quarta-feira, 3 de abril de 2013

Gilvan Lemos (Dias Idos e Não Vividos)

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A estrada de rodagem findava no silêncio. Estreita na terra pura, nua, ao chegar à curva parecia que o mato a havia engolido. Nas partes fofas, de areia, as marcas dos pneus do caminhão do leite; nas duras, onde sempre entremostrava-se um lombo cinzento de pedra, a solidão faiscante do sol, a presença firme do sol, a expectativa de uma coisa que indistintamente ia acontecer e que nunca acontecia.

O zumbido da desnatadeira manual, a força humana regrada pelo ritmo impositivo da máquina, a fadiga dum braço transmitida ao outro, a conformação refletida no olhar esmorecido, a contabilidade mental do volume de leite a ser desnatado ainda.

— Eu tinha uns quinze anos, mais ou menos.

Espaçadamente, os fornecedores diários. Modestos, pequenos produtores. E o leite. Em latas na cabeça, em alimárias, parte da carga contrapesada com mochilas de milho, feijão, pedra, mamona. Murmúrios de vozes mal acordadas, zurrar metódico de jumentos, passadas breves, ruído de uma folha de papel sendo rasgada. E a lamúria dos porcos grunhindo no chiqueiro.

— Era uma fábrica de laticínios, era?

— Entreposto. Desnatava-se parte do leite, era eu quem desnatava. À tarde o caminhão do leite vinha apanhar.

O homem. Agreste, robusto, a barba sempre por fazer. A camisa, por dentro das calças, entreabertas na prega do último botão, o umbigo rodeado de pêlos negros. No chão engordurado seus tamancos não retiniam, sim em casa, onde o piso de tijolos era varrido diariamente. A mulher recomendava: Calce os chinelos. Fumava grosso cigarro, de fumo por ele mesmo picado. Na extremidade, a que levava à boca, a mancha amarelada da saliva. À noite, na espreguiçadeira, de frente para a escuridão, falava sozinho. Se a mulher indagava, ele: Eu não disse nada. Daí então calava-se de fato, os lábios remexendo, sôfregos, como se ele blasfemasse interiormente.

Correria de ratos na sala da frente, a da recepção do leite, local da desnatadeira. Esta, a (minha) inimiga. Cães a latir de incompreensão e espanto. Seriam os espectros noturnos, o rangido dos galhos soprados pelo vento a causa dos seus desvelos. Na manga iridescente do candeeiro, mariposas cediam à tentação do holocausto. A aranha, em sombra refletida na parede, aumentada mil vezes, movia-se, dissimulando a concupiscência logo incitada. E os porcos não grunhiam no chiqueiro.

O homem deixava a cadeira, junto com a baba escura cuspia a ponta do cigarro. Boca escancarada, bocejos longos e repetidos. Dava dois passos. Cambaleando, espreguiçando-se furiosamente, encaminhava-se para o terreiro. O espaço desocupado adquiria-lhe a personalidade e, impositivo, recalcitrante, esperava-lhe o retorno, a resguardar-lhe a posição de mando. Lá fora os cães se acalmavam. O cavalo, olhos brilhantes como de labaredas, sacudia a cabeça, a tábua do pescoço retesada, as crinas empoeiradas de mistério. Eh-eh, fazia o homem, num acento inusitado de ternura. E, mãos nos quadris, a cabeça erguida para a negridão do céu, urinava no tronco do marmeleiro.

Portas batidas, janelas entrameladas. A espreguiçadeira, reposta no lugar de costume, resignava-se à própria imparcialidade. Os tamancos do homem conduziam-no à ausência. Sinais íntimos, últimos ruídos preparando-se para serem extintos pelo sono. Dele, porque para os outros (para mim) a noite se eternizava na insônia. Restavam na sala fulgores auditivos de um passado recente. Luzes e brilhos ouvidos mais do que vistos. Ouvidos pelo coração. Em transe o coração. A voz duma menina que lhe segura as (minhas) mãos: Não vá não, besta. Você vai se enterrar ali. E outra mulher, como esta agora remendando velhas camisas e calças desbotadas: É preciso, filho, será um ajuda para nós. Seu pai... Este a interrompia: Com onze anos saí de casa para ganhar a vida.

Vida, vida! A que estava vivendo, a que deixara para trás, a que se enfumava na lembrança, a que ingenuamente lhe aprazia e lhe faltava. Claros dessa outra vida, sonhos sonhados na vigília. E aquela estrela, mais do todas brilhante, a iludi-lo com o esplendor dum êxito indefinido.

Da camarinha, ressonos altos, roncos cavernosos. O homem penetrava-se em si mesmo, com o mesmo poderio pertencendo-se, com a mesma força mantendo o respeito intransferido. Na sala, a mulher, sem pressa de terminar os seus remendos, torcia a agulha escapa da agulha, tornava a enfiá-la no buraco: Não vai dormir? A ele (a mim) perguntava, e desfazia-lhe o procurado encanto. Porque, embora a semelhança física, sua voz diferençava da da outra e, sem ser áspera ou ofensiva, faltava a ela um toque inexplicável de meiguice, aquele que só se encontra na voz das mães que estão distantes.

Pelas frestas dos olhos umedecidos não mais a sombra da aranha na parede, não mais o recurso de acompanhar o vôo suicida das mariposas. E os ratos do depósito tinham sossegado.

— Quem eram eles? O homem do entreposto e a mulher, quem eram eles?

— Ela, irmã de minha mãe; ele, naturalmente, seu marido. E meu patrão.

As mãos tornadas insensíveis pelos calos, o enfado que não se acomodava ao remanso, o sono que não encontrava repouso. A voz da mulher, desta, a tia, ponteando-lhe as cordas da memória: Não teve mais notícia de sua mãe? O carinho, de que não tinha costume, empanado em promessas duvidosas: Sábado consigo que você vá à cidade. O olhar rápido, suspenso do alinhavo: Vai ver a feira, seus pais, seus irmãos. E num quase sorriso de cumplicidade: A namorada... Não tinha uma? E então?

Sábado ou domingo. Não havia parada. No peito da vaca o leite não podia esperar para ser tirado na segunda-feira; no entreposto não aguardaria sem mácula pela desnatação. Tampouco o caminhão deixaria de vir por um ou dois dias. Ele (eu) sabia disso, ela também. Os roncos inadvertidamente interrompiam-se na camarinha. E a voz do homem chegava suspicaz à mulher emaranhada em suas linhas: Não vem dormir hoje não? Era o sinal. O final. Do serão.

À tarde, o motorista do caminhão do leite trouxera-lhe um recado: Seu pai mandou dizer que é pra você ir sem falta, sua mãe está muito mal. O olhar enviesado do patrão, falanges cabeludas rasgando o papel da nota de remessa. A tia, em sombra furtiva transmudada, passando ligeiramente da porta dos fundos à varanda. No espaço, o tempo parado. Tudo parado. O motorista, com a última sílaba da última palavra do recado suspensa na boca aberta; o patrão segurando a nota que não se despregara de todo e que não se largava do bloco porque ele não acabava de puxá-la; a tia, de perfil, um pé erguido, sem dar a passada final que a conduziria à varanda. E os porcos grunhindo no chiqueiro.

Posso esperar no máximo dez minutos, completara o motorista. Não mais os porcos, só o zumbido da desnatadeira. Deixada de lado, ainda lhe transmitia o parco movimento. Dos músculos dele (de mim) inda exigia a força da vibração. E nos ouvidos fixava-se, monótona-eterna-calculadamente: a rígida marcação, o compasso opressivo da incerteza.

Eis a roupa especial colocada sobre a cama. Junto, os sapatos de irem à cidade e para esse fim jamais utilizados, e mais a pressa de revestir o corpo sujo de suor, calças os pés tanto tempo desacostumados de semelhante ostentação. Súbito, o patrão encostado no portal: Só depois de lavar o vasilhame. Por trás dele a mulher, a tia: Assim não vai dar tempo de pegar o caminhão. Silêncio intencional, o homem: Vai depois, a pé, o cavalo está doente. A outra voz, perdendo suavidades: Mas é tão longe! É a mãe dele, não compreende? E a ordem definitiva: Tanto faz.

Da janela, a mulher em vigilância. Era o marido que ela acompanhava com a vista. Ele, que tratava do cavalo e que, após, o conduziria ao pasto. Foi nessa ocasião que ela procurou o sobrinho. Levara-lhe a muda da roupa e os sapatos havia pouco abandonados: Troque-se aí mesmo, apresse-se que talvez ainda possa pegar o caminhão. Cortando em direção ao rio você o alcançará quando ele vier de volta. E o vasilhame? Ela mesma lavava. Ao partir, cabisbaixo, apenas ouviu — não precisava voltar-se para saber que a tia estava com os olhos pisados: Vá com Deus, meu filho. Só volte aqui quando quiser. E se quiser.

No ponto indicado, as marcas dos pneus na areia solta não pareciam recentes. Tão cansado se mostrava, não tempo de regozijar-se. A estrada triste era igual à que se avistava do entreposto nas tardes de longa aflição sem recompensa. O sol já não queimava, os pássaros escondiam-se no silêncio, o vento embalava a solidão presente fora e dentro dele (de mim).

Mesa posta, a família toda reunida. Os irmãos casados sem as esposas, as irmãs sem os maridos. Na cabeceira o pai, a calva esbranquiçada, a espera contrita. A luz fraca pendente do fio encaroçado de moscas, o relógio da parede batendo as horas, inatendido e solitário em sua marcha laboriosa, de roteiro jamais-em-tempo-algum alterado. Ninguém demonstrava dar por ele, por ele ou pelo relógio, o que não era de estranhar: seus lugares, respectivos, viviam sem novidades ocupados. Os cheiros, os ruídos de costume vindos da cozinha; os vários olhares de olhos injetados, as bocas salivantes. E um coro de avidez rumorejando nos lábios tensos, retorcidos. Foi quando a mãe surgiu da porta estreita, só ela alegre, só ela notando sua presença: Chegou enfim! Bem na hora. Vamos comer, meu filho. Mas em vez disso ela o abraçava chorando.

— Como? Então tinha ficado boa?

— Sonhei. Enquanto aguardava o caminhão, adormeci sentado numa pedra, a cabeça encostada no tronco duma árvore. Me lembro que quando acordei estava com o rosto lavado das lágrimas do sonho. O fato é que, ao chegar à cidade, ela já havia morrido.

Olhara-a rapidamente, apenas para certificar-se de que não era a mesma. Nos traços da do entreposto havia deixado a fisionomia, os gestos, a ternura calma, conforme vinha há tempo recompondo e comparando. A semelhança era tanta! Não no timbre da voz. Mas a daqui já não falava. As condolências, os reconfortos. Não queria que a ninguém pertencesse a dor de tê-la perdido, sua dor, íntima-úmida-dor. Por outro lado, a ninguém queria mais pertencer. E não se pertencia. De fora, ausentando-se, não se julgava de casa. Desta. A casa onde morre uma pessoa querida não é mais a nossa casa. Petrificava-se, pretendia ser único, ímpar no mundo. Mas quando o pai lhe disse: Ela ontem chamou tanto por você... — sucumbiu, entregou-se, o filho, também do pai, retornado. E quando o parente idoso, homem de prestígio, tentou acalmá-lo (Conforme-se, menino, foi um descanso pra ela.), agrediu-o, batendo-lhe no rosto, forte, desatinado.

— Foi o maior escândalo.

— Voltou, depois, pra trabalhar no entreposto?

— Não. Acalmados os ânimos, esse parente idoso, através do seu prestígio, conseguiu um emprego pra mim na prefeitura. Era um homem bom, me compreendeu.

Fonte:
LEMOS, Gilvan. "A Inocente Farsa Da Vingança", Ed. Estação Liberdade — São Paulo — Maio, 1991.

Gilvan Lemos (Gilvan por Gilvan)

Gilvan (de Souza) Lemos nasceu na cidade de São Bento do Una – PE, no dia 1º de julho de 1928, onde fez os primeiros estudos e residiu até 1949, quando se transferiu para o Recife.

Curso de Francês na Aliança Francesa e de Inglês no Curso Maia.

Escreve desde os 15 anos de idade.

Publicou seu primeiro trabalho literário (um conto escrito em 1945) na revista Alterosa, de Belo Horizonte, em março de 1948.
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Desde criança a leitura tem sido o que existe de mais importante na minha vida. Primeiro me apaixonei pelos gibis. Me interessava também pelos livros infantis de Monteiro Lobato, que os mais velhos indicavam para que eu me instruísse, embora eu não os lesse com esse intuito, e sim por me divertir principalmente com as presepadas da Emília. Depois passei a ler romances. O primeiro que li, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, me conquistou definitivamente. A ficção continua a ser minha leitura predileta. Não sei como uma pessoa passa pela vida sem ler, sem se interessar pela literatura.

Daí nasceu o escritor, modéstia à parte, eu. Como dizia Osman Lins, quem convive com mágicos termina tirando coelhos do bolso. Foi o que aconteceu comigo. Aliás, se não fossem as influências, a arte em geral não teria prosseguido. É nos emocionando por alguém que nos propomos a imitá-lo.

O ato de escrever passou a ser a minha finalidade na vida. Quando estou escrevendo, não me interesso mais por coisa alguma. Me entristeço, me alegro, me emociono... Não sei como há escritores que "sofrem" para escrever. Rachel de Queiróz chegou a dizer que escrever, para ela, era o maior sacrifício. Se era assim, por que escrevia?

Me iniciei na época em que predominavam autores brasileiros como Erico Verissimo, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lúcio Cardoso... Amei-os e imitei-os desordenadamente. Claro que hoje faço minhas restrições. De José Lins do Rego, salvo dois ou três romances, de Erico Verissimo, idem. De Lúcio Cardoso, nenhum; de Jorge Amado... restou a saudade. Foi quando "conheci" Graciliano Ramos. Ah, este ainda me agrada. Me identifico com todos os seus livros.

Comecei a escrever de teimoso que era. Em minha cidade – São Bento do Una, agreste meridional de Pernambuco –, não havia a menor possibilidade de prosseguir. Cidade atrasada, sem colégios, sem biblioteca, sem pessoas ligadas à literatura. Contava apenas com minha irmã mais velha, que, sem o curso secundário, como eu, era duma inteligência superior, lia muito e me orientava. Foi com sua ajuda que escrevi meu primeiro conto publicado na revista Alterosa, editada em Belo Horizonte. Quando publiquei o segundo, em 1948, já me considerava um escritor.

Mudei-me para o Recife em 1949. Com 21 anos incompletos, me julgando velho para iniciar o curso ginasial, passei a ler com o interesse de me ilustrar. Em 1951, obtive um prêmio instituído pelo Estado para romances inéditos com meu livro de estréia, Noturno sem música, publicado cinco anos depois em edição particular. Que passou completamente despercebido pela crítica local. Isso me decepcionou sobremaneira. O fato é que eu desejava apenas publicar um romance. Achava que, o publicando, estaria realizado. Mas o diabo é que passei a desejar ser famoso. Apesar de estar convicto de que fracassara, não deixei de escrever. Só para mim. Doze anos mais tarde arrisquei-me a remeter um novo romance à Editora Civilização Brasileira, principal editora de literatura na época. O livro – Emissários do diabo – foi aceito e publicado em 1968. A partir daí, as portas do paraíso se abriram para mim, e meus primeiros romances foram publicados no Rio, em São Paulo e Porto Alegre (no tempo da famosa Editora Globo). O povo da minha terra passou então a me conhecer.

Hoje tenho 21 livros publicados: 11 romances, 3 de novelas e 7 de contos, alguns premiados nacionalmente, outros já na 3ª edição. No momento, estou com dois livros em compasso de espera. Ambos em São Paulo. O primeiro, A era dos besouros, está programado para o fim do ano. Constitui-se de três novelas curtas: Ritual de danação, uma paráfrase de Jó, atual, com final surpreendente; Alugam-se quartos, dramas íntimos de vários moradores dum pardieiro desses "cai-mas-não-cai"; e, finalmente, a que dá título ao livro, história duma família, mulher e filho, que vive os momentos duvidosos da era da ditadura. O segundo, Na rua Padre Silva, é composto de contos "entrelaçados", quase um romance, sobre pessoas humildes duma rua de pobres.

Os livros, só romances, que eu indico para os leitores do Cultura News, são aqueles de que mais gosto, como, por exemplo, os de Graciliano Ramos; Menino de engenho e Bangüe, de José Lins do Rego; Grande sertão: Veredas e Corpo de baile, de Guimarães Rosa, só para ficar nos do século passado, brasileiros. Não tenho lido autores novos. Estrangeiros, indicaria Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez; A casa verde, de Vargas Llosa; O ajudante, de Bernard Malamud; todos os do Coelho, de John Updike e outros que não me ocorrem no momento.

O "pessoal do Sul" acha que sou "regionalista". Regionalista parelho aos escritores que se tornaram conhecidos a partir de 1930, sei que não sou. Ocorre que escrevo sobre o meio em que vivo. Retrato as pessoas com que convivo, recordo momentos da minha vida no interior... Em suma, escrevo sobre o que conheço, o que sei, o que me emociona. Para mim, o bom romance é o que nos provoca emoções. Detesto romances experimentais, enredos misteriosos, incompreensíveis, jogos de palavras... Acho que isso é coisa de quem não tem o que dizer. Para mim, romance é romance. Não se restringe a escolas, tempo, época. Quando o romance é bom, não tem idade.

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São mais de 20 livros de ficção publicados, além dos textos em coletâneas e periódicos.

I – Romances:

01. Noturno sem música. Recife: Ed. Nordeste, 1956. Prêmio Vânia Souto Carvalho, da Secretaria de Educação – PE. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1996

02. Jutaí menino. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968. Prêmios: Orlando Dantas, do Diário de Notícias (Rio); Olívio Montenegro, da UBE – PE. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1995

03. Emissários do diabo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Prêmio da APL. 2ª ed. São Paulo: Editora Três, 1974 (Coleção Literatura Brasileira Contemporânea); 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987

04. Os olhos da treva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Menção Honrosa (Prêmio José Conde/Recife). 2ª ed. S. Paulo: Círculo do Livro,1983

05. O anjo do quarto dia. P. Alegre: Globo, 1981, Prêmio Érico Veríssimo, da mesma editora. 2ª ed. São Paulo: Globo, 1988. 3ª ed. Recife: Bagaço, 2002

06. Os  pardais estão voltando. Recife: Guararapes, 1983

07. Espaço terrestre. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1993

08. Cecília entre os leões. Recife: Bagaço, 1994.  2ª ed. Recife: Bagaço: 2007

09.  A lenda dos cem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 2ª ed. Recife, Ed. Bagaço, 2005

10.  Morcego cego. Rio de Janeiro: Record, 1998

11.  Vingança de desvalidos. Recife: Nossa Livraria, 2001

II – Contos:
          
01. O defunto aventureiro. Recife: EDUFPE, 1974. Menção Honrosa do Prêmio José Lins do Rego, da Ed. José Olympio (Rio). 2ª ed. Recife: Bagaço, 2001

02. Os que se foram lutando. Rio de Janeiro: Artenova, 1981

03. Morte ao invasor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984

04. A inocente farsa da vingança. São Paulo: Estação Liberdade, 1991

05. Onde dormem os sonhos. Recife: Nossa Livraria, 2003

06. Largo da alegria. Recife: Bagaço, 2003

III – Novelas:

01. A noite dos abraçados. Porto Alegre: Globo, 1975

02. O mar existe. In: A inocente farsa da vingança. São Paulo: Estação Liberdade, 1991

03. Enquanto o rio dorme. Recife: Bagaço, 1993 (uma das novelas de A noite dos abraçados)

04. Neblinas e serenos. Recife: Bagaço, 1994 (duas das novelas de A noite dos abraçados). 2ª ed. Recife: Bagaço, 1995

05. A Era dos Besouros – Editora A Girafa – São Paulo – Maio de 2006

06. Na Rua Padre Silva – Editora Nossa Livraria – Recife – Outubro de 2007

IV. Contos nas coletâneas:

01. O urbanismo na literatura. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1975

02. O novo conto brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985

03. Seleta de autores brasileiros. Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1987

04. Memórias de Hollywood. São Paulo: Nobel, 1988

05. Contos de Pernambuco. Recife: Massangana, 1988

06. Erkundunger 38 Brasilianische Erzahler. Berlim: Verlag Volk und Welt Berlin, 1989

07. Le serpent a plume. Paris, 1994

08. Caravanes. Paris, 1998

09. Antologia do conto nordestino. Recife: Micro, 1998

10. Panorama do Conto em Pernambuco – Fundação Maximiano Campos  - Recife – Outubro de 2007

Fontes:
http://www.livrariacultura.com.br/
http://www.releituras.com

Aparecido Raimundo de Souza (Liungua Preusa)

O advogado indica uma cadeira para o rapaz que acaba de entrar em sua sala. Antes de sentar, o moço tira da cabeça um chapéu ensebado e o coloca sobre a mesa cheia de papéis e processos.

— Aceita água gelada?

— Nãu, oubriugaudo.

— Um café?

— Tenhu qui paugar?

— Claro que não. É por conta do escritório.

— Entãu eu aceitu um caufé.
-
Chama a secretária pelo interfone e solicita que traga a bebida para dois.

— Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?

— Adeugeusto Fumouso.

— Pois não. O que está acontecendo?

— Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia leuvou eule paura a deleugaucia.

— Sabe o motivo?

— Seugundo o pouliciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já fuoi tuudo deuviudamente esclaureucido.

— Mas seu amigo continua detido?

— Nãu. Acaubou de ser liubeurado. Souto, aufiunau, está em causa, grauças a Deuus. Soulto.

A secretária chega com a bandeja e serve os dois homens em silêncio:

— Senhor, açúcar ou adoçante?

— Auçuucar, pour fauvour.

— Não entendi, cavalheiro!

— Aucho meulhor toumar aumaurgo, meusmo.

Terminada essa tarefa, a jovem retorna à recepção.

— Bem, seu Adegesto...

— Adeugeusto...

— Seu amigo não está mais na delegacia?

— Grauças a Deus, nãu.

— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, esse seu amigo: Souto ou Solto?

— Orlaundo...

— Mas o senhor disse à minha colega, ainda há pouco, que seu amigo Souto foi...

— Nãu, nãu diusse. Fui bem clauro com eula. Faulei o seuguinte: Que o meu aumiugo Orlaundo... De ounde eussa criatutura tirou eusse taul de Souto?

— O que o senhor falou, afinal, para minha sócia?

— Que meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas agoura nãu estáu mais.

— Mais o quê?

— Na deleugaucia, com o doutour deuleugaudo.

— Então ele foi realmente solto?

— Fuoi. Diaunte diusso eu vim auté auqui agraudecer, pois nãu vuou mais preucisar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo alguma coisa coum reulaução a hounourários.

— Tudo bem, o prezado não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou pra lá de confuso. Desculpe a insistência. Seu amigo é o Souto?

— Nãu, doutor. Pour tuudo quaunto é mais saugraudo.

— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender. O Souto foi preso e agora está solto?

— Souto e Soulto nuunca estiveuram preusos, doutor. Preuso estauva o Orlaundo...

Risos.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira?

— Nãu senhour. Clauro que nãu.

— Então?

—O Orlaundo, como diusse, está souto, Enteunde o que diugo? Eule, augoura, eustá soulto.

O advogado, impensadamente, resolve brincar com o cidadão. Fala, ou melhor, arremeda, de forma grotesca.

— “Iustu nus leuva a councluir que eule reualmente nãu está maius preuso?”.

O sujeito se enfurece. Dá um tapa na mesa. Por pouco não derruba o restante do café:

— O senhour pour aucauso reusoulveu tiurar saurro da miunha caura e me gouzar?

— De forma alguma.

O cidadão se levanta, muito nervoso, passa a mão no chapéu ensebado, vira as costas e sai da sala.

Fontes:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011
Imagem = www,folhauniversal.com.br

Roberto Saturnino Braga (O Mistério da Literatura)

Libreria Fogola Pisa (facebook)
O mistério está na origem, nas primeiras formas e manifestações; é preciso levar a sonda até lá, naqueles tempos tão distantes que ainda não eram tempos: como apareceu? É uma cogitação que há muito me persegue e me interessa. As ninfas do “Trata-se de Ficção” reacenderam-na dentro de mim.

O primeiro espanto do homem foi o do cosmos; o meu, entretanto, sempre foi mais o da Terra com os seus seres, o mistério da vida, a Criação, o desdobrar das tentativas da matéria em se acasalar e se fazer vida, por bilhões de ano, atrações e acoplamentos entre os corpúsculos primitivos, foi seguindo e seguindo o procersso persistentemente, milagrosamente, obedecendo às leis do amor primordial, falhando aqui e recomeçando acolá, de filogênese em filogênese, até produzir grandes seres, animais comunitários, necessariamente providos do instinto da comunicação e, por fim, chegar ao ômega, o ser especial que levou este instinto às últimas conseqüências, e falou, conseguiu, aprendeu, e desde então precisa falar, tem necessidade, para dizer aos outros sobre o fazer, sobre o alertar, sobre o amar, e para dizer até pelo dizer, para ligar, pelo instinto da ligação comunal. O mesmo instinto fez os desenhos e as maravilhosas pinturas das cavernas, fez a dança e os cantos tribais, fez as primeiras flautas doces, as primeiras expressões artísticas da comunhão humana. Mas ainda não a literatura, que veio depois, muito depois.

Uns vinte mil anos depois, ou mais, veio a escrita e, com ela, o escriba, o que fazia os registros, para o controle e para a história, não era um escritor, era um computador, embora humano. No museu do Cairo há uma escultura maravilhosa, representando um escriba sentado, com sua tabuinha e seu estilete na mão, que interrompe a escrita e olha para você com olhos vivos e inteligentes. Profundamente humano.

Os escribas registraram fatos históricos, epopéias, preceitos religiosos, fizeram a primeira literatura, mas não eram ainda escritores. Ainda hoje há escribas, cada vez mais, redigem notícias, relatórios, ensinamentos, há os que procuram até fazê-lo com arte. Os primeiros escribas eram mais toscos, as palavras de que dispunham ainda eram poucas, não havia amplitude na escolha, não podia haver a busca cuidadosa, a arte da palavra. Talvez os aedos, pouco depois, os da poesia oral, que buscavam e criavam palavras para a rima, para facultar a memória, talvez os aedos, que não escreviam, tivessem sido os primeiros escritores.

Quem foram os primeiros escritores? Os poetas gregos? Os criadores do Teatro? Ou, antes deles, os salmistas judeus? Não sei. Mas foi por aí que se iniciou a arte da literatura, a escrita literária. Os salmos continham mais filosofia, os poemas e o teatro mais arte, eram mais o belo por si mesmo. Em ambos, entretanto, já estava presente o ofício da literatura, o empenho da procura da melhor palavra e da composição mais bela.

Curiosa, neste processo de investigação, é a grande polêmica da Grécia Clássica entre os filósofos, que buscavam a verdade, e os sofistas, que ensinavam a melhor palavra para o orador nas assembléias. Platão e Aristóteles, que legaram monumentos escritos de sabedoria, também escolhiam palavras; era uma escolha, entretanto, dirigida à razão, ao reforço do argumento, enquanto Górgias e Protágoras, sofistas, que não escreviam, escolhiam as palavras com o intento da emoção, do sentimento. Acho que fizeram mais literatura.

Então a literatura tem mais esta dimensão: ir ao encontro da emoção humana, do sentimento, não apenas do saber e da razão. Este foi o mister de todos os poetas em todos os tempos. E os poetas foram os primeiros e os únicos artistas da literatura por séculos e séculos, dos gregos aos romanos, dos trovadores aos cancioneiros da idade média, até o renascimento; o teatro era também poesia, a palavra trabalhada com talento e arte para inflamar a emoção e os sentimentos entre os membros da comunidade humana. Até a chegada do romance, num tempo já bem recente, quando o escritor descobriu um mundo novo: a invenção da vida, pura, na palavra e no papel, sem atores.

Teve esta descoberta algo a ver com a invenção de Gutemberg? Claro que sim: o livro levou a arte do escritor a um oceano de emoções e de leitores, abriu a porta da profissionalização, da dedicação exclusiva capaz de apurar a arte. A tecnologia é decisiva na civilização. O teatro, antes, já inventava a vida e ativava paixões, mas o alcance era limitado. O romance, de verdade, abriu um novo e vasto mundo, sem limites, que podia ser criado em cima de uma escrivaninha.

Depois de uns duzentos anos de belas e artísticas narrativas de vidas inventadas, os romancistas começaram a sentir um certo esgotamento tedioso dos relatos ficcionistas, explorados já os estilos mais diversos, contando de trás para na frente, de frente para trás, alternando os sentidos do tempo, saltando de gerações a gerações, falando de regionalismos, criando linguagens próprias, ingressando na expressão do fluxo de pensamentos dos personagens, cuja ligação com a realidade não fica explícita para o leitor, construindo assim romances de difícil compreensão, sentindo, enfim, a saturação comum a todas as formas de arte que acabaram adotando o lema da afirmação da heresia pela heresia para fugir ao tédio.

Mas não quero resvalar para considerações de teoria literária, que não domino nem precariamente. Quero insistir na busca dos fatores que, no meu sentimento, levam o escritor a escrever. No fundo, bem no fundo, o ancestral instinto da comunicação, a necessidade de se comunicar com o semelhante, pela voz, primordialmente, a velha comunicação oral. Há pessoas, entretanto, que têm um psiquismo especial e experimentam certa dificuldade de falar com os outros; essas pessoas preferem dizer as coisas escrevendo, dizendo de dentro para dentro. Ao que parece, a maioria dos escritores é de pessoas recolhidas, que criam suas invenções no silêncio e na reclusão. Por isso se aceita que o ofício de escrever requer este retraimento. Mas dá também para perguntar: o escritor precisa do recolhimento para escrever ou o escritor escreve porque é uma pessoa recolhida?

De qualquer forma, sim, o primeiro impulso vem do instinto de comunicação próprio do ser comunitário, a necessidade do outro, da presença do outro, do reconhecimento do outro. Mas comunicar o quê? O artista da literatura não comunica notícias nem relatórios, mas fundamentalmente comunica o próprio ser, o que ele foi, o que é, o que poderia ter sido, o que gostaria de ter sido, coloca tudo isso em vidas inventadas, na forma trabalhada das letras. Quem não tem facilidade no falar corrente, e não sente o empuxo interior da escrita, a capacidade e a precisão de escrever, acaba por procurar um psicanalista. E por isso mesmo o sentido da literatura é o sentido do ser, tão procurado na filosofia, o próprio sentido da vida que o homem busca incessantemente, do nascer ao morrer, às vezes pensa que o encontra e logo adiante torna a perdê-lo.

O segundo movimento vem da chamada veia artística. Cada um finda por perceber dentro de si um certo talento, uma certa habilidade natural para o fazer determinadas coisas, desempenhar com facilidade maior algum tipo de atividade, e o escritor, como o pintor e o músico, descobre a sua arte no correr do tempo. Acaba sabendo que sabe escrever. E cada um gosta mais de fazer aquilo que faz melhor, é uma preferência natural. O escritor gosta de escrever, ainda que o trabalho da escrita lhe seja penoso na busca do melhor jeito de dizer, da melhor construção do texto e das frases, na escolha da melhor palavra. É penoso e deleitoso, é assim. E é necessário para ele.

Há um outro mistério particular aqui. Até hoje, o escritor foi um autodidata; não teve mestres como o pintor e o músico; leu muito e encontrou inspirações em alguns autores, nunca teve aulas com eles. Por quê? Hoje começam a surgir escolas de criação literária, acho um fato muito auspicioso e me pergunto por que só hoje?

Mas penso que há ainda um terceiro vetor na constituição deste escritor de que estamos falando. O articulista, o político, o sociólogo, o filósofo, o pensador, o professor também, possuem uma veia de talento para escrever, e capricham na composição dos seus textos com a arte que desenvolvem. Há uma diferença, entretanto, fundamental, no ofício do escritor que estamos querendo aqui caracterizar: é que todos aqueles trabalham com o entendimento, com a clareza e a lógica dos seus textos, enquanto o nosso escritor busca essencialmente o sentimento, a emoção do ser humano leitor, e dele mesmo, escritor. Já me referi a isso anteriormente; insisto aqui porque vejo neste enfoque uma das características essenciais da literatura.

Enfim, sei que a figura do escritor tem muitas outras dimensões; por mais que se queira precisar e ressaltar nele qualidades essenciais, há muitas outras, saltam à vista muitas outras nesta realidade que é humana e ao mesmo tempo transcendental. Sabendo disso, paro por aqui, fecho este texto que não é literário como o do Ramiro, é investigativo, especulativo, sei lá, isto é, paro hoje, e continuo especulando sobre o tema pela vida a fora, pelo resto que me resta.

Fonte:
http://www.saturninobraga.com.br/artigo_2_12.html

Marilda Confortin (Notas & Letras, em Curitiba)


segunda-feira, 1 de abril de 2013

Trova 258 - Roberto Pinheiro Acruche (São Francisco de Itabapoana/RJ)


Fred Goés (Literatura e Vida na Cidade)

Libreria Fogola Pisa (facebook)
[...]
 Quando ensinamos aos nossos alunos as estratégias de análise de um texto, um dos principais aspectos salientados por nós é o espaço onde se dão os acontecimentos na narrativa. Esse espaço, passamos a nomear como ambiente, sempre que ele ganha carga significativa, ou seja, é importante no desenvolvimento do enredo e de fundamental expressividade para sua compreensão. A partir dos finais do século XVIII e, de forma superlativa, no século XIX, com o fortalecimento da burguesia e o aumento populacional urbano, a cidade passa a ser a grande moldura do enredo literário e, mais que isso, torna-se o mais fiel retrato de um certo tipo de vida que se estabelece em diferentes momentos da história das cidades e consequentemente de suas populações.

 Lembro-me com emocionada saudade das aulas do Prof. José Carlos Lisboa em um dos últimos cursos por ele ministrado sobre Federico Garcia Lorca. O Prof. Lisboa, do alto dos seus oitenta e muitos anos, um dos maiores especialistas em estudos hispânicos, descrevia com tal precisão a Andaluzia lorquiana que, quando lá estive, anos depois, me sentia guiado por ele ao visitar Granada. As sensações, o clima, as percepções expressas pelo dramaturgo e poeta espanhol e transmitidas pelo mineiro Lisboa se davam com tanta intensidade que éramos física e espiritualmente transportados para o universo gitano de Lorca. Para nossa grande surpresa, ficamos perplexos quando, no final do curso, com a simplicidade que caracteriza os seres superiores, os sábios, os verdadeiros mestres, ele confessou jamais ter visitado a Andaluzia. Ele a conhecia, na palma da mão, pelos olhos de Garcia Lorca.

 Uma das formas literárias que melhor revela a cidade e os diferentes grupos sociais que nela vivem é, sem dúvida, a crônica.

 A crônica é, ao mesmo tempo, a mais polêmica e, de acordo com parte da crítica, a mais brasileira das expressões literárias. A maioria esmagadora dos nossos escritores (poetas e prosadores) se exercitou, nas folhas cotidianas, como cronista. Meio jornalismo, meio história, meio ficção, meio poesia, ela é um profícuo espaço de experimentação criativa. Talvez por seu caráter camaleônico, se adaptando às diferentes mídias (jornal, rádio, televisão, novas tecnologias), não tenha passado desapercebida de nossos compositores populares. É mesmo possível, por meio das canções com este viés, como ocorre no texto narrativo, se reconstruir diferentes aspectos da vida brasileira (costumes sociais, momentos econômicos, acontecimentos históricos, fatos relevantes, etc).


 Sabemos que a musa maior desta forma literária é a cidade. Urbana pela própria natureza, a crônica nasce e se alimenta dos acontecimentos citadinos. No Brasil, por circunstâncias históricas de um lado (antiga capital da metrópole colonial, do império e da república), e do outro, por sua singular beleza, fonte inesgotável de inspiração poética, o Rio de Janeiro ocupa lugar central da nossa cronicidade. E não podemos nos furtar da observação de que este substantivo (cronicidade) incorpora e justapõe em sua formação os dois elementos próprios da crônica, o tempo (cronos , em grego, ??????) e a cidade.

 Quando sublinhamos o fato de ser o Rio de Janeiro a musa maior do gênero, não queremos dizer que outras cidades não tenham também sido merecedoras do olhar do cronista. São Luis, por exemplo, além da crônica literária de jornal, objeto da pesquisa de alguns mestres,[...] está tão presente nos versos dos sambas enredo, quanto a Bahia, a cidade da Bahia, espécie de Pasárgada do nosso cancioneiro. Mas também São Paulo tem, na figura de Adoniran Barbosa, na década de 1950, seu grande cronista musical. Ele transcreve para os versos da canção a fala estropiada, ítalo-caipira (o tal português macarrônico) do proletariado paulistano descendente de italianos. O compositor amplia, populariza o que Alcântara Machado propusera, ao retratar este segmento da sociedade em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). Adoniran, na música popular, tal qual Alcântara Machado e Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Juó Bananére,1892-1933), na literatura, reinventa situações tão poéticas, quanto patéticas vividas pelos “paulistalianos” do povo. O lirismo tragicômico ímpar se apresenta pleno em Saudosa Maloca, Tiro ao Álvaro, Trem das Onze, entre tantas outras canções.

 Mas nada e ninguém mereceram maior atenção que a capital fluminense quando o tema é crônica. Tomemos como ponto de partida da sistematização e da fixação deste gesto a presença de nossos escritores nos jornais de grande circulação. Desde meados do século XIX, militaram na crônica, dando-lhe feição e sotaque brasileiros, José de Alencar e, na sequência, Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, João do Rio e, posteriormente, os escritores brasileiros em peso (narradores, dramaturgos e poetas). Contemporaneamente, merece destaque a singular figura de Rubem Braga, o mestre dos mestres de gênero, que se notabilizou nas letras como o cronista por excelência.

 Nossos cronistas, os da imprensa ou os da canção, põem em foco o dia-a-dia, os fatos circunstanciais, as bugigangas poéticas da cidade, dando voz a ela. E antes que nos esqueçamos de mencionar, não só no cancioneiro tradicional se observa a narrativa da cidade pela lente da crônica. O que a rapaziada do rap, funk e hip-hop faz nada mais é que crônica, sendo que agora, nos é apresentada a vivência, o cotidiano das comunidades carentes, marginalizadas, periféricas que, até pouco tempo, não tinham a oportunidade de serem ouvidas. “Eu só quero ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, era, há poucos anos, o recado pacífico cantado por Claudinho e Bochecha. Da mesma forma, sem muitas vezes a pretensão de “cronicar”, participantes das redes sociais exercem esta atividade literária.

 Em verso ou em prosa, a cidade segue atraindo os olhares ora atentos, ora perplexos, ora aterrorizados, mas sempre apaixonados de quem faz a crônica.

 Quem melhor que Noel Rosa retratou o Rio de Janeiro da década de trinta do século passado? Se Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio são os que registram a cidade nas duas primeiras décadas do século XX, é Noel quem vai comentar a verticalização, o surgimento dos arranha-céus, o nascedouro da industrialização. É quem ouve o apito da fábrica de tecidos que ecoa entre as chaminés do progresso em Três Apitos.

 Foi por meio dessa percepção que a cidade é senhora plena da crônica e que nela, como em nenhum outro lugar, a língua apresenta a potência das suas variantes e dos seus falares que construímos, em equipe, o livro Vozes da Cidade: língua portuguesa em textos e conversas.

 [...]

 Notícias e reportagens também revelam o cotidiano urbano, suas múltiplas faces e, claro, suas variedades de vozes. Mas de forma mais direta, objetiva, com foco nos fatos e nos dados, sem a dimensão ficcional da crônica. E assim, em mais um exemplo das muitas possibilidades de uma língua, crônicas e textos jornalísticos fazem ecoar as vozes da cidade e do mundo do trabalho. A escolha dessa diversidade de textos baseou-se na certeza de que o estudo da língua portuguesa deve incluir o conhecimento de todas as variantes e também de que todas as pessoas, independentemente da classe social ou situação cultural, são igualmente competentes para falar a sua língua materna.

 A partir desses pressupostos, é possível afirmar que o aprendizado do português se dá na compreensão da experiência viva e dinâmica dessa língua e que o desempenho linguístico melhora na medida em que o usuário da língua ganha intimidade com os recursos que ela oferece e confiança na capacidade de usá-los de forma adequada.

 Nossa pátria é nossa língua, disse o poeta, e a morada de sua diversidade está especialmente no espaço urbano, na cidade. [...]

 (Fragmento da palestra Literatura e Vida na Cidade, proferida pelo professor e escritor Fred Góes, na UEMA, em 02/04/2012)

Fonte:
http://www.guesaerrante.com.br/2012/9/27/literatura-e-vida-na-cidade-4359.htm

Fred Góes (1948)

Frederico Góes, mais conhecido como Fred Góes, nasceu no Rio de Janeiro, em 1948, num domingo de carnaval.

Iniciou sua trajetória profissional como repórter na Editora Bloch. Foi assessor de relações internacionais da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Chefiou o Departamento de Expansão da Embrafilme. Foi roteirista da TVE, redator e apresentador do programa “Tirando de Letra” da Rádio MEC.

Formado em Letras, é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ e Doutor em Teoria da Literatura, pela Faculdade de Letras da UFRJ, onde ensina no Departamento de Ciência da Literatura. Fez pós-doutoramento na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, nos EUA.

Paralelamente à atividade acadêmica, Fred Góes é compositor/letrista e pesquisador de música popular. É também ensaísta crítico e tem doze livros publicados nas áreas de literatura e música popular. Foi membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro por dez anos. Hoje, além de professor, coordena o Dicionário Cravo Albin de Música Popular e é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e (CNPq).

É professor da Faculdade de Letras/UFRJ, onde lidera, com apoio do CNPq, o Grupo Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos. Realizou a pesquisa de pós-doutoramento na universidade de Tulane, em Nova Orleans, Estados Unidos da América, com bolsa da Fundação Rockefeller. É compositor, letrista, contista e ensaísta. Tem músicas gravadas por inúmeros artistas. Entre os dez livros de sua autoria, destacam-se O país do carnaval elétrico (1982), 50 anos de trio (2000) e Antes do furacão: o MardiGras de um folião brasileiro em Nova Orleans (2008). Organizou a antologia Brasil, mostra a sua máscara (2007), que reúne contos, crônicas, letras de música e poemas sobre o carnaval brasileiro. O poço de Campaná é seu primeiro livro de ficção.

Fonte:
http://www.guesaerrante.com.br/2012/9/27/literatura-e-vida-na-cidade-4359.htm

Daisy Melo (Uma Amizade Tão Delicada...)

Seus dias eram sempre os mesmos. Acordava na mesma hora quando o sol ainda não nascera e tampouco a lua caíra do horizonte. Tomava o café, saía de casa às sete e até pegava a tal condução que era dirigida pelo mesmo motorista. Trabalhava sempre igual, mecanicamente, todos os dias, até que chegava a hora de ir embora. Para fazer o quê? Comer o jantar congelado, assistir aquela novela de sempre que de nova só tinha o título, o programa de entrevista que usava a mesma fórmula tarimbada de sucesso e, finalmente, dormir na sua cama, a mesma, há tanto tempo.

Mas ela tinha que sair do trabalho e voltar para casa, então, descia a rua, olhando as casas, considerando se naqueles jardins teria nascido alguma flor que, então, faria sua vida ter um quê de diferença.

Naquele dia, enquanto contava as rosas do jardim da casa amarela, aquela com o pé direito alto e as janelas cremes sempre cerradas, a mulher o encontrou parado na esquina em frente à meia água mirrada onde plantada há uma romãzeira em flor.

Ele observava a mulher com nítido interesse, com uma certa curiosidade nos olhos castanhos. Ela tentou não demonstrar, mas sobressaltou-se. Não podia revelar que estava com medo. Sempre soube que eles percebem quando estamos com medo e aí atacam. Mas o coração batia descompassado e, apesar de mudo dentro do peito, ouvia-o nas têmporas. Respirou fundo, passou com ar de quem não estava nem aí, enquanto ele permaneceu sentado. Apenas os olhos a seguiam — será que percebeu um ar irônico?— e, quando a mulher sentiu-se segura, deu uma olhadela de soslaio e ele continuava lá, parado. Um Vira-latas com focinho e pernas amarelas, dorso e cauda negra, peluda, parecendo um ponto de interrogação. Tinha um porte médio e um certo jeitão de cachorro que sabe o que quer da vida.

A mulher esqueceu-se do acontecido durante toda a noite e durante o dia seguinte, até que ao sair novamente do trabalho, topou com ele, de novo, na mesma esquina. Olhava-a curioso, com a cauda movimentando-se lentamente de um lado para o outro. Fingindo não sentir medo, e tentando não correr, passou por ele tesa e, dessa vez o cachorro moveu-se e pôs-se a segui-la. “Ai, droga! O que será que ele quer de mim? Não tenho comida e nem ao menos gosto de cachorros!” Parecendo ler seus pensamentos, ele estancou com um ar decepcionado. E ficou ali até que, a mulher, um pouco surpresa, virou a esquina com pressa. Mas, no dia seguinte...

Lá estava ele parado no mesmo lugar! Ora, ela começou a ficar intrigada quando o cachorro a seguiu novamente, porém guardando uma distância respeitosa, tentando com certeza, não assustá-la. “Acho que estou ficando louca, pensou a mulher, como ele pode estar tentando não me assustar?”

E assim foi no dia seguinte e no outro e nos outros que se seguiram. O cachorro esperava a mulher na esquina. Ela não afagava sua cabeça e ele não abanava a cauda. Apenas a seguia, até que, ao chegar no ponto do ônibus, ele a esperava subir na condução que a levaria para casa.

Era um cachorro diferente, concluiu a mulher. Nada pedia. Nem comida, nem afagos. Queria somente a sua companhia naquele breve trajeto. Ia satisfeito, caminhando ao seu lado e só retornava quando tinha certeza que ela havia entrado no ônibus. Uma vez a mulher saltou um ponto adiante e voltou correndo para descobrir aonde o cachorro ia. E encontrou-o parado no mesmo lugar. Não se mexera. Como se soubesse de antemão as suas intenções. Muito estranho... sentia-se como em um episódio do além da imaginação. Ou será que é pegadinha? É pegadinha, só pode ser, concordou olhando discretamente para os lados para ver se encontrava a câmera. Ela nunca achou a câmera escondida...mas o cachorro, esse estava lá, sempre, todos os dias, na esquina, em frente a romãzeira que perdeu as flores e ganhou frutos. E seus olhos brilhavam quando via a mulher. Era como uma espécie de dever: esperar e proteger. Porque é assim que ela se sentia: protegida. Mas por quê? Construía mil fantasias: era um extraterrestre. Estava numa missão importante: estudar os terráqueos, e entender como podiam sobreviver com suas vidas solitárias, com suas mesmices e desilusões. Só podia ser...

O importante é que a mulher passou a colorir seus dias com um tom outro que não o cinza. E quando pensava no cachorro, com seu jeito manso e nobre de cachorro velho e sábio, com aquele sorriso discreto no focinho repleto de pêlos brancos, a mulher iluminava-se, seu coração pulsava de um jeito diferente e ela arriscava-se a trautear uma melodia há muito esquecida que a fazia lembrar de pique, de roda, amarelinha e cama de gatos.

E a romãzeira perdeu os frutos. Suas sementes serviram para fazer amuletos de boa sorte no dia de Reis e o cachorro estava sempre lá. E esperava.

Fontes:
Projeto releituras
Imagem = http://mundodosgatinhosgatos.blogspot.com

Jorge de Andrade (A Moratória)

O texto teatral A Moratória, de Jorge Andrade, aborda a ruína de uma família proprietária de cafezais no interior do estado de São Paulo, em decorrência da crise financeira e da produção cafeeira, por volta dos anos de trânsito da década de 1920 para a 1930. Escrita em 1954, encenada pela primeira vez no ano seguinte, a peça emerge como um dos “fantasmas” da infância do autor.

A obra constitui um ato de reflexão sobre a realidade paulista em seus aspectos sociais, morais e psicológicos. O tema da decadência dos latifúndios cafeeiro representa o fim de toda uma classe patriarcal e semifeudal de aristocratas sucumbidos à crise econômica de 1929 e a nova ordem social imposta por Vargas em 1930. Ao mesmo tempo, focaliza em seu interior o conflito de gerações, o conflito de valores tradicionais em uma sociedade que vive a rápida mudança provocada pelo êxodo rural, pelo dilatamento das cidades e pelas mudanças das elites.

Centralizando o conflito está o velho Quim, um coronel à antiga, que vê os filhos e a mulher minguarem, saudosos dos velhos tempos e sem perspectivas de futuro. Ambientada em dois momentos - os anos de 1929 e 1932, antes e depois do desastre econômico, a estrutura dramatúrgica intercala cenas na casa da fazenda e cenas na pequena casa da cidade, onde a família passa a viver dos modestos ganhos dos filhos, especialmente de Lucília, que se torna costureira. Esse recurso permite ao autor apresentar o verso e o reverso das situações, justificando comportamentos e projetando expectativas. A alternância entre os dois momentos, mostrados simultaneamente, constitui-se no trunfo maior da arquitetura cênica de A Moratória.

Os diálogos são curtos, diretos, ora carregados de tensão, revolta, ora de ternura. Há poucos monólogos um pouco mais longos. A linguagem simples, coloquial justifica-se pelas cenas familiares reproduzidas.

ESPAÇO

A peça ocorre em dois planos: em um, uma sala espaçosa de uma antiga e tradicional fazenda de café; em outro, uma sala modesta mobiliada onde se vê, em primeiro plano, uma máquina de costura. É através desses dois cenários que o autor consegue fazer o presente e o passado próximo. O espectador, em um mesmo instante, através da mudança de planos, entra em contato com duas realidades distintas, ligada somente pelas personagens. Para efeito do resultado, a estória será narrada linearmente.

O espaço está associado a um passado heróico, aos antepassados, às famílias fundadoras. Joaquim rememora:

[...] Era um lugar virgem! Era um sertão virgem! A única maneira de se ganhar dinheiro era fazer queijos. Imagine, Lucília, enchiam de queijos um carro de bois e iam vender na cidade mais próxima, a quase duzentos quilômetros! Na volta traziam sal, ferramentas, tudo que era preciso na fazenda. Foram eles que, mais tarde, cederam as terras para fundar esta cidade. (1º Ato, p. 124).

Mas é a fazenda que alimenta os sonhos do cafeicultor: Nós vamos voltar para lá... (1º Ato, p. 130). E, às vezes, de sua filha Lucília: Replantaremos o nosso jardim! (1º Ato, p. 146). Morando na cidade, o ex-fazendeiro compra sementes de dálias (aliás, falido, troca um prendedor de gravata pelas sementes), cultiva um pé de jabuticabeira, a árvore tão presente na obra de Jorge Andrade, em um forte simbolismo das raízes.

A cidade é o lugar em que fica o banco para o qual Joaquim deve. É o lugar, também, onde trabalha Marcelo, seu filho, no frigorífico dos ingleses. Matamos mil e quinhentos bois por dia, dona Helena! (1º Ato, p 133), se exibe o filho para a mãe, Helena. Mas a mãe estranha esta atividade: [...] já imaginou a convivência que ele [Marcelo] tem lá no frigorífico? (1º Ato, p. 133). O filho, no entanto, ama a cidade, que “nunca esteve tão divertida!”

Ante a crise, aflora o temor da perda do lugar pelo que ele significa. Meu marido, meus filhos nasceram aqui..., se desespera Helena (1ºAto, p. 146). E aduz:
Sem a fazenda ele [o marido] não será ninguém. Vai se sentir inútil. (2º Ato, p. 151).

Helena tenta achar uma solução, explicando à filha o que a terra representa:

Se seu tio arrematar a fazenda, o Quim poderá continuar, trabalhar, morrer em suas terras. Há homens que não sabem, não podem viverfora de seu meio. Seu pai sempre morou na fazenda. Para nós, o mundo se resume nisto. Toda a nossa vida está aqui. (2º Ato, p. 151).

Mas Joaquim não aceita esta posição humilhante. A propriedade da terra, ser o dono dela fala tão mais forte que não entende como o seu endividamento poderia levá-lo à perda:

Meus direitos sobre essas terras não dependem de dívidas. Nasci e fui criado aqui. Aqui nasceram meus filhos. Aqui viveram meus pais. Isto é muito mais do que uma simples propriedade. É meu sangue! Não podem me fazer isto! (2º Ato, p. 166).

Várias leituras podem ser feitas deste trecho. Da manutenção de um status, a uma percepção de quem se considera com direito adquirido intocável e imutável até a incapacidade do ex-cafeicultor de compreender como a posição da sua classe havia sofrido um forte deslocamento, perdendo a posição na pirâmide social para outros segmentos que estão emergindo no mundo urbano. Como não compreende, Joaquim desdenha, desqualifica: [...] Uma gentinha, que não sei de onde veio, tomou conta de tudo! [...] Vivíamos muito bem sem elas. Gentinha! (2º Ato, p. 177).

TEMPO

Muitas marcas, ao longo do texto, apontam o confronto de tempos. Assim, no 1° Ato, Lucília, a filha do dono das terras de café, costura com pressa porque “meu serviço está atrasado”, enquanto o pai – Joaquim – responde: “Cada coisa em sua hora”, logo replicado pela filha: “Para quem tem muito tempo”. Ritmos de tempo diferenciados, entre a pressa e um tempo mais lento, encarnado em duas gerações diferentes.

O pai reafirma o seu tempo, quer prolongá-lo: “Pensa que sou igual a esses mocinhos de hoje?” “O médico disse que ainda tenho cem anos de vida”. Distingue-o
do tempo presente, por uma qualidade em detrimento deste: “Quando meus antepassados vieram de Pedreira das Almas para aqui, ainda não existia nada. Nem
gente desta espécie”. Mas as mudanças estão acontecendo. E para pior, como neste trecho representacional, em que os personagens se posicionam de forma diferente:

HELENA (mulher de Joaquim): Não suporto mais essa incerteza (1º Ato, p. 127), expressando a dificuldade de entender o que se passa;

ELVIRA (a irmã de Joaquim): Você não pode imaginar a situação em que estamos; [dirigindo-se a Helena (sua cunhada)]: A situação não é boa [...] São muito graves os acontecimentos. Vamos atravessar uma grande crise (1º Ato, p. 144), anunciando/enunciando o torvelinho que virá;

LUCÍLIA: Acontece que precisamos encarar a situação de frente, não há outra saída. [...] Aos poucos a situação melhora (1º Ato, p. 140), expressa o enfrentamento da crise e a esperança que as coisas mudem;

JOAQUIM: Ainda somos o que fomos (1º Ato, p. 141), manifesta a permanência, ou a vontade de, não acreditando que as coisas mudem.

As marcas textuais sinalizam, sob a forma de diálogos, um tempo de crise. Na parte final do 1º Ato, no diálogo entre as quatro personagens acima referidas, se
explicita a historicidade da crise: a queda dos preços do café, a não continuidade da política de defesa do produto pelo Governo “do Ditador”, o endividamento dos cafeicultores junto ao “Banco” (assim mesmo, grafado com Maiúscula, significativamente).

Presentes diversos tempos e diversos espaços na narrativa, a sua inter-relação é construída de forma original, não linear, com a predominância de uma temporalidade ou de outra em cada cena, ora o presente ora o passado, porém, com o “atravessamento” de um pelo outro. Em quase todas elas, há um contraponto com a outra temporalidade, não predominante. Em quase todas as cenas, há um fio que junge os dois tempos e os entrelaça.

O movimento entre os tempos, quando parte do presente como predominante, recua para um passado bem próximo e vai deslizando para um passado cada vez mais distante [do mais presente ao mais passado]. Quando o passado é o predominante, o tempo caminha cada vez mais para o futuro [do mais passado ao mais presente]. Assim, o binômio presente-passado foi estruturado de forma vertical e horizontal. A vertical consiste na leitura de um só tempo (presente ou passado) de cena para cena, apontando esse recuo ou esse avanço, conforme se enfoque o presente ou o passado. A horizontal consiste na leitura entre presente-passado e vice-versa no âmbito da mesma cena, apontando como o intervalo entre os tempos vai se estreitando.

SÍNTESE DO MOVIMENTO DOS TEMPOS

1º ATO - No 1º Ato, Jorge Andrade coloca todos os personagens do drama: Joaquim, Helena, Lucília, Marcelo, Elvira, e dois ausentes, mas referenciados – Augusto e Arlindo – que, não casualmente, serão as duas figuras que, de modos diferenciados, se relacionam com a ruína de Joaquim. Este parte da trama articula o tempo e o espaço com as seguintes marcas: 1ª cena: o processo de Joaquim no presente – Helena rezando na fazenda; 2ª cena: a religiosidade de Helena – a crise e a dívida; 3ª cena: Marcelo e seu trabalho, o trabalho de Lucília – o recado de Helena a Elvira; 4ª cena: A preguiça de Marcelo e o recado para Elvira, a indagação por Olímpio; 5ª cena: o casamento irrealizado de Lucila – a conversa do pai com Marcelo; 6ª cena: a conversa de Joaquim com Marcelo sobre o trabalho e a notícia do namoro de Lucília – Joaquim lendo jornais; 7ª cena: crítica à política, ao “Ditador” e ao PRP - Elvira chega à fazenda; 8ª cena: a crise relatada por Elvira – a moratória.

2º ATO
- o 2º Ato, tempo e espaço são marcados por alguns acontecimentos preponderantes: 1ª cena: a alegria de Joaquim, esperançoso – o desânimo de Helena, desesperançada; 2ª cena: continua a situação da cena anterior; 3ª cena: a crise e a situação de Joaquim se perder a fazenda – a situação de Joaquim diante da irmã; 4ª cena: notícia da perda da fazenda e a relação com o casamento de Lucília – a expectativa da comemoração e o conflito com Marcelo; 5ª cena: o duro conflito entre Joaquim e Marcelo, com a ordem para sair de casa – simultaneamente, a ordem para Olímpio sair da casa de Joaquim; 6ª cena: a fuga de Arlindo, a briga com Augusto e a esperança de Joaquim – a desesperança de Lucília; 7ª cena: a sentença do Tribunal indeferindo o pedido de nulidade – o começo do trabalho de Lucília como costureira.

3º ATO - No 3º Ato, as marcações entre passado e presente deram relevo a: 1ª cena: a consumação da perda da fazenda e as evocações do lugar – a possibilidade de Lucília parar de trabalhar; 2ª cena: a perda do processo por Joaquim e o conflito com Elvira – Joaquim com o galho da jabuticabeira; 3ª cena: preparativos para a saída da fazenda – a expectativa de dar a notícia sobre o processo a Joaquim; 4ª cena: o desfecho da narrativa, deixando a dúvida se Joaquim sabe – a evocação da fazenda.

PERSONAGENS

Joaquim - Protagonista da peça. Aparentemente autoritário, estúpido, prepotente, é, na verdadem um personagem lírico, que só mantém suas atitudes em função do papel que representa - coronel e pai. É capaz de gestos ternos, como arrumar os figurinos da filha, catar alfinetes e falar com carinho da terra. Tudo gira em torno dele; os outros são secundários.

Helena
- Esposa de Joaquim. Mulher prática, acostumada à materialidade e à ceitação ou submissão, encara as mudanças da fortuna de forma mais natural. Compartilha o saudosismo do marido em relação ao passado, mas também têm consciência de que viveram afastados e não evoluíram.

Marcelo - Nunca se interessara pela fazenda. Não permanece em nenhum emprego e ainda gasta o dinheiro suado na boemia, explorando a mãe. É o filho desesperançado, inadaptado, aquele que vive uma outra realidade que não a do pai, aquele que é capaz de proferir palavras rudes e no entanto, verdadeiras, apontando a terrível realidade: 'O senhor finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que nosso mundo está irremediavelmente destruído... As regras para viver são outras, regras que não compreendemos nem aceitamos... tudo agora é diferente, tudo mudou. Só nós é que não. Estamos aqui morrendo lentamente...'

Lucília - Realista diante dos reveses da sorte, trabalha para sustentar a família. A esta devotada, adia o casamento e ataca a tia por não ter ajudado o pai.

Elvira
- Tia de Lucília e Marcelo, irmã de Joaquim. Pouco aparece, mas representa a aristocracia que faz pequenas caridades humilhantes e se nega a ajudar o irmão na necessidade.

Olímpio
- Noivo de Lucília, é bacharel. Conseguiu cortar o cordão umbilicar da terra, saiu, viajou, e vê a situação com objetividade e senso crítico.

RESUMO

Quim [Joaquim] é fazendeiro de café, afeiçoado a terra, mas acaba sendo levado à ruína, por maus negócios. Tem setenta anos e representa o orgulho de um nome, já sem encontrar respaldo entre os cidadãos de uma cidade que está transformada com a presença de elementos estranhos à casta tradicional. Diz Joaquim: 'Não sei como, minha filha, mas de repente, senti como se estivesse só naquela cidade. Parecia que todas as portas estavam fechadas para mim. Eu não conhecia mais ninguém. Percebia que atrás das janelas todos me olhavam e... ninguém... ninguém...' Mergulhado em sua solidão, nutrido pela esperança de recuperação, só encontra amparo na família. A mulher Helena é a mais corajosa, soube enfrentar melhor a situação, e a filha Lucília tornou-se o arrimo da família, agora vivendo dos proventos de sua costura, uma vez que o irmão, Marcelo, não se adapta a nenhum emprego.

Fora da família estão Olímpio, advogado, filho do rival político de Quim, mas apaixonado Poe Lucília. Elvira, irmã de Quim, mulher rica e 'caridosa' que entrega café e outras coisas que vêm da fazenda em troca das costuras 'grátis' da sobrinha. Não tem filhos e vive envolvida com a assistência dada a um asilo. Nesse pequeno universo, as personagens vão sendo colocadas à mercê de um destino cruel. Quim, em torno do qual a história gira, alimenta uma esperança de retornar à fazenda, que foi à praça, para saldar as dívidas. A crise do café não permitiu a venda, a florada não foi boa; a chuva tardou, o governo não fixou um teto mínimo para o café, não há dinheiro. Só resta a esperança de poder recuperar a fazenda, a esperança de uma moratória que todos sabem não vir.

Lucília é filha solteirona que vê seu casamento com Olímpio frustrado pelo autoritarismo paterno. Não se entrega aos sonhos e às esperanças do pai, que acha poder reaver a fazenda. É ela que, com força e convicção, recupera a dignidade da família, costurando furiosamente. É ela que procura lutar pela realidade bruta, protegendo o pai contra as intempéries:

Se a senhora [Elvira] merecesse respeito, teria tido um pouco de amor por seu irmão, piedade ao menos. Gostaria que tivesse assistido à chegada deles, quando vieram da fazenda. Só aí poderia compreender até que ponto sofreram! Com o relógio, os quadros e esse... esse galho de jabuticabeira nas mãos... pareciam duas crianças assustadas, com medo de serem repreendidas. Através de cada gesto, de cada olhar, havia um pedido de perdão, como se eu... eu pudesse censurá-los em alguma coisa. Egoísta! A senhora é uma mulher má. Papai é mesmo de boa-fé, tem bom coração, caso contrário teria posto à senhora daqui para fora. O que eles sofreram, você e tio Augusto hão de pagar.

Com simplicidade, Jorge Andrade vai chegando ao clímax da peça, a hora da revelação e, conseqüentemente, a hora em que Joaquim se depara com a verdade / realidade, que nós, espectadores, conhecemos desde o primeiro momento. É pujante a dor de homem e a ela estamos irmanados pela indescritível capacidade da arte de fazer o tempo / espaço identificar-se com outro espaço / tempo do espectador.

Fonte:
Rosa Maria Godoy Silveira, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em História do Brasil - Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Profª Célia A. N. Passoni, Editora Núcleo | Itaú Cultural
Disponível em Passeiweb

Alexandre Dumas Filho (O Enforcado de La Piroche)

Alexandre Dumas Filho
 O leitor conhece La Piroche? Certamente não. Nem eu. Portanto, não se preocupe em que eu abuse de minha ciência, fazendo uma descrição. Sobretudo porque — digamos, cá entre nós — as descrições são muito aborrecidas. A menos que se trate das selvas virgens da América, como em James Fenimore Cooper, ou do Mississippi, como em Chateaubriand. Isto é, países que não estão ao alcance da mão, e para os quais a imaginação precisa da ajuda dos viajantes poetas, que os visitaram a fim de poder descrevê-los melhor em todos os detalhes.

 Em geral, as descrições não servem para grande coisa, e estão aí para que o leitor as salte. A literatura tem sobre a pintura, a escultura e a música a tríplice vantagem de poder fazer por si só um quadro com um epíteto, uma estátua com uma frase, uma melodia com uma página. Mas não está certo que abuse desse privilégio, e deve-se deixar a cada arte o seu campo específico.

 De minha parte, confesso que — salvo melhor opinião — quando me acho no caso de ter de descrever um país que todo mundo pode ter visto, ou que todo mundo pode ver, seja porque está próximo, seja porque não difere em muita coisa do nosso, prefiro deixar ao leitor o prazer de recordá-lo, se já o viu, ou de imaginá-lo, se ainda não o conhece. O leitor gosta que lhe deixemos sua parte criadora, na obra que está lendo. Isso o lisonjeia, e o faz acreditar que poderia fazer todo o resto. Lisonjear o leitor tem suas vantagens. Além disso, todo mundo sabe o que é o mar, uma planície, um bosque, um pôr-de-sol, um efeito da lua, uma tempestade. Para que tornar o texto pesado com essas coisas? Mais vale traçar a paisagem com uma só pincelada, como Rubens ou Delacroix — digo-o sem querer estabelecer qualquer tipo de comparação — e guardar o valor do nosso pincel para os personagens aos quais queremos dar vida.

 Por mais que empanturremos páginas inteiras com descrições, jamais daremos ao leitor uma impressão igual à que experimenta o mais ingênuo burguês passeando um belo dia de abril pelo bosque de Vincennes; ou ainda a mais ignorante donzela que, às onze horas da noite, atravessa as avenidas sombrias do bosque de Romainville ou do parque de Enghien, de mãos dadas com seu noivo.

 Todos temos no espírito e no coração uma galeria de paisagens com nossas recordações, que podem servir de fundo a todas as histórias do mundo. Basta dizer uma simples palavra — dia ou noite, inverno ou primavera, tempestade ou bom tempo, planície ou montanha — para que logo imaginemos a paisagem completa.

 Só direi, portanto, que quando começa esta história o sol atinge o meio-dia, estamos em maio, o caminho por onde vamos passar tem à direita umas plantações e à esquerda o mar. Isso basta para entender o que quero dizer: que os plantações são verdes, o mar murmura, o céu está azul, o sol está bem quente e a estrada coberta de poeira. Só preciso acrescentar que a estrada corre ao longo da costa normanda, de La Poterie a La Piroche; que La Piroche é uma aldeia que não conheço, mas deve ser como todas as outras; que a ação se desenrola em pleno século XV, justamente em 1448; que um dos dois homens é o pai do outro, ambos camponeses, e vão trotando em seus cavalos a uma velocidade até razoável, tendo em vista que carregam camponeses.

 — Será que chegaremos a tempo? — perguntava o filho.

 — Sim. Vai ser às duas horas, e pela posição do sol deve ser ainda meio-dia.

 — Não quero perder, pois tenho muita curiosidade em ver como é. Vão enforcá-lo com a armadura que roubou?

 — Exatamente.

 — Onde já se viu, o sujeito ter a idéia de roubar uma armadura!

 — O difícil não é ter a idéia...

 — É ter a armadura, eu bem sei — atalhou o filho, aderindo à brincadeira do pai. — E a armadura era boa?

 — Dizem que era magnífica, toda marchetada de ouro.

 — E o pegaram quando a levava?

 — Sim. É fácil compreender que uma armadura não concorda em ser roubada sem montar um escarcéu de todo tamanho. Ela não queria abandonar o dono.

 — Era de aço, e deveria ser muito pesada.

 — O ruído que ela produzia despertou o pessoal do castelo.

 — E logo puseram a mão no ladrão?

 — Não exatamente assim. Primeiro ficaram com medo.

 — Quem é roubado sempre sente medo dos ladrões. Se não fosse assim, os ladrões não levariam nenhuma vantagem.

 — E também as vítimas não sofreriam nenhuma emoção. Mas o caso é que o pessoal do castelo não se julgava diante de ladrões.

 — Diante de quem, então?

 — De um fantasma. O infeliz era muito forte, e carregava a armadura de pé, na frente do próprio corpo, mantendo a cintura dela na altura da própria cabeça. Quem via, na obscuridade, tinha a impressão de um gigante. Acrescente a isso o ruído surdo que o ladrão ia fazendo por detrás da ferragem, e entenderá o espanto dos criados. Por azar dele os criados foram acordar o senhor de La Piroche, que não tem medo de vivos nem de defuntos. Ele sozinho o prendeu, amarrou-lhe as mãos e pés e o entregou à sua própria justiça.

 — E a sua própria justiça...

 — Condenou-o a ser enforcado, revestido da armadura em questão.

 — Por que puseram esta cláusula na condenação?

 — Ah! Porque o senhor de La Piroche, além de ser um valoroso capitão, é um homem de bom senso, engenhoso, e quis transformar a execução num exemplo para os demais e em proveito para si próprio. Segundo dizem, aquilo que esteve em contato com um enforcado se transforma em talismã para seu dono, e ele quis o delinqüente dentro da armadura para poder recolhê-la depois, e assim contar com uma proteção a mais durante as próximas guerras.

 — Bem engenhoso, de fato. Mas é bom nos apressarmos, porque não quero perder o espetáculo.

 — Não vale a pena cansar os cavalos, pois vamos prosseguir viagem uma légua depois de La Piroche, e depois ainda voltar a La Poterie.

 — Sim, mas como só voltaremos à noite, nossos cavalos poderão descansar umas cinco ou seis horas.

 Pai e filho prosseguiram caminho conversando, e meia hora depois chegaram a La Piroche. Havia grande afluxo de gente na ampla praça diante do castelo, onde se havia erguido o patíbulo: uma preciosa forca de madeira muito boa, na verdade pouco alta, mas o suficiente para que a morte desenvolvesse o seu trabalho entre o solo e a extremidade da corda.

 O condenado podia contar com um lindo panorama para morrer, pois ficaria com o rosto voltado para o oceano. Seria um consolo, embora me pareça bem insuficiente. O mar estava azul, e de vez em quando deslizava pelo azul do céu uma nuvem branca, como um anjo que dirigisse a Deus uma prece.

 Os dois companheiros se aproximaram do patíbulo o quanto puderam, para não perder nenhum detalhe do que ia acontecer. Tinham a vantagem de estar montados, e podiam ver melhor sem se cansar. Não esperaram muito. Pouco antes das duas horas abriu-se a porta do castelo e apareceu o condenado, precedido da guarda e seguido do carrasco. Vinha com a armadura, montado de costas em um burro sem arreios. As mãos estavam amarradas às costas. A julgar pela postura, tendo em vista que o rosto estava encoberto pelo elmo, devia estar pouco à vontade, e fazendo as mais tristes reflexões.

 Levaram-no até o patíbulo, e começou a desenrolar-se ante o réu uma cena pouco agradável. O verdugo acabava de encostar a sua escada na forca, e o capelão lia o processo do alto de um estrado. O condenado não se movia, e espalhou-se o boato de que ele resolvera morrer antes de ser alçado à forca, para desgosto dos espectadores. Mandaram que ele apeasse do animal e se aproximasse do verdugo, mas ele continuou imóvel. Indecisão que compreendemos facilmente. Então o verdugo o agarrou pelos cotovelos, desceu-o do burro e o pôs de pé no chão. Ao dizer que o pôs de pé, não mentimos, mas mentiríamos se disséssemos que permaneceu assim, pois em dois minutos havia percorrido dois terços do alfabeto, o que na linguagem corrente quer dizer que em vez de permanecer reto como um I, havia chegado ao Z.

 Durante esse tempo o capelão terminara a leitura da sentença.

 — O condenado tem algo a pedir? — perguntou.

 — Sim — respondeu o desgraçado, com voz rouca e triste.

 — O que deseja?

 — Quero meu indulto.

 Não sei se a palavra farsante já havia sido inventada, mas a ocasião para isso era sem dúvida muito boa.

 O senhor de La Piroche deu de ombros e ordenou ao verdugo que pusesse mãos à obra. Este começou a subir decididamente a escada do patíbulo, com toda a força de que dispunha para separar uma alma do corpo. Tratou também de fazer subir na frente o condenado, o que não era tarefa fácil, pois os condenados inventam toda sorte de dificuldades para morrer. Para fazê-lo subir, o executor da justiça teve de recorrer ao meio de que já se valera para fazê-lo descer do animal: agarrou-o pela cintura e o foi empurrando para cima.

 — Bravo! — gritou a multidão.

 Não havia recurso, e ele teve de subir. Então o verdugo passou destramente o nó corrediço da forca em torno do pescoço, deu um empurrão nas costas do condenado e o lançou no espaço. Um imenso clamor acolheu esse desenlace previsto, e um estremecimento correu a multidão.

 Por grande que seja o crime que tenha cometido, um homem que morre na forca está sempre, ao menos durante um instante, acima dos que o vêem morrer. O enforcado balançou durante dois ou três minutos na ponta da corda. Como tinha direito a isso, debateu-se, contorceu-se, e depois ficou imóvel — o caminho inverso do Z ao I. Os espectadores ficaram olhando ainda durante algum tempo, logo se dividiram em grupos e tomaram caminho de casa.

 Os dois camponeses também retomaram o caminho.

 — Ser enforcado por não ter podido roubar uma armadura é um pouco caro, não acha? — perguntou o pai.

— Gostaria de saber o que ele teria feito com a armadura, se tivesse conseguido levá-la.

 — De fato ele foi mais castigado por um crime que não cometeu.

 — Sim, mas teve a intenção de cometê-lo.

 — E basta a intenção para...

 — É perfeitamente justo.

 Chegando ao alto de uma montanha, olharam para trás, a fim de contemplar pela última vez a silhueta do desconhecido. Vinte minutos depois chegaram ao povoado seguinte, de onde deviam voltar à noite.

 Quando amanheceu o dia seguinte, dois soldados saíram do castelo para remover o cadáver do enforcado e recolher a armadura. Mas encontraram uma situação que nem de longe poderiam imaginar: tudo estava no lugar, mas o enforcado e a armadura haviam desaparecido. Julgaram que estavam sonhando, esfregaram os olhos, mas o fato era real. O enforcado e a armadura haviam sumido. E o mais extraordinário é que a corda não estava cortada nem rompida, permanecia como antes do enforcamento.

 Os soldados foram anunciar ao senhor de La Piroche o que viram, mas este não quis acreditar, e decidiu confirmar com seus próprios olhos. Sendo tão poderoso, pensava que um mísero enforcado não ousaria desobedecer-lhe, e o encontraria onde o mandara ficar. Mas não viu nada além do que os outros haviam visto. Que teria acontecido? Não havia dúvida de que na véspera o sentenciado ficara bem morto ante os olhos de todos. Teria um outro ladrão aproveitado as trevas noturnas para roubar a armadura? Mas se fosse assim, teria deixado o cadáver, que de nada lhe adiantaria. Será que os amigos e parentes do morto quiseram dar-lhe uma sepultura cristã? A hipótese não era absurda, mas o delinqüente não tinha amigos nem familiares. Mesmo se os tivesse, eles teriam se limitado a carregar o cadáver, deixando a armadura. O que pensar do ocorrido?

 Desolado pela perda da armadura, o senhor de La Piroche mandou publicar a promessa de uma recompensa de dez moedas de ouro, para quem entregasse o culpado, desde que com a roupa usada na execução. Ninguém se apresentou. Foram revistadas todas as casas, mas nada se encontrou. Fizeram então vir de Rennes um sábio, e lhe puseram a pergunta:

 — Como é que um enforcado morto pôde fazer para livrar-se da corda que o mantinha no ar?

 Depois de oito dias de meditação o sábio respondeu:

 — Ele não conseguiu soltar-se.

 Apresentaram-lhe então a seguinte pergunta:

 — Um ladrão que não conseguiu roubar enquanto vivo, e que foi condenado à morte por roubo, pode roubar depois de morto?

 O sábio respondeu que sim. Indagado como poderia ter conseguido essa façanha, respondeu que não sabia. E era o maior sábio da época, naquelas paragens.

 O sábio foi embora, e as pessoas preferiram ficar com a convicção de que o enforcado era um feiticeiro.

 Passou-se um mês de inquéritos, buscas e consultas, enquanto a forca permanecia no mesmo lugar, humilhada, triste e desprezada por sua atitude inominável de abuso de confiança. O senhor de La Piroche já se dispunha a resignar-se com a perda da armadura, quando num certo dia, ao despertar, ouviu um alarido na praça da execução. Logo depois o capelão entrou espavorido nos seus aposentos.

 — Senhor, sabeis o que aconteceu?

 — Não, mas gostaria de saber.

 — O enforcado reapareceu, e está lá na forca.

 — Com a armadura?

 — Sim, com a vossa armadura.

 — E está morto?

 — Completamente. Mas...

 — Mas o quê?

 — Quando foi enforcado ele usava esporas?

 — Não.

 — Pois agora usa. Além disso, agora o elmo não está na cabeça, como no dia da execução. Está enforcado com a cabeça descoberta, e o elmo está cuidadosamente colocado no chão.

 — Vamos ver logo tudo isso, senhor capelão.

 O senhor de La Piroche correu à praça, já cheia de curiosos. De fato lá estava o enforcado com o pescoço no laço da corda, e logo abaixo o corpo revestido da armadura. Era prodigioso.

 — Arrependeu-se e voltou a enforcar-se — dizia um.

 — Sempre esteve aí — dizia outro. — Nós é que não o víamos.

 — Mas por que usa esporas? — perguntou um terceiro.

 — Sem dúvida por que vem de longe, e quis chegar rápido.

 — Se fosse comigo, não importa se longe ou perto, eu não teria voltado de jeito nenhum.

 Entre comentários sérios e outros nem tanto, todos olhavam a cara contorcida do morto. Quanto ao senhor de La Piroche, só pensava em assegurar a posse da sua preciosa armadura. O cadáver foi descido, retirada a armadura, e depois o recolocaram para ser comido pelos corvos. O que sem dúvida nos lembra versos como os que colocávamos na primeira página dos nossos livros escolares:

 Morreu Pierrô enforcado
 Por ter um livro roubado.
 Não corra tão grande risco,
 Devolva este ao Francisco.

 Que teria acontecido, para possibilitar ao ladrão escapar depois de enforcado, e depois voltar a enforcar-se? Várias hipóteses foram levantadas, mas uma delas me parece a mais digna de crédito. Vou relatá-la como me foi contada.

 Quando os dois camponeses, pai e filho, regressavam à noite para casa, resolveram passar perto do castelo, para dar uma última olhada ao enforcado. Ao aproximar-se, ouviram gemidos e uma espécie de oração, que pareciam vir do cadáver. Um tanto apavorados, resolveram pegar a escada do verdugo, e o filho subiu por ela até a altura da cabeça do enforcado.

 — É você que está se queixando?

 — Sim.

 — Portanto você ainda está vivo?

 — Acho que sim.

 — E está arrependido do que fez?

 — Sim.

 — Então vou retirá-lo daí. Como o Evangelho manda socorrer os que sofrem, e você está sofrendo, vou socorrê-lo para que empregue a vida em fazer o bem. Deus prefere uma alma arrependida a um corpo castigado.

 O pai e o filho desataram a corda, e só então entenderam por que estava ainda vivo. Em vez de apertar o pescoço do ladrão, a corda apertava o pino de encaixe do elmo. Por isso ele ficara suspenso, mas não enforcado. A cabeça havia encontrado uma espécie de ponto de apoio dentro do elmo, permitindo-lhe respirar e viver até o momento em que os dois camponeses regressaram.

 Recolheram o enforcado com a armadura e voltaram para La Poterie, onde o ladrão ficou aos cuidados das mulheres da casa, mãe e filha.

 Mas não é coisa freqüente um ladrão mudar de condição. Na casa só havia duas coisas roubáveis: o cavalo e a moça, donzela de dezesseis anos. O ex-enforcado resolveu levar ambos, pois precisava de um cavalo e se enamorara da moça. Uma noite ele arreou o cavalo, vestiu a armadura, calçou esporas para fazer o cavalo andar mais depressa, e foi buscar a moça, com intenção de levá-la na garupa. A jovem despertou e começou a gritar. Pai e filho acudiram logo e o ladrão tentou escapar, mas era tarde. Os dois o pegaram e decidiram fazer justiça por sua própria conta, completando o mau trabalho do verdugo. Amarraram o ladrão montado no cavalo e o levaram à praça de La Piroche. Penduraram-no na mesma forca, mas desta vez pelo pescoço do condenado, e não pelo da armadura, que não tinha nenhuma culpa no cartório para ser enforcada, e o elmo foi cuidadosamente depositado no chão.

 Se alguém conhece uma explicação melhor para o mistério, estou pronto a aceitá-la, mas esta me pareceu suficiente.

Fonte:
Alexandre Dumas Fº, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953.

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXIII)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)

051

Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influíam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:

— Ditoso seja o dia e hora, quando
tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar se em seu desejo traspassando!

Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corria
tão ligeira que quase era invisível.

Converteu se me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível.

041

Aquela fera humana que enriquece
sua presuntuosa tirania
destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal que falta quando crece;

Se nela o Céu mostrou (como parece)
quanto mostrar ao mundo pretendia,
porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte s'enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,
Senhora, com vencer me e cativar me:
fazei disto no mundo larga história.

Que, por mais que vos veja maltratar me,
já me fico logrando desta glória
de ver que tendes tanta de matar me.

098
Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança,
contrária a sua honra e qualidade

(venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança
porque ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade!),

de si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.

[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !
Que, dando breve morte ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!

091

Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certissimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!

116

Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou s'estarão aquele alegre dia
que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!

038

Arvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.

160

À sepultura de del-Rei dom João Terceiro
Quem jaz no grão sepulcro, que descreve
tão ilustres sinais no forte escudo?
- Ninguém; que nisso, enfim, se toma tudo
mas foi quem tudo pôde e tudo teve.

Foi Rei?- Fez tudo quanto a Rei se deve;
pôs na guerra e na paz devido estudo;
mas quão pesado foi ao Mouro rudo
tanto lhe seja agora a terra leve.

Alexandre será?- Ninguém se engane;
que sustentar, mais que adquirir se estima.
- Será Adriano, grão senhor do mundo?

Mais observante foi da Lei de cima.
- E Numa?- Numa, não; mas é Joane:
de Portugal terceiro, sem segundo.

096

Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras,
de manhoso mo negas, e mo juras
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,
e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras,
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
me possa inda cegar um Moço cego!

003

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

120

Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

103

Cantando estava um dia bem seguro quando,
passando, Sílvio me dizia
(Sílvio, pastor antigo, que sabia
pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,
oprimir-te virão em um só dia
dous lobos; logo a voz e a melodia
te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou
quanto gado vacum pastava e tinha,
de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou
a cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua saudade da alma minha!

086

Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto
que possam prometer te longa história
daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.

159

Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplandor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,
por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já “se” lhe devia.

097

Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
depois vim a chorar porque cantara
e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas que passara
tenho pola mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)