sexta-feira, 10 de maio de 2013

Juraci Siqueira (Encavernado)

Chove sobre a cidade. Chuva densa, impiedosa. Chuva que exerce sobre mim o estranho poder de conduzir-me às brenhas de mim mesmo qual animal acuado à procura da toca. Troglodita indefeso em busca do ventre pétreo da caverna...

Mergulho em meus comigos a cismar sobre o destino da Terra e do Homem – esse construtor de estradas para lugar nenhum. Mas quando a antevisão do caos me deixa apavorado e triste, transponho os muros do real e vou colher, no pomar dos sonhos, os pomos dourados da poesia.

Poetas somos, em nosso ofício, criaturas solitárias por razões que bem não atino. Talvez pela necessidade de estarmos a sós com a palavra no momento mágico da concepção da poesia, para que nenhum mortal possa testemunhar a dor ou a alegria estampadas em nossas faces na hora do parto do poema.

Chove. Cerco-me de palavras para tentar esquecer que neste momento o planeta é oferecido em holocausto aos deuses do progresso e que, em nome de Deus e da Justiça, homens sacrificam-se mutuamente como se fosse possível conceber guerra justas e santas!...

Tento desesperadamente convencer-me de que a poesia está acima do bem e do mal, acima dos homens, de suas leis, crenças e ideologias. Digo a mim mesmo que os poetas somos seres privilegiados, que não devemos, por isso, deixar que a voz das armas fale mais alto aos nossos ouvidos que a voz do vento, que a voz do mar, que a voz do nosso coração. Mas é impossível enganar-se a si mesmo quando se tem o peito dilacerado por uma bala ou por uma lâmina de baioneta que, sem pedir licença, invadem nossos lares via satélite. Impossível não escutar as trombetas do Apocalipse anunciando que mais cordeiros serão imolados para saciar a sede de modernos e sádicos vampiros.

A chuva faz-me regredir no tempo e voltar à caverna, jardim de infância da humanidade onde o homem rabiscou a primeira flor, domou a primeira fera, articulou a primeira palavra, fabricou a primeira arma e, seguramente, organizou a primeira batalha contra seus semelhantes...

Os ruídos da chuva misturam-se ao som do televisor que exibe imagens de um conflito qualquer. Imagens cruéis, animalescas. Fatos que fazem com que eu me sinta, verdadeiramente, um troglodita cercado de feras e condenado aos limites de minha própria caverna. Humana e trágica caverna a se fechar, cada vez mais, em torno de meus medos, meus delírios, minhas convicções...

E é assim que vejo a alegoria platônica da caverna realizar-se em mim. Atualizar-se com o regresso do homem ao seu primitivo útero de pedra. Mas, ao contrário do mito, já não há boas novas para anunciar. Apenas a triste constatação de que o homem moderno, a despeito de sua avançada tecnologia que lhe permite destruir seu semelhante e o meio em que vive com o auxílio do átomo, não conseguiu ser um pouco melhor que seus ancestrais que já faziam o mesmo com paus e pedras. É triste admitir que em plena era da informática as armas continuem a falar mais alto que as palavras e que estas sirvam de instrumento para promover a discórdia entre os povos, para inverter e perverter valores, para transformar a liberdade numa “calça velha, azul e desbotada...”

A chuva passou mas eu continuo entrincheirado entre palavras. Afundo e confundo-me nelas para proteger-me das garras do ódio, para resistir às leis das armas. Com elas fabrico, quixotescamente, meu escudo e minha lança para investir contra os moinhos da insensibilidade humana.

Os poetas somos criaturas solitárias a esgrimir com o verbo. E precisamos, urgentemente, de paz para continuar semeando amor e poesia nos canteiros do mundo, nos pomares da vida, nos corações dos homens.

Fonte:
http://blogdobotojuraci.blogspot.com.br/

Raimundo de Araujo Chagas (Folhas Poéticas)

Espaço Das (facebook)
JUDAS
 
Antes de vir o Sol, a vila já alarmada,
mostra em cada garoto um grande espadachim,
que anda de rua em rua, em louca disparada,
atrás de um Judas vil, de crânio de capim;

De um Judas moleirão de cara amarrotada,
de pança desconforme e cheia de estopim,
que liga um buscapé a uma bomba encerada,
pronta para estrugir, em honra do festim.

Num bulício infernal, a garotada infrene,
espera com prazer, do sino a voz solene
para então reduzir em cinzas o espantalho!...

E os vampiros reais, os judas elegantes,
vivem sempre a cantar, como viviam dantes,
desdenhando do Bem, da Vida e do Trabalho.

O CANÁRIO DE BERTHA
 

Júlia tinha um canário, tu bem viste,
mas Bertha tinha um outro extraordinário
que muitas vezes o seu canto ouviste
como se fosse um sonho imaginário.

Júlia tratava os dois de modo vário!
Tanto assim que o de Bertha fez-se triste
porque ela dava alpiste ao seu canário
dando arroz ao de Bertha em vez de alpiste.

Como o canário original de Bertha,
estristeci, vendo na vida incerta
esse grupo de cínicos que existe,

que estende a mão de amigo sendo algoz,
vão criando canários com arroz
e alimentando amigos com alpiste...

FASES DO ANO

Janeiro! Eleva-se o rio.
Fevereiro — alaga os campos.
Março e Abril! Noites de frio,
bordadas de pirilampos.

Maio! Festa... sacramentos.
Junho — geme o órgão dos ventos,
buscando o luar de agosto.

Setembro e Outubro. É o verão.
Novembro, espalha alegrias
nas praias de Amarração.

Natal! Dezembro. O ano expira.
Trezentos e muitos dias
só de ilusões ... de mentira!

SAUDADE

Eu vivo como o mar, bebendo os rios,
rios da Dor que crescem, com certeza,
em meu ser, quando o inverno da Tristeza
chega e vence ao cair dos tempos frios.

Eu vivo como os pássaros sombrios,
dos quais a tempestade em luta acesa
roubou dos ninhos frágeis e macios,
isolando-os da própria natureza.

Eu vivo como as águas das cascatas
que a força eterna de um tremendo fado
desfia em prantos no painel das matas.

Eu vivo sem viver, esta é a verdade,
pois não pode viver um torturado
que se alimenta apenas da saudade!...

O HOMEM
 

Garboso rei supremo das quimeras,
que vieste, por momentos, como eu vim,
a este orbe, onde por grande que pareças,
um dia hás de ter sempre o mesmo fim

que têm as borboletas, os vampiros,
as lesmas, as serpentes e os abutres.
No entanto,à luz de exemplos tão frisantes,
somente de vaidades, enfim, te nutres.

Se comercias, ninguém mais honesto
no serviço do peso ou da medida.
Tens filho? — Hás de supor que os teus parecem
as almas mais perfeitas desta vida.

Contudo és grande: regulaste o tempo,
mediste a terra, devastaste o espaço.
Tudo tens feito aos rasgos do teu gênio
seguido pela força do teu braço.

E assim te elevas, orgulhosamente.
Do mundo gozas todos os conceitos.
Tudo sabes fazer, mas, por desgraça,
não sabes conhecer os teus defeitos!

Baixa, pois, desce até chegar aos vermes.
Busca o teu nível, sofre e te consola.
Não julgues nunca que és alguma cousa
diante do pobre que te pede esmola.

Humilha-te, portanto, ante os humildes.
Sonda tua alma, purga os teus pecados.
“Os que se humilham neste mundo, no outro
serão pelos feitos exaltados”.

Fonte:
O BEMBÉM, Ano 1,  N. 8, N. 8, Parnaíba, Piauí, 21 de agosto de 2008. Disponivel em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/piaui/r_petit.html

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Herberto Sales (Os Pareceres do Tempo)

Herberto Sales (Andaraí, BA, 1917- Rio de Janeiro,RJ,1999) surge no panorama literário brasileiro, em 1944, com o seu primeiro romance, Cascalho, a nos apresentar os crimes e lutas inerentes aos garimpos, num contexto de violência e aventura, numa moderna retomada da temática de Lindolfo Rocha, regionalista do princípio do século XX. Quarenta anos depois de Cascalho, precedidos pela publicação de contos e outros romances do autor, surgem Os Pareceres do Tempo, “romance de duas velhas famílias que se enredam em episódios vividos por uns tantos membros dela: os Golfões e os Rumecões, na antiga região denominada Cuia d’Água.” O cenário principal de Os Pareceres do Tempo é a Bahia do final do século XVIII.

O romance tem como ponto de partida a vinda para o Brasil do português Antônio José Pedro Policarpo Golfão – “mais crescido nos prenomes, que no sobrenome” (LIVRO I, p. 11) – que recebe uma sesmaria no município de Cachoeira, como reconhecimento do rei de Portugal por seu pai, um fidalgo, cujo nome não nos é dado a conhecer, ter morrido ainda no mar, indo para a Índia, em missão portuguesa. Ou numa “outra versão da morte do fidalgo: a que ele, entre os da família do tão célebre apelido Golfão, o mais antigo ancestral na tradição referido, encontrou a morte, não no mar, mas na batalha de Alcácer-Quibir, batendo-se contra o gentio, no elevado propósito de no incréu incutir a Fé, com a ajuda eficaz da Espada; isso, sob o comando superior e piedoso de El-Rei D. Sebastião, que ali, desgraçadamente, também pereceu”.

Este é, pois, fato cuja veracidade é incerta:

Conquanto não haja documentos que indiquem, sob a grave proteção dos arquivos, haver existido em qualquer tempo esse fidalgo, não ousamos pôr em dúvida tão respeitável versão, que até nos chegou sem discrepância, robustecida por mais de dois séculos de tradição local”. (LIVRO I, p.11)

E, como está nos REGISTROS FINAIS (p. 409), segundo o narrador:

“Estes registros fizemo-los depois de visitarmos em Cuia d’Água a antiga fazenda do capitão Policarpo, já praticamente em ruínas. Braulino José foi o nosso principal informante. Levou-nos até ao cemitério da fazenda, em parte já invadido pelo mato”.

O enredo de Os Pareceres do Tempo é construído com base na tradição oral interna da obra, através do depoimento do filho de Policarpo – Braulino José, aos 132 anos de idade – dado ao narrador; depoimento este aliado à dinâmica do panorama da Bahia dos anos de setecentos. Mas

“a dualidade de versões do óbito infortunado fidalgo e – já agora, por que não dizer? – também possível guerreiro, de quem em linha direta descendia Policarpo Golfão, não alterou o desfecho do reconhecimento póstumo que por justiça a pátria lhe tributou, aquinhoando, como de fato aquinhoou, o seu filho único e legítimo com a já competentemente citada sesmaria no alto serão da Bahia, então sede do governo colonial do Brasil”. (LIVRO I, p. 13)

Eram, portanto, as terras do Brasil de quem aqui chegasse munido de documento de doação concedido pelo rei de Portugal.

Desde Cascalho, verificamos esse gosto do autor pela oralidade popular:

“Nos barulho do Coxó
Briga até as lagartixa
- Os calango de combléia
E elas de manulicha...” (p. 47).

“Viva Santa Rita,
Que é Santa mulher,
No céu e na terra,
Ela faz o que quer!” (p.78).


Em Os Pareceres do Tempo, a construção da vida de Policarpo, refletida no seu estado de espírito, nos vai sendo apresentada pela ótica popular, em pequenos versos:

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão”. (LIVRO XVII, p. 94)
“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Com Liberata no coração”. (LIVRO XLIX, p. 350)

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
De volta da sua vingança
Com Liberata na lembrança (LIVRO LII, p. 372)

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Levando com devoção
A sua igreja no coração”. (LIVRO LIV, p. 398)


Conta-nos o narrador – tão ironicamente distanciado do autor no prefácio – como as três raças que compõem a mestiçagem brasileira conviviam, mas não se misturavam, procurando conservar suas características sociais e culturais.

“E foram todos, depois, para a mesa, com o Fidalgo sentado à cabeceira, e Policarpo a seu lado. O padre Gumercindo e o padre Salgado, e mais o Quincas Alçada, ocuparam os outros lugares. Isto no corpo principal da mesa; porque, continuando-a, no seu desdobramento festivo, democraticamente franqueado aos principais auxiliares de Policarpo na fundação da fazenda e na edificação da casa-grande, outros lugares havia, reservados ao mestre-de-obras Dinis e a seu filho Serafim, e ao capitão-do-mato José do Vale e ao seu auxiliar Bertoldo. E abriram-se garrafas de vinho, e com generosidade o serviram, as garrafas transitando na mesa e esvaziando-se no degustado e comovido suceder dos goles, que o vinho, a todos apetecendo, também lhes lembrava, no enlevo de seus vapores, o tão distante quanto amado Portugal. (...)

(...) Os escravos e os índios comiam à parte, servindo-se duns fumegantes caldeirões comandados pelo índio Nicodemus (ex-Sinimu), disso encarregado por Quincas Alçada. (...)” (LIVRO XXIII, p. 134-5)


Ainda neste almoço, os escravos cantaram e dançaram:

“Taratatara kundê / Ogum de lê / Oyá jamba / Maion gangê / Kawô / Kawô / Oyá ajô”

E comenta o narrador:

“Ninguém entendia o que diziam, o que cantavam eles; mas as palavras, os sons da cantoria deles impressionavam pela tristeza profunda e doce, pela dorida melancolia que comunicavam, ao mesmo tempo em que eram carregados duma aspereza de imprecações dramáticas”.

E diz mais o narrador:

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“Ao contrário dos negros, os índios conservavam-se em silêncio, no mesmo lugar onde desde o começo estavam. Trocavam entre si, às vezes, um olha, mas, entre si, não se falavam. Ou falavam entre si com os olhos.” (LIVRO XXIII, p. 135-6)

Essa reação dos índios de não se deixarem dominar nem aculturar é-nos mostrada mais à frente da narrativa de modo decisivo:

“Policarpo reconheceu-o:
- Gonçalo!
- Não sou Gonçalo! – respondeu o índio, evidentemente zangado. Meu nome é Icurê. Gonçalo foi o nome que padre botou em índio. Gonçalo é nome de branco. Icurê não é branco. Índio é índio. Meu nome é Icurê.” (LIVRO I, p. 358)


Nessa narrativa nós, leitores, somos conduzidos pelos passos do tentacular Policarpo – “consta que era alto, e corpulento; era branco, e louro, com viçoso bigode e barba farta, emparelhados com basta cabeleira cacheada. Um homem bonito; um soberbo varão, segundo registro da mais fundamentada tradição oral.” (LIVRO I, p. 12) – até a cruel realidade de um contexto onde “o levar ou o trazer escravos assim acorrentados e amarrados, (...) era fato assaz corriqueiro naqueles tempos, nas ruas da Bahia; ninguém lhes prestava atenção, ou quase ninguém”. (LIVRO XI, p. 58).

Nesse mundo antiético, onde o caos e o cotidiano se justapõem – o vai-e-vem de escravos acorrentados, estranhos transeuntes traficados da África nas ruas da Bahia, a esbarrarem-se com as famílias portuguesas que, se por um lado mostravam religiosidade, temor a Deus, por outro, faziam tráfico de escravos, na sua maioria:

“Explicou, ainda, o Almeidão a Policarpo Golfão que, tendo em vista que a hospedaria não lhe proporcionava a ele satisfatórios lucros, resolvera, para não ter de resignar-se ao ganho dum sustento sem futuro, buscar em outra atividade a necessária complementação de renda. E que a escolha dessa atividade recaíra no tráfico de escravos, por ser ela, além de lucrativa, de muita respeitabilidade na Bahia. Ademais, quase todos que a ela se entregavam eram portugueses, não os de inferior condição, mas, ao contrário, os de mais representação na colônia; e, tanto isto era verdade, que os portugueses traficantes de escravos tinham mesmo a sua Irmandade própria, que cuidava dos seus interesses deles na sociedade civil e no Foro; e que constituía a dita Irmandade, em suma, uma respeitabilíssima entidade sócio-jurídica, que se organizara sob a grave invocação de São José. Enfim, a ninguém repugnava – fosse português o sujeito, fosse ele até mesmo brasileiro – a ninguém repugnava traficar com escravos, visto ser esta atividade, no comércio baiano, quiçá do Brasil, um dos ramos mais lucrativos.” (LIVRO III, p. 20)

O tráfico de escravos praticado pelo padre Salviano Rumecão é por ele cinicamente narrado ao seu amigo Quincas Alçada; justificando-se:

“A propagação da fé, dos ensinamentos da Igreja; o empenho em manter os fiéis à salvaguarda do Demônio, pregando-lhes a palavra de Jesus, e ensinando-lhes a serem justos uns para com os outros: o piedoso pastoreio das almas, para manter em fervorosa união o rebanho de Deus – se, de fato, todas essas altas atribuições dignificavam e elevavam a missão do sacerdote, não havia, na prática, como preterir, no exercício delas, a pecúnia, a remuneração, o santo e rico dinheirinho (...) E os mártires, como se sabia, tendiam, com o progresso, a desaparecer de todo.” (LIVRO V, p. 27-8)

Tudo a transcorrer dissimuladamente, num misto de profanação e religiosidade, compondo o decoro hipócrita de uma sociedade impudentemente barroca.

Os Pareceres do Tempo são também uma história de amor. Duas mulheres amam Policarpo: Liberata Rumecão e a escrava Gertrudes. Mas o triângulo amoroso não se consolida de fato, em nenhum momento da narrativa, talvez por preconceito ou por ser Poli carpo realmente fiel ao seu amor por Liberata, até mesmo depois da morte dela. Em determinado momento ele diz à Gertrudes:

“- Sabes que podias ter tido um filho meu? – perguntou-lhe Policarpo, olhando-a com ternura.
Ela baixou a cabeça. Ele, com um sorriso embaraçado:
- Esquece o que te disse. Hoje somos compadres. Hoje somos apenas amigos. De resto, Liberata te estimava muito, e sabia que eu te estimava. Esquece o que te disse. Liberata estará sempre entre mim e ti”. (LIVRO LIV, p. 393)


E é pelo amor de Liberata que Policarpo se enche de vigor, de coragem, de energia para realizar todos os seus empreendimentos, para viver. Liberata vivia no Solar dos Sete Candeeiros e a sua presença, com seus “cabelos muito negros” que “caíam-lhe em tranças sobre o busto, emoldurando-lhe o rosto gracioso” (LIVRO VI, p. 32) é sempre, para Policarpo, a luz que ilumina a áspera realidade daquele contexto “uma formosa jovem que, mostrando-se ao sol, e tendo por ele realçada a sua beleza (...) pareceu-lhe ela a Policarpo Golfão como se fora uma flor, ou uma luz, porque era luzente como uma estrela a sua figura gentil.” (LIVRO VI, p. 32)

E, no decorrer da narrativa:

“Era a donzela Liberata que entrava. Então, a nave acendeu-se em ouro e púrpura, e em ouro acesa iluminou nos altares os crisântemos, no teto a fímbria das cornijas, na capela-mor os tocheiros perfilados. (...)
- Liberata... As letras daquele mágico nome: forma e cor e luz saindo ordenados dum resplandecente maço de emoções que uma fita desatasse” (LIVRO XXVIII, p. 172-3). “Como uma luz que na sombra de repente se acendesse.” (LIVRO XXXVIII, p. 250)


Herberto Sales incorpora ao seu romance a figura de mestre Manuel, do saveiro Viajante Sem Porto – personagem de Jorge Amado

- “que nasceu em saveiro e morou sempre em saveiro, aparenta trinta anos, ninguém lhe dá os cinqüenta que traz no costado, todo ele é de uma cor só, um bronze escuro, e é tão difícil dizer se é branco, negro ou mulato; é um marinheiro que raramente fala e que é respeitado em toda a zona do cais do porto da Bahia e em todos os pequenos portos onde pára seu saveiro.”

Configura-se, aqui, uma personagem mítica, alegórica, semelhando-se, em alguns aspectos, a Caronte, o barqueiro que transportava as almas para o Hades, o inferno grego.

Em Os Pareceres do Tempo, mestre Manuel, num diálogo com Policarpo, explica a origem do nome do seu barco:

“- Mas, Manuel, que te deu na telha para batizares o teu barco com o nome de Viajante Sem Porto? Olha que estranhei esse nome! Então não tens tu um porto para ti e o teu barco? – tornou Policarpo Golfão, sorrindo e fazendo sorrir também o Almeidão e Quincas Alçada.
- É que esse nome foi dum barco do meu pai – disse mestre Manuel. Enfim, se isto é verdade, também verdade é que vivo de porto em porto com o meu barco, como se porto não tivéssemos ele e eu: quando chego a um, já tenho que partir para outro. Não me parece mau esse nome Viajante Sem Porto. Não o acho nada estranho. E só espero é que o Manuelzito, meu único filho homem, quando mais tarde lhe houver chegado a vez de me substituir, que seja também um mestre e que tenha também o seu Viajante Sem Porto, que haverá de tomar o lugar do meu.” (LIVRO X, p. 55)


E comenta o narrador de Os Pareceres do Tempo, numa clara referência a Jorge Amado:

“Praza a Deus que, em dias que hão de vir, encontre essa bela região do Recôncavo baiano um escritor que a descreva num livro tão belo quanto ela, que corra o Brasil e o próprio mundo; e que, captando toda a poesia que docemente a impregna, fale dos seus saveiros e da sua gente, talvez dum novo Viajante Sem Porto, talvez dum novo mestre Manuel”. (LIVRO XII, p. 66)

Conclusão

Os Pareceres do Tempo são uma obra de ficção, cujo contexto narrativo é a Bahia do final do século XVIII. O enredo deste romance é tecido aliando ficção e realidade; uma ficção construída com base na tradição oral interna da obra.

Os Pareceres do Tempo conta-nos histórias de amor, de dominação, mas, sobretudo, a história da formação de um povo; da construção de um país, do Brasil.

Herberto Sales, em Os Pareceres do Tempo, através da humanidade de suas figuras, apresenta-nos uma história cheia de força, vigorosamente atual, numa expressão e linguagem tão equilibradas, que fazem deste romance uma síntese da narrativa genuinamente brasileira.

Fonte:
http://www.seruniversitario.com.br

Darcy França Denófrio (Livro de Poesias)

Biblioteca Manuel Antonio Pina
 À SOMBRA DE EVA

I

Era um tempo de trevas
e de brumas sobre o meu corpo.
Um tempo de pesadas vestes:
uma única janela para o meu rosto.

Um cavalo avassalava
minhas planícies e vales,
me punha bridas e loros,
depois um cinto de castidade.

Eu não falava: minha língua
guardava-se em ostra
e o estro silenciava-se
numa lira que dormia.

Meu amo determinava:
eu só ouvia.
Meu amo vociferava:
eu encolhia.

II

Com a roca e o fuso
e um cesto da mais pura lã,
adestrava meus dedos
para tecer a manhã.

Sozinha no burgo,
(ah! bem longe era o meu Senhor)
embalava no berço
a balada que eu compus.

E meu canto se alçava
e com ele também eu,
enquanto durava a paz
que a guerra me podia dar.

Eu não lia nem soletrava
sobre uma távola redonda;
só adestrava meus dedos
para tecer a manhã.

E num bosque bem fundo,
numa grota dentro de mim,
meu estro se formava
numa lira eólia
que acordava.

E eu enredava no fuso
(horário) outra manhã.

III

Quantos séculos dormiu meu canto?
Quem estrangulou minha garganta
afiada para solar, meu canto?

Era um pássaro mudo
engolindo a cascata
aérea de seu canto.

Um pássaro na gaiola
ferindo as asas —
sonata a debater-se.

Um pássaro preso
a olhar o céu (arquiteto)
e seu aceno de poesia.

PROCURA-SE

Quero um amigo verdadeiro
a quem possa vomitar
a alma e o coração inteiro.

Que me ouça sem interromper,
sem condenar nem defender,
que apenas me ouça o mais profundo.

E depois, sem nada cobrar,
seja terno, seja puro, só amigo,
bebendo comigo, sem dividir nem multiplicar,
a grande solidão de meus segredos.

O RISCO DAS PALAVRAS
(Para Moema de C. e Silva Olival)

Ah! a miséria da oficina das palavras!
Onde pescar a que melhor convém?
                                       Maiakovski


Diante de você sempre emudeço.
Tenho as palavras batendo, ba-ten-do
ao peito mais que à garganta.
Mas é tão grande o risco das palavras
que, delas, finjo que me esqueço.

Ah, as palavras, se não houvesse o risco,
eu diria todas, tropeçando em pedras
como algumas cachoeiras, mas jorrando
sem parar a urgência de suas águas.

Mas as palavras acordam até mesmo
os deuses mais adormecidos
e é melhor não dizê-las, guardá-las
como pedras, mesmo ferindo o peito.

Se eu não as disse algum dia,
alguém lhe dirá sem medo do risco,
porque há os que abrem as comportas
e extravasem sem reservas suas águas.

Mas eu sou dessas barragens
que não se entregam nem extravasam,
mesmo com a maior das enchentes.

LIÇÃO

Embaixo, a rede.
Em cima, a lição
de um caramanchão.

Um trançado de cipós
camadas secas sobrepostas
nenhum sinal de vida
                                havida.

Sobre lianas mortas
outra explosão de verde
outra explosão em flor.

E um pássaro em concerto.

POEMA DA DOR SEM NOME

Essa mágoa
ói tão fundo
como se houvesse
perfurado o abismo
interior de meu  mundo.

Dela, não serei vassala
só quero lançá-la
como um fio infinito
que se joga no abismo
até vomitar de vez
o início da ponta.

Depois, chegar
à íntima alegria
sem sentir a broca
perfurando a rocha
de meu poço artesiano.

À alegria de alcançar
as águas tranquilas
minhas mais profundas
reservas humanas.

 E ouvir o íntimo silêncio
águas entre rochas calcárias
sem nenhuma pressa
águas que não estremecem
nem trincam
                     o espelho da alma.

ÍNVIO LADO

Tell all the truth but tell it slant -
Success in circuit lies.
                         Emily Dickinson


Há um lado da flor
que não penetramos:

 talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.

 Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.

 E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua quota de reserva.

 É do outro lado
(do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.

 É lá que se contorceu
e guardou a sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre)carrega.

 Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado
                              inviolado.

 ESCAPE


 A raça humana
não pode suportar muita realidade.
T.S. ELIOT


 Conheço a distância
que vai entre o sonho
e a dura realidade.

 E conheço a fórmula
de amortecer o susto
e a queda do último piso.

Olhar sem crer lá fora
esse vidro que corta
e fechar, atrás de si, a porta.

 Plantar, como sempre faço,
essas flores no paredão do muro
para deslumbrarem os meus olhos.

 E, nessa lente distorcida,
em que capto a beleza,
mesmo aquela que não existe,

 ficar musgo sobre a rocha
— véu veludoso verde veludo —,
cobrindo essa faca que cega o corte.

OS PEIXES DE MEU RIO
 Não, não é fácil escrever. É duro como
quebrar rochas.
          Clarice Lispector


 Eu me desnudo e me visto
neste duro ofício de entrega.

 Se as vestes revelam o corpo,
há o pudor e a dissimulação

 no trançado desse tecido
que é teia e tato antes de tudo.

 Eu me desnudo e me visto.
e nem assim eu me preservo.

 Sob o vestido há sempre a pele
que transpira e se revela;

 há outra dimensão do signo
que corcoveia e se rebela.

 Sob o tecido há sempre um corpo
que se amotina e se entrega.

 POEMA

 No reverso, a história de meus versos.
No avesso, a pura canção de gesso,
que se sustenta no azul da lenda,
no equilíbrio do fio que (entre)teço.

 Na superfície, a frauta noturna
de sustenidos ais e bemóis.
Na superfície, a fraude fria
e a neblina sobre mil lençóis.

 E no fundo d'água, nos peraus,
que moram os peixes de meu rio.
É no remanso que alguma iara
sempre se esquiva solitária.

 De repente, o susto da cilada,
um anzol recurvo — aço e isca —
mas os meus peixes não se entregam,
apenas provam de leve, triscam.

PONTO FINAL

Se não há mais nada a fazer
é isto mesmo - em frente.
Não importa a direção
a que se ande (já disseram)
desde que seja para frente.
Se a última palavra
já foi pronunciada
não cabe vírgula
nem outros sinais de pontuação
a não ser o ponto final

A VERDADE DENTRO

Se não houvesse
esse pacto secreto
de silêncio de chumbo

ou essa oclusão completa
de um travo-de-ferro
na grota da garganta,

a verdade fluiria fluida
do flanco da montanha
ou do poço da garganta.

Mas esse silêncio
foi fabricado, dentro,
não por mim ou você,

mas por oceanos de mãos,
segurando bridas e freios,
esmagando goelas e anseios,

desde a mais remota manhã
em que o potro selvagem
ensaiou sua disparada na planície.

Fonte:
Antonio Miranda

terça-feira, 7 de maio de 2013

José Lins do Rego (Fogo Morto)

José Lins do Rego é um dos escritores mais importantes do chamado Neo-Realismo Regionalista Nordestino, que integra a segunda fase do Modernismo brasileiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos, na prosa, e Drummond, na poesia.

O romance modernista dos anos 30 recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freire, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local. O livro mais importante de Gilberto Freire é Casa Grande e Senzala (1933).

Fogo Morto (1943) é a obra-prima de José Lins do Rego. Como romance de feição realista, esse livro procura penetrar a superfície das coisas e revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro, num largo período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a Abolição, até as primeiras décadas do século XX.

O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. O romance conta a história de um poderoso engenho, o Santa Fé, desde sua fundação até o declínio, quando se transforma em "fogo morto", expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos. Retomando o espírito de observação realista, o autor produz um minucioso levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba. Em virtude do apego ao cotidiano da região, Fogo Morto apresenta não apenas valor estético, mas também interesse documental.

Fogo Morto não se esgota na classificação de romance regionalista, embora essa seja uma noção correta. Há outros componentes importantes na obra, a partir dos quais se pode enquadrá-la numa tipologia consagrada. Talvez o mais ilustre antecedente de Fogo Morto na literatura brasileira seja O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Em que sentido? No sentido de tomar uma personagem coletiva como objeto de análise. Assim como Aluísio investiga o nascimento, vida e morte de um cortiço do Rio de Janeiro, José Lins penetra no surgimento, plenitude e declínio do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba. Com efeito, o engenho parece possuir vida própria, embora suas células sejam as pessoas que o formam. Como análise quer dizer decomposição, o autor decompõe as pessoas como forma de expor a constituição do todo. Por essa perspectiva, Fogo Morto tanto pode ser entendido como um romance social quanto psicológico. Em rigor, uma categoria não existe sem a outra. O livro é forte em ambas as dimensões.

Embora Fogo Morto apresente uma estória muito movimentada, não se trata de um romance de ação: pretende atrair pela problematização social e existencial, e não pela surpresa dos acontecimentos. O estilo da obra é modernista, pois baseia-se na linguagem cotidiana, revestindo-se de oralidade espontânea, isto é, o autor procura escrever como se fala. Resulta daí a impressão de vivacidade e dinamismo. Possui força dramática e senso do real. Poucas vezes um autor obteve tanto êxito na manipulação da frase curta e elementar, com palavras extraídas do uso diário. Seu ritmo sintático e narrativo é nervoso, quase frenético, imitando o vaivém das pessoas pelas estradas do engenho. Pertence ao Regionalismo Nordestino, porque aborda a paisagem específica dessa região, mas as questões abordadas transcendem os limites regionais, o que é comum nas obras bem realizadas.

Em Fogo Morto, o autor soube transformar em ficção a vida real dos engenhos nordestinos. Trata-se de uma sociedade decadente, marcada pelo ressentimento, pelo desajuste e pela revolta. Domina em tudo uma atmosfera de ruína social e depauperamento psicológico, embora persistam aqui e ali sinais de uma felicidade antiga, restrita aos habitantes da casa-grande. Sem pertencer propriamente ao famoso Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto é uma retomada mais densa da matéria dos romances que o compõem: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), e Usina (1936). Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. Todavia, em Fogo Morto, ainda não há sinais de industrialização na produção de açúcar. Quanto a José Amaro, sim, sua decadência decorre em parte do processo de industrialização das selas, que já ocorre nos centros urbanos.

A fábula do livro não apresenta rigorosa unidade, isto é, não conta apenas uma estória, mas diversas, porque o propósito do romance é investigar e revelar o variado tecido social de um engenho típico da Paraíba. Assim, o livro divide-se em três partes: "O Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha".

Na primeira parte domina a figura do seleiro Zé Amaro, morador revoltado do Engenho Santa Fé, que enfrenta enorme problema de inadaptação com o mundo. Na verdade, está praticamente se despedindo da vida. Em aguda crise existencial, pressente a morte nos mínimos detalhes. Permanece sentado na tenda de trabalho em frente de casa, à beira da estrada, por onde passam os diversos moradores do engenho.

A segunda parte de Fogo Morto traça os antecedentes da situação de José Amaro, que é semelhante à de seu compadre Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cujo destino também se confunde com a vida do engenho. Nesta parte, há um longo flashback ou retrospectiva da formação do latifúndio, em que se evocam as lutas do fundador, Capitão Tomás Cabral, para o estabelecimento daquela unidade econômica.

A terceira parte concentra-se nas aventuras do Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo de justiça. Nesse particular, irmana-se a José Amaro. Mas é radicalmente contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, empregava a valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua figura resulta numa mescla de momentos sublimes com momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões, é a única personagem gloriosa no romance.

Personagens que não sofrem alteração são consideradas sem profundidade psicológica. Por isso são chamadas planas, das quais os tipos são uma variação. José Passarinho é personagem plana, pois mantém sempre o mesmo estatuto, do princípio ao fim do romance. Por outro lado, trata-se de personagem secundária, cuja função é apoiar a existência das demais. Assim são o pintor Laurentino, o aguardenteiro Alípio, o negro Floripes e outros coadjuvantes.

Tipo é a personagem que se confunde com o estereótipo, no qual se condensam características genéricas de uma certa categoria de pessoas. Capitão Antônio Silvino é um tipo revestido de significação alegórica. Funciona como uma espécie de emblema, representando a força da subversão, o poder de uma justiça ilegal porém legítima. Tira dos ricos para dar aos pobres. O Tenente Maurício é semelhante ao cangaceiro, pois também representa uma instituição, a força legal do governo, manchada de mando ilegítimo.

As personagens que sofrem mudança substancial possuem mais densidade psicológica, sendo por isso chamadas de esféricas. As três personagens principais de Fogo Morto são esféricas, pois toda a trama do romance decorre das transformações de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a personagem, mais rico o seu significado. Num certo sentido, essas três personagens podem ser consideradas loucas, embora em diferentes graus e com sintomas diversos.

A eficiência das situações e personagens de Fogo Morto decorre também do fato de o autor escrever em tom memorialístico, como se fizesse uma crônica sobre o que vivenciou em sua experiência com a realidade do povo da Paraíba, sua terra natal. Sendo um neo-realista, só poderia escrever sobre fatos observados empiricamente.

Fogo Morto é uma obra caracterizada pela captação da vida interior das personagens. Nela, a paisagem externa é importante, mas as vivências interiores recebem mais atenção do artista. Há muita ruminação psicológica no livro. Tal investigação do universo mental processa-se sobretudo através do discurso indireto livre, pelo qual se chega a densos monólogos interiores, que se confundem com o fluxo de consciência.

Fonte:
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A Estética De Uma Redação

No nosso primeiro contato com a redação, podemos achar que é muito fácil mas, na realidade, surge algo que torna importante o nosso ato de escrever que se mantém na forma de passar a mensagem ao nosso leitor e a estética do trabalho redacional, que mostra o quanto estamos interessados em que nosso pensamento seja bem compreensível com lógica e clareza.

Surge então a busca por um trabalho mais limpo e com estética para a estrutura. Observando os exemplos de redações da dica passada, podemos notar que a estética não é tão ordenada, por isso a sequência lógica se perde no meio do caminho e fica sem sentido no que diz respeito ao desenvolvimento de seus argumentos centrais e finais para uma conclusão mais segura e estruturada.

Lembre-se sempre que, ao formar um Plano de Trabalho para escrever sua redação, você deve visualizar também a sua ESTÉTICA:
 
= Nunca comece uma redação com períodos longos. Basta fazer uma frase-núcleo que será a sua idéia geral a ser desenvolvida nos parágrafos que se seguirão;

= Nunca coloque uma expressão que desconheça, pois o erro de ortografia e acentuação é o que mais tira pontos em uma redação;

= Nunca coloque hífen onde não é necessário como em penta-campeão ou separação de sílabas erroneamente como ca-rro (isto só acontece em espanhol e estamos escrevendo na língua portuguesa);

= Nunca use gírias na redação pois a dissertação é a explicação racional do que vai ser desenvolvido e uma gíria pode cortar totalmente a sequência do que vai ser desenvolvido além de ofender a norma culta da Língua Portuguesa;

= Nunca esqueça dos pingos nos "is" pois bolinha não vale;

= Nunca coloque vírgulas onde não são necessárias (o que tem de erro de pontuação !);

= Nunca entregue uma redação sem verificar a separação silabica das palavras;

= Nunca comece a escrever sem estruturar o que vai passar para o papel;

= Tenha calma na hora de dissertar e sempre volte à frase-núcleo para orientar seus argumentos;

= Verifique sempre a ESTÉTICA: Parágrafo, acentuação, vocabulário, separação silábica e principalmente a PONTUAÇÃO que é a maior dificuldade de quem escreve e a maioria acha que é tão fácil pontuar !

= Respeite as margens do papel e procure sempre fazer uma letra constante sem diminuir a letra no final da redação para ganhar mais espaço ou aumentar para preencher espaço;

= A letra tem que ser visível e compreensível para quem lê;

= Prepare sempre um esquema lógico em cima da estrutura intrínseca e extrínseca;

= Não inicie nem termine uma redação com expressões do tipo: "... Eu acho... Parece ser... Acredito mesmo... Quem sabe..." mostra dúvidas em seus argumentos anteriores;

= Cuidado com "superlativos criativos" do tipo: "... mesmamente... apenasmente." . E de "neologismos incultos" do tipo: "...imexível... inconstitucionalizável...".

Se você prestou atenção nas redações da dica anterior, percebeu que elas estavam seguindo a estrutura redacional intrínseca (interior) quanto a INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO E CONCLUSÃO, mas não obedeciam a parte extrínseca (exterior) que é a apresentação da Redação, ou melhor, a aparência da escrita mostrando um conteúdo limpo e claro.

O que notamos é que nas redações faltaram parágrafos e respeito às margens (estética do trabalho) e a DISSERTAÇÃO do estudante que colocou várias idéias na introdução sem definir uma geral e tornou odesenvolvimento confuso, pois faltou dissertar sobre as tais conveniências comerciais do ovo de páscoa da introdução e centrou muito na História da Figura do Cordeiro sem explicar o que a ver a malhação de Judas e o Domingo de Páscoa. A conclusão começa a ficar em apuros e o fechamento das idéias da introdução e do desenvolvimento terminam prejudicadas. Nosso desafio é escrever esta dissertação usando todas as dicas para uma redação boa.

Como disse meu colega, o Professor Rogério: "A melhor dica para Redação: é Pensar. Penso logo escrevo" O segredo é simples: EU ESCRITOR TAMBÉM SOU LEITOR . ( Tudo que estou escrevendo vem do que penso e preciso montar um bom plano para entender o que escrevo e deixar minha leitura mais compreensível para os demais leitores )

A LÓGICA ESTRUTURAL: FRASE-NÚCLEO

Observe o texto dissertativo e analise a sua parte lógica na introdução, desenvolvimento e conclusão:

A PÁSCOA CRISTÃ

A Páscoa é uma festa cristã. Nela celebramos a Libertação dos Hebreus por Móises e Javé (Jeová -verbo hebraico para Ser) como também a Ressurreição de Cristo.

A Bíblia relata no Velho Testamento a saída do povo hebreu perseguido pelo Faraó e libertos pelo Senhor na passagem do Mar Vermelho, mas no Novo Testamento a Ressurreição abre uma idéia de salvação, de vida nova, de libertação do corpo pela vida eterna após a morte e eleva o sonho de um mundo novo: A Nova Jerusalem. Por estes eventos comemoramos a Páscoa.

Em todo mundo cristão comemora-se a Páscoa como a festividade mais significativa de libertação e ressurreição por dois momentos bíblicos que marcam a mesma esperança de encontrar a Nova Jerusalém.
Nota-se claramente que além da estética exterior e da simples idéia de seguir a estrutura interna, o escritor prezou pela lógica de sua redação e não só pelo segmento da introdução, desenvolvimento e conclusão mas nota-se uma definição muito clara de uma idéia geral (central) na introdução que fortaleceu o encadeamento das idéias e protegeu o sentido argumentativo do contexto e fechou a conclusão trazendo ao leitor a visão do que o tema pediu a Páscoa Cristã e que foi mencionada no núcleo frasal: "... A Páscoa é uma festa cristã...".

Veja o esquema lógico montado em cima da estrutura redacional: TEMA: A Páscoa Cristã; Núcleo ou Tópico-frasal: A Páscoa é uma festa cristã (idéia geral) Desenvolvimento (idéias encadeadas ou periféricas que sustentam a idéia central)

Saída do povo hebreu (EXODUS)

Ressurreição de Cristo (PROMESSA DE DEUS)

Promessa de Vida Eterna (NOVA JERUSALEM) Conclusão (Conversão das idéias proclamadas na redação)

"... todo mundo cristão..." "... festividade significativa..."(puxa a idéia central da introdução)

"...dois momentos bíblicos..." "... Nova Jerusalem..." (puxa o argumento do desenvolvimento)
O que ocorreu na dissertação anterior a esta foi a confusão de idéias e isto complicou a estrutura então podemos dizer que dentro da introdução surge a primeira idéia a ser construída na redação e a conclusão termina a montagem de nosso pensamento escrito. E como fica o desenvolvimento ? Isto vamos mostrar em suas formas de ordenações que é o mais simples de se fazer dentro de um tópico frasal bem estruturado e vamos mostrar todas as formas de ordenações do desenvolvimento. Não percam!

Montamos em nossa tela mental o que vamos fazer no papel:

TEMA: Os brasis do Brasil Frase-núcleo: O Brasil por suas variadas diversidades possui vários brasis que se moldam no território nacional e determinam algo que vai além de suas fronteiras regionais.

Desenvolvimento:

A divisão territorial;
A formação regional;
Os diferentes brasis.

Conclusão:

Cada região territorial é um Brasil diferente não só por sua divisão fronteiriça mas por sua diversidade cultural, geográfica e muito mais política fortalecendo o Brasil como Nação e Governo.

Temos um Brasil que se forma de diversas maneiras em cada região e possui uma forma diferente de observar o País como meio de sobrevivência de um povo ou de fortalecimento político das massas emergentes em suas áreas de atuações territoriais, regionais, culturais e políticas.

Quase preparamos a redação só na esquematização da lógica inicial da introdução.

Fonte:
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O Moderno Romance Brasileiro (Vertentes)

Libreria Fogola Pisa
Toda a ficção da literatura brasileira pós-Alencar segue uma das duas vertentes, que nascem com a narrativa do autor de Senhora e que correm paralelamente. Essas vertentes paralelas são a corrente regionalista e a corrente psicológica.

O homem e sua relação com o meio é a matéria-prima do regionalismo que, por sua vez, tem aqui um conceito nada redutivo. Entendemos como regionalista tanto a literatura que tem como temática o meio rural, campesino, quanto a que tem como temática as grandes capitais e as zonas suburbanas, sendo, por isso, nossa ficção, em sua maioria, regionalista: Aluísio de Azevedo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Herberto Sales, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Torres.

Na outra margem, a corrente psicológica se ocupa de analisar o comportamento do homem diante dele mesmo e em face aos outros: Machado de Assis, Raul Pompéia, Adelino Magalhães, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, Lígia Fagundes Teles, Rubem Fonseca.

Toda a ficção nacional é de motivação, de temática, de ambiente, de linguagem brasileira, preocupando-se e ocupando-se nossos ficcionistas com o gênero humano. No romance e no conto brasileiros, em suas duas vertentes, há momentos em que se entrelaçam, se justapõem as duas vertentes ficcionistas, como, por exemplo, na obra de Graciliano Ramos. O Modernismo não fugiu à regra, continuando na incorporação da matéria-prima local, que é o Brasil.

A ficção brasileira tem fisionomia e comunicação verbal próprias: o povo, a paisagem, os costumes, os tipos e patologias sociais, os problemas, tudo e todos integrantes de um mundo brasileiro, mas não por isso menos universal.

Nesta exploração de motivos regionais, ao olhar para si e suas circunstâncias, no tratar da sua gente e dos seus costumes, ao mostrar sua terra e sua cultura, nossa ficção encontra os valores universais no mundo humano regional, pois, como disse Tolstoi, para ser universal deve-se cantar a sua aldeia.

A nossa história começa com a chegada de um homem vindo da Sibéria, quando nível do mar baixou, e o Estreito de Bering era terra firme, pouco antes de 20.000 a.C. Depois de milhares de anos de vida seminômade, experimenta a agricultura, adquirindo um desenvolvimento econômico, cultural, social e político que não pode ser desprezado, como o foi desde a época da colonização. Mas estamos às portas de um novo século, de um novo milênio e não podemos incorrer em sectarismos.

O brasileiro é um povo mesclado, um povo mestiço, um misto de etnias diferentes: índios, negros, brancos com sensibilidade própria, com uma concepção própria da vida. A ficção nacional deve ser compreendida como um todo, que prossegue com um desenrolar-se contínuo, que parte de mananciais brasileiros, de elementos do folclore, da tradição oral, de um imaginário e um fabulário populares que geram os componentes da nossa narrativa; que partem desse complexo cultural. Nossas constantes literárias – o indianismo, o abolicionismo, o sertanismo, o urbanismo – são provenientes da oralidade advinda da formação, da fomentação social brasileira. Essa marcante oralidade prenuncia o futuro gosto dos nossos ficcionistas pelo documentário em suas narrativas calcadas, sobretudo, na sensibilidade e no inconsciente populares somados ao tratamento e aos elementos literários que lhes irão conferir validade estética.

A ficção irá predominar em uma nova fase do Modernismo brasileiro, desencadeada por A Bagaceira, de José de Américo de Almeida e por Macunaíma, de Mário de Andrade. Neste momento, as duas direções da narrativa brasileira – a regionalista e a psicológica – são marcadas por um veemente caráter de brasilidade e de renovação. Depois do realismo e do impressionismo, ativadas ainda pelo experimentalismo, essas duas direções amadureciam para gerar a época de ouro da ficção modernista, uma das mais altas da nossa literatura, dos anos de 1930 e 1945.

Nesta época de inquietações sociais originadas com a crise econômica de 1929, a literatura brasileira trilhou novos rumos à esquerda, com um enfoque novo do realismo, que veio a influenciar profundamente a ficção social portuguesa da década de 40, através das narrativas de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado. Esses ficcionistas têm a terra como elemento constitutivo de seus contos e romances. Outra característica de certos autores desse período é apresentar uma obra de cunho documental, o que ocasiona algumas dúvidas quanto ao valor dessa ficção e a relação entre o romance – do ponto de vista estético – e o seu sentido social. Mas esses ficcionistas, com uma expressão artística atualizada, redefiniram o romance regionalista tradicional. Suas narrativas, ainda que ambientadas numa determinada região, possuem uma dimensão que poderia compreender o conjunto de todo o Brasil, sobretudo pela visão crítica convergindo para o caráter social. Eles não estavam a representar os problemas específicos de uma determinada região e sim, problemas nacionais.

A literatura brasileira desse período procura retratar o que ocorria efetivamente, de modo realista, com um sentido bastante engajado, visando a transformar a realidade em suas estruturas sociais. O percurso do romance social de 30 estende-se nas décadas posteriores, em que se procurava enxergar o país a partir de setores marginalizados, incluindo-se, também, seus registros de fala, como acontece, por exemplo, na ficção de Jorge Amado.

A ficção amadiana está envolvida por toda uma reflexão crítica dos problemas sociais do Brasil, e procura conscientizar o leitor dos verdadeiros problemas do seu tempo. Nesse período é predominante o romance de intervenção social, sendo para seus autores a ficção um espaço de crítica ou de denúncia social, numa tentativa de encontrar solução para aqueles problemas mesmo diante do poder de pressão exercido por Getúlio Vargas sobre os órgãos de comunicação.

O Modernismo, nos seus primeiros tempos, retoma o espírito de liberdade e o sentimento de orgulho em ser brasileiro, fazendo uma releitura dos valores românticos. O desejo de liberdade modernista reflete-se sobretudo na linguagem, que vai procurar transcrever o coloquial nos diálogos da nossa ficção, alcançando seu ponto alto na obra de Jorge Amado.

Dentro de toda esta profusão de anseio pelo novo, pelo movimento, pelo futuro, surge a geração de 45, a procurar impor ordem, disciplina ao que, para ela, seria o caos. A geração de 45, num certo retorno parnasiano, tenta apurar o estilo ficcional brasileiro valorizando a linguagem acima de tudo, tendo seu ponto máximo na obra revolucionária de Guimarães Rosa, cuja força épica e poder onírico de sua narrativa abalaram a consciência literária brasileira, desde a publicação de Sagarana, em 1946. Na ficção rosiana, a revolução se dá principalmente na linguagem: primeiro, na construção da frase, passando, posteriormente, para o rebuscamento vocabular, desencavando arcaísmos mineiros, como um verdadeiro filólogo amador, criando ousados neologismos.

O romance de 45, todavia, não deixa de ter, como a ficção de 30, um teor documental.

Fonte:
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segunda-feira, 6 de maio de 2013

Conde de Ficalho (A Caçada do Malhadeiro)

 Tínhamos ido — o mestre Domingos ferreiro, o malhadeiro(1) do Valfundo e eu — em busca de um porco-do-mato, que o malhadeiro atalaiara na véspera. Tencionávamos fazer apenas uma mancha(2) pequena, próximo da qual o porco fora visto, e voltar à tarde ao monte das Pedras Alvas, onde ficara o nosso rancho.

O malhadeiro foi com os cães bater, enquanto o mestre Domingos e eu esperávamos nas portas. O porco não estava na mancha. Batemos segunda, onde também não estava; mas aí os cães pegaram com força no rasto, e embaixo do vale achamos-lhe as saídas frescas. Sempre na esperança de o encontrar, batemos terceira e quarta mancha, e fomos de cerro em cerro, de vale em vale, até que, quando nos decidimos a voltar — sem ter visto um pêlo do porco — estávamos a duas léguas, e léguas de serra áspera das Pedras Alvas. Era em dezembro, já ao cair da tarde. Começava a chover, e as nuvens grossas, correndo ao lado do sul, anunciavam uma noite de água.

— Nós, com um tempo desses, não deitamos nas Pedras Alvas senão alta noite — disse o mestre Domingos.

— Não deitamos, é certo! Maus raios partam o porco! — acrescentou o malhadeiro, para se consolar.

— Mas que há a fazer?

— Podíamos ir à malhada da Crespa, que é daqui meia légua. O tio João sempre há de ter alguma coisa que se coma, e um lume pra gente se enxugar.

— Pois vamos lá.

As nuvens negras tinham-se fundido num tom cinzento. A chuva engrossava. Batida com força pelo vento, passava em linhas claras, apertadas, quase horizontais, sobre o verde-negro dos cerros. O malhadeiro abria caminho a corta-mato,(3) e o mestre Domingos e eu seguíamos, abaixando a cabeça, fugindo às rajadas de chuva que nos açoitavam a cara. Em fila atrás dos nossos calcanhares vinham os cães, tristes, de orelha caída. O mato escorria. Nos vales, cheios de erva densa, a terra ensopada cedia fofa debaixo dos pés; e as pegadas, marcadas no musgo verde, enchiam-se logo da água que ressumava. À luz tênue da tarde, algumas poças maiores brilhavam, com reflexos frios de prata polida. Duas galinholas saltaram-nos aos pés, sacudindo com a ponta da asa as gotas cintilantes, presas às folhas viscosas das estevas; mas as espingardas estavam carregadas de bala, bem acomodadas debaixo do braço, com as fecharias tapadas pelas abas dos jalecos, e nenhum de nós ia de humor para atirar em galinholas.

— Maus raios partam o porco! — dizia de vez em quando o malhadeiro.

Era noite fechada, quando os perfis confusos de umas azinheiras grandes se desenharam diante de nós, no clarão baço do céu. Ouvimos ladrar os cães — estávamos na Crespa. O tio João veio à porta, conheceu a voz do outro malhadeiro e abriu logo. Estava só em casa, com a nora e os netos pequenos; o filho andava trabalhando longe dali, e não voltara.

Improvisou-se rapidamente uma ceia pobre, que nos pareceu excelente. Duas braçadas de lenha seca de azinho estalavam na enorme chaminé, com uma chama clara, muito alegre. E quando acabamos de cear e nos chegamos para o lume, acendendo os cigarros, penetrou-nos uma grande sensação de bem-estar. Lá fora ouvia-se o cair monótono da chuva, e as lufadas do sul assobiando na telha-vã da malhada.

Naturalmente falou-se de caça — o ferreiro e os dois malhadeiros eram os três primeiros caçadores da serra.

— Oh! tio João, você é que fez uma caçaria melhor que todas essas? — disse o ferreiro, depois de se contarem muitos casos de mortes de porcos e de veados.

— Fiz... fiz... — disse o velho, como quem meditava.

— Você devia nos contar esse caso esta noite.

— Ó mestre Domingos, eu não gosto de falar nisso.

— Ora, uma vez não são vezes... Eu sei do caso, mas nunca lho ouvi contar bem a preceito como ele foi, e os mais que aqui estão não o sabem.

— Pois conto — respondeu o malhadeiro, abaixando-se para acender o cigarro em uma brasa.

Estava sentado defronte de mim, dentro da chaminé, ao lado da nora. A luz crua da labareda iluminava-lhe brutalmente a cara enérgica, sulcada de rugas fundas, muito queimada. Entre os joelhos tinha o neto, uma criança de sete ou oito anos, com uma cabecita redonda, bem encabelada, e uns olhinhos pretos, vivos, em que a chama punha pontos brilhantes. De vez em quando a mão negra, muito dura, do velho passava sobre a cabeça do pequeno, com um toque suave, de uma doçura infinita. Diante do lume, o ferreiro e o Joaquim do Valfundo estendiam para o brasido os sapatos grossos e as polainas, que ainda fumavam. A chama, levantando e abaixando, projetava-lhes as sombras, desmesuradamente grandes, na parede caiada do fundo, fazendo-as dançar de um modo fantástico.

— Isto por aqui, no tempo dos franceses, esteve mau... muito mau! — começou o malhadeiro. Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem foi; mas depois, quando iam na retirada, sem respeito lá aos seus comandantes nem a ninguém, queimavam e roubavam tudo. Os montes, nos barros, estavam todos desertos; e mesmo cá na serra, nas malhadas mais perto das estradas, não ficou viva alma. Todos fugiam, levando alguma coisa melhorzita que tinham. Meu pai quis aqui ficar. “Pra onde há de a gente ir? — dizia ele. — E depois, isto é cá desviado, não vêm cá”.

Eu, ao tempo, era rapazote, ia nos meus dezassete. Estava aqui com meu pai e as minhas duas irmãs; a Inês, a mais nova, que ainda vive, era mais velha do que eu um ano; e a Mariana, Deus lhe perdoe, teria então os seus vinte ou vinte e um.

Passou tempo, sem os franceses aparecerem. A gente sabia que passavam tropas, aí pelas estradas, direitas a Espanha; mas cá na serra já estava descuidada. Quando uma manhã, que eu andava lavrando com a parelha ali no farrejal, e meu pai estava falquejando umas aivecas aqui na empena, a Inês, que tinha ido à fonte... — a fontinha lá abaixo na umbria, sabes, Joaquim? — a Inês veio fugindo ladeira acima, e chegou aí esfalfada, dizendo: “Aí vêm... aí vêm!”

E vinham. Tinham se desviado da estrada, perderam-se e vieram a corta-mato, diretos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito. Vinham muito rotos, com os sapatos em frangalhos, atados com trapos. Um — estou-o vendo — alto, magro, com o nariz grande e o bigode caído nos cantos da boca, trazia um lenço branco, sujo, com grandes manchas de sangue, atado à roda da cabeça.

Meu pai bradou-me, e quando eu vim correndo, disse-me baixo: “Esconda as espingardas”.

Fui àquele canto onde elas sempre têm estado, peguei-as, passei à porta de trás, e fui metê-las na palha da arramada. Quando voltei, já os franceses estavam dentro de casa. Não se percebia nada do que diziam, senão vino... vino..., e faziam sinal que queriam comer. O pai disse às moças que lhes dessem o que havia; mas eles não esperavam, abriam as arcas e traziam o que achavam pra cima dessa mesa. Meu pai tinha-se sentado naquele banco...

O velho indicava os lugares com o gesto, que o Joaquim e o mestre Domingos seguiam no movimento de atenção dos olhos; e assim contada, naquela casa que não tinha mudado nos últimos sessenta anos, onde ainda se viam as espingardas encostadas ao mesmo canto, e o banco tosco ao lado da porta, a história adquiria uma intensidade de vida, uma atualidade singular.

— Os franceses — prosseguiu o tio João — comeram, beberam, estavam já alegres, rindo e gritando. Um deles, um loiro, que tinha um galão e parecia mandar alguma coisa nos outros, quando a minha Inês passou ao pé dele, deitou-lhe um braço à cintura, sentou-a à força nos joelhos e deu-lhe um beijo.

Eu vi isto, e no mesmo instante vi meu pai de pé, e um machado de cortar azinho direito à cabeça do francês. O francês era leve, furtou-se; quatro ou cinco deles agarraram-se a meu pai, e depois de uma luta o deitaram no chão. Eu tinha levado uma coronhada pelos peitos, e estava encostado àquela arca, seguro por outros dois. O loiro ria-se com um riso mau, mas dizia — quis-me a mim parecer — que nos não fizessem mal, que nos atassem. Estava aí uma corda grande, com que eles ataram o pai de pés e mãos. A mim, ataram-me com um baraço e com a minha cinta.

As moças... arrastaram-nas para a casa de dentro, gritando e chorando...

À mesa ficaram dois franceses, bebendo.

Eu ouvia minhas irmãs chorarem lá dentro, chamando-nos, que lhes acudíssemos; e via o pai deitado no chão, com a camisa rasgada e as mãos atadas atrás das costas. Na luta, quando caiu, partiu a cabeça na esquina do banco. Um fio delgado de sangue corria-lhe da testa até às suíças brancas; e, dos olhos muito fitos, vi correrem-lhe as lágrimas, que se misturavam com o sangue.

Não posso dizer o tempo que isto durou; mas pareceu-me muito.

Quando os franceses saíram, rindo e metendo nos bornais o pão e uns queijinhos que tinham sobejado, nem olharam para o pai; a mim, pegaram-me, e assim mesmo atado como estava, levaram-me à porta para lhes ensinar o caminho. Não sei o que me lembrou, mas em lugar de lhes mostrar o atalho que vai direito à estrada, mostrei-lhes a que desce para a ribeira. Essa era a mais seguida das duas. Eles não desconfiaram, deitaram as espingardas ao ombro e desceram vale abaixo.

A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana, muito branca, muito enfiada, veio cá fora desatar o pai. Ele não falava. Quando a Mariana me desatou, disse-me só: “As espingardas”.

Fui à arramada buscá-las, e quando vim, já o pai tinha o polvorinho a tiracolo; apontou para o outro polvorinho, que eu enfiei; tirando da arca o saco das balas, esteve-as dividindo; deu-me um punhado delas e meteu as outras na algibeira. Saímos, sem ele dizer uma palavra à Mariana. Fez-lhe sinal que chamasse e fechasse os cães. Só deixou ir uma podenga velha vermelha; mas a podenga era — salvo seja — como uma criatura; quando estava numa porta, nem latia nem mexia um cabelo. À ponta dos farrejais, abaixou-se; desafivelou a coleira do chocalho da cadela e deitou-a fora.

Nós íamos devagar. Entendi eu que meu pai os queria deixar meter bem para os vales mais ásperos. Lá embaixo, nos matões do barranco do Alendroal, é que os apanhamos. Vimo-los de longe, numa volta da trilha. Meu pai não falava, fez-me sinal que fosse à meia encosta da umbria, que ele ia pela soalheira; e quando nos apartamos, numa voz ainda trêmula, disse-me só estas palavras: “Não atires, sem eu atirar”.

Eu meti à encosta, de gatas, por baixo das estevas. Era uma criança ainda, mas não me lembrei de ter medo. Fui... fui, até que cheguei bem à distância de um tiro. Já nesse tempo atirava bem. Desde pequeno eu andava com meu pai. E você ainda se lembra como ele atirava, mestre Domingos?

— Era a primeira espingarda da serra, a chumbo e a bala! — afirmou o ferreiro.

— E era! — continuou o velho. — Eu não o via; mas sabia que ele ia na outra encosta. Os franceses iam embaixo, no vale, todos numa linha, porque a trilha era estreita. Numa volta do vale, ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia adiante, abriu os braços e caiu de bruços. Os outros pararam; eu apontei bem um, dei no dedo, e ele caiu redondo. Ao segundo tiro, viraram-se para o meu lado; então o pai, para me livrar, apareceu-lhes no mato. Atiraram-lhe todos, e eu vi as estevas cortadas pelas balas em volta dele; mas não lhe deram. Os homens ainda quiseram avançar pela encosta, direito a ele, mas era uma moita de mato muito forte; não puderam romper, e, deixando os dois mortos, abalaram a correr pelo vale.

O pai chamou-me, e fomos juntos sempre pelo fio da altura, a ver o caminho que tomavam. Acho que se arrecearam de ir pelo vale, que era cada vez mais estreito, e meteram a uns matos ralos, de umas queimadas que se tinham feito nesse ano, direito à porta-baixa do Sovereiral.

Quando os topamos, foi já no barranco do Algeriz, ali no açude do Moinho Velho. Estávamos metidos nos medronhais altos, e eles vieram sair no claro do areal do barranco — mesmo onde tu mataste a porca grande, Joaquim, na semana passada.

Era quase à queima-roupa: caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que restavam ficaram direitos, encostados uns aos outros. Atiraram para o mato, na direção do sítio em que tinham visto o fumo, e uma bala cortou um ramo por cima da minha cabeça. Nós separamo-nos, e mesmo de rastos por baixo do mato, fomos carregando. Quando atiramos, eu precipitei-me e errei; mas o pai não errou... nem errava! Os três perderam coragem e fugiram para o mato. Era já escuro, perdemo-los.

Fomos para um cabeço e ficamos ali toda a noite. Eu estava cansado, era uma criança, e ali me deitei. Mas o pai nunca dormiu; e quando eu de noite acordava, com o frio e com a fome, via-o sentado numa pedra, direito, encostado à espingarda.

Logo ao romper da manhã, abalamos. Os três franceses tinham tido toda a noite para fugir; mas aqui na serra, quem não é prático, jamais avança caminho de noite. Pode um homem andar uma noite toda, e de manhã achar-se no mesmo sítio. Ainda assim deram-nos trabalho; atalaiamos pelos cerros; rastejamos os vales e as passagens dos barrancos, como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado; até a cadela, Deus me perdoe, já lhes pegava no rasto. Seria meio-dia quando os vimos lá muito embaixo, nos areais da ribeira. Tinham ido à água. Dali a duas horas estavam mortos todos três.

Quando voltamos para a malhada, já os abutres andavam no ar às voltas, às voltas, por cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.

Meu pai, ao entrar em casa, não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito tempo abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha sucedido.

O lume ia-se apagando, sem que — presos à narração — nos lembrássemos de o atiçar; e o vasto brasido, onde ainda corriam umas chamas incertas, azuladas, iluminava vagamente a figura austera do velho, que amparava com muito cuidado sobre os joelhos o pequenito adormecido.

NOTAS:

1 - Malhadeiro: indivíduo que trata de colméias; colmeeiro.
2 - Mancha: cama do javali, ou porco-do-mato
3 - A corta-mato: a direito, por atalho; pelo caminho mais curto.

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira & Paulo Ronái. Mar de histórias. vol. 5. RJ: Nova Fronteira.

domingo, 5 de maio de 2013

Vicente de Carvalho (Poemas Avulsos)

(Santos SP, 1866 - idem, 1924)

Folha Solta

Eis o ninho abandonado
Dos sonhos do nosso amor...
É o mesmo o chão onde oscila
A mesma sombra tranquila
Dos arvoredos em flor.

É o mesmo o banco de pedra
Onde assentados nós dois
Falamos de amor um dia...
Lembras-te? Então, que alegria!
E que tristeza depois!...

Falamos de amor... E sobre
Minh'alma arqueava-se o azul
Do teu olhar transparente
Como o céu alvorecente
Das nossas manhãs do sul.

Quanta loucura sonhamos!
Quanta ilusão multicor!
Quanta risonha esperança
Nessas almas de criança
Iluminadas de amor!

 Marinha

I

Eis o tempo feliz das pescarias — quando
Maio aponta a sorrir pela boca das flores.
Derramam-se na praia as gaivotas em bando...
Alerta, pescadores!

Crepusculeja ainda a aurora, mas quem pesca
Deve esperar o dia entre as ondas — enquanto
Sopra enfunando a vela a matutina fresca
E o sol não queima tanto.

Mulheres, fazei fogo! Ao alcance do braço,
Mesmo à porta do rancho a maré pôs a lenha.
Aprontai o café! Vibra já pelo espaço
A buzina roufenha.

Peixe na costa! O aviso erra de frágua em frágua,
Chama de rancho em rancho os pescadores. Eia!
As canoas estão ainda fora d'água
Encalhadas na areia:

Prestes, descei-as! Ide apanhar às estacas
A rede. Ide-a colhendo às pressas; colocai-a
Na canoa. Descendo agora nas ressacas,
Isso, fora da praia!

E é remar, é remar para o largo... As crianças
E as mulheres, em terra, esperam aguentando
O cabo que por sobre o azul das ondas mansas
A rede vai largando...

Sugestões do Crepúsculo

Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;

Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;

Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...

Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.

Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde — e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:

No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.

E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas, e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...

A Ternura do Mar

No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro
Ia boiando a lua indiferente e fria...
De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,
Embaixo, o mar dizia:

"Lua, só meu amor é fiel tempo em fora...
Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas
Sombras do entardecer todo entristece, e chora
Marejado de estrelas;

Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua
— Como a folha que vai arrastada na brisa —
Aos caprichos do tempo inconstante flutua
Indecisa, indecisa...

Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores
Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,
A árvore que viçou toda folhas e flores,
Toda aromas e ninhos:

Cóleras de tufão, pompas de primavera,
Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,
A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...
— Só o meu amor não muda!

Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:
Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas,
Dentro de vagalhões penhascos submergindo,
Submergindo montanhas.

Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes...
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara,
Subindo os horizontes.

Um passo para ti cada dia entesouro;
Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...
Dona do céu azul e das estrelas de ouro,
Um dia serás minha!

E serei teu escravo... À noite, pela calma
Rendilharei de espuma o teu berço de areias,
E há de embalar teu sono e acalentar tua alma
O canto das sereias.

Quando a aurora romper no céu despovoado,
Tesouros a teus pés estenderei, de rastros...
Ser amante do mar vale mais, sonho amado,
Que ser dona dos astros.

Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,
Todo me tingirei de mil cores cambiantes,
E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista
Das ondas arquejantes.

Levar-te-ei de onda e monda a vagar de ilha em ilha,
Tranquilas solidões, ermas como atalaias,
Onde o marulho canta e a salsugem polvilha
A alva nudez das praias.

Ao longe, de repente assomando e fugindo,
Alguma vela, ao sol, verás alva de neve:
Teus olhos sonharão enlevados, seguindo
Seu vôo claro e leve;

Sonharão, na delícia indefinida e vaga
De sentir-se levar sem destino, um momento,
Para além... para além... nos balanços da vaga,
Nos acasos do vento.

Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra,
Onde cascos de naus arrombadas, a espaços
Dormem o último sono, estendido na alfombra
De algas e de sargaços.

Opulentos galeões, pelas junturas rotas,
Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,
Que foram conquistar às praias mais remotas,
Pelos parcéis mais duros:

Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas
Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,
Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,
Sombra, fuzis, bramidos,

Todo o estranho pavor das águas afrontando,
Altivos como reis e leves como plumas,
Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando
Uma esteira de espumas.

Ei-los, carcassas vis donde o ouro em vão supuro,
Esqueletos de heróis... dei-os em pasto à fome
Silenciosa e sutil da multidão obscura,
Dos moluscos sem nome.

Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,
Onde, numa bizarra exuberância, a flora
Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela
E conchas cor de aurora;

Onde o humilde infusório aspira ás maravilhas
Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos
De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,
Arquipélagos, mundos...

Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida... Eu te amo.
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!...
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!
Um dia serás minha!

Embalde nos afasta e embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes:
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara,
Subindo os horizontes..."

---****

Na quietação da noite apenas tumultua
Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar:
Corta o silêncio, agita o sossego, flutua
E espalha-se no luar…

Tomás Antônio Gonzaga (Marília de Dirceu)

  
  É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa - 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo."

    Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : "Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores".

    Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.

    A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos):

    Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade.

    Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características pré-românticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas.

    Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos.

    A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

    Temas e formas

    I

    1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
    2  que viva de guardar alheio gado,
    3  de tosco trato, de expressões grosseiro,
    4 dos frios gelos e dos sóis queimado.
   5  Tenho próprio casal e nele assisto;
    6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
    7  das brancas ovelhinhas tiro o leite
    8 e mais as finas lãs, de que me visto.

    9 Graças, Marília, bela,
    10  graças à minha estrela!
   
11 Eu vi o meu semblante numa fonte:
    12    dos anos inda não está cortado;
    13    Os pastores que habitam este monte
    14 respeitam o poder do meu cajado.
    15    Com tal destreza toco a sanfoninha,
    16    que inveja até me tem o próprio Alceste:
    17    ao som dela concerto a voz celeste,
    18    nem canto letra que não seja minha.

    19 graças, Marília bela,
    20   graças à minha estrela!

    Uma leitura atenta do fragmento transcrito permite-nos identificar algumas constantes das Liras:

    1. Pastoralismo — bucolismo: na exaltação da vida pastoril, campestre; no entendimento de que a felicidade e a beleza decorrem da vida no campo. É da convenção arcádica o poeta identificar-se artisticamente como pastor e identificar sua musa como pastora. Observe estas palavras: “vaqueiro", “gado”, “ovelhinhas”, “fonte", “pastores”, “monte”, “cajado”.

    2. Otimismo — narcisismo: no estribilho, o poeta manifesta-se satisfeito com o próprio destino: “Graças, Marília bela, / Graças à minha estrela”. É evidente o propósito de auto-valorização (narcisismo): nos versos 11 e 12; na afirmação da juventude: nos versos 13 e 14; na alusão à virilidade; e na exaltação da sensibilidade artística: nos versos 15 e 16.

    3. Ideal burguês de vida: na afirmação da condição de proprietário, no orgulho pela posse da terra (versos de 5 a 8), apóia-se o poeta para expressar a consciência de superioridade sobre “o vaqueiro que viva de guardar alheio gado”, que o poeta deprecia (versos 3 e 4). Observa-se esse ideal também no verso 19:

    Que prazer não terão os pais ao verem
    Com as mães um dos filhos abraçados;
    Jogar outros a luta, outros correrem
    Nos cordeiros montados!
    Que estado de ventura!

    4. Simplicidade: observe o predomínio da ordem direta da frase e a clareza da expressão, sem muitas figuras de linguagem, próxima do ritmo da prosa.

    II

    A minha amada
    é mais formosa
    que branco lírio,
    dobrada rosa,
    que o cinamomo,
    quando matiza
    co’a folha a flor:
    Vênus não chega
    ao meu amor.

    Vasta campina,
    de trigo cheia,
    quando na sesta
    co vento ondeia,
    ao seu cabelo,
    quando flutua,
    não é igual.
    Tem a cor negra,
    mas quanto val!
    (...)

    III

    (...)

    Aqui um regato
    corria, sereno,
    por margens cobertas
    de flores e feno;
    à esquerda se erguia
    um bosque fechado;
    e o tempo apressado,
    que nada respeita,
    já tudo mudou.

    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    o mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    5. Os dois textos revelam a vertente mais convencional da poesia de Gonzaga: a aproximação com o estilo rococó, marcado pela graça, leveza e frivolidade, pelos idílios campestres, pela natureza delicada e aprazível (locus amoenus). Observe os metros curtos, melódicos que emolduram a suavidade do quadro descrito, como os movimentos sutis de um minueto, dançado na Corte de Luís XV, na época de ouro do Rococó.

    6. Mas, em alguns momentos, avulta o realismo descritivo, captando a rusticidade da paisagem e da vida da Colônia. Exemplo marcante é o fragmento que segue. Observe as referências à mineração e à agricultura:

    IV

    Tu não verás, Marília, cem cativos
    tirarem o cascalho e a rica terra,
    ou dos cercos dos rios caudalosos,
    ou da minada serra.
    Não verás separar ao hábil negro
    do pesado esmeril a grossa areia,
    e já brilharem os granetes de oiro
    no fundo da batéia.

    Não verás derrubar os virgens matos,
    queimar as capoeiras inda novas,
    servir de adubo à terra a fértil cinza,
    lançar os grãos nas covas.
    Não verás enrolar negros pacotes
    das secas folhas do cheiroso fumo;
    nem espremer entre as dentadas rodas
    da doce cana o sumo.

    (...)

      V

    Com os anos, Marília, o gosto falta,
    e se entorpece o corpo já cansado:
    triste, o velho cordeiro está deitado,
    e o leve filho, sempre alegre, salta.
    A mesma formosura
    é dote que só goza a mocidade:
    rugam-se as faces, o cabelo alveja,
    mal chega a longa idade.

    Que havemos de esperar Marília bela?
    que vão passando os florescentes dias?
    As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
    e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
    Ah! não, minha Marília,
    aproveite-se o tempo, antes que faça
    o estrago de roubar ao corpo as forças,
    e ao semblante a graça!

    7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.

    8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:

       VI

    Porém se os justos céus, por fins ocultos,
    em tão tirano mal me não socorrem,
    verás então que os sábios,
    bem como vivem, morrem.
    Eu tenho um coração maior que o mundo,
    tu, formosa Marília, bem o sabes:
    um coração, e basta,
    onde tu mesma cabes.

    9. As contradições também ocorrem: ora Dirceu se diz pastor, ora se diz magistrado; Marília é muitas vezes pretexto para o exercício poético de Gonzaga e seus traços variam:

    Aqui Marília tem cabelos pretos:

    VII

    (...)

    Os seus compridos cabelos,
    que sobre as costas ondeiam,
    são que os de ApoIo mais belos,
    mas de loura cor não são.
    Têm a cor da negra noite,
    e com o branco do rosto
    fazem, Marília, um composto
    da mais formosa união.

    (...)

    Aqui tem cabelos loiros:

    VIII

    (...)

    Os teus olhos espalham luz divina,
    a quem a luz do sol em vão se atreve;
    papoila ou rosa delicada e fina
    te cobre as faces, que são cor da neve.
    Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
    teu lindo corpo bálsamos vapora.
    (...)

    Na lira 64, Gonzaga refere-se a Tiradentes depreciativamente. Parece que as expressões ofensivas com que se dirige ao alferes foram ditadas pelo propósito de minimizar seu comprometimento na Inconfidência, já que o processo ainda estava em curso. É o que argumentam os admiradores do poeta, na tentativa de “salvá­lo” como vulto histórico e inconfidente.

    IX

    Ama a gente assisada  (1)
    a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
    que ponha uma ação destas (2)
    nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3)
    E quando a comissão lhe confiasse,
    não tinha pobre soma,
    que por paga ou esmola lhe mandasse?

    X

    O mesmo autor do insulto
    mais a riso do que a terror me move;
    deu-lhe nesta loucura,
    podia-se fazer Netuno ou Jove.
    A prudência é tratá-lo por demente;
    ou prendê-lo, ou entregá-lo,
    para dele zombar a moça gente.

NOTAS:
(1) ajuizada
(2) a Inconfidência
(3) Tiradentes

Fonte:
Passeiweb

sábado, 4 de maio de 2013

Olivaldo Junior (Boa Nova)

Quando passa um vento e canta...
Quando eu canto e me contento...
Quando atento ao que me encanta...
Quando, em prantos, te acalento...

Quando passa um deus e planta...
Quando eu planto e reinvento...
Quando invento o que me adianta...
Quando adianto e viro vento...

Quando passa um vento frio...
Quando o frio só me prova...
Quando mato o meu vazio...

Quando um cântico renova...
Quando inovo e te assovio...
canto a vida em boa nova.

Fonte:
O Autor