerta o coração...
perco o rumo e o raciocínio!
Vânia Ennes – PR

Partiu... nem disse o motivo,
e eu, da saudade à mercê,
estou viva, mas não vivo,
pois não vivo sem você.
Wanda Mourthé – MG
 

Felicidade é a rota
do sábio... Que vai além!...
O que possui não se esgota,
mesmo entregando o que tem!
Wagner M. Lopes – MG

O tempo passou... e agora...
já é mais que entardecer,
mas tua presença é aurora
na noite do meu viver.
Zeni de Barros Lana – MG

Fonte:
A. A. de Assis

Roseline de Jesus Pedroso (Poemas Avulsos)

CANÇÃO

Quando a noite desce
e a escuridão se esconde
no brilho das estrelas;
a lagoa dorme em seu leito de prata
e, no breu da noite se arrepia
encrespando a superfície fria
onde a lua espia e sua luz resgata.

A dor desaparece
numa paz sem nome, rústica e tranqüila...
mesmo que não se possa vê-las,
com seus olhos brilhantes, sobre a mata
as estrelas esperam vir o novo dia
e o sol esparramar sua cascata
de luz para aquecer o homem.

E Deus, que lá da imensidão
dirige os astros e equilibra o mundo,
volta seus olhos, com amor profundo,
para a lagoa, sorri e então diz
ao vento pra compor uma canção
de paz e, ao mesmo tempo, uma lição
para ensinar o homem a ser mais feliz.

NAVEGAR  É  PRECISO...
No mar desta nossa vida
existem muitos revezes,
mil perigos, vagalhões
muitos piratas, ladrões
que querem nos afogar

Choramos, sim ,muitas vezes,
quantas for preciso chorar,
muitas batalhas perdemos,
mas outras iremos ganhar.
Nem tudo é como queremos,
mas temos que navegar.

O  porto ainda está distante,
“âncora é outro falar”...
tesouros, flores, diamantes,
vamos todos encontrar
quando enfim, como sonhamos,
a nossa hora chegar.

O nosso lugar na vida
é onde devemos estar,
hoje aqui: em outro momento
haveremos de mudar,
pois  nosso devir nos ensina
que, mesmo contra o vento,
``outras velas, outros remos`´ 

É preciso navegar1

VIDA NA ROÇA

Naquele tempo de infância,
lá no meio do sertão,
vivíamos tão felizes
brincando de pé no chão:
meu  pai plantava e colhia
a cana, o milho e o feijão,
moia a cana e fazia
rapadura de montão;
mamãe era professora
na escolinha da região.

E que escolinha tão boa,
foi nela que eu aprendi
os sábios ensinamentos
que nunca mais esqueci,
que é ser honesto e sincero
pra ter paz no coração;
ler e escrever direitinho
para ser bom cidadão.

Lembro a bulha do riacho,
correndo manso no chão
e o marulhar da cachoeira
cantando lá no grotão.
Eram uma festa pros olhos
os campos cheios de cores
e o pomar da minha casa
carregadinho de flores.
Os sonhos que então eu tinha
eram tão cheios de amor...
não tinha pressa nenhuma,
não tinha nenhuma dor...
De manhã, logo cedinho,
pra roça meu pai saía
e minha mãe me chamava
para ver nascer o dia.

Ela cuidava da casa,
da horta e dos animais
depois saía pra  escola
que era o que gostava mais.
À noitinha, todos juntos,
lá, em volta do fogão,
cantavam causos e lendas
e contos de assombração.

Meu pai falava de tudo
o que era sua vida então
e minha mãe estava sempre
às voltas com a correção
dos cadernos dos alunos
que eram sua paixão.

Todos os fins de semana
tinha muita diversão,
ia pousar lá no sítio
de meu avô Napoleão.
A minha avó me acarinhava
com bolinhos de polvilho,
tinha doce de caixeta
e deliciosos sequilhos,
um macarrão feito em casa
com  um pretinho feijão,
e, na chapa do fogão de lenha
era onde  assava o pinhão.

Ai. que saudades que tenho
daquele tempo de então,
do café, que a mãe torrava
e socava no pilão,
do leite tirado na hora
que eu  bebia no galpão
e, no inverno o que aquecia
era um bom fogo de chão.

A gente era muito pobre,
luz só tinha de lampião
e a cozinha lá de casa
de terra batida, o chão...
mas tenho muita saudade                 
daquela vida de então,
quando a gente era criança
e a vida era só canção
de passarinhos cantando
lá no meio do sertão.

CLASSIFICADOS

Procura-se:
O dia de ontem, o canto da  fonte,
o riso, a brisa, e a carroça velha
passando na ponte;
o chapéu de palha,
a botina gasta, a enxada,
a foice e  a capinada
e a paz perdida com o pó da estrada.

Procura-se:
O sonho, a saudade,
os causos e as modinhas
à luz do lampião;
a conversa mansa, o fogo de chão;
o prato de sopa
e a gente esperando assar o pinhão...
o som do riacho; o bater da roupa
e o frescor da água
escorrendo junto ao suor do rosto
e a paz, a paz que o cansaço traz.

O capim verdinho
e o cheiro da terra úmida de orvalho;
o feijão colhido, fruto do trabalho
sobre o assoalho de terra batida;
o fogão a lenha; o bolinho frito
na gordura quente
que juntava água na boca da gente...
E a paz, a paz, que o cansaço traz.

Procura-se:
A mão calejada no bater da enxada;
a chuva bendita renovando a vida
e o som do sino,
a reza do Divino
na velha capela na curva da estrada;
o caboclo magro fumando um palheiro
à sombra do galpão.

Procura-se:
a fonte da honestidade e da retidão;
o Norte, o horizonte guardando a esperança
e o fim da caminhada
e a paz, a paz que o cansaço traz.

PRECE  EM SONETO

Ascende aos céus a voz dos pobrezinhos
e a luz opaca, o pouco de esperança
que ainda nutre os olhos dos velhinhos
reflete-se nos olhos das crianças...

Em busca de poder, de glória e fama,
nem mesmo isso estamos conseguindo!
A insônia visitando a nossa cama,
não mostra rumo certo,  nem caminhos!

É urgente, no escuro onde hoje estamos,
que busquemos encontrar a luz perdida
para reacender aquela antiga chama...

e, nas páginas que ainda não viramos,
em um lugar qualquer de nossa vida
alguma história nova construamos..

PERENIDADE
Uma vida  só não me basta...
quero muito mais que isto:
quero ouvir velhas histórias
e encontrar velhos amigos
nas brancas casas de pedra
na beirada do horizonte.

Uma vida  só não me basta...
quero mil flores na estrada
para enfeitar o futuro.

Uma vida  é muito pouco;
preciso mais que uma vida
para subir às montanhas
nas asas das borboletas,
tomar banho de cascata;
para rir com as crianças
e falar tantas bobices
quantas me der na veneta.

Uma vida é muito pouco
para conhecer o mundo,
tão longe, infinito mundo...
Uma vida é muito pouco
para ouvir o mar batendo
na ardente franja da praia.
Para estar com quem eu amo
preciso da eternidade
e a paz do  sonho mais louco.

ABRAÇO

Não  te amei porque quis,
mas amei-te desde aquela noite
em que te vi pela primeira vez....
não te amei por seres belo
nem por seres forte...
Importa o motivo, se é que ele existe?
O que importa
é o abraço de tua presença
que me envolve sempre,
mesmo que não estejas comigo.
Teus passos ecoam
no silêncio da minha solidão.
Não te ouço a voz,
mas tua suave lembrança
é como um eco de paz em minha inspiração,

INCERTEZA

As estrelas existem  p’ra brilhar
e as flores para colorir os campos
os passarinhos vivem a cantar
e voar acima das ilusões humanas...
é o chão do homem que o prende e ancora,
o imã que o atrai à infelicidade.
É pena o homem não saber voar,
nem deixar que se espalhe sua luz
escondida sob a cama, atrás de portas fechadas...
onde as chaves?

Como abrir o coração à luz,
a essa luz perfeita que nos faz chorar?
como entender a paz que não chegou ainda;
uma promessa apenas de encontrar a luz?
Como sair à rua e gritar ao mundo,
se o mundo todo já gritando está
de dor tamanha e de tristeza tanta?

Onde a paz, onde a luz no coração humano?

Os homens humilhados,
os jovens drogados
e as crianças famintas
serão capazes de encontrar a luz?
Os anjos sabem tudo...
e as lágrimas dos anjos se derramam
nas páginas do livro onde teimo em escrever a paz.

O TEMPO

O tempo vai passando...
com seu sorriso irônico,
esgueirando-se pelos cantos
da boca da vida.
O tempo vai cansando
de olhar o passado
na ânsia de voar no presente
e de chegar ao futuro,
de esvair-se sem jeito,
sem mudança, sem brilho nenhum.

E o futuro do tempo presente
é feito um sonho ausente.

Esgueira-se o tempo
Por entre as frestas do pensamento,
escorre o tempo
por entre os dedos do vento...

Voa  cantando, passa chorando,
sempre voando
e vai plantando
rugas na cara dos desatentos,
com desalento,
com estertores de grandes dores.

Como um cavalo de branca crina
passa trotando pela campina
ao sol poente...
lá vai o tempo
levando os sonhos
da gente.

Voa tempo!
Ainda há tempo para mudar
enquanto é tempo!

Fonte:
A Autora