segunda-feira, 29 de abril de 2013

António Boavida Pinheiro (1934)

Natural de Alverca do Ribatejo – PORTUGAL; nascido a 7 de Novembro de 1934.

Professor Universitário Aposentado;

Foi toda a sua vida um estudioso “nato”…tendo acumulado no seu currículo várias Licenciaturas e Mestrados, para além de diversos outros cursos, em Portugal e no estrangeiro, …um dos quais de nível equivalente ao Doutoramento.

 A queda para as rimas já vem do tempo da sua juventude, no entanto a sua atividade profissional não lhe deixou tempo para publicar os seus poemas, que sempre foi escrevendo e ficado na “gaveta”, para além duma ou outra participação esporádica em revistas ou jornais…

 Tendo ficado com tempo mais disponível, depois da sua aposentadoria…é assim que desde Setembro de 2008, vem participando em Concursos Literários e Jogos Florais, em Portugal e no Brasil, tendo já obtido vários «Prêmios» e «Menções Honrosas»:
– vencedor do «Concurso Nacional/Internacional de Trovas da UBT – 2009» de São Paulo – Brasil;
– vencedor do Troféu “Augusto dos Anjos”, por ter sido 1º classificado no «XV FESERP – Festival Sertanejo de Poesia – 2009»,na cidade de Aparecida – Brasil;
– 2º e o 1º Prémios respectivamente nos 92º e 96º «Concursos de Quadras Populares» do «Clube da Simpatia» – Olhão, em 2008 e 2009…

Desde Dezembro de 2008, que tem publicado alguma poesia em “sites” e “blogs” na Internet, nomeadamente no «Luso Poemas», e no «Recanto das Letras», entre outros, onde a amizade e a estima de Amigos/as, lhe deram apoio e ânimo para publicar o seu primeiro livro de poesia…., com o título «Cem Poemas…Diversos», publicado pela Editora «Temas Originais», em Maio de 2009; seu segundo livro de poesia com o título  «Poemas ao correr da pena…»…

 Tem poemas publicados em diversas Antologias, como por exemplo:
– «Antologia Nordeste de Poesia», editado pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, em 2009;
- «Literatum & Poeticum», (Volume 1), da Editora Guemanisse, Teresópolis. Rio de Janeiro, em 2009;
– antologia poética «(re) leitura do Natal» do 1º Concurso de Poemas de Natal de 2009, da Editora All Print, São Paulo, em Outubro de 2009;
– «Antologia – Prémio Literário Valdeck de Almeida Jesus 2008», editado pela Giz Editorial, São Paulo, 2009;
– volumes V e VI da «Antologia Poética do FESERP – Festival Sertanejo de Poesia», editado pela Acauã Produções Culturais, Cidade de Aparecida, Paraíba, respectivamente em Dezembro de 2009 e em 2010;
– «I Antologia Temas Originais», – 2009, Editora Temas Originais, Coimbra, em 2010;
– Antologia «O Desassossego da Vida – II Concurso de Poesia Poetas em Desassossego», pela Editora Bubok Publishing S.L. Madrid, em 2010;
– «III Antologia de Poetas Lusófonos», pela Editora Folheto Edições & Design, Ld.ª, Leiria, em  2010; ]
entre outras…,

Colabora também em Revistas Literárias, nomeadamente na revista literária «eisFluências», assim como no «Boletim da APE» …

Participa com assiduidade nas reuniões de várias «Tertúlias Poéticas», com destaque para as da Sociedade Portuguesa de Poetas…

É Sócio Efectivo das:
«Sociedade Portuguesa de Autores»;
«Associação Portuguesa de Escritores»;
«Associação Portuguesa de Poetas» e
clube de poetas «Clube da Simpatia» em Olhão,
Sociedade de Geografia de Lisboa,
Associação de Apoio ao Museu da Ciência,
Associação Internacional de Sociologia,
Associação Portuguesa de Sociologia,
“Association Française de l’Anthropologie”,
“Association Française de l’Anthropologie du Droit,”,
“Association pour le Patrimoine de la Vallé de la Rome – ASPAVAROM”,
Academia de Ciências de N.Y.,
Associação Cultural «Charles Darwin» de N.Y.,
“Paul Harris” da  Rotary International.

 Conta no seu currículo com mais de duas dezenas de condecorações e uma meia centena de “Louvores” individuais, concedidos por diversas entidades civis e militares, de entre as quais se mencionam: 
Grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Aviz,
Grão-Cruz da Ordem «Imperial  Constantinian  Military  de Saint  George»;
Grã-cruz da Ordem «Supremus Militaris Templi Hierosolymitani»,
Medalha de Cruz de «Benemérito» da Cruz Vermelha Portuguesa …

Fonte:
http://www.joaquimevonio.com/espaco/antonio_boavida/boavida.html

Charles M. Phelan (O Escritor de Obituários)

A casa 1113 da Rua Morton parecia abandonada, não fosse pelo jornal que era arremessado pelo jornaleiro, ao pé da porta, todas as manhãs. Ali ficava, intacto, todo o dia. Era recolhido somente durante a noite. A aparência macabra da 1113 dava-se pelo aspecto de abandono que possuía. Durante anos, as estações haviam castigado o exterior da casa. A chuva o sol e a neve encarregaram-se de descascar a maior parte da pintura, e desbotar, para um cinza-sombrio e sem vida, o que havia restado. Capim brotava de cada fissura da passarela de entrada, quase obstruindo o caminho até a porta. A lâmpada externa, que deveria iluminar este caminho, pendurava-se pelo fio também desbotado com o tempo. Dali ouvia-se o Clang, Clang, Clang da haste de metal que segurava a lâmpada, batendo contra a parede. A noite na rua Morton, era diferente de qualquer rua. Ouvia-se o ranger da dobradiça da porta uivar como uma sinfonia de mortos. Era o mais horrendo dos gemidos. Uma suplica que ainda hoje ressoa nos meus ouvidos. Era precisamente nesse momento que a porta abria lentamente permitindo que a mão enluvada alcançasse o jornal e o recolhesse. Além do jornal, as provisões também chegavam por entrega. E do mesmo modo eram recolhidas.

 Observei essa rotina dos 7 aos 17 anos. Ninguém entrava. Somente o vulto corcunda saía, deslocando-se a passos de tartaruga pela calçada até o correio. Todas as noites a mesma rotina.

 Fiz da rotina dele, a minha. Não em ir até o correio, mas em observar o velho corcunda vagando na noite. Aproveitei minha solidão para poder acompanhar a vida deste homem sem amigos e sem família. Deste homem sem face. Digo isso por nunca ter visto sequer a cor de seu cabelo. A escuridão da noite impossibilitava meu olhar investigativo. Tentei em algumas ocasiões me posicionar de modo que me fosse favorável à visão do homem, mas não consegui ver o que procurava. Usava uma capa preta que começava dos joelhos, e terminava na altura da face com seu colarinho levantado. O zíper puxado até o último trilho, repousava acima do dorso do nariz. Um gorro preto descia até a altura das sobrancelhas, deixando apenas os olhos descobertos. Dos olhos nada pude detectar. A escuridão reluzia apenas o brilho natural deles. Pareciam duas contas pretas.

 A imagem noturna me encantava. Instigava minha curiosidade. O homem da noite. Um homem sem medo do escuro. Um homem sem medo da solidão. Parecia ter escolhido aquele horário deliberadamente. Talvez desejasse evitar contato com estranhos. Parecia um vilão e ao mesmo tempo um super herói. Tinha se tornado minha única companhia por anos.

 A meia-noite eu acordava e corria para janela do meu quarto para vê-lo ir ao correio e colocar o envelope por baixo da porta. Esperava sempre seu retorno. Após alguns meses observando da janela do meu quarto, minha presença fora detectada. Com isso, a rotina do velho também mudara. Éramos os únicos acordados. Eu e ele. Dois solitários da madrugada. Senti que não lhe incomodava. Quem sabe, por mais singular que seja esta situação, era eu, o único amigo daquele ser misterioso. O ranço da solidão podia ser compartilhado por dois solitários. Eu da janela, e ele da rua.

 Após seu retorno do correio, o jornal era devolvido á calçada com a mesma discrição que usara para busca-lo. Primeiro, o rugir da dobradiça; depois a mão, com a delicadeza de um perito em bombas, colocava o jornal próximo ao batente da entrada. Interpretei aquela atitude como uma forma de fazer contato comigo, já que até então jamais havia retornado jornal algum á calçada.

 Fui impulsionado por uma curiosidade sufocante. Queria buscar o jornal. Pela primeira vez me vi infringindo a lei, mas não resisti. Fui até a entrada da passarela que levava á porta. Ponderei por alguns segundos a minha decisão. Convenci-me de que era tarde demais para recuar. De onde eu estava, podia ver o jornal embrulhado em um saco plástico. A distancia parecia curta o suficiente para um disparo rápido. Porém, minhas pernas estavam pesando o dobro do que normalmente pesavam. Meu coração martelava rápido e forte por trás do meu peito. Olhei para as janelas, e pensei que eu era quem poderia estar sendo observado desta vez. Segurei o fôlego e disparei em direção ao jornal. Peguei-o pela ponta do plástico e retornei na mesma velocidade para casa. Subi para meu quarto, dei uma última olhada pela janela e rasguei o saco.

 O jornal encontrava-se completamente intacto, salvo pela sessão dos obituários. Uma marca de caneta destacava, com um circulo, um lembrete da morte de uma pessoa. Recolhi os jornais todas as noites, por meses. Todos com as mesmas características, mas sempre destacando pessoas diferentes.

 Havia me doutrinado aquela rotina de observar o velho corcunda caminhar nas noites. Subitamente tudo parou. Três dias se passaram, e nada dele sair ou sequer buscar os jornais. E eles foram se acumulando no batente. Achei estranho. Chamei a policia para investigar o que acontecera. A primeira viatura parou na entrada da garagem. Fui até lá. Ao me aproximar da passarela senti um odor estranho que pesava no ar. Um fedor distinto de todos que já havia sentido. Os dois policiais dirigiram-se até o batente da frente, e com os nós dos dedos bateram na porta. Após alguns segundos de espera, decidiram arromba-la. Apressei o passo até a entrada da sala. Lá estava meu amigo estirado no chão. Morto. O cheiro...ohhh...o cheiro. Jamais esquecerei o cheiro. Na sala, folhas e folhas cobriam a parede de cima á baixo. Todas continham apenas um parágrafo manuscrito. Tratava-se de obituários. Todos. Sobre a escrivaninha, um envelope aberto com uma folha dentro e um cheque nominal. Na frente do envelope, em letras grandes, lia-se: REDAÇÃO DO SUNDAY TIMES - DEPARTAMENTO DE OBITUÁRIOS.

 Peguei algumas das folhas sem que os policiais percebessem, me despedi, e retornei com passos largos para casa. Espalhei as folhas no chão e comparei com as dos jornais que havia juntado nos meses que se passaram. "Aha!" falei inconscientemente. Os obituários, que haviam sido circulados nos jornais, eram os mesmos que haviam sido escritos nas folhas.

 Uma semana após a morte do meu amigo, o Sunday Times publicou em nota oficial, a lista com todos os nomes fictícios que haviam sido publicados nos obituários.

 Durante aquela semana, fui dominado por uma depressão profunda. A solidão havia retornado. Mais forte desta vez. Cheguei a passar horas observando da janela, mas a rua Morton nunca fora tão deprimente. O escritor de obituários muito me marcou. Mesmo no mundo de sua solidão, foi uma companhia leal e importante naqueles anos, onde o espírito de um jovem se forma para o mal ou para o bem. Minha hora havia chegado, e fiz o que era mais apropriado para o momento - escrevi o obituário, daquele tanta companhia me havia feito ao longo dos anos.

 Há cinquenta e dois anos perdi meu amigo, mas sua imagem noturna nunca me abandonou. Oh! Meia- noite... preciso ir ao correio…

Fonte:
http://charlesmphelan.blogspot.com.br/

Soares de Passos (A Um Teatro Académico)

Abrindo sepulcros, rasgando mistérios,
Quem mortos gelados levanta de pé?
Quem varre coas asas as cinzas d'impérios,
E os vultos heróicos anima, quem é?

Quem tira do nada uma forma divina?
Quem finge uma imagem de negro terror?
Quem ergue virtudes, e o crime fulmina?
Quem risos excita, quem prantos de dor?

– O génio do drama e o génio da cena! –
São eles que traçam, em véu d'ilusões,
D'Amor, de ciúme, de riso, e de pena
O jogo travado, falando às paixões.

São eles unidos que em chama inquieta
Sentiu Gil Vicente na fronte escaldar?
São eles que o bardo da terna Julieta,
E a fronte de Talma vieram c'roar.

São eles, mancebos, que em nuvens de flores
A senda apontaram que afoitos seguis,
De palmas e c'roas, de magos fulgores,
Mas senda d'espinhos; co génio condiz.

Em nobre fadiga, que os ócios despreza,
D'acerbos estudos assim descansais!
Foi belo o desígnio, difícil a empresa:
Quem logra nas artes repouso jamais?

Que importa? na luta se provam alentos,
Somente na luta se colhem lauréis;
Aos peitos ardentes, de glória sedentos,
Reluz a bonança por entre os parcéis.

Avante! e que o génio das artes potente
D fogo das artes vos possa trazer!
Que em cenas de prantos o pranto rebente,
Que em cenas alegres se goze o prazer.

As artes e as letras nasceram amigas:
Às aras das duas incensos levai,
E os louros colhidos em sábias fadigas,
Os louros do palco viçosos juntai!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Autor Persa Anônimo (O Primeiro Impulso)

Tooriri era um cidadão rico de Bagdá, universalmente famoso por suas virtudes. Não se limitava a assistir aos pobres a ponto de, em vez de levar uma existência das mais luxuosas, viver apenas confortavelmente; escutava com a mais delicada paciência as queixas de todos os sofredores que o procuravam, consolava-os com palavras carinhosas e ajudava-os de todas as maneiras possíveis.

Suportava com resignação as mil e uma pequenas misérias que constituem a maior parte da vida humana. Tolerante em alto grau, não se aborrecia se os outros não lhe partilhavam as opiniões — virtude difícil e rara, pois o desejo secreto de cada homem é que o resto da humanidade lhe seja inferior e, ao mesmo tempo, semelhante.

Casado com uma megera, mantinha-se-lhe fiel, perdoava-lhe o mau gênio, e jamais a fazia sentir que não era nem moça nem bonita. Prosador e poeta, regozijava-se com o êxito dos rivais e manifestava-lhes benevolência e amizade em expressões corteses e sinceras.

Numa palavra, sua vida era toda caridade, gentileza, lealdade e altruísmo, e consideravam-no, ao mesmo tempo, um santo e um perfeito cavalheiro.

Ao seu semblante, porém, faltava a serenidade que por via de regra caracteriza as feições de um santo. Parecia o de uma pessoa agitada por paixões violentas ou roída de secreta angústia. Não raro o viam estacar e baixar os olhos para recobrar o domínio de si mesmo e impedir que lhe adivinhassem os pensamentos. Mas ninguém prestava a isso a menor atenção.

Não longe de Bagdá vivia um eremita por nome Maitreya, autor de numerosos milagres, cuja morada era objeto da veneração de muitos peregrinos. Tendo-se posto acima das contingências do comum da humanidade, Maitreya conservava-se em tamanha imobilidade que as andorinhas vinham a construíam ninhos em seus ombros. A barba, espessa como a cauda das vacas sagradas, chegava-lhe à cintura, e o seu corpo semelhava um tronco de árvore. Vivia assim desde uns noventa anos, pois era este o seu ideal.

Certo dia um peregrino disse na sua presença:
— Tooriri, de tão bom, parece uma encarnação de Ormuzd. Sem dúvida todo o sofrimento desapareceria da face da Terra se um homem destes pudesse fazer tudo quanto quisesse.

Ainda mais rígida se fez a imobilidade de Maitreya. Evidentemente o santo homem entrara em comunicação direta com o próprio Ormuzd. Depois de pensar uns instantes, respondeu ao peregrino:
— Não me é possível alcançar que Ormuzd conceda a Tooriri o poder de realizar todos os seus desejos, pois assim ele se tornaria um deus. No entanto, Ormuzd, em sua bondade, permite que, de amanhã por diante, o primeiro impulso deste santo homem, em todas as circunstâncias de sua vida, se transforme em realidade.
— É quase a mesma coisa! — exclamou o peregrino. — O primeiro impulso de Tooriri, como todos os seus desejos, será generoso e caridoso. Venerável Maitreya, acabais de me anunciar uma nova que há de trazer a ventura a muita gente, e eu vos agradeço.

Se a barba de Maitreya fosse menos impenetrável, poderia o peregrino ter vislumbrado a sombra de um sorriso em seus lábios empedernidos. Mas logo depois ele voltou a abismar-se nas suas eternas cismas.

Tornou à cidade o peregrino, regozijando-se de antemão com os muitos atos de caridade em que se havia de patentear no dia seguinte o poder do sábio Tooriri.

No dia seguinte, Tooriri despertou antes da mulher e fitou-a por um momento. Movida por força misteriosa, ela se levantou, dirigiu-se à janela, galgou o peitoril a precipitou-se, rachando a cabeça no pavimento da rua.

Ao sair de casa, aproximou-se dele um grupo de mendigos a pedir esmola. Não lhes disse nenhuma palavra dura, e automaticamente a sua mão se encaminhou à bolsa; mas, antes de alcançá-la, todos os mendigos lhe caíram mortos aos pés.

Adiante, encontrou a linda Mandaniki, e ele, o sábio, o virtuoso Tooriri, inclinou-se diante dela e acompanhou-a a casa. Ali, a mulher, enquanto lhe contava a história da própria vida e ele a apertava com ternura ao próprio coração, expirou-lhe nos braços.

Mal deixou a residência de Mandaniki, ficou detido numa encruzilhada por certo número de veículos que obstruíam a passagem, e começou a perder a paciência. Nisto, todos os cocheiros caíram das respectivas boléias e todos os cavalos tiveram os tendões cortados como por invisível foice.

À noite foi ele ao teatro, e pôs-se a discutir com o erudito Sarvilaka acerca de um verso atribuído por este a Nizami, e que Tooriri julgava escrito por Saadi, o poeta das rosas. De súbito, o letrado deixou-se cair na sua poltrona e vomitou uma golfada de sangue negro. A comédia representada naquela noite obteve grande êxito, sendo os atores unanimemente aplaudidos. Porém, poucos minutos antes que Tooriri resolvesse aderir ao reconhecimento do mérito do autor, este rendeu a alma ao Criador de maneira total­mente inesperada.

Tooriri voltou para casa horrorizado daquela mortandade geral. Desesperado, incapaz de compreender a razão de tudo aquilo, matou-se, atravessando o coração com um punhal.

Na mesma noite morreu também o santo eremita Maitreya.

Compareceram os dois ao mesmo tempo perante o sábio Ormuzd. O eremita pensava: "Não me seria nada desagradável assistir ao merecido castigo desse falso santo, cuja virtude foi por tanto tempo admirada pelos persas, mas que, num único dia em que pôde mostrar-se tal qual era na realidade, se cobriu de inúmeros pecados e crimes".

Porém o sábio Ormuzd falou assim:

— Virtuoso Tooriri, homem realmente generoso e bom, meu leal e fiel servidor, vem, entra na paz eterna.

— Boa bola! — exclamou o eremita.

— Em momento algum de minha vida falei mais sério — replicou Ormuzd. — Tooriri, desejaste o aniquilamento de tua esposa porque não era bondosa e já não tinha beleza; quiseste a morte dos mendigos porque te importunaram, e seu aspecto era hediondo; a de tua amante, porque era uma tola; o fim dos cocheiros e o extermínio dos cavalos, porque te forçaram a esperar quando tinhas pressa; o desaparecimento do letrado Sarvilaka, porque professava opinião diferente da tua; a do autor da comédia, porque obtivera aplausos maiores que os alcançados por ti. Todos esses desejos eram perfeitamente naturais. Os assassínios de que Maitreya te acusa foram, à tua revelia, efeitos do teu primeiro impulso, porquanto ninguém pode conter o seu primeiro impulso e desejo. Um homem odeia inevitavelmente o que o tolhe, e não menos inevitavelmente deseja o aniquilamento daquilo que odeia. A natureza é egoísta, e o nome do egoísmo é destruição. O mais virtuoso dos homens é, antes de tudo, no íntimo da alma, um patife; e se lhe fosse concedido transformar em realidade o seu primeiro desejo, impulsivo e involuntário, dentro em pouco a Terra se transformaria num deserto, sem nenhum ser humano a habitá-la. Foi o que eu pretendi mostrar, Tooriri, com o teu exemplo: o homem é julgado pelo seu segundo desejo, pois que este depende da sua vontade. Não fora o dom misterioso que, a teu pesar, tornou o teu último dia tão mortífero, tua vida teria continuado virtuosa e caridosa. O que devo considerar em ti não é a tua natureza, mas a tua vontade, que sempre tendeu para o bem e procurou sempre corrigir a tua natureza e aperfeiçoar a minha obra imperfeita. Eis por que, meu colaborador querido, eu hoje escancaro diante de ti a porta do meu paraíso.

— Essa é boa! — exclamou Maitreya. — Que fareis, então, por mim? Que recompensa me reservastes?

— A mesma — replicou Ormuzd —, embora só a tenhas merecido imperfeitamente. Foste um santo, mas, se em tudo deixaste de ser humano, humano foste no teu orgulho. Conseguiste a supressão do primeiro impulso; mas, se todos os homens fossem viver como tu, a humanidade desapareceria da face da Terra ainda mais depressa do que se cada homem possuísse o poder maravilhoso que por um dia infligi a este meu fiel servo. Ora, a mim me convém que a humanidade continue, porque isto me diverte e porque o espetáculo que me oferece chega a ser, às vezes, sublime. O teu esforço, mísero asceta, não era de todo desprovido de certa espécie de beleza, e por isso te perdôo o teu erro crasso. Numa palavra: a Tooriri abro as portas do Paraíso e o acolho em meu seio, porque sou justo; a ti, Maitreya, permito que entres, porque sou generoso.

— Mas... — disse Maitreya.

E Ormuzd, erguendo o austero semblante:

— Tenho dito.

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de Histórias. vol.5. RJ: Nova Fronteira.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 16

CAPÍTULO CXXI / A CATÁSTROFE

No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava

--Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.

Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu e corri ao Flamengo.

Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a na dar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver.

CAPÍTULO CXXII / O ENTERRO

A Viúva... Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente. Saí de lá cerca de onze horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer abatido e estúpido, outra enfastiada apenas.

--Vão fazer companhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.

Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluência dos amigos foi numerosa. Praia, ruas, Praça da Glória, tudo eram carros, muitos deles particulares. A casa não sendo grande, não podiam lá caber todos, muitos estavam na praia, falando do desastre, apontando o lugar em que Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do morto. José Dias ouviu também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens, mas havendo acordo em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco- estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.

Como eu houvesse resolvido falar no cemitério, escrevi algumas linhas e mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e confirmou a primeira opinião; no Flamengo espalhou a notícia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me:

--Então, vamos ouvi-lo?

--Quatro palavras.

Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emoção me impedisse de improvisar. No tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito tempo unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou três perguntas sobre a minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu ofício. Chegando a casa, deitei aquelas emoções ao papel; tal seria o discurso.

CAPÍTULO CXXIII / OLHOS DE RESSACA

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.

CAPÍTULO CXXIV / O DISCURSO

--Vamos, são horas...

Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechamo-lo, e eu peguei numa das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei à porta, vi o sol claro, tudo gente e carros, as cabeças descobertas, tive um daqueles meus impulsos que nunca chegavam à execução: foi atirar à rua caixão, defunto e tudo. No carro disse a José Dias que se calasse. No cemitério tive de repetir a cerimônia da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o féretro à cova. O que isto me custou imagina. Descido o cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim, os pés quietos, as orelhas atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um sussurro vago, algumas vozes interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido:

--Então, fale.

Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado. Maquinalmente, meti a mão no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar cm vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me fazia assim, era o próprio texto, as memórias do amigo, as saudades confessadas, os louvores à pessoa e aos seus méritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me adivinhassem a verdade, forcejava por escondê-la bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto geral foi de compreensão c de aprovação. As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: "Muito bonito! muito bem! magnífico!" José Dias achou que a eloqüência estivera na altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o manuscrito e imprimi-lo. Só a minha grande turvação recusaria um obséquio tão simples.

CAPÍTULO CXXV / UMA COMPARAÇÃO

Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou quando menos igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e serenas, os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse Heitor.

CAPÍTULO CXXVI / CISMANDO


Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.

--Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé.

-- Mas...

--Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas- estas iriam pausadas ou não, podia afrouxar o passo. parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia natural mente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa padaria.

CAPÍTULO CXXVII / O BARBEIRO

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rebeca e não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me, e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma nota- ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele, creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um traunseunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe a mulher, então é que ele, todo arco, todo rebeca, tocaria desesperadamente. Divina arte!

CAPÍTULO CXXVIII / PUNHADO DE SUCESSOS

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima. Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.

--Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.

--Também não quis?

--Também não.

--Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José Dias, e não sei como poderá...

-- Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu para ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si. Quando tornou, trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase "lindíssima", e perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim acabamos a noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dá-lo a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em recompô-lo, mas só achei frases soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento, que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia a mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.

Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.

CAPÍTULO CXXIX / A D. SANCHA

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma cousa, e é ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade. Um dia. iremos daqui até à porta do céu, onde nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle,

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.

CAPÍTULO CXXX / UM DIA...

Por enquanto, um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e aborrecido. E propôs-me a Europa, Minas, Petrópolis, uma série de bailes, mil desses remédios aconselhados aos melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as diversões. Como insistisses repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu sorriu para animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá as jóias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum beco. Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A ternura com que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propôs-me jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Mata-cavalos; e, como eu não aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a ausência, peguei do chapéu e saí.

...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido poucas semanas antes, dous meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim. Demais, é curto.

CAPÍTULO CXXXI / ANTERIOR AO ANTERIOR

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado rendia-me bastante, Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de 1872.

--Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim...

Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou ele com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo:

--Vamos passear, papai?

--Logo, meu filho.

Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de Ezequiel.

CAPÍTULO CXXXII / O DEBUXO E O COLORIDO

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família pêndula o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fez-se, não à maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.

O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora contínuos e terríveis.

Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo, até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.

Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo contaria o seu naufrágio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que separar-nos. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou muito ao menino aceitar esta situação.

--Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no antigo Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e quando, e se eu iria vê-lo...

--Vou.

--Papai não vai!

--Vou sim.

--Jura, papai!

--Pois sim.

--Papai não diz que jura.

--Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e toda a arte fina de Capitu para fazê-lo atenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez pior. A mesma situação nova agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos sábados, buscava não andar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não escapava ao domingo, no gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos. Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

CAPÍTULO CXXXIII / UMA IDÉIA

Um dia--era uma sexta-feira,--não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia. ouvi cantar baladas, em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.

CAPÍTULO CXXXIV / O DIA DE SÁBADO

A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a sacudisse de mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas horas.

Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas trépidas, e posto avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse as cousas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma substancia, que não digo, para não espertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui a casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia. minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa ou prender aquela hora a mim mesmo...
––––––––––––-
continua…

domingo, 28 de abril de 2013

Charles M. Phelan (Dizendo Adeus)

Como dizer adeus para alguém que você tanto ama? Controlar a tensão das palavras que prenunciam o fim, maquiando o inevitável, é doloroso. Saber que de tudo que será dito, apenas a última palavra permanecerá. Ficará suspensa no ar, como a fragrância de um perfume, até que o tempo faça esquecer tudo. A expressão no rosto tenta esconder a tristeza, mas são os olhos que denunciam o que a alma sente. E foi assim o adeus.

“Papai, você ‘tá me abandonando?” Disse a garota, com a sinceridade de seus seis anos de idade.

“Não, meu amor. Eu nunca vou lhe abandonar. É que a mamãe e o papai precisam se separar”. As pernas do pai tremiam discretamente por baixo da cadeira. “Eu vou viajar, mas volto em breve. Muito breve, meu amor. Mas não vou lhe abandonar. Isso, não!”

“Você não me ama mais?”

Lágrimas.

“Amo muito, meu amor. ‘Tô me separando da mamãe, meu coração. Não de você. Nunca de você!”

Ela sorriu. Brincou com os dedos. Abraçou-o com vigor, encaixando-se confortavelmente dentro de seu peito de pai. Ele a abraçou de volta. Não sabia quando iria vê-la novamente. Sentiu seu cheiro de bebê. Segurou-a nos braços mais tempo do que o normal. Sem fazer qualquer som, chorou controlado. Calado. Triste. Solitário. Fracassado.

“Você ‘tá chorando, papai? Chore não, eu ‘tô aqui”.

O pai tremeu emocionado. Ali estava sua pérola, na maturidade dos seus seis aninhos, a confortá-lo. Pior, ela não tinha idéia do que estava acontecendo. Nem o que significava separação de pais. Ela ficaria com sua mãe. Ele iria embora. E, a partir daquele momento, perderia a possibilidade de vê-la crescer. A viu nascer. Esteve lá na hora do parto. Cortou o cordão umbilical. Ouviu dele, suas primeiras palavras de amor. Recebeu dele, seu primeiro beijo. Agora, com a separação, não iria vê-la com aquele rostinho de sono perambulando pela casa todas as manhãs. Nem tampouco preparar seu lanche, ou levá-la à escola.

Lágrimas.

“Estou soluçando...” Disfarçou o melhor que pode. “Você precisa ir meu amor. Sua mãe chegou”.

Segurou-a forte pela mão, e a conduziu até a porta do carro da mãe. Agachou até poder olhar nos seus lindos olhos castanhos, viu seu reflexo pela última vez. “Tchau amor, papai te ama”, disse, contendo o tremer do queixo. Ela entrou no carro sorrindo, inocente, fechou a porta, soprou um beijo e o carro deu partida. Olhou para o pai mais uma vez, e acenou pela janela semi-aberta. O pai observou o carro se perder na distância. Acenou, dizendo adeus.
–––––––––––––-
Charles M. Phelan nasceu nos Estados Unidos,. Atualmente reside em Natal/RN, onde estuda direito e é professor de ingles.

Fonte:

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n. 161 - maio de 2013)


Ao lembrar que o teu brinquedo
é decifrar-me, sorrio...
De nada vale o segredo
de um velho cofre vazio.
Alonso Rocha

Na distância, ao teu aceno,
quanta tristeza me invade...
O trem ficando pequeno
e, em mim, crescendo a saudade!...
Hermoclydes Franco

 
Minhas mãos cheias de amor
plantam amor pelas ruas...
E mais não plantam, Senhor,
porque só me deste duas!...
José Maria M. de Araújo

Tu me chamaste de louco,
mágoa nenhuma eu senti:
- de fato o juízo é pouco
de quem tem paixão por ti.
Luiz Simões Jesus

Seria a vida enfadonha
sem as dúvidas que tive.
Quem tem certeza não sonha,
e quem não sonha não vive...
Orlando Brito

Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo o bem!
Pedro Emílio de Almeida e Silva
===============================
Se Deus atendesse um dia / minha prece ingênua e doce, /
quem fosse mãe não morria, / por mais velhinha que fosse.
Archimimo Lapagesse

=====================
 

Despido, ao lado da cama,
me peguei a me indagar
– Tendo nas mãos o pijama,
devo vestir ou guardar?
Amilton Maciel – SP


Deu a tantos seu carinho,
que no enlace, em confusão,
deu o sim para o padrinho
e o beijo no sacristão!
Carolina Ramos – SP

O reumatismo atacava
meu avô em tal escala,
que o velho já se queixava
de dor até na bengala...
José Lucas – RN

O barulho era infernal:
trocavam-se tantos berros,
que a discussão, em Natal,
era ouvida em... Pau dos Ferros!
Mil vezes eu curtiria
José Ouverney – SP

Mil vezes eu curtiria
o samba de uma só nota...
O duro é ouvir, todo dia,
de um chato a mesma anedota!
Osvaldo Reis – PR

Garanto não ser desprezo
eu não voltar pra você...
Ocorreu que fiquei preso
na enchente do Tietê...
Pedro Melo – SP

Diz ao dançar, enfadonha:
– Você sua!!! ... O Zebedeu,
bem caipira e com vergonha,
diz baixinho : – Vô sê seu!!!
Therezinha Brisolla – SP

 
O livro mudou o enredo
         da história da humanidade:
        – Antes dele, a treva e o medo, 
depois dele a liberdade.
A. A. de Assis – PR


Não irá jamais embora
quem deixou tanta amizade...
A despedida de agora
é presença na saudade ...
Almir Pinto de Azevedo – RJ
 

Quero, por tudo e por nada,
esquecer-te a qualquer preço,
mas a distância danada
já sabe o meu endereço!
Antonio Colavite Filho – SP
 

Em noites frias, sem lua,
quando meus versos componho,
eu cubro a verdade nua
com meu casaco de sonho.
Antonio Juracy Siqueira – PA
 

Vou sem rumo, de partida,
nas águas do meu sonhar;
– a jangada é minha vida,
vou remando além do mar.
Ari Santos de Campos – SC

O amor, para muita gente,
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima – PR

Eu sou vizinha do mar,
não temo aquela amplidão;
sem poder me devastar,
me ondeia, com restrição.
Cida Vilhena – PB

Hoje a vitória te alcança...
Cuidado ao virar a mesa;
a vida é eterna cobrança
num mercado de surpresa.
Conceição Abritta – MG
 

Quanto mais a idade avança
no longo tempo a correr,
eu tenho mais esperança
e mais prazer em viver...
Cônego Telles – PR

Esquece do amor o canto,
não vivas nesta ilusão;
com isso afastas o pranto,
libertas teu coração!
Cyroba Ritzman – PR

Meu amor, não me abandone
que as lembranças me devassam
e eu passo as horas insone
nessas horas que não passam...
Dáguima Verônica – MG
 

Na casa de quem escreve
há sempre papel no chão:
não perde tempo quem deve
segurar a inspiração!
Diamantino Ferreira – RJ
 

Estou sentindo deveras
minha alma enternecida,
ao ver as falsas quimeras
consumindo minha vida.
Djalma da Motta – RN

Sua luz, como um farol,
me guiou na tempestade:
fez surgir um lindo sol,
que selou nossa amizade.
Eliana Jimenez – SC

Que bom se a gente pudesse
fazer tudo que não fez...
e a vida a chance nos desse
de ser criança outra vez!...
Ercy Marques de Faria – SP
 

Quando na praia te aqueces,
com o sol a te queimar,
percebo que o enfraqueces
de tanto ele te admirar...
Euclymar Porto – RJ

Ó cigarra destemida
o seu disfarce me encanta,
por não ter nada na vida
e ser feliz quando canta!
Francisco Garcia – RN

O mar açoita a jangada,
que amena, em seu velejar,
sem se fazer de rogada
aceita o açoite do mar.
Francisco Pessoa – CE

Os seus lábios se juntaram
aos meus lábios, certo dia:
dois corações entoaram
um hino para a alegria.
Gasparini Filho – SP

Deus é feliz lá no Céu,
tem a Mãe junto de si!...
Por que levaste, Deus meu,
a minha também pra ti!?...
Gisela Sinfrónio – Portugal
 

O meu viver enfadonho,
só de amarguras composto,
põe as rugas do meu sonho
sobre as rugas do meu rosto!
Gislaine Canales – SC
 

Espalharemos amor
para todos os irmãos,
com a ternura e o calor
que Deus pôs em nossas mãos!
Gledis Tissot – SC

Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho!
Gutemberg de Andrade – CE
 

Quando uma lágrima cresce
e cai dos olhos de um pai,
pesa tanto que parece
ser a própria dor que cai!
Héron Patrício – SP

Tão suave é o teu carinho:
há nele a calma de um lago...
– Tem a ternura de um ninho
e a paz de um materno afago!
Hulda Ramos Gabriel – PR

Nesta terra que volteia
sob ditames divinos,
somos meros grãos de areia,
transitórios inquilinos.
Humberto Del Maestro – ES

Longe de pranto e de dores,
o nosso amor sem cobranças
tem um perfume de flores
como o de duas crianças.
Janske Schlenker – PR

Sobrepujando os conflitos
em que o mundo se compraz,
seus braços, ninhos benditos,
são meu refúgio de paz.
Jeanette De Cnop – PR
 

Teu olhar, quanta ternura!
Tuas mãos, quanto carinho!
Teu amor, oh, que ventura
pôs a vida em meu caminho.
Jessé Nascimento – SC

Quero um relógio, querida,
cujo mágico processo
atrase a tua partida
e abrevie o teu regresso.
João Costa – RJ

Para viver todos dias
neste planeta de agruras,
visto muitas fantasias,
mergulhando nas leituras.
José Feldman – PR

Teu olhar tem tanta graça
e tanta meiguice inspira,
que, quando o meu ser te abraça,
mesmo o silêncio, suspira!!!
José Roberto P. de Souza – SP
 

As afrontas do passado
não guardo! Vou esquecê-las!
Pois bem sei que um céu nublado
não me deixa ver estrelas!
José Valdez – SP
=================
Se o achado é alheio, de quem é na verdade a trova?...
============
Numa vida de fracassos
a pior constatação
é ver sonhos em pedaços,
onde bate um coração!
Luiz Antonio Cardoso – SP

Não me queres... pouco importa...
Só penso no alvorecer,
pois ele sempre abre a porta
à sedução de viver!
Luiz Carlos Abritta – MG

Mãe é palavra sublime,
e foi sábio o português:
não criou outra que rime
com ela nem uma vez.
Luiz Hélio Friedrich – PR

Amizades são pedrinhas
de brilhantes verde-mar.
Conquistadas, são rainhas,
neste mundo vão reinar.
Mª Luiza Walendowsky – SC

Por mais simples, mais modesta
que nos possa parecer,
a vida é sempre uma festa
para quem sabe viver.
Mª Madalena Ferreira – RJ

Mamãe, tua idade avança
e eu, triste, não me consolo,
porque sou sempre a criança
que precisa do teu colo!...
Maria Nascimento – RJ

Esconde o pranto depressa
e finge que estás contente,
que aos outros não interessa
saber as mágoas da gente!
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Para escrever os sentidos,
companheiros da ilusão,
não servem versos contidos:
tem que abrir o coração.
Mário Zamataro – PR
Se navegar é preciso,
se é necessário sonhar,
eu sonho no teu sorriso,
navegando em teu olhar!
Marisa Olivaes – RS

A carícia dos seus dedos
em meu corpo, com pudor,
troca todos os meus medos
pelos delírios do amor.
Maurício Cavalheiro – SP

Toda trova sintetiza
o que pensa o seu autor;
e, nos versos, simboliza
seus sentimentos – de amor!
Maurício Friedrich – PR

Numa insônia persistente
sinto a alma espedaçada,
a imprimir na noite em frente
fria e longa madrugada.
Mifori – SP
É no relógio do tempo
que vejo o tempo passar;
alegre sem contratempo
deixo a vida me levar!
Neiva Fernandes – RJ

O amor que escolhi um dia
expõe-me à língua do povo?
Dane-se o povo! Eu faria
a mesma escolha, de novo!
Newton Vieira – MG

No espaço da folha branca
o universo do escritor
torna a vida bem mais franca
se traça versos de amor.
Nilton Manoel – SP

Carrego pouca bagagem
porque, na vida, aprendi
que, mesmo longa a viagem,
preciso apenas de ti.
Olga Agulhon – PR

Eram alegres meus olhos
e tristes eram os teus;
por serem tristes teus olhos
ficaram tristes os meus.
Olympio Coutinho – MG

Se todos fossem iguais,
o que seria da gente?
– Eu posso ser um a mais,
mas você é diferente!
Raymundo Salles Brasil – BA

Doce ternura me invade
às vezes sem mais nem quê,
e me perco na saudade
quando lembro de você...
Renato Alves – RJ

Ao abrir minha janela,
inundada de luar,
mais forte a lembrança dela
fez a saudade apertar.
Roberto Acruche – RJ
O mais intenso luar
e os raios que o Sol descerra,
jamais poderão beijar
as profundezas da Terra...
Ruth Farah – RJ

Nada mais nos aproxima...
e, nessa ausência de afeto,
nós somos trova sem rima
e sem sentido completo!
Sérgio Ferreira da Silva – SP

O canto ensina que a vida
encanta em qualquer momento.
Mesmo a luta mais renhida
traz nela o seu próprio alento!
Sinclair Casemiro – PR

Do nascer à despedida,
ele é sal e sol na estrada,
ele é luz em nossa vida,
sem amor não somos nada...
Sônia Ditzel Martelo – PR

O mendigo solitário
perambula pela rua.
Ao redor, só o cenário
de uma imensa e fria lua.
Vanda Alves da Silva – PR
 

Num dos lances mais astutos
que a vida tem-me inspirado,
eu mostro os olhos enxutos
e escondo o lenço molhado.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Tendo um bom livro na mão,
viajo o mundo... crio asa.
Mando embora a solidão...
sem sair da minha casa!
Vânia Ennes – PR

A semente adormecida,
a sonhar com benfeitor,
pede terra umedecida
para ser a planta e a flor.
Vidal Idony Stockler – PR

Tua partida me fala
do teu desprezo... um açoite!
E a saudade não se cala
nem na calada da noite...
Wanda Mourthé – MG
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Nilto Maciel (O Público do Teatrinho de Marionetes)

O público do teatrinho de marionetes crescia dia a dia. Ao final de cada peça, Raul Marinho apresentava suas mágicas sensacionais. As crianças aplaudiam cada número do espetáculo.

Os sediciosos, no entanto, chamavam o mágico de feiticeiro e ilusionista. Para o comendador, Raul não passava de um falso milagreiro, desdenhador da religião católica, um enganador do povo, como os comunistas. Segundo padre Gregório, o homem tinha pauta com o maligno.

Chegou o dia, entretanto, de ser lembrado como um possível aliado na luta contra o inimigo poderoso e invisível. Ora, se fazia surgirem coelhos do interior de cartolas, se transformava lenços brancos em pombas voadoras, se retirava tiras e mais tiras de pano da boca, por que não poderia fazer com que os comunistas se mostrassem em carne e osso à plena luz do dia? Ana Souto se mostrou incrédula: E se não fossem de carne e osso?

Outra importante contribuição de Raul se daria após a vitória do Movimento ou quando todos os comunistas tivessem sido achados e presos. Só ele, com sua capacidade de dominar as pessoas, faria com que os bolchevistas de Palma confessassem seus planos diabólicos, suas ligações secretas com a Rússia, a China, Cuba, onde se escondiam seus arsenais etc.

O juiz contestou o plano: Ora, não precisavam de mágica para conseguir aquilo.

Toda a sala se pôs à escuta. A palavra sábia da Justiça certamente conhecia poderes maiores do que os da Magia. Com um ou dois socos na boca do estômago...

Nenhuma palavra latina saiu dos lábios do juiz.

Interrompeu-o Emílio do Vale. Queria acrescentar algumas informações de ordem científica à explanação do amigo. E durante bom tempo falou do açoite, da marcação com ferro em brasa, do tronco, da golilha, dos “anjinhos”, do cavalete, do suplício da roda e da crucificação. Durante o III Reich desenvolvemos diversas...

******
Raul Marinho se dizia conhecedor dos segredos da mente, das artes mágicas e outras antiguidades. E provava seus conhecimentos por isso mais aquilo, em palcos improvisados, para qualquer plateia. Ainda assim preferia o público de cidades, lugarejos e vielas próximas a Palma. Emílio não o via com bons olhos: Não passa de um espertalhão. Jurema completava: Um ilusionista de quinta categoria.

Convidado a demonstrar se realmente conseguia hipnotizar alguém, o mágico apresentou-se de fraque e cartola. Padre Gregório cruzou os braços diante do homem: Queremos ver para crer.

Raul se dispôs a pôr em prática seus conhecimentos, enquanto os dirigentes da entidade o crivavam de perguntas. Como Emílio: Possível também fazer uma lavagem cerebral?

O hipnotizador ou se fez de mal-entendido ou realmente não alcançou o significado da pergunta. E pediu mais clareza ao chefe do Movimento. Seria possível converter ao bom caminho os enganados, ludibriados, seduzidos pelos comunistas?

Outras e outras questões científicas surgiram: como interrogariam os vermelhos durante a hipnose, se alguém podia despertar quando se sentisse ofendido, se seria possível colher informações sigilosas do hipnotizado...
******
A primeira mágica realizada por Raul deixou todos de boca aberta: o cigarro aceso entre os lábios do juiz apareceu entre os dedos do promotor. Emílio se impacientou. Queria ver logo a sessão de hipnotismo. O mágico encarou a pequena plateia: Quem se apresentava primeiro? O prefeito olhou para trás, Eunápio baixou a vista, Aniceto cochilou, Emílio cutucou o padre, o promotor cheirou os dedos, o juiz acendeu um cigarro, e nenhum outro se fez voluntário. Raul apontou para o padre: Venha cá o senhor.

Com dois ou três sussurros ao pé do ouvido, o vigário dormia profundamente e fazia tudo o que bem queria Raul. Coce a ponta do nariz, reverendo.
******
Como as reuniões costumavam terminar pela meia-noite, após esta hora a cidade começou a se inquietar. Portas e janelas se abriam de mansinho, luzes se acendiam, cochichos zuniam. Mais uma hora, e escancaravam-se portas, iluminavam-se salas, falavam línguas sem peias. Desperta Palma, mulheres, rapazes e crianças iam e vinham pelas ruas, para cá e para lá. Uns procuravam a Casa Paroquial, outros a Delegacia, mais outros o Hospital.

Tudo em vão. A casa do padre fechada. O delegado não sabia de ninguém preso ou esfaqueado naquela noite. No hospital enfermeiras e pacientes dormiam. Para o tenente, os homens da cidade deviam estar na casa de Seu Emílio.

Hilda também andava preocupada, insone e impaciente, sem saber onde se metera o marido.

A Associação Comercial parecia mais escura e silenciosa do que o cemitério. Uma vizinha da entidade, alvoroçada diante do clamor popular, explicava: Aí não esteve ninguém hoje.

Na verdade, a reunião realizava-se aos fundos da Casa Paroquial, onde nunca acontecia nenhum encontro político do Movimento. Além disso, Raul Marinho conseguiu hipnotizar todos os presentes, tendo também dormido, até que o sol raiou de novo sobre Palma.

Naquela noite, como em muitas outras, Lucas não quis comparecer à reunião da entidade, alegando, mais uma vez, acúmulo de afazeres. A correspondência andava atrasada.

E se enfurnou em casa, depois de tomar um fogoso banho no riacho do quintal. Deu ordens à criada para o não importunar, trancou-se no quarto e debruçou-se sobre a escrivaninha. De manhã, como a porta continuasse fechada por dentro, a velha, preocupada, chamou por Lucas, bateu à porta, bateu mais, forçou a fechadura e conseguiu derrubar a chave. E pelo buraco viu o rapaz estirado ao chão. Desesperada, saiu à rua, aos gritos. Enquanto corria e chorava, alertava o povo para a nova desgraça: Luquinha parece que morreu, minha gente.

Fonte:
Nilto Maciel. Os Luzeiros do Mundo. Fortaleza/CE: Editora Códice, 2005.

Olivaldo Junior (De Véspera)

Dizem que a véspera é melhor que o dia “D”. Depois de certo tempo, não há mais nenhuma espera, nem de véspera.

A véspera, para um homem, é motivo de trégua. Esconde os cascos e esgarça o sorriso. Mas nem todo homem. Existe um que eu bem conheço que não descansa faz tempo. O tempo não tem mais tempo para o rio que ribeira, a beira que esbarra nos pés de um poeta, um célebre das rimas, sem rumo nenhum, mas cheio de métodos. Metáforas só tem sentido quando fora.

Esse homem descobriu-se poeta para ver se era alegre ter parte com as letras e com todos os milhões de coisas que elas tocam. Mas não foi nada disso que achou. Não era um tesouro o ouro da escrita. Os outros poetas não eram sempre amistosos. Ficou desgostoso e se pôs a andar. Era hora.

Buscou quem pudesse ser o amigo que ele sempre quis. Andava a se lembrar dele mesmo aos pés da vitrola, de olho na porta, para ver se chegava alguém. Nunca chegava. O Natal estava perto. Néctar.

Olhando o chão da praça da cidade, notou que nele estavam mil e um folhetos com dizeres encantados provocando o consumo. Aquele homem se encolhia diante dos monstros que habitavam os shoppings e as lojas que só pensam no que os outros vão comprar de mais custoso. Desanimou-se. Não tinha o amigo que sempre quis. O mundo não o tinha em conta. Via Crúcis de si.

Assim que ficou noite, deitou-se num banco qualquer. Podiam tê-lo como um mendigo. Ele bem o era. Sequer sabia quem era Francisco, mas franciscano bem o seria. Sim, era véspera de Natal. O homem, pouco antes da meia-noite, deu de acordar e foi para junto da grande cruz, no meio da praça, enraizada. Ao lado dela, uma árvore um tanto maior indicava quem era o dono do mundo. O mundo dentro dele ruía, e não era, a noite, feliz. Chorou tudo o que não tinha chorado até os... Não, não contava a idade dele a ninguém. Não era do tempo. Chorou.

Deu meia-noite. O homem, de frente para a cruz, ressurreto em próprio pranto, batizado em próprias lágrimas, deitou-se de abertos braços aos pés do Cristo e, todo exangue, sangrou sem sangue toda a tristeza e todo o segredo de nunca ter sido feliz. O amigo não veio. Esquece-se dele agora.

Não nasceu nenhuma rosa no lugar em que se expôs aquele homem, Nenhuma pedra se interpôs a quem fizesse aquilo. Logo que o sol se estirou, ninguém deu pela falta do cara que se fizera desencantar.

Mas houve, em algum lugar, talvez no topo do Monte Everest, alguém que dele guardou uma lágrima num verso pernóstico, num resto de adeus, num rosto em retratos que o morto não viu. Houve um amigo.

Moji Guaçu, SP, seis de dezembro de 2012.

Fonte:
O Autor

Franklin Jorge (Nilto Maciel: O Universo Mágico dos Gregotins)

Publiquei neste domingo na coluna que assino no Novo Jornal e o reproduzi em minha página na web, pequeno e despretensioso comentário contendo minhas impressões de leitura de Nilto Maciel, um prolífico escritor de Baturité que se recolheu à Fortaleza, de onde irradia-se em sortilégios literários de que é prova cabal esse livro que não pode faltar na biblioteca dos pesquisadores e dos amantes da literatura.

Em Gregotins de Desaprendiz [Editora Bestiário, Porto Alegre, 2013], uma compilação que creio bastante resumida da colaboração do autor em diversos veículos que acolhiam a literatura contemporânea. Nesse livro que constitui um grato reencontro com autores e companheiros de geração, escritores que estrearam naqueles anos 70 do século passado, por todo o país. À página 140 e na segunda orelha, transcreve Nilto palavras de admiração que tenho escrito sobre sua atividade intelectual ímpar e benfazeja.

Nilto leu centenas de livros, milhares talvez; leu e opinou sobre os mesmos, e agora, em edições bem cuidadas, os divulga, cônscio de que a arte começa com o exercício da generosidade. Nesse livro, reitero, o leitor arguto e sensível, perspicaz e infatigável, desperta-nos a curiosidade por esses autores circunscritos, majoritariamente, em suas províncias natais, autores sem editoras, sem distribuição, sem mídia e sem leitores, que predominam nos escritos desse escritor cearense que há mais de 40 anos difunde a literatura brasileira contemporânea.

Devotou-se o autor de Gregotins a devorar e divulgar os impressos recebidos como doação, presente, mimo, como o confessa na apresentação à pág. 7: “Poucos dos escritores por mim lidos naquele período tiveram sobras divulgadas por editoras de grande porte”. Desde aquele ano de 1976, quando pôs em circulação e editou O Saco que colocou a literatura marginal no circuito das discussões, Nilto não parou mais e com isso tem prestado inestimável serviço às letras.

Assim, graças aos seus registros sobre autores, deparei-me à pág. 14 com uma curta e perspicaz resenha sobre a escritora Socorro Trindad, enfocada a partir da leitura do livro Cada Cabeça uma Sentença e descobre, na autora nascida em nossa pacata e ilustre Nísia Floresta, a antiga Papary (RN), duas virtudes essenciais: a capacidade de misturar o trigo e o joio e esplêndida cultura literária. E fico imaginando o que diria o autor – se é que não o disse em um outro texto – sobre o livro de estreia de Trindad, Os Olhos do Lixo, que eu possuía com o autógrafo da autora.

Nessa colaboração advinda de publicações diversas, algumas já extintas, o registro de uma atividade intelectual que se destaca e encoraja-nos a pesquisar e conhecer esse movimento que deu vida à produção literária da época. Resenhas e ensaios dispersos em publicações como o Suplemento Minas Gerais; O Povo e O Unitário [Fortaleza]; Suplemento da Tribuna da Imprensa [Rio de Janeiro]; Correio Braziliense e Jornal de Brasília; Suplemento Cultural O popular, Folha de Goiaz e Opção [Goiânia]; Jornal da Semana e Diário do Comércio [Recife], estão reunidas aqui, por Nilto Maciel, que enumera 42 autores dentre os inumeráveis que perfilou em centenas de resenhas que suponho ainda inéditas em livros. São eles, assim nominados em Gregotins: Francisco Carvalho: um poeta maior; O universo fabuloso de Juarez Barroso; Socorro Trindad: misturando o joio e o trigo; Joanyr de Oliveira: um poeta quase bíblico; Miguel Jorge: veias e vinhos; Nagib Jorge Neto: cordeiros e lobos; José Alcides Pinto: ordem e desordem; Caio Porfírio Carneiro: a incandescência do sal; Adrino Aragão: o suor da escrita; O pássaro de luz de Guido Heleno; Carlos Emílio Corrêa Lima: epopeia e mito; Emanuel Medeiros Vieira: desespero e morte; O engenho poético de Batista Lima; Aguinaldo Silva: reflexos grotescos; Enéas Athanázio: histórias catarinenses; Salomão Sousa: a lógica do pessimismo; Glauco Rodrigues Corrêa: literatura policial com L maiúsculo; Silveira de Souza: nós e o fogo; Dimas Macedo: poemas das lavras de um poeta; José Lemos Monteiro: crônica de uma era monstruosa; Avarmas de Miguel Jorge; Luís Martins da Silva: a fertilidade da poesia; O filão de Luciano Barreira; Valdomiro Santana: concisão e profusão no dia do juízo; Diogo Fontenelle: um topógrafo da poesia; Naomar de Almeida: o homem como natureza; O laboratorista Paulo Nunes Batista; Ubirajara Galli: êxtase fabular; O. G. Rego de Carvalho: entranhas da alma; Wilson Pereira: narrativas poéticas; Floriano Martins: poesia da paisagem; W. J. Solha: a lucidez possível; José Peixoto Júnior: sobre o Cariri; A poesia de Sérgio Campos; Jesse Navarro Jr: o poder da síntese ou a síntese do poder; Antonio Possidônio Sampaio: documentário do ABC.

O livro conclui com a publicação de alguns pequenos e consistentes ensaios sobre temas correlatos, a saber: 64 D.C. (antologia); Elefante enjeitado; Outros poetas do Ceará; Mais nove romancistas; Outros poetas de Goiás; Outros contistas; Duas antologias de poemas; Duas antologias de contos; e, mais, informações precisas sobre o autor [dados biográficos, livros publicados, fragmentos da volumosa Fortuna Crítica que bem a merece o escritor Nilto Maciel.
(O santo ofício, www.osantoofício.com, 21/4/2013)

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/04/o-universo-magico-dos-gregotins.html

Wagner Marques Lopes/MG (Fábula o Lobo e o Cocheiro)

À margem de uma estrada rural, um lobo abordou um cocheiro:

- Vim caçar longe de meu covil e perdi meu caminho. Moro lá nos altos rochedos e se eu continuar fora da estrada poderei me extraviar de vez... Posso acompanhá-lo até as proximidades de minha furna?

O cocheiro refletiu:

- Um lobo, bicho que possui tanto faro, perdendo o caminho de casa?!... Isso é muito estranho!...Se eu deixar ele caminhar ao lado da carruagem, com muita agilidade, ele poderá atacar um de meus cavalos!...

       E veio a solução:

- Vou ajudá-lo... Você pode me acompanhar, mantendo uma distância de cinquenta metros da carruagem, pois o caminho está muito seco. Se você me seguir muito perto do coche, seus olhos poderão ficar prejudicados pela poeira!...

Sem saída, o lobo acatou a sugestão. E lá se foram. Em paz, o cocheiro e os cavalos... Menos o lobo.

Moral em trova

Cautela tem seu lugar –
o prudente é o mais feliz.
Há lobos que vão cear
distantes de seus covis!
1

1. Trova sobre o provérbio latino:
“QUANDO O LOBO VAI FURTAR,
LONGE VAI CEAR”.

Alphonse Daudet (O Segredo de Mestre Cornille)

 Nossa região, meu caro leitor, não foi sempre um sítio morto e sem canções, como é hoje. Antigamente havia aqui um ativo comércio de farinha. De dez léguas ao redor, os granjeiros nos traziam seu trigo para moer. Por toda parte, à volta da aldeia, as colinas estavam cobertas de moinhos de vento. À direita e à esquerda, só se viam asas de moinhos que volteavam ao sopro do mistral; acima dos pinheiros, filas de burricos carregados de sacos, subindo e descendo ao longo dos caminhos; e a semana inteira era o prazer de ouvir o estalido dos chicotes, o ruído seco do tecido dilacerado e o “Dia hue!” dos ajudantes dos moleiros. Aos domingos, íamos em bandos aos moinhos. Lá no alto, os moleiros pagavam o muscat. As moleiras eram belas como rainhas, com seus fichus de rendas e suas cruzes de ouro. Eu levava meu pífaro, e até altas horas da noite dançavam-se farândolas. Aqueles moinhos, como o senhor vê, eram a alegria e a riqueza da nossa terra.

 Infelizmente, franceses de Paris tiveram a idéia de estabelecer uma moagem a vapor, na estrada de Tarascon. Tudo belo, tudo novo! O povo tomou o hábito de enviar o trigo aos novos moageiros, e os pobres moinhos de vento ficaram sem trabalho. Durante algum tempo tentaram lutar, mas o moinho a vapor foi o mais forte. Um após outro — pobrezinhos! — foram todos obrigados a fechar. Não se viu mais virem os burrinhos. Nada de vinho!... Nada de farândolas!... O mistral soprava forte, as asas permaneciam imóveis... Depois, um belo dia, a municipalidade mandou demolir todas essas ruínas, e semearam-se em seu lugar vinha e oliveiras.

 Entretanto, em meio à derrocada, um moinho se havia mantido e continuava a girar corajosamente, sobre a colina, nas barbas dos moageiros. Era o moinho de Mestre Cornille, este mesmo onde estamos fazendo serão, neste momento.

 Mestre Cornille era um velho moleiro. Havia sessenta anos vivia metido na farinha. A instalação das moagens a vapor tinha-o deixado como louco. Durante oito dias viram-no correr pela aldeia, a reunir em tumulto toda a gente à sua volta, e a gritar, com todas as suas forças, que queriam envenenar a Provença com a farinha dessas fábricas.

 — Não vão lá embaixo — dizia ele. — Aqueles bandidos, para fazer o pão, servem-se de vapor, que é uma invenção do diabo, enquanto que eu trabalho com o mistral e o transmontano, que são o hálito do bom Deus!...

 E ele encontrava, como estas, uma quantidade de belas palavras em louvor dos moinhos de vento, mas ninguém as escutava.

 Então, com uma raiva maligna, o velho fechou-se no moinho e viveu completamente só, como um animal selvagem. Nem mesmo quis conservar junto de si a neta, Vivette, uma menina de quinze anos, que, mortos os pais, não tinha ninguém senão o avô no mundo. A pobre pequena foi obrigada a ganhar a vida e a se empregar ora aqui, ora ali, nas fazendas, para a colheita, os bichos-da-seda ou os olivais. Entretanto o avô parecia amá-la muito. Chegava a fazer freqüentemente quatro léguas a pé, na soalheira, para ir vê-la na casa em que trabalhava. Uma vez junto dela, passava horas inteiras a contemplá-la, chorando...

 Pensava-se, na região, que o velho moleiro, deixando sair Vivette, agira por avareza. Não o honrava ter consentido que a neta assim deambulasse de uma fazenda para outra, exposta às brutalidades dos vaîles e a todas as misérias que cercam as jovens, nessas condições de trabalho. Achava-se também muito malfeito que um homem da reputação de Mestre Cornille, que até ali era respeitado, fosse agora pelas ruas como um verdadeiro boêmio, pés nus, o boné furado, a faixa da cintura em tiras... O fato é que, no domingo, quando o víamos entrar para a missa, tínhamos vergonha por ele, nós outros os velhos; e Cornille o sentia tão bem, que não mais ousava vir sentar-se no banco dos administradores da paróquia. Ficava sempre no fundo da igreja, junto à pia de água-benta, com os pobres.

 Na vida de Mestre Cornille havia alguma coisa obscura. Havia muito tempo ninguém, na aldeia, lhe levava mais trigo, e no entanto as asas do seu moinho iam sempre fazendo seu ofício, como antes. À tarde, encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, tangendo à sua frente o burro carregado de grandes sacos de farinha.

 — Boas tardes, Mestre Cornille! — gritavam-lhe os camponeses. — Então, sempre vai indo a moagem?

 — Sempre, meus filhos — respondia o velho com ar altivo. — Deus seja louvado, não é trabalho o que nos falta.

 Então, se lhe perguntassem de onde podia vir tanto trabalho, ele colocava um dedo sobre os lábios e respondia gravemente:

 — Silêncio! Eu trabalho para a exportação...

 Jamais se pôde tirar mais nada dele, além disso. Quanto a meter o nariz no seu moinho, nem se devia sonhar. A própria Vivette não entrava ali. Quando se passava diante dele, via-se a porta sempre fechada, as grandes asas sempre em movimento, o velho burro retouçando a erva, sobre a plataforma, e um gatão magro que tomava sol no peitoril da janela e olhava para a gente com um ar maldoso.

 Tudo isso sugeria mistério e fazia tagarelar o mundo. Cada um explicava à sua maneira o segredo de Mestre Cornille, mas o rumor geral era que ele tinha em seu moinho mais sacos de dinheiro que de farinha.

 Com o decorrer do tempo, entretanto, tudo se descobriu. Eis como:

 Fazendo dançar a mocidade com o meu pífaro, percebi um belo dia que o mais velho dos meus rapazes e a pequena Vivette se haviam enamorado um do outro. No fundo, eu não ficara nem um pouco zangado, porque, apesar de tudo, o nome de Cornille era honrado entre nós; e dar-me-ia prazer ver saltitar em minha casa essa linda avezinha de Vivette. Somente, como nossos namorados tinham freqüentemente ocasião de estar juntos, eu quis, de medo de acidentes, regular o negócio imediatamente; e subi até o moinho, para trocar sobre o assunto duas palavras com o avô.

 Ah! o velho feiticeiro! Era preciso ver de que maneira me recebeu! Impossível fazê-lo abrir a porta. Expliquei-lhe minhas razões, mal-e-mal, através do buraco da fechadura; e durante o tempo em que lhe falei, ficava esse ladrão de gato magro a soprar como um diabo, acima da minha cabeça. O velho não me deu tempo de terminar, e me gritou muito malcriadamente que retornasse à minha flauta; caso tivesse pressa de casar o rapaz, fosse procurar moças na fábrica...

 O senhor imagine como o sangue me subia, ao ouvir essas más palavras. Contudo eu tive até bastante prudência para me conter, e, deixando o velho louco em sua mó, voltei para anunciar aos jovens o meu humilhante insucesso. Os pobres cordeirinhos não podiam acreditar. Pediram-me que lhes permitisse subirem os dois juntos ao moinho, para falar ao avô. Não tive coragem de recusar, e eis os namorados a caminho.

 Justamente quando chegaram ao alto, Mestre Cornille acabava de sair. A porta estava fechada com duas voltas; mas o velho, ao sair, deixara a escada fora. Imediatamente os moços tiveram a idéia de entrar pela janela, para verem o que havia nesse famoso moinho.

 Coisa singular! O quarto da mó estava vazio. Nem um saco, nem um grão de trigo; nem a menor farinha nos muros, nas teias de aranha... Não se sentia nem mesmo esse bom cheiro quente do grão de trigo triturado, que embalsama os moinhos. A braçadeira estava coberta de pó, e o gatão dormia em cima dela.

 A peça de baixo tinha o mesmo ar de miséria e de abandono: um mau leito, alguns trapos sujos, um pedaço de pão sobre um degrau da escada; e, finalmente, num canto, três ou quatro sacos furados, de onde escapavam caliça e areia.

 Era o segredo de Mestre Cornille! Era esse entulho que ele passeava à tarde pelas estradas, para salvar a honra do moinho e fazer crer que ali se produzia farinha... Pobre moinho! Pobre Cornille! Havia muito tempo os moageiros tinham-no feito perder os últimos negócios. As asas viravam sempre, mas a mó girava no vazio.

 Os mocinhos voltaram, lavados em lágrimas, para me contar o que tinham visto. Senti o coração machucado ao ouvi-los. Sem perder um minuto, corri à casa dos vizinhos, contei-lhes a coisa em duas palavras, e concordamos todos em que era preciso levar imediatamente ao moinho de Cornille tudo que houvesse de grão em nossas casas. Tão logo foi dito, logo se fez. Toda a aldeia se pôs a caminho, e chegamos ao alto com uma procissão de burros carregados de trigo — trigo verdadeiro!

 O moinho estava completamente aberto. Diante da porta, Mestre Cornille, sentado num saco de gesso, chorava, com a cabeça entre as mãos. Acabava de perceber, entrando, que durante sua ausência alguém penetrara em sua casa e surpreendera seu triste segredo.

 — Pobre de mim! — dizia ele. — Agora não me resta senão morrer... O moinho está desonrado.

 E soluçava de cortar o coração, chamando seu moinho por todas as espécies de nomes, falando-lhe como a uma pessoa viva.

 Nesse momento os burros chegaram à plataforma, e nós nos pusemos todos a gritar bem alto, como nos belos tempos dos moleiros:

 — Eh! Ó do moinho!... Ei! Mestre Cornille!

 De súbito os sacos se acumulam diante da porta, e o belo grão ruivo rola abundantemente pela terra, de todos os lados.

 Mestre Cornille arregalava os olhos. Apanhara um pouco de trigo no côncavo da velha mão, e dizia, rindo e chorando ao mesmo tempo:

 — É trigo!... Senhor Deus! Trigo verdadeiro!... Deixem-me contemplá-lo...

 Depois, voltando-se para nós:

 — Ah! Eu sabia que vocês voltariam...

 Queríamos levá-lo em triunfo até a aldeia.

 — Não, não, meus filhos! É preciso, antes de tudo, que eu vá dar de comer ao moinho... Pensem! Há muito tempo que nada lhe pomos entre os dentes!

 E todos nós tínhamos lágrimas nos olhos, de ver o pobre velho agitar-se para a direita e para a esquerda, destripando os sacos, vigiando a mó, enquanto o grão arrebentava e a fina poeira do trigo subia para o teto.

 Justiça nos seja feita: a partir desse dia, nunca deixamos faltar trabalho ao velho moleiro. Depois, certa manhã, Mestre Cornille morreu, e as asas do nosso derradeiro moinho cessaram de virar, para sempre desta vez. Morto Cornille, ninguém continuou sua obra...

Fonte:
Alphonse Daudet. Contos. SP: Cultrix, 1993.

Joyce Cavalccante (O Cão Chupando Manga)

Sob o provocativo título de O Cão Chupando Manga, foi publicado pela editora Bertrand Brasil mais um surpreendente romance de Joyce Cavalccante. O Cão Chupando Manga é uma expressão muito usada no nordeste para definir qualquer coisa superlativa. Zezito, personagem maior dessa história, é feio ao ponto de ofender mas incrivelmente capaz de se dar bem, daí a autora ter se apoderado dessa frase característica do colorido e imagético linguajar do povo lá de cima do mapa, para oferecer à literatura brasileira este delicioso e divertidíssimo romance que tem como cenário a cidade de São Paulo entre os anos 1971 e 1985, movimentada pela ambição dos políticos, pela ganância dos empresários, pelo amor livre dos jovens e por um audacioso garçon cearense.

Narrada em linguagem fluente e agradável, a exemplo das melhores obras clássicas, essa ficção faz seus personagens atravessarem quase quinze anos de real história brasileira, que aqui é usada como pano de fundo para as fortes emoções tecidas nos corações das personagens. O final é surpreendente, comprovando título tão bem escolhido.

Joyce sempre foi conhecida como autora de obras, no mínimo, polêmicas que envolvem temas transgressores como a sexualidade feminina, a luta da mulher para se afirmar num mercado de trabalho adverso, os problemas enfrentados por elas quando tentam sobreviver num mundo concebido apenas no masculino. Aqui, além de confirmar essa tendência, a autora confirma também seu estilo literário maduro e estimulante que vem encantando os leitores, não só do Brasil, mas também do exterior.

322 PÁGINAS.
web page da autora:
http://www.JoyceCavalccante.com

Fonte:
REBRA