quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Oswaldo Abritta (Jardim)

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Oswaldo Abritta (1908-1947)

Nasceu no distrito de Cataguarino, município de Cataguases, filho de Boaventura José Abritta e Ana Lopes do Nascimento.

Fez o curso médio no Ginásio Municipal de Cataguases, hoje Escola Manuel Inácio, onde teve intensa atividade literária no Grêmio Literário Machado de Assis e publicou poemas em vários jornais da cidade.

Participou em 1927 da criação da Revista Verde, como poeta. Formou-se em Direito, exerceu a advocacia e foi juiz de direito em Guarani e Carandaí (MG).

Obra póstuma: Versos de ontem e de hoje (editado por seu filho Luiz Carlos em 2000) escrito em 1931.

Fonte:
http://joaquimbranco.blogspot.com.br/2008/02/oswaldo-abritta.html

Luiz Carlos Abritta (Caderno de Trovas)

As tuas mãos - que brancura
 -que bonito de se ver,
 pois elas têm a ternura
 dos lírios do amanhecer.

Aos jovens dou um conselho,
 nesta vida tão incerta:
 não se olhem tanto no espelho
 pois Narciso é morte certa!

Ao teu prazer eu me entrego
 - seja lá o que quiseres –
 pois te escolhi, eu não nego,
 entre todas as mulheres.

Casaste. Triste eu sofria,
pois vestiste, bem contente,
a camisola macia
que eu te dera de presente!

Com seu amor eu me aqueço
 e sempre me recomponho;
 só por isso eu lhe ofereço
 a vigília do meu sonho.

Desde que tu foste embora,
 tua saudade é açoite
 que já começa na aurora
 e dói mais durante a noite !

Dessa forma Cristo pensa:
"maior será o perdão
quanto maior for a ofensa".
- Que bela e sábia lição!!

De todo "não" que me deste,
 o que mais triste me fez
 foi aquele que disseste
 disfarçado num "talvez".

Do meu verso é sempre a fonte
 essa cidade lendária
 chamada Belo Horizonte,
 a Capital centenária!

Do simples pó eu procedo,
 sei que a ele hei de voltar;
 a vida não tem segredo:
 é um eterno retornar.

Em cada nota eu receio,
 na pauta que a vida escreve,
 que transformem nosso enleio
 numa simples semibreve 

É muito estranho, meu bem,
 o relógio do destino:
 vai de manso, vai e vem,
 depois bate em desatino !

Essa vitória alcançada
 nos obriga a meditar:
 sem o povo não há nada,
 que verdade singular!

Eu bem sei que tu me esperas
 e, se te vejo, ao sol-posto,
 projeto um céu de quimeras
 na moldura do teu rosto !

Eu confesso abertamente,
 e disso não me envergonho,
 que tu foste, simplesmente,
 o amplo portal do meu sonho.

Eu sei que o belo e a verdade
 caminham juntos na vida
 e atinjo a felicidade
 se a ternura é dividida.

Eu te amo tanto, mas tanto
que já pus num pedestal
toda a glória desse encanto,
que se tornou imortal.

Eu te digo, com alegria,
e a realidade comprova
que o melhor da poesia
é a beleza de uma trova.

Eu tenho perseverança
 e à tristeza me anteponho:
 garimpeiro da esperança,
 sempre vivi do meu sonho.

Jamais eu temo o fracasso
 pois me deste o teu amor
 e a simples força do abraço
 me transforma em vencedor!

Não me queres...pouco importa.
 Só penso no amanhecer,
 pois ele sempre abre a porta
 à sedução de viver !

Na magia desse sonho,
 nessa noite calma e pura,
 a sonata que componho
 tem as notas da ternura.

Na tessitura do sonho,
 vou cortar, sem mais tardança,
 esse nó górdio que imponho
 a um amor sem esperança.

Navegador solitário,
singrando as águas do mar,
jamais pensa em numerário,
mas conjuga o verbo amar !

Nem o sofista profundo
 esta verdade falseia:
 quem se julga rei do mundo
 é um pequeno grão de areia!

Nenhum amor se constrói
 só com flores e ternura,
 pois aquele que mais dói
 certamente é o que mais dura.

Nesse exílio que me imponho,
 não senti que era miragem
 e dos pedaços de sonho
 eu recompus tua imagem.

Nosso amor já teve história
 e, por isso, eu te proponho
 seja posto na memória
 do relicário do sonho.

Novo estatuto vigora
 nas leis do amor hoje em dia:
 sei que vale mais o agora
 do que a mais bela utopia!

Numa alquimia de nume,
 à tristeza me anteponho,
 transformando teu perfume
 no perfume do meu sonho!

O açougueiro viu passando
 a mulher que é só pele e osso
 e disse, a faca afiando:
 "Isso é carne de pescoço".

Olhando o tempo passar,
no relógio da memória,
eu senti coisa invulgar,
pois revivi nossa história!

O que conta nessa vida
não é tempo nem idade,
mas a procura renhida
da deusa felicidade.

Passa o tempo num instante
e dele jamais se esquece,
pois fica sempre o importante:
o velho amor permanece.

Quando o cãozinho e o menino
se abraçam por um segundo,
solto o canto peregrino:
- Há salvação para o mundo!

Quis esquecer-te...não pude:
 a saudade é traiçoeira
 e ela sempre nos ilude,
 pois nos prende a vida inteira !

Quis retratar um romance
 que fosse mesmo um primor,
 e fiz, com tinta e nuance,
 uma aquarela de amor.

Sempre foste minha amada
e, no doce cativeiro,
sem algema e sem mais nada,
tu me prendes por inteiro.

Se navegar é preciso
e viver nem tanto assim,
vou partir com teu sorriso,
em busca do mar sem fim!

Se todos temos defeitos,
 se o mistério vem de Deus,
 se nem os bons são perfeitos,
 o que dizer dos ateus?

Somos poeira que a vida
 sempre leva de roldão;
 em sua sanha atrevida,
 ela não vê coração

Só se louva a juventude,
porém jamais alguém disse
que só se atinge a virtude
quando se alcança a velhice

Todos querem sufocar,
 com disfarces atrevidos,
 e sordidez invulgar,
 o grito dos excluídos .

Tudo ele faz com amor
e traz o céu na bagagem;
na verdade, o trovador
de Deus na Terra é a imagem

Tu partiste... e essa magia
 que deixaste no meu peito
 vai fazer que certo dia
 tu voltes de qualquer jeito.

Vejo o mar em ondas mansas
- foto de rara beleza -
e, reforçando as lembranças,
um céu chamado Veneza !

"Veredas, grandes sertões"...
 a nossa vida é uma estrada
 toda cheia de senões,
 do início ao fim da jornada.

Vou definir a saudade
e não sei se estarei certo:
saudade é aquela vontade
de que o longe fique perto.

Fontes Principais:
http://www.ubtnacional.com.br/
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/
Boletins da UBT – Nacional
Boletins de vários Concursos.

Luiz Carlos Abritta

  
 Nasceu em Cataguases, Minas Gerais, a 24 de janeiro, filho do poeta e magistrado Oswaldo Abritta e de Yolanda Nery Abritta.

    
Procurador de Justiça aposentado.

    Foi presidente da Associação Mineira do Ministério Público. Eleito Conselheiro da OAB/MG onde permaneceu por seis anos e exerceu as funções de Presidente do Tribunal de Ética daquela entidade.

    Foi presidente e Conselheiro Nato do Instituo de Ciências Penais, membro do Conselho Penitenciário de Minas Gerais.
      
      No dia 09 de junho de 2006, o Presidente da República escolheu-o em lista tríplice e o nomeou para o cargo de Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, categoria de jurista.
      
      Foi presidente da UBT de Belo Horizonte, e Presidente da UBT/Minas Gerais.
    
Exerceu a presidência da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais por oito anos, onde ocupa a cadeira n.150, tendo por patrono Oswaldo José Abritta.

    Abritta foi eleito o 5º Presidente Nacional da União Brasileira de Trovadores, para o biênio 2012 / 2013.

    É membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, cadeira n. 82 e seu patrono é o Senador Levindo Coelho.

    Tem dez livros publicados. Entre eles, “Críticas criticáveis”, “Entre Montanhas e Trovas”, “Tata, Tati e Tininha”, “Um Homem Plural – A vida de Oswaldo Abritta” e “Aurora Plena”.

    Participação na Antologia poética bilíngue (francês/português) de 33 escritores mineiros, lançado no Salão do Livro, em Paris, em 2012, sendo condecorado pela Academia Francesa em reconhecimento ao trabalho pela literatura.
      
      Medalhas: da Inconfidência; Santos Dumont; do Ministério Público de Minas Gerais; da Justiça Federal; do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, e da Societé Académique des Arts, Sciences et Lettres - Paris – França.
    
Casado com a escritora Conceição Parreiras Abritta, tem dois filhos: Sérgio, Procurador de Justiça e Dramaturgo, e Luís Carlos Parrreiras Abritta, Advogado e Presidente do Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais.

Fontes:
http://www.ubtnacional.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=39
Jus Brasil. http://amp-mg.jusbrasil.com.br/noticias/3017814/luiz-carlos-abritta-participa-de-antologia-da-academia-de-paris
http://www.ihgmg.art.br/quadrosocial.htm
http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa_abritta.htm
http://www.newtonpaiva.br/acontecenanewton/Evento.aspx?id=224592

Raquel Ordones (Tudo Veio à Tona)

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Fonte:
http://raquelordonesemgotas.blogspot.com

Márcia Maranhão de Conti (Poesias Avulsas)

PROGNÓSTICO
Agora desenho em meu quarto uma varanda
E, da janela semi-cerrada,
Um raio de luz me alcança.

Agora entrego ao sol o mofo da minha cama
E devagar estendo os lençóis
Que acompanharam minha insónia.

Agora pressinto uma brisa
No interior do meu cómodo
E a inspiro lentamente
Até arejar minhas entranhas.

Agora decifro as letras
Que se agarraram ao meu sangue,
E solfejo pra elas uma melodia
Com um resto de nó na garganta.

Agora revejo a minha agonia
Como num quadro de Picasse.
Pareço-me surrealista
Ao expressar meu ocaso.

Agora tenho a fome dos dias
Em que não quis comer nada.
E contemplo o meu ser faminto
A saciar-se do nada.

UM POEMA NO ÔNIBUS

Parece que a cidade passeia,
E o pensamento espia a palavra.
Há um poema que vagueia,
Versos virando paisagem.

Parece que a janela me leva,
E o poema levanta os olhos.
Não sei se fico ou viajo.
Vou nas palavras e volto.

Parece que tudo é passagem.
O poema beija meus olhos.

VESTÍGIOS

Meus acasos não povoam
Páginas de dicionários.
São trilhas que transcendem
A leveza dos passeios.

As palavras são rastros
Deixados no cimento fresco.
Nem que eu falseie os passos,
Minto comigo, nos versos.

As palavras são pérolas
De um colar que nunca tiro,
Criadas nas conchas antigas
Dos mares que habitam em mim.

PROCURA

I

Dentro da noite
Um pensamento calado
Vai sendo digerido.

Tem na cor o tom de' um céu
Que decide o poema.

II

A poetiza testa palavras
Como se experimentasse vestidos.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/marcia_maranhao_de_conti.html

Marcia Maranhão De Conti (1957)

Marcia Maranhão De Conti, filha de Antonio do Rêgo Maranhão Neto e Zelair Mendes Maranhão (in memoriam), nasceu em São Luis (MA) em 1957 e mudou-se para Goiânia, onde reside.

Morou em São Paulo, época em que nasceram os filhos mais velhos.

Formada em Nutrição pela UFG e em Direito pela UNIVERSO. Especializou-se em Nutrição Clínica na UFRJ e em Direito Processual na LFG.

Trabalha no Ministério da Saúde e é membro da OAB-GO.

Sua paixão é a poesia. Participou de antologias, de concursos regionais e nacionais, sendo várias vezes premiada, inclusive no 5° Prêmio Nacional de Poesia - Cidade Ipatinga com o 2° lugar (2007).

Teve três poemas selecionados no concurso Poemas no Ônibus e no Trem, promovido pela prefeitura de Porto Alegre: "Flor" (2007), "Um Poema no Ônibus" (2009) e "Embalagem" (2011).

"Flor" esta em camisetas de catadores de papel de Porto Alegre a pedido do professor universitário, canadense, Denis Beauchamp, que preside uma associação voltada para esses trabalhadores.

Luar nos Porões (piano mudo) é seu livro de estreia.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/marcia_maranhao_de_conti.html

Nilto Maciel (Um Vulto)

Ana e Mino entraram na livraria de braços dados, sem pressa. Olharam para os lados e ele a arrastou para o interior da loja. Soltaram-se e se puseram diante da primeira prateleira. Ela passou à frente e deu dois passos, como se soubesse aonde ia. Ele a seguiu e parou ao seu lado. Ela deu mais dois passos. Desejava Kafka ou Borges. Nunca se mostravam juntos naquela livraria. Sollos sabia onde localizar cada escritor, seguindo a ordem alfabética. Também vivia para ler! Ela, não, não podia viver de livros. Pretendia, sim, escrever um livro. Talvez de poemas, ou de contos. Não teria fôlego para um romance. Quem sabe quando estivesse mais velha? Mino se encostou nela. Procurava que livro? O Castelo. Para que, se em casa havia um? Deram mais dois passos. Falasse baixo. Sabia onde achar Joyce? Semana passada o tinha visto, não lembrava onde. Possivelmente do outro lado. Um funcionário da livraria se aproximou deles. Apertou mão do cronista. A crônica do dia não podia ser mais perfeita. Ana sorriu, como se o elogio fosse para ela. Mino se voltou para o rapaz. Nem lembrava mais o assunto. Ana deu mais dois passos. O funcionário voltou. Mino se acercou da mulher e retirou da prateleira um Neruda. Do outro lado da estante um homem se movimentava, como se quisesse vê-los através das brechas entre uma prateleira e outra. Só podia ser Sollos. Ana se voltou para Mino. Precisavam ir embora. Não havia na bolsa um centavo. O homem não concordou com a retirada. O banco não fechava nunca. Sollos se dirigia para os fundos da loja e Ana rapidamente caminhou para o lado oposto. Não queria estar frente a frente com Sollos, pelo menos quando estivesse ao lado de Mino. Por um instante, o cronista virou a cabeça para a direita. Para onde ia Ana? Empertigou-se e, de relance, viu um vulto ao fundo da loja. Seria Sollos?

SOLLOS A SÓS

            Para onde se dirigia Sollos? Caminhava a esmo pelas ruas, sem se lembrar do plano de  ação traçado na noite passada: ir a uma livraria, comprar um ou dois livros, almoçar num restaurante, voltar para casa, descansar, ler um pouco. Ao chegar à Praça do Ferreira se sentiu cansado e sentou-se num banco. Um homem fumava ao seu lado. Podia apagar o cigarro? Não, não pediria nada ao estranho. Melhor se acalmar, procurar outro banco ou ir almoçar. O homem se retirou, levando a fumaça. Sollos abriu as pernas. Ana teria querido falar mais com ele? Para dizer o quê? Sentia-se feliz ou infeliz? Um menino se ofereceu para engraxar os sapatos dele. Quanto custava? Só um. Engraxasse, sem pressa, mas com capricho. O olhar de Ana aparentava de felicidade. Por quê?

A VER NERUDA

Mino abriu a porta do carro, sentou-se no banco e aguardou a mulher se acomodar. Ana ajeitou os cabelos. Estaria o marido aborrecido? Não, não haveria de ter visto ela e Sollos frente a frente. O homem acelerou o carro. Por que Ana o tinha deixado a ver Neruda? Só podia ser em razão da presença de Sollos na livraria. Onde ele se encontrava antes de o vir? Ana, calada, alisava o cabelo. Por pouco Mino não bateu o carro na traseira de outro. Ainda pretendia ir ao banco ou havia desistido? Ela abriu a bolsa e se pôs a revirá-la. Ia ou não ia? Por que não imaginar a possibilidade de se defrontar com Sollos na livraria, se havia muito o passatempo dele consistia em passar horas e horas de todos os sábados cercado daqueles livros? E se ele continuasse com a ideia de serem namorados? Não, não podia ser. Sabia de seu casamento. O pior não era isto, mas passar Mino a ter ciúmes. Talvez estivesse exagerando, pois nunca contou a ele detalhes do relacionamento dela com Sollos. O cronista suava. Não havia motivos para pressa. O dia todo pela frente. Por que Ana fugia do escritorzinho? Sabia da amizade deles. Conheciam-se de tanto se verem em livrarias, lançamentos de livros, encontros de escritores. Amigos apenas. Aliás, colegas de profissão. Mino havia gargalhado. Profissão de escritor era medicina, arquitetura, jornalismo. Não, não desconfiava de nada. Desconfiar de quê?

SINFONIAS INACABADAS

A tarde demorou a passar. Sollos se deitou na cama, fechou os olhos. Tencionava descansar, dormir, esquecer a manhã. Ana lhe aparecia a todo instante. Falava de livros, do marido, do passado, do tempo em que se encontravam e passavam horas a fio no apartamento dele. Levantou-se e deitou-se cinco ou seis vezes. Apanhou na estante um livro, leu duas ou três frases, lavou o rosto, quis telefonar para um amigo. Ana figurava-se mais sedutora do que antes. Abriu uma cerveja e sentou-se no sofá. Pôs-se a ouvir Scarlatti. Onde estaria Ana? Quantas vezes estiveram naquela livraria, a folhear Kafkas, Borges, Joyces! Trocou Scarlatti por Haydn, sem saber quem tocava. Bebeu mais cerveja, esqueceu sonatas, prelúdios, concertos para piano. Os olhos de Ana mais pareciam sinfonias inacabadas. Bebeu mais cerveja e buscou nas gavetas fotos dela. Haydn se confundia com o riso de Ana. No outro dia iria procurá-la. Ou não iria a lugar nenhum? Dirigiu-se ao banheiro e sentiu arrepios, como se ela o abraçasse e o sugasse.

ANA E O CASTELO

Quando Mino pegou no sono (estaria mesmo dormindo ou fingindo?), Ana abriu os olhos e se pôs a olhar para o teto. Talvez Sollos fosse um bom amigo. Poderiam, ela e Mino, fazer dele um amigo, de frequentar a casa um do outro. Com o tempo, Sollos passaria até a jantar na casa deles. Solteiro, seria convidado a dormir uma noite. Um quarto para ele, cama bem arrumada. Quando Mino viajasse... Não, Mino não viajava nunca. Ora, viagens eram como jantares – arranjavam-se, inventavam-se. Observou as costas de Mino. Dormia ou pensava? Sonhava ou urdia planos de detetive? Precisava deixar de falar em Kafka. Mais dia, menos dia, Mino veria Sollos num jornal a falar de Kafka. E se desse O Castelo para uma colega de trabalho?  Quem poderia gostar dele na empresa? Todas as moças liam e viam somente revistas de fofocas. Nada de romances, contos. E se dedicasse o seu exemplar a Sollos? Com a amizade de sempre, ofereço-lhe o meu Castelo. Sua admiradora Ana. Ou admiradorana? Ele gostava de invenções desse tipo. E ainda lhe daria um abraço muito apertado.

ROMANCE FEITO DE LAVAS

Mino acordou no meio da noite. Virou-se para Ana. Dormia o sono das amantes. Não, Sollos não passava de um sonhador. Por que não convidá-lo para jantarem juntos? Falariam de Kafka, Borges, Joyce. Beberiam uísque e o outro liberaria o vulcão adormecido. Precisava anotar aquela imagem. Daria boa crônica. Algum vulcão histórico, o Vesúvio, e as paixões humanas. Ou um livro, um romance sem pé nem cabeça, feito de lavas. Sim, uma estreia de causar inveja a esses contistas de meia-tigela. Deixaria de ser apenas um cronista. Mudaria o nome. Nada de Minotauro.

NA MURALHA

Antônio Sollos se revirava na cama. Ana o chamava para conhecer de perto a muralha da China. Ele sentia medo de altura, de se aproximar do Sol, queimar-se, morrer. Ela ria. Um sol não deveria ter medo do Sol. Ainda mais sendo um sol duplo. Sollos se ajoelhava. Jurava não ser vaidoso. Milhares de chineses se aproximavam deles. Ana sumia na multidão e ele se punha a bradar por ela, que ria, falava, dizia estar ao lado dele. Sollos pedia socorro, gritava o nome de Ana, que ecoava pela muralha e pelos vales. Ela reaparecia. Ele sabia o significado do Sol? Falava de calendários, dias, meses e anos. Ele a chamava de louca. Por que o tinha abandonado? Porque se chamava Ana, a mulher do ano. E ria, gargalhava. Não brincasse com as palavras. Chineses o cercavam. Uma chuva forte caía sobre a muralha. Trovões e relâmpagos. Antônio Sollos sentia a urina inundar-lhe as pernas.

COM TESEU

Ana se debatia no leito. Sollos a convidava a conhecer um labirinto. Se fosse o de Creta, não desejava nem chegar perto. Tinha medo do minotauro. Deixasse de besteiras. Tudo era mito, apenas mito. Além do mais, a fera havia muito não existia. Matou-a a mitologia. E a puxava pelo braço e a chamava de Ariadne. Ela fincava os pés no chão. Mesmo assim, Sollos a arrastava e se dizia o herói Teseu. Ouvia um rugido de fera e se assustava. Não tivesse medo, ele mataria o animal. Escurecia. Os bramidos se faziam mais próximos.

O VULCÃO

            Minos mexia os lábios, como se falasse. Ao longe, vislumbrava o topo de um vulcão adormecido. Sentava-se numa pedra. Sentia calor, suava. Olhava para o vulcão e percebia, distantes, pequeninos, dois vultos humanos. Aguçava a vista e reconhecia neles Ana e Sollos. O que faziam ao pé de um vulcão? Punha-se a bradar os seus nomes. Abandonassem o local. As lavas não tardariam a subir. Gritava, gritava, e nada de ser ouvido. E nunca poderia se aproximar deles. Não conseguiria chegar a tempo de evitar uma tragédia. Desesperava-se. Viessem, correndo. Tinha para eles presentes: todos os livros de Kafka, Borges e Joyce. No entanto, a boca do vulcão já vomitava fogo.              

UM LIVRO IMENSO

Sollos, deitado, ouvia música havia horas, dias. Ansiava ouvir a sinfonia do Castelo pelo resto da vida. Quem a compusera? Sabia Ana, sabia Mino? Ou nunca a compuseram? Ana lia trechos de O Castelo. Mino sorria. Ainda seria o grande cronista do Universo. Batiam à porta. Um mensageiro dizia estar ali em nome do imperador da China. No entanto, escondido por máscara, poderia ser Mino? Atrás dele uma mulher jovem e bonita. Seria Ana? Trazia, em nome do monarca, a história da Grande Muralha da China. Lesse, traduzisse para todos os idiomas e divulgasse pelo mundo. Corriam os três pelas ruas de Fortaleza, seguidos de multidão a clamar e cantar. Chegavam à Praça do Ferreira e, diante da Coluna da Hora, se punham a fazer um discurso coletivo. A multidão se calava. Irmanavam-se os três num discurso sem fim e sem sentido E se olhavam e riam. No entanto, toda a cena diante deles se desenrolava numa tela de cinema ou televisão. No sofá, Sollos, Ana e Mino liam um imenso, quase infinito livro aberto diante deles.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Euclides da Cunha (Heróis e bandidos)

Num dia de setembro de 1820 chegou à tristonha Assunção, do Dr. Francia, um prisioneiro ilustre e sexagenário, a quem, entretanto,não se concedera o preito da mais diminuta escolta. Vinha só; passou, a cavalo, pelas longas ruas retilíneas e retangularmente cruzadas, entre janelas de grades, à maneira de extensos corredores de uma prisão vastíssima, e descavalgou no largo onde se erige o palácio do governo.

Viu-se então que a idade o não abatia. Num desempeno de rapaz atlético aprumava-se-lhe a estatura elegantíssima entre as voltas do poncho desbotado que lhe desciam ate. às botas de viagem, flexíveis e armadas das rosetas largas das esporas retinindo ao compasso de um andar seguro.

Grande sombrero de abas derribadas cobria-lhe a meio a face magra; e naquela lace rígida, cindida de linhas incisivas e firmes - como se um buril maravilhoso ali rasgasse a imagem da bravura, num bloco palpitante de músculos e nervos - um olhar dominador e duro, velado de tristeza indescritível.

Era José Artigas, o motim feito homem. O primeiro molde dos caudilhos, primeiro resultado dessa combinação híbrida e anacrônica de D. Quixote, do Cid e de Hernani - a idealização doentia, a coragem esplendorosa e o banditismo romântico - indo perpetuar na América a ociosidade turbulenta, a monomania da glória e o anelo de combates que sacrificaram a Espanha do século XVII.

Correra-lhe a vida aventurosa e tumultuaria. Chefe de contrabandistas arremessado à ventura pelas coxilhas da Banda Oriental e do Rio Grande, transformara-se logo depois, com o mais doloroso espanto dos quadrilheiros mercenários, em capitão de carabineiros da metrópole que o captara, impondo-lhe o exercitar sobre os antigos sócios de desmandos uma fiscalização incorruptível e feroz, até que se voltasse contra a mesma metrópole, transmudado em tenente-coronel revolucionário, e avantajando-se aos maiores demolidores do antigo vice-reinado, ou se transfigurasse de chofre em general, “jef de los Orientales y protector de las ciudads libres”, arremetendo com os irmãos de armas da véspera e destruindo a solidariedade platina, com o afastamento do Uruguai.

Salteador, policial, revolucionário, chefe de governo. - Por fim, caiu. A tática estonteadora quebraram-lha os voluntários reais de Lecor, endurecidos na disciplina incoercível de Beresford; e traído pelos seus melhores sequazes, sem exército e sem lar, errante e perseguido, viera bater às portas do seu mais sinistro adversário, a quem tanto afrontara nas antigas tropelias.

O ditador não lhe apareceu, mas não o repeliu: mandou-o para um convento.

Extraordinário e enigmático Dr. Francia! Este ato denuncia-lhe do mesmo passo a índole retrincada, a ironia diabólica e a ríspida educação política que tanto o incompatibilizava com o heroísmo criminoso daqueles esmaniados cavaleiros andantes da liberdade.

Entre o borzeguim esmoedor e a estrapada desarticuladora só lhe dependiam de um gesto todos os requintes das torturas: escolheu uma cela e constringiu ali dentro, entre paredes nuas, sobre alguns metros quadrados de soalho, uma vida que se agitara desafogadamente nos cenários amplíssimos dos pampas.

A vingança era, como se vê, antes de tudo, uma lição duríssima, mas foi improdutiva. Artigas deixara no estado Oriental o seu melhor discípulo, Fructuoso Rivera.

Em todos, uniformes na disparidade dos tempera mentos, do sanguinário Oribe ao destemeroso Lavalleja, que nos arrebatou a Cisplatina, os mesmos traços característicos: a combatividade irrequieta, a bravura astuciosa e a ferocidade não raro sulcada de inexplicáveis lances generosos.

Traçar-lhes a história é fazer em grande parte a nossa mesma história militar. Quase toda a nossa atividade guerreira tem sido uma diretriz predominante naquela fronteira perturbadíssima do Rio Grande.

Ali, na longa faixa que se estira de Jaguarão ao Quaraim, o gaúcho resume, na envergadura possante e no ânimo resoluto e inquieto, os traços proeminentes de dois povos. Não há destacá-los às vezes. O bravo e versátil Rivera copia servilmente o versátil e bravo Bento Manoel; Lavalleja, um Bayard vibrátil e volúvel, afeiçoado a todas as temeridades, se acaso o nobilitasse a disciplina, irromperia na figura escultural do primeiro Mena Barreto.

Ainda agora o Aparício oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense: acorrentai o primeiro num posto sedentário, e terei o molosso ferocíssimo da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das cochilhas, e vereis o caudilho...

Daí as surpresas que muitas vezes nos saltearam naquelas bandas.

Notemos uma, de relance: a guerra do Paraguai, em que pese aos seus velhos antecedentes, teve, inegavelmente, um prelúdio muito expressivo nas ruidosas “califórnias”, que arrebataram os nossos bravos patrícios aos entreveros entre blancos e cobrados. A primeira bandeira que ali congregou brasileiros e orientais foi o pala do general Flores, desdobrado e ruflando nas correrias vertiginosas. E quaisquer que fossem depois os milagres de uma diplomacia que desde 1853 e 185S vinha lentamente suplantando o malmequer e a vesânia de Lopez, talvez não nô-lo impedisse mais, desde a hora em que os parladores de um e de outro lado, guascas e gringos, mas uniformemente gaúchos, entrelaçassem, sobre o solo vibrante das campinas, os laços e as bolas silvantes, desfechando sobre o contrário os golpes simultâneos de cinco armas formidáveis - a lança e as quatro patas do cavalo...

Ora, esta identidade de estímulos, efeito de antiquíssimo contágio, reveste-nos de importância considerável a situação atual do Uruguai.

Entretanto, atraída por outros sucessos, toda volvida para a Amazônia ameaçada, ou para o enorme duelo do Extremo Oriente, a opinião geral mal se impressiona com aquelas desordens. Um ou outro telegrama, impertinente e mal lido, entre outros casos de maior monta, nos denuncia de longe em longe que o caudilho rebelado ainda respira.

A despeito de não sabermos quantas derrotas para logo corridas com outras tantas fugas triunfais, rompendo entre as tropas do governo vitoriosas e desapontadas - no “Passo dos Carros” em Taquarembó, em Daymam, em Salto, em Santa Luzia e em Santa Rosa, na Concórdia, no Aceguai e em toda a parte - a revolta irradia para todos os lados, intangível e invencível, espalhando alarmas desde Montevidéu, inopinadamente ameaçada de um assalto, às remotas povoações e estâncias do interior, de súbito despertadas pelo tradicional ahyvienem! que há um século por ali espalha e atira fora dos lares as gentes retransidas de espanto ante o estrupido dos cavaleiros errantes e ferozes...

Vencido pelo general Moniz desde os primeiros dias da luta; acutilado, e algumas vezes morto a golpes de telegramas; erradio, ou fugindo com os restos de uma tropa desmoralizada, para o abrigo da nossa fronteira salvadora, Aparício Saraiva recorda uma paródia grosseira do herói macabro do “Romancero”, morto e espavorindo os inimigos.

Pelo menos a sua revolução, tantas vezes destruída e tantas vezes renascente, tem a estrutura privilegiada dos polipos: despedaçá-la é multiplicá-la.

Ainda neste momento, rijamente repelido do Salto, este combate perdido parece ter tido o efeito único de remontar-lhe a cavalhada. Permitindo-lhe a divisão das forças em três corpos que, dirigidos por ele, por Lamas e Muñoz, vão refluir de novo sobre todo o Uruguai e reeditar a mesmice inaturável das refregas inúteis e das correrias e das derrotas e das eternas vitórias telegráficas – enfeixadas todas numa anarquia deplorável cujo termo e cujas consequências dificilmente se preveem.

Lutas à gandaia, adstritas ao sustento aleatório das estâncias saqueadas, em que o soldado surge pronto de todos os lados, laçando os adversários como laça os touros bravios, combatendo ou “parando o rodeio”, sem notar diferenças nas azáfamas perigosas, elas podem prolongar-se indefinidamente.

Bastam-lhes como recursos únicos alguns ginetes ensofregados e a pampa: a disparada violenta e o plaino desimpedido; a velocidade e a amplidão...

Daí os seus principais inconvenientes. O duradouro dessas desordens à ourela de uma fronteira agitada fez sempre a mais prejudicial dissipação dos nossos esforços e do nosso valor.

Quando se traçar o quadro emocionante das nossas campanhas do sul, que vêm, desde as arrancadas na colônia do Sacramento, desdobrando-se numa interminável série de conflitos sulcados de armistícios e de desfalecimentos, ver-se-á que aos nossos melhores generais coube sempre o arriscadíssimo papel de uns tenazes e brilhantes caçadores de caudilhos e de tiranos irrequietos.

Felizmente, mudaram-se os tempos.

E certo não mais nos atrairão a dispendiosas aventuras aqueles estonteados heróis, singulares revenants, que nestes tempos de utilitarismo positivo exigem apenas, prosaicamente, e de acordo com a lição memorável de Francia, um termo de bem viver e uma cadeia.

 Fonte:
“Contrastes e Confrontos”. http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/

Fran Martins (Almir)

Fran Martins
Um dia destes eu ia andando pelas ruas quando, ao dobrar a esquina, senti alguém segurar-me pelo braço:

– Não me conhece mais não? Não se lembra de mim? Eu sou o Almir – se lembra? Almir, aquele da Pedra Lavrada...

Lembrei-me, sim, de Almir – e imediatamente olhei para a sua mão esquerda. Sim, era ele mesmo, lá estava a mão esquerda sem o dedo mínimo, a mão que servia de atestado que ele fora, nos bons tempos, um dos meus maiores amigos – ele e mais o Clóvis, o Carrinho, o Janjoca, o Pedro, o Felinto. Éramos todos moradores da Pedra Lavrada, uma das ruas mais importantes do mundo, situada já quase nos subúrbios da importante cidade do Crato. E juntos dominávamos a rua, fazendo mil diabruras, metendo-nos em aventuras incríveis, com essa sobranceria de verdadeiros senhores que desafiam céus e terra não tanto para glória individual como para maior renome do seu reino.

                Quantos anos tínhamos então? Procuro em vão lembrar-me mas não sei. Meninos acostumados a gozar a liberdade admirável daquela rua de subúrbio, o que mais nos valia era a altura de cada um – e eu era um dos mais baixos, portanto dos menos temíveis. Almir, pelo contrário, era alto e forte, quase sempre nos comandava, tinha disposição para brigas, nadava bem. Saberia ler? Mas de que servia saber ler naquela época, se a nossa única preocupação era tomar banhos nas enchentes do rio, dar cangapés nos meninos das outras ruas, enfrentar, dominar o rio, mesmo quando as águas estivessem mais fortes, mesmo quando redemoinhos perigosos ameaçassem nos tragar?

                Foi num desses banhos que Almir provou a sua coragem e cresceu mais ainda na nossa admiração. Todas as vezes que o rio enchia, a rua se alvoroçava, a nossa turma perdia o juízo. E projetava-se imediatamente um banho longo, de duas horas, com mergulhos e saltos na água barrenta que passava pelos fundos de nossas casas, derrubando árvores e comendo as ribanceiras.

                Uma noite chovera bastante, com trovões e relâmpagos que nos acordaram. A água forte corria pelas biqueiras das casas e respingos caíam sobre nossas redes. Cada um de nós, enrolado nos lençóis, sonhava com o amanhecer, o raiar do dia que seria cheio de aventuras, como eram todos aqueles em que o rio tomava água.

                Mal amanheceu, nosso grupo se movimentou. Almir chamou-nos um a um – e acorremos ao seu chamado com entusiasmo e alegria. Foi então que Tia Aninha apareceu e, como sempre, gritou da porta da casa:

                – Felinto, Felinto! Não vá tomar banho no rio, Felinto!

                Mas Felinto, como sempre, não a ouvia – Felinto nunca ligava àquela velhinha que tinha tantos cuidados com ele. Escondeu-se atrás de Almir e esperou até que sua mãe entrasse em casa. Eu ainda murmurei, como se adivinhasse que alguma coisa triste ia acontecer:

                – É melhor você não ir, Felinto. Tia Aninha se zanga é comigo.

                Porque Tia Aninha confiava em mim e todas as vezes que não sabia do paradeiro do filho era para mim que apelava:

                – Você viu o Felinto, Fernando? Tome conta de Felinto, meu filho. Não deixe ele brigar, não deixe tomar banho no rio. Tenha cuidado com Felinto, Fernando.

                E eu quase sempre mentia, defendendo meu amigo, encobrindo suas faltas. Seria que Tia Aninha desconfiava? Ela acreditava em mim – mas julgo que, mesmo assim, ainda guardava certos receios de que eu a estivesse enganando. Mas eu era amigo de Felinto e gostava de sua companhia – por isso mentia, escondia suas faltas, muitas vezes dizia à Tia Aninha que me responsabilizava pelo que acontecesse ao Felinto, sem saber, por certo, a gravidade dessa promessa.

                E naquele dia fomos ao rio, que estava com as águas pelas barreiras. Em ocasiões como aquela o rio era perigoso – havia redemoinhos nas curvas, havia poços cavados pelas águas e que poderiam tragar qualquer um de nós. Mas para defender-nos contávamos com a nossa ousadia, com a valentia de Almir, com os nossos anjos da guarda – principalmente os anjos da guarda, que jamais abandonam as crianças.

                Fomos ao rio, mergulhamos, brincamos. E Almir dava cangapés, Felinto se afoitava, sem atender às recomendações que, vez por outra, timidamente, eu me arriscava fazer-lhe.

                Porque uma coisa me dizia que alguma desgraça estava para acontecer a Felinto. A voz de Tia Aninha não me saía dos ouvidos, triste, angustiada, nervosa:

                – Cadê o Felinto, onde anda o Felinto, Fernando? Meu Deus, que fim levou esse menino, que não aparece, não vem para casa?

                Felizmente Almir nos inspirava confiança, era corajoso, disposto, um dos maiores nadadores da Pedra Lavrada. Quantas vezes, no Poço das Mulheres ou na Batateira, Almir conseguira desbancar os mais velozes nadadores do Crato! Mergulhava e tinha fôlego, nadava de costas, de peito, de braço. E sempre estava decidido a se arriscar por um amigo, mais de uma vez deu provas disso, em acontecimentos que ficaram memoráveis na rua. Por isso eu ainda procurava abafar aquela voz que não me saía da cabeça, a voz da Tia Aninha, angustiada, nervosa, triste.

                Foi passado muito tempo, já quase quando nos dispúnhamos a abandonar o rio, que ouvimos aquele grito surdo. Imediatamente todos ficamos tomados de pavor e olhamos alarmados para o lugar de onde partira o brado. Então vimos Felinto aparecer à flor das águas, submergir, depois reaparecer, balançando doidamente a cabeça, agitando as mãos nervosamente e de novo, aos poucos, o seu corpo baixando, as águas tragando a cabeça, os braços, as mãos que nos acenavam, os dedos...

                Almir atirou-se na água imediatamente, nadando com rapidez para o lugar onde estivera Felinto. Lá chegando, mergulhou, mergulhou, mergulhou. Cada vez que retornava, uma centelha de esperança faiscava nos nossos olhos, para logo se desfazer e nos deixar numa angústia martirizante. Porque o corpo de Felinto não aparecia.

                Quanto tempo durou aquela luta? É impossível avaliar hoje. Almir nos parecia um gigante e o seu rosto tinha feições diferentes. Não, ele não podia deixar que Felinto morresse, ele era forte, disposto, havia de salvar nosso amigo. Foi justamente quando mergulhou pela última vez, passando um tempo enorme debaixo d’água.

                Nossos corações batiam fortemente, nossas pernas tremiam, tínhamos, com certeza, os olhos esbugalhados de medo, de terror. Aquele mergulho nos parecia a última esperança, o último esforço para salvar nosso amigo. Os olhos aterrados de todos estavam volvidos para o lugar onde Almir havia mergulhado – e sei que todos nós estávamos também apelando para os santos, para Deus, para os nossos anjos da guarda no sentido de salvarem o nosso amigo. Que diria Tia Aninha quando voltássemos e tivéssemos de contar-lhe que Felinto ficara, morrera?

                A cabeça de Almir finalmente surgiu – e vimo-lo, num esforço desesperado, nadando para a terra, o braço passado no pescoço de Felinto. Uma assombrosa angústia saiu de cima de nós – e já estávamos todos chorando, nós que nunca chorávamos em uma briga com as outras ruas. Temíamos que os dois tivessem se finado, que os espíritos maus que residem nos rios houvessem tragado os nossos amigos. Não, os anjos da guarda não os desprezaram – lá vinham Almir e Felinto, já estavam perto da areia.

                Foi então que notamos o estado do dedo de Almir. Ele nos disse, de maneira confusa, como encontrara Felinto debaixo d’água – enganchado em um toco, certamente sem sentidos. Por isso teve aquele trabalho enorme para tirá-lo. Porque, quando foi puxá-lo com mais força...

                Olhamos o dedo do menino: todo rasgado, os ossos aparecendo. O dedo enganchara no toco, parece que uma pedra caiu também por cima. Os pedaços da pele estavam dependurados e, vendo aquilo, quase esquecíamos Felinto, que ainda permanecia sem sentidos. Pedro deu uma vertigem justamente quando Janjoca virava Felinto para vomitar a água bebida.

                Almir foi levado para casa, apareceu um homem dizendo que era preciso cortar o dedo. Eu fiquei ao lado de Felinto, pensando no sacrifício que o outro fizera para salvá-lo. Iria ficar sem um dedo, como prova de sua amizade ao companheiro. Sem um dedo pelo resto dos tempos – mas salvara a vida de Felinto, salvara, quem sabe, até a vida de Tia Aninha.

                Depois de muito tempo Felinto voltou a si. Já era sol alto quando afinal nos dirigimos para casa. Então, ao passar pela rua, a voz de Tia Aninha soou aos meus ouvidos:

                – Onde anda Felinto, Fernando? Cadê esse menino, cadê meu filho, Fernando?

                E eu menti mais uma vez – a última vez posso assegurar. Disse à Tia Aninha que não vira seu filho – sem dúvida andava pelas outras ruas, pois não fora tomar banho conosco. E depois saí chorando para casa – como estaria o Almir, que iria acontecer ao dedo de Almir? E a voz de Tia Aninha não me saía da cabeça:

                – Cadê meu filho, cadê Felinto, Fernando?

                Agora Almir está a meu lado, sorri alegre, contente porque me lembrei dele. Olho de vez em quando para a sua mão esquerda – como eu poderia jamais esquecê-lo, se já naquele tempo Almir era um grande homem? Abraço-o com satisfação, bato-lhe no ombro, tento recordar algumas passagens de nossa vida de meninos na mais importante rua do mundo, naquela importantíssima cidade do Crato. Mas enquanto Almir responde às minhas perguntas e me conta como tem levado a vida no decorrer desses anos – é a voz de Tia Aninha que eu ouço, angustiada, nervosa, triste:

                – Cadê meu filho, cadê Felinto, Fernando? Onde anda esse menino, que fim levou meu filho, Fernando?

(Fran Martins, Noite Feliz, 2ª ed. Fortaleza, CE, edição UFC/Casa de José de Alencar, 1999)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://paginasefolhas.blogspot.com

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Fran Martins

Francisco Martins (Iguatu, 1913 – Fortaleza, 1996) desde muito cedo revelou vocação para o jornalismo e a literatura: colaborou em inúmeros jornais do Ceará e de outros Estados, tornando-se mais tarde uma das figuras principais do grupo e da revista Clã, cujo nº. 1 surgiu sob sua direção. Professor da Faculdade de Direito do Ceará, consagrou-se como autor de obras jurídicas, conhecidas nacionalmente. Sua obra literária se realiza no campo da ficção; contos: Manipueira (1937), Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948); romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas (1950) e A Rua e o Mundo (1962); novela: Dois de Ouros (1966).

Analisando-se os contos de Fran Martins, percebe-se o quanto a utilização de determinada técnica de narração pode fazer com que uma obra literária seja desviada do caminho da vulgaridade ou da mediocridade e chegar ao leitor envolta numa aura muitas das vezes de sublimidade. Assim, veja-se o conto “O Amigo de Infância”, primeiro do livro de título homônimo. Dois homens (Chico e Gustavo) se encontram numa rua, relembram a infância, dirigem-se a um café, continuam falando do passado e, finalmente, se despedem. Apenas isto. Seria uma história insossa, menor, não tivesse Fran dado à forma de narrar um tratamento refinado. Até o desenlace do conto seria trivial, com a última fala, a do garçom, de feitio anedótico. Mesmo sendo o desfecho da história, o arremate moral, a dar à narrativa um tom realista, próximo do naturalismo – o retrato do caráter de um dos personagens. O contista apresenta, pode-se dizer, três planos de narrativa: 1º) o do encontro dos dois homens na rua; 2º) o dos destinos dos amigos de infância, com a narração concisa de alguns fatos; 3º) o do episódio da queda de uma professora, causada pela ação de um menino, de consequência muito relevante. Diante disso, o contista poderia ter optado por narrar apenas o último plano, recheando-o com o segundo. Poderia ser na primeira ou na terceira pessoa. O narrador poderia ser Chico ou Gustavo, ou, ainda, um narrador onisciente. Teríamos, provavelmente, um conto como milhares de outros, sem a menor possibilidade de fazer o leitor se emocionar, meditar, desejar reler a história. Poderia o contista também ter criado um quarto plano: o narrador (em monólogo interior, talvez), em outro espaço (sala, quarto), sozinho, narraria o encontro com o amigo de infância e todo o passado. E seria guindado à condição de protagonista. No entanto, Fran Martins realizou um conto de alta qualidade, ao dar ao personagem-narrador (Chico ou Fran) um papel secundário na trama. Isto fica evidente desde os primeiros momentos do conto, quando uma voz, numa Rua do Crato, grita por seu nome. Esta voz (de Gustavo) será a do protagonista (o que especula, pergunta, revolve o passado, convida para um café e, finalmente, conta a verdade sobre a queda da professora). Para realizar o conto, Fran Martins se valeu de três expedientes ou tipos de linguagem: a narração, em primeira pessoa, de um passado recente; os diálogos diretos e indiretos (de dois tempos, o da narração principal e o do tempo do episódio central da história); e o flash-back (narração e diálogo). A narrativa parece ter apenas dois personagens: Chico, o narrador, e Gustavo. E ao leitor parecerá desde o início ter no primeiro o protagonista. Aos poucos irão surgindo, na fala dos dois, outros personagens, os amigos de infância. Não terão, porém, nenhuma importância na trama, não passando de meros figurantes. Exceto um deles – o garoto acusado de ter deixado em falso a cadeira da professora, de que resultou uma queda, uma cambalhota e, em consequência, um defeito físico na mestra. Já o tempo do encontro dos dois amigos de infância se dá num lapso de minutos, numa rua, num café. Tempo suficiente para que recordem parte do passado, a infância, trinta anos atrás. Este segundo bloco será narrado no diálogo direto, no diálogo interior de Chico e em flash-back (narração) e será o mais relevante na trama. Tanto isso é verdade que, como dito, o conto poderia ter sido escrito sem o encontro dos dois amigos. O diálogo direto já apresentava um toque de modernidade, sem aqueles impertinentes “disse fulano”, “respondeu sicrano”. E o tempo histórico? Há pelo menos dois momentos no conto dos quais é possível extrair uma resposta para esta pergunta. No primeiro, quando os dois relembram os amigos de infância e Gustavo fala: “Sérgio foi cangaceiro, fez parte do grupo de Asa Branca”. No segundo, ao lembrarem uma das meninas, Helenita, a quem os meninos ofereciam berloques. Em suma, o drama do conto se situa na cidade do Crato, no Cariri cearense, nos primeiros anos do século XX.

Na opinião de Braga Montenegro, “o atributo dominante da obra de Fran Martins é a lógica.” E acrescenta: “A sua atitude literária é sempre infensa à tendência moderna de erguer e sublimar os fenômenos artísticos a um plano essencialmente teórico ou intelectual, o que muita vez implica na efetiva negação da veracidade de certas leis da vida, mas, ao mesmo tempo, eleva o pensamento criador a evidente plenitude de domínio e eficácia. O mundo em que o escritor coloca a ação de seus romances e de seus contos é um mundo de observação, mais que de concepção; de imagem, mais que de símbolo; de percepção, mais que de intuição”. Em outro parágrafo o crítico faz a seguinte análise: “Se nos contos de Manipueira (1934), seu livro de estreia, encontramo-lo preocupado com assuntos regionais, com os aspectos anedóticos do fanatismo e do cangaço, vemo-lo agora atento aos temas poéticos, palpitantes de vida e humanidade (...)”

O conto “Amar... Brando... Claro”, muito sugestivo, é narrado pelo protagonista, num tempo e num lugar indefinidos. No primeiro conto o leitor sabe, pelo menos, que o conflito central se deu há, pelo menos, trinta anos. Neste, não sabe o leitor em que tempo Ricardo narra uns episódios de sua infância. No primeiro, as duas personagens se encontram e dialogam, neste há somente a narração do protagonista, com poucas falas de uma personagem secundária, a professora, e, no desfecho, de uma tia de Ricardo, a anunciar a morte de Julinha e João Guilherme, afogados no rio.  Enquanto o desenlace de uma narrativa não apresenta nenhum traço de tragédia, eis que ocorrida no passado, o desta é exatamente uma tragédia.

O título é um achado surpreendente. O narrador se apaixona por uma colega de escola, Julinha, menina de 12 anos. Após viver no sítio do pai, a lidar com o trabalho no campo, Ricardo chega à cidade, decidido a estudar. Para que o conflito se formulasse, o contista pôs no palco o raquítico, porém inteligente, João Guilherme. Nessa época as crianças aprendiam o alfabeto num livrinho intitulado “Carta de ABC”. As primeiras palavras eram “Amar”, “Brando” e “Claro”. A narração de Ricardo é toda ela um encadeamento de palavras e símbolos: amor, brandura e clareza, ao contrário das águas do rio e do poço e do destino de Julinha: apenas uma notícia trágica.

No ensaio “Diálogo Intratextual: A Ruptura da Normativa” (Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Ensaios), F. S. Nascimento assim se refere a Fran: “Possuindo boa leitura da moderna prosa de ficção em língua inglesa, conhecendo no original Sherwood Anderson, John dos Passos, Ernest Hemingway e outros, presume-se que Fran Martins tenha se inspirado nas lições dos mestres estrangeiros para realizar a experiência que seu novo livro de contos encerra.” Mais adiante comenta: “Ao escrever “Cão Vadio” (Noite Feliz, 1946), Fran Martins  já demonstrava seguro domínio dos elementos fundamentais da moderna ficção, tais como o fluxo da consciência, a voz ou reflexão solitária, o flashback etc.” Em outro parágrafo o crítico apresenta mais argumentos a favor do conceito de modernidade na obra de Fran Martins: “O que se admite por mais ousado no diálogo de alguns dos novos contos de Fran Martins está, de fato, na ruptura extrema da normativa,  sendo rejeitada até a aspa simples”.

Em “Ventania” muda novamente o contista o rumo de sua arte de narrar. Aqui o protagonista é o narrador, sem nenhuma dúvida. E por que o nome do cavalo como título? O cavalo seria o elo de ligação de dois mundos: o do narrador e o das outras duas personagens (o pai e a mãe). Ventania seria também a causa do alvoroço do narrador, um vento forte a lhe varrer a inocência.

O conflito vai sendo apresentado de forma sutil, na visão do narrador, um menino. E tudo é presente, isto é, não há passado anterior. O drama é narrado linearmente, embora na voz pretérita, porém sem flash-back. Tudo se passa em poucos dias, de forma acelerada, como numa corrida. Apesar disso, a narração é lenta, comedida, sem atropelos, correrias. Nos contos anteriormente citados, as personagens se deslocavam pela rua, pela escola, pelas margens de um rio, pela cidade. Neste, o narrador vai ao quintal, volta ao quarto, gira ao redor de si mesmo, até quando vai à escola. Faz voltas ao redor de sua dor, embora seu pai saia a cavalo, em busca de outra mulher, e sua mãe chore pela casa.

Cada frase converge para o desfecho: o pai a selar o cavalo, o pai calado, indiferente ao filho e à mulher, a mãe a discutir com o pai, os murmúrios nas ruas, a conversa com a menina Mirian, o bilhete, a morte do cavalo. Ou desde o título, o nome do cavalo, até a vingança da mulher traída, ao envenenar o cavalo, o transporte do marido à casa da amante. Não há diálogos, a não ser no final, após o envenenamento do animal: do narrador com o pai e do pai com a mãe. Breves diálogos diretos, ainda sem os tradicionais “fulano perguntou”, “sicrano respondeu”.

Caio Porfírio Carneiro escreveu: “Fica a impressão – mais que isto: a certeza – de que a força narrativa do romancista sempre lhe deu sinais, como uma pilha que se não apaga, de que o conto sempre o chamou de volta, e para ele sempre voltou. Não com o ímpeto do romancista, mas com o carinho do cinzelador. Eis porque deixou páginas preciosas de ficção curta”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Aparecido Raimundo de Souza (A Ceia dos Miseráveis)

Wagner chegou sorrateiramente na zona mais rica da cidade.

Entrou por uma estreita cheia de casas e ruelas. Antes de seguir em faminto, a fome descomedida de dormir cansado, e, de frente querendo comer, comprido espiou. Qualquer goela abaixo que colocasse porcaria à dentro, estancaria, o apetite aguçado e acalmaria, sobremaneira, o extenuado do corpo espírito. Mas não tinha uma calça nos fundos do PF, para entrar num bolso. Sequer um tostão com restaurante a bife a cavalo, para pedir um simples de arroz por mais acebolado que fosse. Ou na padaria, e pisar na seção do tamanho daquele lanche que,  constrangedor ao corredor, mandava pra dentro a fúria e contemplava a felicidade cheia do sujeito pleno. As noites (embora passasse da meia cara) estavam apinhadas de feias, com ruas de criaturas formando uma espécie de sorumbática, de rústico no quadro do pintor de favela, onde o azul, no invólucro oco do estranho, naufragava distante, num aquém de fronteiras sem moldura.

A hora atropelava, ou melhor, o relógio não existia, se fazia presente numa louca realidade como um compressor de rolo a trator esticando o asfalto novo. E as guloseimas, o estabelecimento, na parte da calçada, plantado de oposto a envidraçados pomposos e cheios de rebusques, bem ali, a sua, suspendia, à frente e agora, a barriga roncava os dentes e rangia nervosamente o estômago. Os olhos verdes da fome, esmaecidos pelo vazio negro de Wagner e, desmesuradamente silenciados pelos abertos, gritavam terror numa indecifrável de atitude imposta da mais pura das misérias. Na verdade, choravam pelos fustigados a cotovelos soltos, em vista das dores fortes e imensas e também por verem o malfadado vegetar, um rapaz de verme e asqueroso, de viver, enfim, num degradante Deus, como se não fosse reino filho da estonteante desolação.

Coitado do seco! Pobre Wagner! Magro, esfarrapado, esquelético, estruturalmente esfaimado e deprimido. Alma interrompida, submissa, mansa, vexada, desprezada e entupidas de diversas as mais maltrapilhas. Em quadro a parte, cicatrizes pela profusão salpicadas em epiderme. Pedaço infeliz sustentando em adversas, um punhado de hostis. Mesquinhas também de chagas incomuns, repletas de mazelas e incisões incuráveis. À sua dúzia, meia volta de rodas com cabeças pingadas, estendiam pouco caso disfarçados de meros transeuntes. Não contentes, faziam aparências de suas chacotas. Jogavam risos ao ar. Franqueavam os molares a abertas piadas, onde igualmente, bocas de menosprezos e lábios fartos de escárnios, vomitavam enxurradas de resquícios absurdos. Para a frieza da proporção aumentar o medonho, alguns viravam as máscaras pela vergonha, ocultando os avessos do acanhamento. E João simplório, ali no ir, sem ter para onde no meio, de modos bebia com ímpetos ninguém. Em paralelo, sonhava o resto dos lábios abatidos no refrigerante bem vestido e gelado, que escorria do preto de terno indivíduo. Em passo igual, devorava a fatia da moça que ensaiava levar um aspirador na ponta da pizza como um garfo maluco e descontrolado de modos igual mussarela. A boca sugava como Wagner, um self-service, ao passo que, no imenso esfaimado, com mil e  uma espalhadas, as mesas ensaiavam, ordenadamente postas, umas ao lado das outras, a transgressão impura do irreal jamais imaginado.

Todavia, passava ao Wagner, a valentia dos longes ousados.   A  coragem  destemida  dos  agás  maiúsculos, igualmente, fazia voar para longe o distante do homem. Faltava, na força da fera, o tigre dos decididos, para saltar como um sangue em busca da presa enjaulada. O destemor dos pés, para meter as portas num dos loucos de acesso ao enorme salão — ou das janelas que o arejavam e se servir a estômago vazio, abundantemente, até entulhar o entediar dos cantos do organismo. Sempre nesses trágicos de abatimentos, pingares de desânimo molhavam as roupas maltrapilhas, encabulava, vexava, constrangia Wagner, com inclinações para a extenuação e o esmorecimento degradante. Vinha a venturosos, a magnificência dos dias a mente em polvorosa. Recordava suntuosa a trechos de aventurança. Cidadão de pele ostentava nas posses de orgulhoso o respeitável empresário e senhor centena de um absoluto de bens materiais. Carros com mansões, piscinas do ano, apartamentos de mar a poucas quadras de cobertura. Mulheres movidas a pau e dinheiro a dar com frases bonitas. O tudo, no entanto, pertencia ao passado. Chorar sobre os sapatos seria regressar pisando no leite escorregadio e pegajoso por estarem nus e calejados de azedo. Um misto se toldou com fisionomia de frustração deteriorada o seu presente tão ontem, mas ele, vencido, soube conter a garganta que apertava de ímpetos intransigentes. Determinara a si não mais sofrer motivos fosse, ou se curvar, atabalhoado, a enterradas em severas e sofríveis pendências.

Todavia, o que tomar? Que atitude fazer? Meter os costados certeiros na frente de uma bala em movimento? Jogar a solidão de um trem diante de um prédio sem cabeça de vida? Pular de uma bacia no cume de frutos comestíveis, ou, por sobre uma árvore de água fervente? Bosta! Merda! Não deixava de ser a vontade, a falta de altivez, para escolher, animadora com um final louvável e decente. Naquela improvável, qualquer iminência pareceria tão real como subir de matéria plástica pingenteado num aviãozinho aos céus sem infinito. Enquanto melhor matutava o que seria saudável para sua mesquinha, Wagner se propôs a dar próprio de si cabo. Não propriamente ensaiar, mas a morrer aos poucos, a doses pequenas. Fugir de vez, deste cão mundo, dando uma ligeira espiada no outro lado, experimentando incertos postes, escorregando aqui e acolá, segurando nas voltas e dando carros em tropeções. Uma verdadeira selva de motores e sons de bestas pré-históricas resfolegavam festas como buzinas ensurdecedoras. Logo, entretanto, avistou uma encruzilhada adiante. Nesse encontro de surpresas, deparou artérias como a de uma betesga ao Deus dará. Sorriu com os dentes cheios de cara e os olhos de fome vazios pela boca podre. Caminhou para lá (esse assunto de depois ficaria para morrer) levando um transito medonho para driblar a eternidade nas costas. Ao galgar os músculos fronteiriços, o que enxergou fizeram as calçadas irrequietas por onde passou darem assombros de urros.

Detritos de mesas postas pelo chão espalhados, se perdiam em farturas, com alimentos ao léu, jogados ao mais diverso. A toalha de conforto, forrando o cimento, transmitia o regalo da doce sensação. Esparramados, a bel-prazer, guimbas de batons se confundiam com finais de cigarros sujos, deixados por carreiras partidas com alguém a passos ligeiros. Igualmente, garrafas de latas amassadas, cervejas de refrigerantes quentes com sobras consideráveis. Tudo ali. Ao alcance. Ao seu poder de sedução. Pães, pedaços de bolo, tortas e sanduíches variados. Muita pipoca. Também, taças de velas, champanhes acesas e charutos de cores diversificadas. O Altíssimo olhou para Wagner, compridamente, e deu graças ao escuro do firmamento numa prece fadaria pelo anã de topar com uma sorte de delícias tremendas largadas ao esburacados dos suas cáries, explodindo dentes aterradores. Um leque de alegrias lancinantes e de contentamentos desembrulhou-se num grito de aprazimento e agrados, enquanto o degustar lamuriante e febril suplicava o que mandar contrariado para a pança correndo. Finalmente, daria semana daquele cabo maldito (talvez mais) de abstinências as privações na mais completa horrenda. Necessitava, pois se aproximar ligeiro, se abeirar, tomar definitiva de tudo a posse, o que lhe caíra às mãos como uma debilitada e fartar o organismo em dádivas.

Por certo, em cada latinha, em cada prato, nascia sorrateira, a  esperança venturosa, ajudando, como a Fênix, o equilíbrio a manter das cinzas e fazer com que o saco mitológico continuasse fora do humano. Em face desse iluminado, Wagner, festim (sentia-se como um escolhido de Deus), penteou a camisa e empertigou os cabelos.

Alisou ligeiramente a calça rei igual um mocambeiro na sua rota trapagem de indigente.

Quem na azáfama ali o visse, diria que estariam reunidos num regozijo, os banquetes de todos os amigos. Os inseparáveis das farras peladas nos clubes da alta sociedade e das moçoilas e mocetonas de sábado, que juravam por um dólar furado fidelidades de mentira e amor com gosto de eterno. O fidalgo, só, estava, entretanto. Completamente ao arrepio do acaso. Seus nadas tomariam parte em parceiros. Somente a solidão pungente, a noite enfadonha, a lua circunspecta e o vento encerrado nas limitações de uma amenidade sufocante. De repente reunidos e perfilados, chegados, quem sabe de guetos e subterrâneos longínquos, centenas de personagens os mais aterradores brotavam de buracos horríveis disputando um lugarzinho. Gatos, cachorros, ratos, baratas, parasitas e lombrigas imundas formavam uma espantosa e evidente desigual família, mas uma prole digna de ser contemplada. Wagner sorriu para esses novos camaradas ao tempo que abria os braços como anfitrião de primeira linha.

— Sejam bem vindos. Fiquem à vontade!...

Sentou a tranquilidade perto de um velho tambor de delongas, e sem mais lixos serviu-se calado, meticuloso. Os camundongos o imitavam nos movimentos mais requintados. Os felídios, indiferentes, assustavam-se com os voos curtos dos ortópteros. Uma leve, inervante e ávida chuva de paciência, esperava, com pernilongos de mosquitos, a oportunidade de sugar os alheios daqueles braços de mendigo emplumado às coisas que aconteciam a sua volta. Vencido pelo destino, Wagner naquele transitório queria só o páreo de estancar, estancar, estancar. Comer, na verdade, a gula apertada e irritante que o definhava gradativamente, pouco a pouco, como doença incurável e maligna.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

domingo, 24 de novembro de 2013

Olivaldo Junior (Carta Aberta ao Caro Amigo)

Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida.
Herman Hesse (1877-1962), em O lobo da estepe, romance de 1927


            Cá estou, caro amigo, de volta a escrever. Escrevo como se meus dedos precisassem disso. Eles precisam? Não sei, mas escrevo. E escrevo hoje para você. Você, que conheci há uns anos, faltando dias para o Natal. Escrevo para quem fez por mim o que poucos fariam. Escrevo porque preciso me levar aos trancos e barrancos para fora desse enredo em que somente eu me desenredo.

            Faz tempo que conheço o romance O lobo da estepe, do alemão Herman Hesse. Será que você já o leu? Se o fez, saberá o quanto de mim existe naquele homem, em Harry Haller, que se diz artista e com um lobo a pernoitar no escuro abismo da alma. Minha alma, ou uma de minhas almas, foi a de um jovem homem que se identificou com uma casa de escritores e dela fez o seu refúgio, sua franca morada, aberta a quem viesse, ou a quem pudesse encontrar. Essa casa, para mim, apartou-se da alma e me pus despejado de meu próprio canto. Hoje, o lobo em mim está no frio, e o homem que sou está sem jeito de abrigá-lo ao peito, sendo que, como Harry Haller, eu me digladio com meus próprios eus. Você, caro amigo, será que vê como eu mesmo me vejo? Será que me sente como eu mesmo me sinto? Houvesse vocação para o álcool, um absinto cairia bem. Bem me faz falta, amigo, você neste meu bar.

            Carrego meus versos, bons ou ruins, na mala do espírito, esperto e rápido colibri, que, embora a primavera enterneça os galhos e os ramos hostis, priva-se de flores e se exaure em espinhos. Sobre as pétalas de tanta espera, ainda o espero, meu caro, sob os olhos do relógio, com palavras entreabertas numa boca sem palavras. Lavro minha terra etérea com as cordas gastas de um violão, colocando a voz para letras outras que não as minhas, mas as que julgo belas, ou em vias de o ser. Olho, às vezes, uma foto sua e me pergunto o porquê de nunca termos convivido o quanto eu gostaria. Ria, você ria de algumas tiradas que eu tinha quando estávamos juntos. Não sei, amigo, na mais dura verdade, porque nunca estivemos mesmo juntos. Havia a promissora vontade de estarmos lá e firmarmos, sim, parceria. Um violão ficou de resto do que sequer me restou. Ainda o espero, por certo, e sempre o farei.

            Este texto também vem a ser uma nota de fuga: este ano me pesou nas costas como se eu levasse uma grande trouxa de roupas lindas que já não me servem. O Natal e o Ano Novo estão à porta. Você, caro amigo, sempre me vinha ver a essa época. A época melhor é a que estivemos lá. Por vezes, ainda me vem visitar, mas em sonho, com sua cara alegre e seu sorriso a me fazerem crer que sou mais que um lobo da estepe, mas um amigo, a classe de gente a que me afeiçoei e, desconfio, não pertenço. Este texto é que é seu. Obrigado a você e a quem me lê. Adeus.

Trovas sobre lobo, homem, Natal, Ano Novo e adeus

            Após tanto tempo prometendo e sem jamais cumprir, me despeço agora. Porém, como um sinal de apreço a quem me deu atenção e se importou comigo, escrevo e mando estas trovas, um gênero sobre o qual revivi.

Todo lobo é bom e mau,
porque mal e bem são folhas
com que Deus, original,
veste o homem nas escolhas.

Vários homens que sondei
carregavam esperanças;
nenhum pobre, nenhum rei,
todos eram só crianças.

O Natal, quando é dezembro,
reaviva a minha fé;
de mim mesmo, me relembro,
menininho de Javé.

Numa ‘nova’ sepultura,
Ano Novo se desfaz:
um guerreia na loucura,
outro pede pela paz.

Meu adeus é minha forma
de dizer que te respeito:
todo mundo segue a norma,
mas eu sigo deste jeito.


Fontes:
Olivaldo Junior, o poeta do Adeus
Imagem = http://www.br.bestgraph.com

Fabiane Ribeiro (Jogando Xadrez com os Anjos)

Jogando Xadrez com os Anjos é um livro que ao mesmo tempo em que machuca o leitor faz com que ele se encante com a maneira que a jovem protagonista supera todos os seus obstáculos e cria toda uma atmosfera reflexiva.

Narrado em terceira pessoa, conhecemos Anny, tem apenas 8 anos em 1947. Ela vive na Inglaterra justamente quando o país tenta se reerguer no período pós-guerra. A protagonista passa muito tempo sozinha, com o coração apertado pelas saudades dos pais, os quais recebem uma “proposta de emprego” irrecusável e decidem aceitar, deixando a filha  aos cuidados de um casal totalmente desequilibrado , em uma casa onde há apenas rancor..

Nestes momentos de ausência a garota fica sob os cuidados de uma serviçal. Meiga, ela se esforça para compreender e aceitar a conjuntura em que vive. Por determinação dos pais, ela é obrigada a permanecer o tempo todo em sua casa; por esta razão não pode ir à escola e recebe aulas particulares de Jane, uma mestra que Anny considera desprezível.

A criança mal pode imaginar que sua vida está prestes a passar por uma triste reviravolta. Os pais são obrigados a ficar fora por mais tempo e, assim, só poderão ver a filha uma vez por ano. Eles então recorrem à Jane e seu marido; pagam a ambos para que acolham Anny.

Como já desconfiava, a menina encontra um lar desprovido de amor e atenção. Sua tutora a trata mal, não permite que ela se divirta com seus inúmeros brinquedos e também a impede de assistir televisão. Além disso, a austera professora determina que a menina cumpra tarefas domésticas e só lhe concede duas refeições diárias.

Mas Anny não perde a fé e preserva a inocência em seu coração. Ela se entretém com o cultivo do jardim e suplica a Deus que lhe envie alguém para preencher sua profunda carência afetiva. Tudo que traz do passado é o tabuleiro de xadrez que ganhou do pai e a oportunidade de olhar à distância para sua antiga residência.

É quando a protagonista encontra em sua jornada pela vida anjos que a guiarão neste momento difícil. Entre eles está Pepeu, um estranho rapaz que modificará definitivamente a sua existência. Com ele a menina realiza um aprendizado essencial, sem jamais sair dos limites de seu jardim.

Ao seu lado a garota mergulha no reino encantado presente em seu tabuleiro de Xadrez; aí as possibilidades são infinitas e tudo se torna acessível. As pessoas que surgem em seu caminho contribuirão para seu crescimento espiritual e ela vai receber ensinamentos fundamentais, conquistando valores como o altruísmo, a fé e o amor em sua face mais autêntica.

Estes amigos que Anny faz a defendem e ajudam a menina a ter um pouco de infância, além de alguns fazerem parte do seu Reino Xadrez, que é um lugar para o qual a menina é transportada quando sonha, já que o Reino reflete ao inconsciente da menina e também adiciona um “ambiente” a mais na história.

O livro é carregado por um clima fortemente soturno, as páginas são semelhantes ao barulho de um vento triste e as maldades, saudades e frustrações da personagem principal contribuem para que o enredo se torne ainda mais triste. Mas não se engane, achando que irá chorar o livro todo, pois Anny encontra como saída desse mundo perverso: a fuga da realidade e penetra em um mundo feito de Xadrez, onde faz suas próprias leis, além de ter um dom especial e uma maturidade excepcional.

ALGUNS PERSONAGENS DO LIVRO

PEPEU (Pedro Leopoldo), 21 anos, norte-americano. Artista de rua e membro do grupo artístico itinerante denominado "Anjos da Arte" (e, posteriormente, "Anjos da Guerra"). Um eterno menino sonhador e apaixonado, extremamente sensível, nostálgico, mas também divertido.

Pepeu na história: Em um belo dia, Pepeu surge misteriosamente nos canteiros do jardim cuidado por Anny. Com o passar do tempo, eles tornam-se amigos, cúmplices, companheiros para as partidas de xadrez, danças ao som de gaita e conversas sobre o mundo além daqueles canteiros. O amor que sentem um pelo outro é um amor fraterno; são como irmãos, como uma família. No decorrer da história, Pepeu desabafa com Anny sobre seu passado e as razões para o sofrimento que ele carrega. Porém, ao mesmo tempo em que as respostas são dadas, muitos mistérios continuam a envolvê-lo.

"Lentamente, Pepeu subiu os degraus da igreja, a contemplar os próprios pés e as pedras do chão. Tudo cheirava a mar.

Na escadaria, uma sombra surgiu, e veio de encontro à sua. Seu coração soube antes de seus olhos quem estava ali naquele deserto junto a ele. Era o Infinito ganhando forma novamente.

Ele levantou lentamente a face e viu a moça descendo os degraus da igreja, caminhando ao seu encontro.

Tirou a boina da cabeça, segurou-a junto ao coração, e ficou parado com um pé em cada degrau, a contemplar aqueles cabelos.

As ondas dos fios castanhos se misturavam ao longe com as ondas do oceano e ele pôde sentir a alegria invadir cada célula de seu corpo.

Ela estava parada bem à sua frente. Usava um vestido azul, como o mar e o céu, que eram seus únicos companheiros naquele local esquecido pelo mundo.

Ela falou, e sua voz pareceu uma manhã de primavera:

— Ângela.

— Ângela... – ele repetiu – que nome lindo. Parece nome de anjo".


HERMES, homem inglês de meia-idade. É o responsável pela "adoção" de Anny após a partida misteriosa dos pais, juntamente com sua esposa, Jane. Um homem frio e de olhar triste, cujo coração parece não ter alegria de viver. Será que Anny conseguirá conviver com um homem tão amargurado? Talvez a razão para tamanha amargura esteja nos erros do passado...

Hermes na história: Sempre com a cara fechada e sem expressões, Hermes arrasta a vida sem alegrias e esperanças. Até que Anny, a protagonista de oito anos, surge em sua casa pequena e cinzenta. A princípio a presença da garota, cheia de vida e alegria, é como veneno para sua existência dolorosa. Mas ela não medirá esforços para compreendê-lo e ajudá-lo. Hermes tem um capítulo especial, durante um Natal inesquecível, em que muito de seu passado é revelado. Assim, a tristeza em seu olhar, finalmente, começa a ter uma explicação.

"Hermes era casado com Jane há duas décadas. Eles não conseguiram ter filhos e, com o passar dos anos, se acostumaram tanto com a ideia de que nunca seriam pais que nunca mais tocaram no assunto. Ele era um homem sério, que tinha menos idade do que aparentava. Sua barba era tão malcuidada que chegou a dar nojo em Anny quando ela o olhou de perto. A garota pensou que ele não tinha alegria de viver quando olhou dentro de seus olhos pela primeira vez, deparando-se com uma expressão vazia e cansada, de quem espera pouco e entrega pouco à vida".

"Enquanto falava, Hermes parecia reviver sua própria história, mergulhando cada vez mais profundamente nas lembranças – lembranças de quando ele ainda vivia e não simplesmente existia.

Há tanto tempo ele não se permitia relembrar...

Havia guardado aquelas recordações no fundo de sua alma por tanto tempo, que elas, agora, pareciam empoeiradas. Era difícil revivê-las, pois eram doces, e o coração do homem, com o tempo, havia se tornado amargo.

Anny deixou-se embalar pelas memórias de Hermes e foi acompanhando cada detalhe, também criando as cenas em sua mente"
.

BORBOLETA AZUL aparece tanto na realidade, quanto no Reino Xadrez, onde é o único pontinho colorido em um reino branco e preto. Ela sempre traz esperança e aparece em momentos importantes da vida (e dos sonhos) da pequena Anny, a protagonista da história e rainha do Reino Xadrez! A borboleta azul é uma representação muito especial na trama e trará bons sentimentos e aprendizados à pequena rainha sempre que aparecer.

"A borboleta azul demorou-se muito no jardim, e Anny pensou que ela devia estar reconhecendo seu segredo nas plantas, o amor; assim como Pepeu o reconhecera.

Ela voou por entre as flores que nasciam, e Anny foi andando atrás dela, imitando sua leveza. Então, a menina esticou os dedos e a borboleta azul pousou sobre um deles.

Anny a observou por vários instantes, maravilhada com sua perfeição. Ela era linda de se ver".

"A rainha Anny declarou que aquele era o dia mais feliz de seu reinado, e todos os súditos de cristal dançaram alegremente nos gramados quadriculados. No castelo, que uma vez estivera em ruínas, músicas alegres tocavam – todas elas eram originadas por belos pianos. E, ao redor do palácio, voava uma borboleta azul-celeste. Linda, cheia de vida e cor".


DESIRÉ, 12 anos, Inglesa. Enxerga o mundo através das palmas das mãos.

Desiré na história:

Ela surge, junto de seu irmão George, no muro da casa vizinha à de Anny, trazendo alegria e suavidade a sua história sofrida. Deficiente visual, Desiré conta com a ajuda de sua fiel cachorrinha, Nina, e com o amor imenso pela vida que existe dentro do seu peito. Ela ajuda Anny a também conhecer o mundo com as palmas das mãos – e, assim, senti-lo da forma verdadeira –, é sua confidente e companheira nas tardes em que cuida dos jardins e durante momentos preciosos em que ambas descobrem a arte da dança. Anny e Desiré são um grande exemplo de amizade, pureza e superação e, também junto de Pepeu, vivem momentos encantadores por entre as flores que Anny cultivara nos jardins antes sem vida.

“Outro dia, as meninas estavam conversando distraidamente, quando Desiré parou e disse:

— Quem está aí?

Sem que Anny notasse, elas realmente tinham companhia:

— Pepeu! – gritou Anny, indo abraçar o rapaz – Que bom que está aqui. Eu gostaria que você conhecesse minha nova amiga. É a Desiré. Ela é muito especial. Venha, aproxime-se do muro, para que ela possa conhecê-lo.

O rapaz aproximou-se de Desiré e ela esticou as mãos para tocar-lhe a face. A menina ficou alguns minutos analisando cada traço de Pepeu, então, sorriu:

— Você é lindo!”

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Fabiane Ribeiro já escrevia quando tinha 6 ou 7 anos de idade. Seu entretenimento predileto era criar narrativas. A leitura também era sua maior paixão. Ela lia compulsivamente, sem escolher estilos ou gêneros. Graduada em Veterinária, ama os animais assim como as palavras.

TRECHOS DO LIVRO
"O castelo continuava lindo, enorme e xadrez, exceto por um pontinho azul que o circundava.
Era ela, a borboleta azul...

Então, uma chuva começou no Reino Xadrez. Não era uma forte tempestade. Afinal, não representava fúria ou descontrole. Era uma chuva fina, reconfortante; uma chuva para limpar a alma.

Representava alento, recomeço.

Era como se o céu chorasse junto com Anny, mas de uma forma suave...
Sobre o castelo se abriu uma fresta de luz entre as nuvens. Era o sol, abrindo caminho para seus raios em meio à chuva. Tudo era exatamente como no interior de Anny...”

“De um lado, estava o exército preto, e de outro, os súditos de cristal do exército branco.

As peças marchavam em direção ao enorme tabuleiro central, tudo era gigante aos olhos de Anny. Os passos coordenados das peças ecoavam por todo o reino, anunciando o duelo de xadrez que se formaria em instantes.

Quando tudo estava organizado, Anny perguntou:

— Com quem irei jogar?

E foi nessa hora que se ouviu o galopar de um cavalo ao longe, e ele surgiu entre as colinas quadriculadas: o cavaleiro bondoso que Anny conhecera na primeira vez em que estivera no reino.

À medida que ele se aproximava, seu rosto se tornava mais familiar. Com suas bochechas rosadas e seu lindo sorriso. Anny sabia que era ele: seu fiel cavaleiro, aquele a quem ela tanto amava. Aquele que a salvou da tristeza e da solidão diversas vezes e a ensinou a ouvir o coração.

Ele fez uma demorada reverência à rainha, dizendo:

— A partida pode começar.”


Fontes:
Fabiane Ribeiro. http://www.fabianeribeiro.com.br/
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/jogando-xadrez-com-os-anjos/
http://gossinp.blogspot.com.br/2012/09/resenha-jogando-xadrez-com-os-anjos.html
Cris Toledo. http://livronasmaos.blogspot.com.br/2013/02/resenha-jogando-xadrez-com-os-anjos-de.html