domingo, 13 de outubro de 2013

Ana Maria Zanini e Ruth Ceccon Barreiros (Ler como e o que – Ler para quê?)

RESUMO: A queixa de professores de que os estudantes não sabem ler e escrever, e de que não se mostram capazes de produzir textos de acordo com as exigências necessárias para caracterizá-lo, é relativamente antiga e tem suscitado inúmeras pesquisas na busca de encontrar quais os entraves na formação proficiente de leitura e, consequentemente, de escrita. Dentre os caminhos indicados nas práticas de leitura, dois se destacam: ou reproduzem modelos já ultrapassados ou se inspiram nas propostas de promoção de leitura em que se valoriza o espontaneísmo. Contudo, é preciso reconhecer que a questão do domínio lingüístico e da capacidade de ler e escrever transcende as formas de ensino e de formação individual, residindo, em grande parte, nos modos como se distribuem e se transmitem os bens culturais na sociedade contemporânea. Em outras palavras, o problema se relaciona com os processos de produção e circulação da cultura escrita, isto é, com as formas de letramento.

1 - Introdução

Com o desenvolvimento da escrita e da leitura o homem tornou-se capaz de transmitir conhecimentos e fatos. A leitura, como ação de decifrar signos e descobrir sentidos, pode ser empreendida como um ato de fruição e enlevo ou para estudo, com a intenção de agregar e difundir saberes. Para tanto, o hábito de leitura deve ser desenvolvido de forma que o leitor possa apreender os sentidos do texto, deixando de ser um mero decifrador de signos, e que possa a partir dessas experiências tornar-se também um produtor de novos textos.

A leitura é uma característica da sociedade urbano-industrial moderna. Saber e poder ler e escrever é uma condição tão básica de participação na vida econômica, cultural e política que a educação escolar tornou-se um dos direitos fundamentais do ser humano, assim como a saúde. Os índices de alfabetização da população é um dos critérios para a avaliação do desenvolvimento e da qualidade de vida.

Entretanto, os estudos e debates sobre leitura têm privilegiado as formas de ler em que prevalece o investimento subjetivo, livre e autônomo. Daí porque se fala e se escreve tanto sobre o prazer de ler, a formação do gosto pela leitura, valorizando-se as motivações de ordem pessoal, para que haja leitores efetivos e não apenas sujeitos que decoraram signos linguísticos. Ainda que não se afirme categoricamente, acredita-se nesse movimento espontâneo de formação pessoal, do qual a leitura seria um fundamento básico.

Porém, é preciso reconhecer que a questão do domínio linguístico e da capacidade de ler e escrever transcende às formas de ensino e de formação individual, residindo, em grande parte, nos modos como se distribuem e se transmitem os bens culturais na sociedade contemporânea. Em outras palavras, o problema relaciona-se com os processos de produção e circulação da cultura escrita, isto é, com a maneira que é feito o letramento.

De acordo com Barros, “assim concebido, o texto encontra seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa sociedade (de classes) e determinado por formações ideológicas específicas.” (2007, p. 7). Dentro dessa concepção, além dos expressos linguísticamente (oral ou escrito), os textos também pode ser visuais - gestos, dança, fotografia, placas sinalizadoras ou o modo de se vestir - ou apresentar um sincretismo de expressões: história em quadrinhos, filmes, peça publicitária ou música.

Diante da imensa gama de textos a serem lidos, presentes no cotidiano de qualquer indivíduo podemos afirmar, portanto, que há leituras diferentes e que uma política de formação do leitor não pode se limitar à premissa única de que “ler é bom”. O fato é que o uso da escrita passou a ser de tal modo imperativo que o indivíduo que não lê e não escreve torna-se um pesado ônus para o sistema. Pois, como disse Castello-Pereira (2003, p. 13), “precisamos formar cidadãos que possam ler bem, porque o sujeito que não tem um bom domínio da leitura tem em grande parte a sua possibilidade de participação social limitada”.

Há certamente uma dimensão pragmática, em que saber ler importa para a produção de valores hegemônicos e para a organização da vida diária. É fato também que a leitura é uma forma de consumo, em torno do qual se constitui, em grande parte, a indústria da informação e a indústria editorial.

Trazer à tona esse debate é imprescindível no atual momento da educação brasileira, que vem incorporando em ritmo acelerado novos segmentos sociais, cujas experiências culturais e vivência com os discursos escolares parecem não corresponder às expectativas da sociedade.

2 - Desenvolvimento

É inegável a importância da leitura na formação dos indivíduos, no seu aperfeiçoamento e no exercício pleno da cidadania. Mas o que é leitura?

2.1 - O que é leitura

Segundo o dicionário eletrônico Houaiss, leitura é, entre outras acepções

s.f. (1382 cf. SintHist) ação ou efeito de ler 1 ato de decifrar signos gráficos que traduzem a linguagem oral; arte de ler 2 ato de ler em voz alta 3 ação de tomar conhecimento do conteúdo de um texto escrito, para se distrair ou se informar 4 o hábito, o gosto de ler 5 o que se lê; material a ser lido; texto, livro 5.1 LITUR.CAT texto lido ou cantado por uma só pessoa, ger. extraído da Bíblia <é tradicional a l. nos refeitórios dos conventos e colégios religiosos> 6 conjunto de obras já lidas 7 fig. maneira de compreender, de interpretar um texto, uma mensagem, um acontecimento 8 matéria de ensino elementar . (HOUAISS, 2002)

Indo além da simples definição de interpretação mecânica de sinais gráficos, a leitura pode ser definida, dentro de uma visão mais ampla, como “um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas, não importando por meio de que linguagem.” (MARTINS, 1991, p. 30).

Desse modo, compreende-se que ler significa perceber a intenção de uma peça publicitária, captar a expressão corporal do interlocutor ou assimilar a história de um filme. A leitura é um processo de construção de sentidos realizado entre o emissor e o receptor. Pode-se dizer que ocorre um diálogo entre aquele que lê e aquilo que é lido. Consequentemente, desenvolver a leitura “significa também aprender a ler o mundo, dar sentido a ele e a nós próprios.” (MARTINS, 1991, p.34).

A leitura, de acordo com Sole (1998, p. 92-99), deve seguir alguns objetivos. São eles que determinam a postura do leitor diante do texto, a forma como esse leitor vai compreender o que foi lido. Em uma situação de ensino, o professor deve ter em mente esses objetivos antes de aplicar um texto em sala de aula.

A autora enumera, entre outros, os objetivos de ler para obter informação precisa, para seguir instruções, para obter uma informação de caráter geral, para aprender, para revisar um texto próprio, por prazer, para comunicar um texto a um auditório, para praticar leitura em voz alta, para verificar o que se compreendeu. Esses não são os únicos propósitos de um leitor diante de um texto, mas são alguns dos que podem ser trabalhados dentro do contexto escolar. Assim, sob essa perspectiva esses objetivos podem ser assim descritos:

a) Ler para obter uma informação precisa é uma leitura seletiva, em que o leitor procura apenas uma informação, rejeitando outras. É o caso de consultas em dicionários ou enciclopédias ou em uma lista telefônica.

b) Ler para seguir instruções nos permite fazer algo concreto. É uma leitura completamente funcional, como no caso anterior ocorre durante a leitura uma seleção de informações, ou seja, o leitor escolhe o que é importante ou não, deixando de lado tópicos que não interessam ao objetivo. São exemplos textos de receitas culinárias, regras de um jogo ou editais de concursos.

c) Ler para obter uma informação geral é quando a leitura é feita para se obter uma visão ampla do assunto do texto, não há pressão para encontrar qualquer informação mais detalhada. É o caso do leitor que navega aleatoriamente na internet.

d) Ler para revisar um texto próprio ocorre normalmente com as pessoas que utilizam a escrita como instrumento de trabalho, jornalistas, por exemplo. É uma leitura crítica, em que o autor procura colocar-se no lugar do leitor. No ambiente escolar é um importante instrumento para o desenvolvimento da produção textual.

e) Ler para aprender. É uma leitura mais focada. Nela o objetivo é ampliar conhecimentos, para tanto o leitor aprofunda-se mais no texto, anota dúvidas, registra termos desconhecidos, relaciona as novas informações com as já adquiridas.

f) Ler por prazer. A leitura nesse caso é uma questão pessoal, depende de como cada leitor frui o texto. Normalmente é um objetivo relacionado com textos literários. O discurso poético não precisa seguir as normas da língua, é de teor subjetivo e, portanto, plurissignificativo. Como o texto literário é basicamente ficção, o leitor pode fugir da lógica sistemática e do pensamento analítico, da realidade, e participar de um mundo imaginário. “Através de uma história inventada e de personagens que nunca existiram, é
possível levantar e discutir [...] assuntos humanos relevantes [...] evitados pelo discurso
didático-informativo [...] por serem considerados subjetivos, ambíguos e imensuráveis.”
(AZEVEDO, in SOUZA, 2004, p. 40). A afirmação do autor reitera a importância do processo de introdução à leitura e de apreciação do texto literário em sala de aula.

g) Ler para comunicar um texto a um auditório produz uma leitura em que o leitor necessita utilizar vários recursos para que a mensagem chegue corretamente a seu destinatário: entoação, pausas, ênfase, etc. Como essa é uma leitura em que os aspectos formais são importantes, o leitor deve ter contato prévio com o texto antes de ser apresentado ao público.

h) A leitura em voz alta é uma prática tipicamente escolar, em que se exerce a dicção, entonação e normas de pontuação. É precedida, normalmente, de uma leitura silenciosa.

i) Ler para verificar o que se compreendeu. Após a leitura de um texto, faz-se a recapitulação    ou responde-se a um questionário para se constatar o que foi compreendido.

Solé também afirma que partindo do objetivo determinado para a leitura, e tendo em mente que leitura é um processo de interação, é que o leitor constrói os significados do texto lido. E não apenas isso, para ler necessitamos, simultaneamente, manejar com destreza as habilidades de decodificação e aportar ao texto nossos objetivos, ideias e experiências prévias; precisamos nos envolver em um processo de previsão e inferência contínua, que se apoia na informação proporcionada pelo texto e na sua própria bagagem, e em um processo que permita encontrar evidência ou rejeitar as previsões e inferências antes mencionadas. (SOLÉ, 1998, p.23).

Assim, segundo Solé, ao ser apresentado a um texto, o leitor deve ser capaz de decodificar seus signos e, indo além, de formular hipóteses que levem à construção da compreensão do texto.

2.2 - Os parâmetros curriculares

A educação é um direito garantido pela Constituição de 1988 a todo cidadão brasileiro e é dever do Estado promover o acesso ao ensino básico, pois somente a educação preserva a democracia. Além da Carta Magna, o direito à educação é garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990; e pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), de 1996.

O ensino de língua e literatura percorreu um longo caminho antes de chegar a esse ponto. Inicialmente, logo após o descobrimento, o ensino não era institucionalizado e visava tão somente à alfabetização pura simples. Mais tarde, nas últimas décadas do século 19, a disciplina de língua portuguesa passou a integrar os currículos escolares brasileiros. Mas foi somente em meados do século 20 que o ensino de língua portuguesa
perdeu seu status elitista.

Dentro desse contexto de expansão da escolarização, em que aumentou expressivamente o número de alunos, surgiu a necessidade de estabelecer propostas pedagógicas adequadas aos novos tempos e necessidades. No caso específico do ensino de língua materna e literatura brasileira, dever-se-ia levar em conta “a presença de registros linguísticos e padrões culturais diferentes dos até então admitidos na escola.”
(GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p. 43).

Com o estabelecimento da LDB, em 1996, técnicos do Ministério de Educação elaboraram os Parâmetros Curriculares Nacionais que passariam a servir de referenciais
às propostas curriculares dos sistemas de ensino. A partir dessa premissa foram criadas as Diretrizes Curriculares Estaduais a fim de estabelecer novas atitudes frente às práticas de ensino, “numa proposta que dá ênfase à língua viva, dialógica, em constante movimentação, permanentemente reflexiva e produtiva.” (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p. 48).

2.2.1 - As Diretrizes Curriculares

As Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná, elaboradas pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná, compreendem a leitura como “um ato dialógico, interlocutivo, que envolve demandas    sociais, históricas,  políticas, econômicas, pedagógicas e ideológicas de determinado momento.” (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p. 56). Sob esse aspecto, o processo de ensino da prática leitora leva o aluno a desenvolver aptidões não apenas linguísticas, mas também cognitivas e de cidadania, em uma dimensão mais ampla, que o encaminha à construção
de significados.

As diretrizes curriculares direcionam um olhar mais específico ao estudo da literatura, propondo que o ensino da literatura procure formar um leitor que seja capaz de sentir e expressar o que sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio de uma interação que está presente na prática de leitura. (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p.58).

Assim sendo, cabe ao professor utilizar textos variados, de diferentes gêneros, em linguagem verbal e    não–verbal,    incluindo-se    também o    meio    digital. Essa diversidade familiariza os alunos com todos os suportes de leitura, permitindo-lhes que reflitam sobre o que foi lido e desenvolvam o senso crítico. Além disso, o professor  deve “propiciar ao educando a prática, a discussão, a leitura de textos de diferentes esferas sociais...” (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p.50).

2.2.2 - As Diretrizes e Bakhtin

As Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná indicam que o professor deve propiciar aos seus alunos a oportunidade de leitura de textos de diferentes linhas – jornalísticos, literários, publicitários, digitais, etc.

O texto visto como uma articulação de discursos, já que não é um objeto fixo em um determinado momento – há a produção do texto e sua recepção por parte do leitor – decorre do fato que “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana”. (Bakhtin, 1997, p. 280).

Esses enunciados, ainda segundo Bakhtin, em cada esfera de utilização, são elaborados de forma estável. Dentro dessa concepção são denominados gêneros do discurso. O autor afirma que a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (Bakhtin, 1997, p. 280).

Bakhtin divide os gêneros discursivos em primários, usuais em situações do cotidiano, e secundários, que contemplam situações de enunciação mais complexas, caso de    textos acadêmicos,    literários ou científicos. Os enunciados refletem a individualidade de quem os propõe e o gênero mais adequado a apresentar o estilo individual é o literário, nele o estilo individual faz parte do empreendimento enunciativo enquanto tal e constitui uma das suas linhas diretrizes -; se bem que, no âmbito da literatura, a diversidade dos gêneros ofereça uma ampla gama de possibilidades variadas de expressão à individualidade, provendo à diversidade de suas necessidades. (BAKHTIN, 1997, p. 284).

Tomando por base esse pressuposto, “o aprimoramento da competência linguística do aluno acontecerá com maior propriedade se lhe for dado conhecer, nas suas práticas de leitura, escrita e oralidade, o caráter dinâmico dos gêneros discursivos”. (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008. p. 53). Assim, as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná defende a posição de que “o trabalho com os gêneros [...] deverá levar em conta que a língua é um instrumento de poder e que o acesso ao poder, ou sua crítica, é legítimo e é direito para todos os cidadãos”. (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p. 53).

2.3 - Prática de leitura

As diretrizes curriculares, dentro da concepção bakhtiniana adotada, referem-se à leitura como a familiarização do aluno com “diferentes textos produzidos em diversas esferas sociais”. (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2008, p. 71). O professor deve atuar como um mediador, visando ao desenvolvimento de seres críticos, e programar estratégias de acordo com o tipo de texto escolhido para a reflexão. Ainda segundo orientação das diretrizes, o professor ao selecionar textos para a prática de leitura em sala de aula deve levar em conta o contexto escolar, a experiência anterior dos alunos bem como suas expectativas.

2.4 - Texto literário

Para além do texto didático encontrado nos livros escolares, que transmitem conhecimento e informações, é imprescindível também que os alunos entrem em contato com narrativas de cunho literário. Em contraponto a um discurso objetivo impessoal e sistemático do livro didático, o texto literário

pode e deve ser subjetivo; pode inventar palavras; pode transgredir as normas oficiais da língua; pode criar ritmos inesperados e explorar sonoridades entre as palavras; pode brincar com trocadilhos e duplos sentidos, pode recorrer a metáforas, metonímias, sinédoques e ironias; pode ser simbólico; pode ser propositalmente ambíguo e até mesmo obscuro. (AZEVEDO, in SOUZA, 2004, p. 40).

Essas características do discurso poético provocam e estimulam os leitores, que acabam por elaborar múltiplas leituras a partir de um mesmo texto dado, enriquecendo e ampliando a visão de mundo. Assim, a leitura de textos literários “permite a identificação emocional entre a pessoa que lê e o texto e [..] pode representar [...] um precioso espaço para que certas especulações vitais [...] possam florescer.” (AZEVEDO, in SOUZA, 2004, p. 40).

Assim, para a prática de leitura em sala de aula, o professor deve nortear-se pela escolha de textos autênticos. Como autênticos, Antunes compreende os textos “em que há claramente uma função comunicativa, um objeto interativo qualquer”. (ANTUNES, 2003, p. 79). São textos reais, autorais, com data de publicação e que foram divulgados em algum suporte de comunicação social (jornal, revista, livro, etc.). Dentro dessa concepção, e também pensando no contexto em sala de aula, os gêneros selecionados devem estar adaptados aos propósitos almejados.

3 - Considerações finais

Ao focar a atenção nos procedimentos de estudos presentes no ato de ler, enfatiza-se    uma dimensão fundamental do processo de formação intelectual do estudante, exatamente aquela que supõe que certas leituras implicam procedimentos cognitivos específicos que não se adquirem necessariamente com a leitura espontânea.

A leitura de estudo, em livros didáticos, por exemplo, é um modo de ler que implica procedimentos metacognitivos e linguísticos distintos    daqueles que    se constituem em torno das atividades da vida diária. Nos procedimentos metacognitivos “o leitor reflete sobre o seu próprio conhecimento, o seu modo de saber”. (CALIXTO, Benedito José, 2001, p. 70). Já os procedimentos linguísticos refletem a decodificação dos sinais que representam a linguagem.

A leitura, portanto, demanda diversos tipos de tarefas cognitivas, nas quais regras e princípios de classificação, análise e síntese, inferências, são mais relevantes do que critérios contextualizados mais diretamente relacionados à experiência vivida. De acordo com Castello-Pereira (2003, p. 17), “aprender a estudar um texto não é apenas uma questão de aprender uma técnica, implica aprender a operar com referenciais culturais, sociais e políticas.”

Dentro dessa perspectiva, o leitor passa a ser um sujeito ativo no processo de leitura, seja de um romance ou notícia de jornal, uma música ou de um comercial de televisão, pois toda sua bagagem de conhecimentos – linguístico, enciclopédico ou de mundo – interfere na interpretação do que está codificado no texto. Segundo Ingedore Villaça Koch, a concepção de um leitor predeterminado pelo sistema, um ente passivo, que seja apenas um mero decodificador de signos, passou a ser a de um leitor interativo, um sujeito produtor de sentidos.

Apesar da grande quantidade de pesquisa sobre o tema, ainda não se desvendou completamente os mistérios da leitura e a diversidade de fatores que nela interferem. Porém, o presente estudo    sobre    leitura    possibilitou o    enriquecimento e instrumentalizou um possível debate pelos professores de Língua Portuguesa sobre o assunto. Tal estudo constitui-se ainda uma necessidade e um desafio, se o objetivo for desenvolver comportamentos leitores nos alunos.

Ler é uma atividade complexa que exige reconhecer, identificar, unir, associar, relacionar, abstrair, comparar, generalizar, deduzir, inferir, hierarquizar. Não significa apenas decodificar símbolos, mas apreender informações explícitas e implícitas e demais sentidos. Construir sentidos que depende de conhecimentos prévios a respeito da língua, das práticas sociais de interação, dos gêneros, dos estilos, das formas variadas de organização textual.

Mas é preciso garantir o acesso à diversidade textual, proporcionando atividades que possibilitem elaborar a leitura em suas variadas funções, gêneros e estilos, conhecendo e explorando seus diversos suportes.

São os usos sociais da leitura que devem balizar o trabalho da escola e cabe aos professores formar leitores, antes discutindo propostas de pensadores, suas concepções, definindo seu conceito, sistematizando e ampliando os conhecimentos necessários ao domínio da execução de uma prática pedagógica ampliada e dinamizada, favorecendo o seu ensino.

Lidamos com leitura o tempo todo, pois a escrita é parte constitutiva das mais diversas atividades do cotidiano. Assim, é relevante ressaltar, também, que a leitura é fundamental para o desenvolvimento de outras áreas do conhecimento e para o consequente exercício da cidadania

Entre livros e leitores há um importante mediador: o professor. Mas é necessário que a leitura seja para este a ferramenta essencial para a prática do seu trabalho, revelando-se um leitor dedicado e uma forte referência para seus alunos. Cabe a ele, também, o papel de desenvolver nos alunos o gosto pela leitura a partir de uma aproximação significativa com textos, efetivando uma leitura estimulante, reflexiva, diversificada, crítica, ensinando-os a usarem-na para viverem melhor.

É preciso que o professor recupere em sua vida a leitura como uma atividade de múltiplas funções para poder partilhar com as pessoas o prazer e a necessidade de ler.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português encontro & interação. 3. imp. São Paulo: Parábola, 2003. (Série Aula).

AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a literatura. In: SOUZA, Renata Junqueira. Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2007.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacional. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2010.

CALIXTO, Benedito José. Aspectos cognitivos da leitura. In: DAMKE, Ciro (Org.). Anais da 3ª Jell - jornada de estudos linguísticos e literários: língua, sociedade e identidade. Cascavel: Edunioste, 2001.

CASTELLO-PEREIRA, Leda Tessari. Leitura de estudo: ler para aprender a estudar e estudar para aprender a ler. Campinas: Alínea, 2003.

HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Versão 1.0.5ª. 1 CD-ROM.

INSTITUTO PRÓ-LIVRO; OBSERVATÓRIO DO LIVRO E DA LEITURA. Retratos da Leitura no Brasil. 2. ed. 2008. Disponível em:
. Acesso em: 14 abr. 2010.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. 2. ed. 1 reimp. São Paulo: Contexto, 2007.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. (Coleção Primeiros passos).

GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Departamento de Educação Básica. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. Paraná, 2008.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução Cláudia Schilling. 6. ed. São Paulo: Artmed. 1998.

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem. UNIOESTE - Cascavel / PR, 2010.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Adriana Falcão (Ramsés Terceiro)

O nome dele era Ramsés Terceiro Gonçalves de Souza, mas quando o povo chamava “Zé”, ele vinha na hora. É que lá em São Miguel dos Milagres não havia quem decorasse nome tão qualificado,”Ramsés de quê, menino?”.

Cresceu subindo no coqueiro e escutando conversa de turista: isso aqui sim é o paraíso. Achava uma grande besteira. Qualquer lugar é o paraíso com essa lourinha ao lado, moço, me desculpe.

Parou de estudar na quinta, ou foi na sexta, mesmo assim ainda lembrava o nome das capitais de cada estado brasileiro, de Mato Grosso do Sul inclusive.

Um belo dia irritou-se, saiu de São Miguel e foi pra Maceió, ele mais seu primo Neílson. Desse, nunca mais ouviu falar, se não morreu, esqueceu-se dele. Vai ver foi isso.

O problema de Maceió é que lá era grande mas era pequeno, portanto veio morar no Rio de Janeiro.

Foi em 1994, não havia de esquecer, no dia em que o Brasil ganhou o título. O italiano lá errou o gol, ele tomou mais uma, comprou a passagem e quando acordou já estava naquele Itapemirim amarelo assim, “Maceió — Rio de Janeiro”.

No que chegou, ligou logo para a mãe, “adivinha onde é que eu tou?”, ela não havia de adivinhar era nunca. “Só não me diga que é no manicômio”, ô mulher pessimista, dona Maria do Socorro.

Arranjou um bico aqui, outro ali, acabou ajudante de pedreiro num prédio enorme de tão grande, emprego certo que durou vários meses. De lá pra cá não parou mais. Foi porteiro, eletricista, camelô, ladrão de carro, motoboy, evangélico e balconista de loja, só não lembra em que ordem exatamente. Mandava dinheiro para casa, quando dava, e ainda conseguiu juntar novecentos e cinquenta.

Quando ia completar vinte e nove anos, tempos atrás, resolveu passar o aniversário em casa. Era saudade da família. Foi pra São Miguel sem avisar, mas quem levou o susto foi ele.

Descobriu que não tinha vinte e nove, tinha trinta e quatro, e que seu aniversário não era aquele dia.

Dona Socorro contou tudinho com a maior sinceridade. Esqueceu de registrar o menino, passaram-se anos, mais cinco nasceram, e ela acabou perdendo a lembrança do dia exato do seu nascimento.

— Acho que foi lá pro fim do mês, só não me lembro de qual mês — disse. — Se não me engano, você é filho de Seu Tabosa da venda, e como eu fiquei com ele por três anos, de 64 a 67, portanto você nasceu em 65.

— Em 70 não era melhor não, mãe? — pelo menos era o ano da Copa, mas como dona Socorro já tinha tomado oito cervejas, não adiantava perguntar mais nada. Conformou-se.

Desde então procura seu horóscopo em todos os signos e aquele que parecer mais, ele acredita. Muitas vezes dá Sagitário, geralmente. No dia que leu “clima propício para o amor”, conheceu uma moreninha na Central-Rodoviária que despertou seu interesse, parece até mentira.

Montaram casa, compraram colchão, mesa, cadeira, e até almoço ela fazia. Era amor pra duzentos anos, ele dizia. Engano seu. Oito meses depois ela foi-se.

Rodou foi tudo procurando a peste, de casa em casa, de bar em bar, não é que ela já estava com outro? Encontrou os dois na parada de ônibus.

Não tinha a intenção de agredir ninguém, o miserável é que veio pra cima dele.

Fugiu com a ideia concentrada apenas em não ficar louco, coisa que se tornava cada vez mais difícil com aquele inferno na lembrança, a cabeça do miserável na pedra, o sangue correndo e uma velha gritando: “Meu Pai, Nosso Senhor!”. Pra que tanta gritaria?

Esse negócio de complexo de culpa é complicado mesmo, realmente. Ela é que arranjou outro, o outro é que partiu pra cima dele, e quem se arrependeu foi ele próprio, vê se pode, porque o tal do miserável ficou um pouco abaixo do juízo depois de todo o acontecido.

Desse dia pra cá não encontrou mais nenhum dos dois, graças a Deus. Parece que depois ela conheceu um gringo e hoje está pros lados da Alemanha, ou coisa parecida, isso é problema lá dela.

Nunca mais ligou pra mãe, nem arrumou emprego certo, nem quis saber de mulher fixa. Em compensação passou a comemorar seu aniversário todos os dias do ano, de segunda a domingo.

Tomava conta de um carro aqui, arranjava uma coisa ali, vendia lá, deixou o cabelo crescer, voltou a fumar e a beber, tinha um batimento cardíaco triste, até que deu pra conversar com cachorro vira-lata, conversa besta. Não é que o infeliz do cachorro era tão sem esperança que chegou a lhe convencer que a vida não prestava?

Atualmente, Zé tem a impressão de que está com trinta e sete anos completos. Desde abril está no manicômio. Toda noite reza pra São Miguel dos Milagres. Está só esperando.

Quando fala que seu nome é Ramsés Terceiro, comentam que ele é doido.

Fonte:
Adriana Falcão. O Doido da garrafa.

Folclore dos Estados Unidos (Lenda Ojibwa: Como o Morcego Veio a Ser o Que É)

Nota:
Os ojibwas foram um povo indígena da América do Norte, igualmente divididos entre os Estados Unidos e o Canadá. Habitavam a região a oeste e em volta do lago Superior.
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Há muito tempo atrás, enquanto o sol se levantava pela manhã, ele chegou perto demais da Terra e ficou preso nos galhos mais altos de uma grande árvore.

Quanto mais o Sol tentava escapar mais ele ficava preso. Então, chegou a noite.

Logo, logo, todos as aves e animais notaram. Alguns acordaram, então voltaram a dormir pensando que tinham se enganado e não era hora de levantar.

Outros animais, que amavam a noite, como a pantera e a coruja, estavam realmente contentes porque permanecia escuro, assim ele podiam continuar a caçar.

Mas após um certo período, tanto tempo havia se passado que as aves e animais souberam que havia algo errado.

Ele se reuniram em Conselho na escuridão.

“O Sol se perdeu,” disse a águia.

“Devemos procurar por ele” disse o urso.

Assim, todos os pássaros e animais foram procurar pelo Sol.

Eles olharam em cavernas e nas profundezas da floresta e no topo das montanhas e nos pântanos.

Mas, o Sol não estava lá. Nenhum dos pássaros ou animais pôde encontrá-lo.

Então, um dos animais, um pequeno esquilo marrom teve uma idéia. “Talvez o Sol esteja preso em uma árvore alta,” ele disse.

Então, o pequeno esquilo marrom começou a pular de árvore em árvore, indo cada vez mais para o leste. Enfim, no topo de uma árvore muito alta, ele viu um raio de luz.

Ele escalou e viu que era o Sol. A luz do Sol estava pálida e ele parecia fraco.

“Ajude-me Pequeno Irmão!,” disse o Sol.

O pequeno esquilo marrom chegou mais perto e começou a mastigar os ramos que prendiam o Sol. Quanto mais perto ele chegava, mais quente ficava. Quanto mais galhos ele mastigava, mais brilhante o Sol se tornava.

“Eu tenho de parar agora!” disse o pequeno esquilo marrom. “Meu pelo está queimando. Ele estava ficando todo preto!”

“Ajude-me!,” implorou o Sol. “Não pare agora”

O pequeno esquilo continuou o trabalho, mas o calor do Sol estava muito quente e ele estava muito mais brilhante. “Minha cauda está se queimando!” disse o pequeno esquilo marrom. “Não posso fazer mais que isso!”

“Ajude-me!,” disse o Sol. “Logo eu vou estar livre!”

Assim, o pequeno esquilo marrom continuou a mastigar. Mas a luz do Sol estava brilhante demais agora.

“Estou ficando cego!,” disse o esquilinho. “Preciso parar!”

“Só um pouquinho mais!,” disse o Sol. “Eu estou quase livre!”

Finalmente, o pequeno esquilo marrom soltou o último dos ramos.

Logo que ele fez isso, o Sol se libertou e subiu para o céu.

A escuridão desapareceu sobre a Terra e era dia novamente. Por todo o mundo pássaros e animais ficaram felizes.

Mas, o pequeno esquilo marrom não estava feliz. Ele foi cegado pela claridade do Sol. Sua longa cauda tinha sido queimada até o fim e o que ele tinha de pêlo agora estava preto.

Sua pele tinha se esticado por causa do calor e ele estava suspenso no topo da árvore, incapaz de se mover…

Lá em cima no céu, o Sol olhou e sentiu pena do pequeno esquilo marrom. Ele tinha sofrido muito para salvá-lo.

“Pequeno Irmão,” disse o Sol. “Você me ajudou. Agora, eu vou de dar algo. Há algo que você sempre tenha desejado?”

“Eu sempre quis voar,” disse o pequeno esquilo. “Mas eu estou cego agora, e minha cauda se queimou.”

O Sol sorriu “Pequeno Irmão,” ele disse, “de agora em diante você voará melhor que as aves. Porque você veio tão perto de mim, minha luz sempre estará brilhando para você, e além disso você enxergará no escuro e ouvirá tudo ao seu redor enquanto voa.

“De agora em diante, você dormirá quando eu levantar nos céus e quando eu disser adeus para o mundo, você acordará.”

Então o pequeno animal que uma vez foi um esquilo caiu do galho, esticou suas asas de pele e começou a voar.

Ele não mais sentiu falta de sua cauda e de seu pêlo marrom e ele sabia que quando a noite chegasse novamente, seria sua hora. Ele não mais poderia olhar para o Sol, mas ele reteve a alegria do Sol dentro de seu pequeno coração.

E assim foi, há muito tempo atrás, o Sol mostrou sua gratidão para o pequeno esquilo marrom, que  não era mais um esquilo, mas o primeiro de todos os morcegos.

fonte:
http://www.firstpeople.us/FP-Html-Legends/HowTheBatCameToBe-Ojibwa.html
Texto em português http://casadecha.wordpress.com

Simone Borba Pinheiro (Ciranda da Amazonia) Parte 1

SIMONE BORBA PINHEIRO
Vamos salvar a Amazônia


No coração do mundo,
 nas profundezas do centro da terra,
 emerge o mais precioso dos tesouros:
 Uma Floresta Encantada!...

 Os espíritos da floresta, à noite,
 entoam hinos de louvor á sua existência.
 A mata verdejante e misteriosa,
 derrama lágrimas peroladas quando ceifada.

 Aves assustadas tingem o céu de negro.
 Jacarés e vitórias-régias formam lindos tapetes aquáticos.
 E o povo que ali habita, pede socorro,
 bordando anéis de fumaça no céu da mata.

 Pois a floresta, aos poucos, vai desencantando,
 perdendo o brilho, a cor, a vida...
 O homem mau abriu caminho floresta adentro
 empunhando nas mãos a mortal arma
 de lâminas frias e afiadas,
 matando a vida na Floresta Encantada.

 Os seres da floresta pedem socorro.
 Vamos salvar a Amazônia
 da derrubada indiscriminada da mata,
 da matança descabida e gananciosa
 dos animais que ali habitam,
 das doenças do povo da floresta
 que indefesos tombam sem auxílio.

 Rios e igarapés choram lágrimas poluídas.
 É a morte chegando lentamente
 ao coração verde do planeta...
 Uni-vos com braços fortes,
 em brados retumbantes...
 Vamos salvar a Amazônia,
 a Floresta Encantada.
=====================

O Grito da Amazônia
ALBERTO PEYRANO


 Amazônia, mãe amada!
 Grito vital da terra
 Que clama sua grande dor.
 Hoje a onça agonizante
 O rosto do índio lambeu
 E se abraçaram as árvores
 Chorando por teu martírio.
 De Manaus a Porto Velho,
 De Macapá ao Xacurí
 Surge uma voz entre sombras
 Que alerta a Humanidade:
 "Filho, estou dolorida"!
 "Filho meu, cuida de mim"!
 Só a metade consciente
 Dos teus filhos, escutou.
 Só a metade que sente
 Tua tristeza e teu penar.
 A outra metade, arrasa
 Tua riqueza natural.
 A outra metade só escuta
 A música material.
 A noite traz a Lua
 O rio se põe a dormir,
 A selva vela em silêncio
 Esperando o que há por vir...
 Enquanto o índio e a onça,
 Irmãos no sofrer,
 Secam suas lágrimas vãs,
 Abrindo as veias da alma
 E regam teu velho solo
 Com dor, sangue e amor.
================================

O Sabiá Chorou
ANTONIO CÍCERO DA SILVA


 O sábia tristemente chorou
 A árvore com o seu ninho caiu
 O homem a árvore cerrou
 E contente ainda sorriu.

 O sabiá se entristeceu
 No ninho estavam seus filhos
 Da região se locomoveu
 Emudeceu-se, perdeu seu brilho.

 Lá longe triste a cantar
 Queixava-se muito do homem
 Que a natureza veio a danificar
 Ao que não é dele, o humano consome.

 O sabiá clamava por ajuda
 À mãe natureza
 Que também sofria, quase desnuda
 Ela também, o homem perseguia.

 O sabiá da natureza era membro
 E não prejudicavas a ninguém
 Viviam alegres a contento
 Até serem prejudicadas por alguém...
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Amazônia
ANTÓNIO ZUMAIA


 Um Paraíso verde na terra…
 De múltiplas cores é destino
 e Deus sabe a riqueza que encerra;
 Loucura dos homens… é desatino.

 Mas destruir o que Deus plantou,
 é pecado contra a humanidade;
 As cores lindas que ELE pintou.
 Devastar assim é crueldade.

 Brasil de pérolas carregado;
 Mil cores e amores é tua terra.
 Por isso és dos teus filhos amado,
 na alegria que teu povo encerra.

 O povo que é maravilha a cantar;
 Alegre e corajoso vai lutar.
 Amazônia terra para sonhar,
 foi uma prenda, que Deus lhe quis dar.

 É por isso que o povo Brasileiro,
 o sonho de encantar… Vai preservar!
 Porque o Paraíso, é do mundo inteiro
 e o Brasil… cioso o vai guardar.

 Paraíso de mil ilhas… Encanto!
 São mil caminhos de água a percorrer.
 Contraste de cores, que são o espanto,
 dos felizes… que o podem conhecer.
 Povos que o habitam são felicidade,
 porque a natureza… é a VERDADE.
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Chamas
ARLETE PIEDADE


 Línguas de fogo serpenteantes e gigantescas.
 sobem lambendo copas de árvores impotentes,
 rastejantes se insinuam, titânicas e dantescas,
 consumindo vorazmente, em todas as frentes.

 O descuido criminoso do homem pelo ambiente,
 cruel ganância de ganhos, imediatos e lucrativos,
 o desprezo pelas gerações futuras, são somente,
 alguns dos evidentes e mais falados dos motivos!

 Mas não esqueçam esses covardes incendiários,
 que ainda, mesmo neste mundo, são necessários,
 tempo, oportunidade e do castigo não escaparão...

 pois que se a justiça dos homens é ineficaz e lenta,
 da de Deus, não se livrarão, e na sua alma a tormenta,
 diáriamente, lhe fará desejar a morte, como expiação!

Fonte:
http://www.familiaborbapinheiro.com/ciranda_amazonia.htm

Stanislaw Ponte Preta (Conto de mistério)

Com a gola do paletó levantada e a aba do chapéu abaixada, caminhando pelos cantos escuros, era quase impossível a qualquer pessoa que cruzasse com ele ver seu rosto. No local combinado, parou e fez o sinal que tinham já estipulado à guisa de senha. Parou debaixo do poste, acendeu um cigarro e soltou a fumaça em três baforadas compassadas. Imediatamente um sujeito mal-encarado, que se encontrava no café em frente, ajeitou a gravata e cuspiu de banda.

Era aquele. Atravessou cautelosamente a rua, entrou no café e pediu um guaraná. O outro sorriu e se aproximou:

Siga-me! - foi a ordem dada com voz cava. Deu apenas um gole no guaraná e saiu. O outro entrou num beco úmido e mal-iluminado e ele - a uma distância de uns dez a doze passos - entrou também.

Ali parecia não haver ninguém. O silêncio era sepulcral. Mas o homem que ia na frente olhou em volta, certificou-se de que não havia ninguém de tocaia e bateu numa janela. Logo uma dobradiça gemeu e a porta abriu-se discretamente.

Entraram os dois e deram numa sala pequena e enfumaçada onde, no centro, via-se uma mesa cheia de pequenos pacotes. Por trás dela um sujeito de barba crescida, roupas humildes e ar de agricultor parecia ter medo do que ia fazer. Não hesitou - porém - quando o homem que entrara na frente apontou para o que entrara em seguida e disse: "É este".

O que estava por trás da mesa pegou um dos pacotes e entregou ao que falara. Este passou o pacote para o outro e perguntou se trouxera o dinheiro. Um aceno de cabeça foi a resposta. Enfiou a mão no bolso, tirou um bolo de notas e entregou ao parceiro. Depois virou-se para sair. O que entrara com ele disse que ficaria ali.

Saiu então sozinho, caminhando rente às paredes do beco. Quando alcançou uma rua mais clara, assoviou para um táxi que passava e mandou tocar a toda pressa para determinado endereço. O motorista obedeceu e, meia hora depois, entrava em casa a berrar para a mulher:

- Julieta! Ó Julieta... consegui.

A mulher veio lá de dentro euxugando as mãos em um avental, a sorrir de felicidade. O marido colocou o pacote sobre a mesa, num ar triunfal. Ela abriu o pacote e verificou que o marido conseguira mesmo. Ali estava: um quilo de feijão.

Nilto Maciel (Passeio)

Se a escada parasse de súbito, eu rolava e levava de roldão todo o mundo. Talvez fosse mais engraçado do que la­mentável. Não, não posso cair nem machucar essa gatinha. É mesmo um amor de garota. E por que chamar as mocinhas de gatinhas? E nós de gatos, gatinhos, gatões? Eu, um gato? Qual nada! Sou antes um macaco, um bicho qualquer. Vou me olhar direito. Mas aqui não tem espelho. A não ser os vidros das vitrines. É isso mesmo. Faço de conta que estou olhando os calçados, os preços, como um possível comprador. Que tal uns sapatos pretos? Ou marrons? Uma ruguinha aqui, uns pés de galinha. Que sapato mais gaiato! E caro.

— Diga, freguês.

— Estou só olhando.

Sujeito mais chato! Então não se pode mais olhar uma vitrine? Ui! Quase atropelo o menininho. Ele e a mãe. Deve ser a mãe, apesar de ser ainda muito nova. Ou então irmã. Até que se parecem. Bem parecidos, sim. Ela então é uma gatinha. De novo o assunto dos bichos. Não importa, é uma fofura. No mínimo, come bem, dorme bem, vive bem. Se passasse fome, morasse nos buracos da Ceilândia, do Gama, do Paranoá, eu nem reparava nela. Eu e ninguém. Mudava de vista. Mas deve morar aqui mesmo. Nas quadras mais nobres. Quem sabe, no Lago. Numa daquelas mansões. Não, madame do Lago não deve andar pelo Conjunto Nacional. Ainda mais arrastando um filho pelo braço. Cansando, suando à toa. Podia estar em casa, na beira da piscina, tomando suco. Deve estar com sede. Não sei. Eu estou. Que tal um chopinho? Ali adian­te tem uma pizzaria. Um chope e só. Nada de ficar sentado por muito tempo. Já basta o serviço. É bom passear, andar, olhar as pessoas. Quem sabe, encontro um conhecido, um velho amigo, um conterrâneo. Então a gente toma dois chopes. Ou quatro. Enquanto conversa. Assuntos variados: futebol, mulher, política, trabalho. “E Brasília, você gosta daqui, doutor Lima?” “Não; mas para que isso de doutor? Aqui eu sou apenas o Lima. Deixe de cerimônias”.

— Um chope, por favor.

— Sim, senhor.

Acho que estive aqui um dia desses. Sim, no mês passado. Não, foi noutro lugar. Mas aqui mesmo no Conjunto Nacional. Havia um desenhista bebendo e retratando os fregueses. Um velho, meio desarrumado, com cara de quem vive bêbado. Na parede, uns retratos expostos. Tudo feito a lápis ou coisa parecida. Desenho é uma coisa, pintura outra, não é? Pintura é aquilo dos quadros da Torre. Ruelas do interior, casarões, paisagens. Tudo colorido, pintado, artístico. Obras de arte finalizadas. Está geladinho. Para matar a sede e passar o tempo. Depois peço outro. Não, eu disse que ia tomar só um. Olhe, conheço aquele sujeito. Pelo menos tem a mesma cara, as mes­mas feições do... Quem é mesmo? Deixe ver. Do Ministério da Justiça. É ou não é? Não, é só parecido. Uma vez, no Beirute, aconteceu um caso assim. Eu pensava que era a Martinha, cheguei a falar com a pessoa e tive a maior decepção. A garota devia estar cheia de maconha. E a Martinha nem de chope gostava. Essa juventude de hoje só quer saber disso. Filhinhos-de­-papai, de deputados, ministros, juízes. Eu, não, fico no meu chopinho e não tem perigo de nada. É legal e ajuda. Embora seja droga também.

— Garçom, por favor.

Esse parece que não comeu nada hoje.

— Fique com o troco.

Fique com o troco ou fique com o troço? Troçar é bom. Quem acha ruim é quem é troçado. “Olhando para mim, bele­za? Não quer me conhecer? Que tal tomarmos um chopinho? Com pizza. Pago com o maior prazer. Quer não, é? Orgulhosa! Não importa, tem muitas por aí”. Aqui deve estar circulando agora umas duas mil pessoas. E eu talvez não conheça nenhuma. Todo mundo vivendo sua vidinha, comprando, pagando, passeando. Será que há alguém como eu? Não, todos têm um rumo certo, horário de voltar para casa, família, tudo. Mais hora, menos hora, pegam o carro ou o ônibus e voltam para os seus. A mãe para o filho, o marido para a mulher, a mocinha para os pais. Deixa esse povo para lá. Que tal subir outra escada? Pode ser que em cima encon­tre algum conhecido. Ou conheça alguém. Aquela deve ser excelente garota. Bonita é. Mas nem olha para mim. E os fil­mes de hoje? Como sempre, mulheres e homens nus. A maior sacanagem do mundo. Talvez fosse bom assistir. Passar o tempo. Não, é melhor passear, olhar as pessoas. Tantas mulheres sós. E todas lindas. Muito mais do que as do filme. Aquela ali então nem se compara com aquelas depravadas. E olhou para mim. “Que tal irmos agora para o meu apartamento? Fica na Asa Norte. Garanto que você vai gostar. Você e eu. Quem sabe até a gente leva adiante essa aventura. Casamento, filhos, um lar. Ou só uma união mais ou menos passageira. Todo dia a gente vem passear pelo Conjunto Nacional. Ou então viaja para o litoral, de férias. Lua-de-mel em Guara­pari. Ou aqui mesmo no Hotel Nacional”.

— Como é seu nome, gatinha?

Fez que nem ouviu, a cadela. Deve se julgar intocável. Ih! está falando com o guarda. Mas eu não sou um peão qualquer. Além do mais, estou só passeando comigo mesmo. Pacificamente.

Fonte:
Nilto Maciel. As Insolentes patas do Cão.

Ialmar Pio Schneider (Mensagem ao Poeta)

Vai em frente, segue a estrada
sem muito esperar da glória;
vida simples, devotada...
Se alguém ouvir tua estória,
nostálgica e merencória,
canta sempre, até por nada !...

Faze como o passarinho
que saúda a natureza,
enquanto busca um raminho,
com afã e singeleza,
p’ra construir o seu ninho:
- maior prova de beleza.

Sejam teus versos cantigas
que a gente escuta na rua;
pobres canções, mas amigas
como as estrelas e a lua;
pois a terra será tua,
longe de dor e fadigas...

Não temas crítica austera
e nem te afastes do tema,
sempre alcança quem espera...
Prosseguir ! seja o teu lema
e verás a primavera
cingir-te com seu diadema !...

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 8 – No dia seguinte

No dia seguinte pularam da cama muito cedo e retomaram a obra de reforma da Natureza. Tudo era examinado e reformado no que à elas parecia torto. A Rãzinha continuava com as ideias mais absurdas, de verdadeira maluca.

A reforma do Quindim, por exemplo, que a Rã fez sozinha, era a coisa mais esquisita que se possa imaginar. Em vez do famoso chifre sobre o nariz, que é característico de todos os rinocerontes, a Rã botou uma flecha de Cupido com um coração assado na ponta. Assado, imaginem! E ornamentou os cascos de Quindim com pinturas: Branca de Neve com todos os seus anões. E trocou as quatro pernas do rinoceronte por quatro pernas diferentes - uma de veado, outra de ganso, outra de jacaré, outra de pau. E substituiu aquele couro duríssimo por um revestimento muito bem trançado de palhinha de cadeira. Cauda, botou duas; depois três, depois dez, depois cem; deixou-o com um verdadeiro varal de caudas dando volta inteira em redor do pobre animal.

A reforma do Quindim saiu um tal disparate que nem andar ele podia - uma perninha não acompanhava a outra, e havia a tremenda atrapalhação de tantas caudas, todas diferentes, umas com bolas na ponta, outras com espinhos de ouriço, outras com campainhas.

Quando Emília foi ver a "obra", não pôde deixar de rir se. Aquilo era o "bissurdo dos bissurdos." Quindim estava transformado num verdadeiro destampatório.

- Isso não é reformar, Rãzinha! - disse ela. - Isso é escangalhar com uma pobre criatura. Ele já não é rinoceronte, nem nenhum bicho possível. Virou quarto de badulaques, baú de mascate. Que judiação!...

- E você deixa que ele fique assim? - implorou a Rã, com medo que Emília desmanchasse aquela obra-prima do disparate humano.

- Deixo por enquanto - respondeu Emília - como castigo da preguiça, da velhice e neurastenia que ele anda mostrando duns tempos para cá. No dia do plebiscito sobre o tamanho Quindim me traiu – recusou-se a votar. A falta desse voto deu vitória ao Tamanho e eu saí lograda. Agora que aguente. Mais tarde vou reformá-lo de novo, mas com critério científico ...

A Rã ou era mesmo maluca ou estava "sabotando" a obra reformatória da Emília. Todas as ideia s que apresentava eram tontas, como aquela da mudança dos morros. A Rã tomou um lápis e traçou um desenho assim:

- Que é isso? - perguntou Emília.

- Ah, isto é uma das reformas que acho mais necessárias: as reformas dos morros. Sempre que tenho de subir um morro, fico cansada e sem fôlego. E então imaginei uma coisa assim: os picos serão para baixo, em vez de serem para cima, de modo que quando a gente tem de ir ao pico dum morro, desce, em vez de subir...

Emília ficou a olhar, ora para a Rã ora para o desenho. Era uma reforma que deixava tudo na mesma.

Quando alguém que descesse ao pico do morro tivesse de voltar, teria de subir para o vale...

- Não. Essa ideia está boba. Muito melhor fazermos os morros bem baixinhos, de modo que não canse a gente; ou então deixarmos os morros em paz. Para que subir morro?
––––––––––-
continua…

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) XII

foi mantida a grafia original.
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O ÚLTIMO D. JUAN

Daquele de quem falo, as sossegadas lousas
Podiam-vos contar as violações brutais!
A gula com que morde as mais sagradas cousas
De horror faz recuar os trémulos chacais.

Não descanta à viola, à noite, os seus enleios:
Ele vive na sombra e eu sei também que vós,
Gentis belezas de hoje, á astros dos Passeios,
Lhe não lançais, a furto, a escada de retrós.

Mas sede muito embora as virgens sem desejos,
As monjas virginais, uns pudicos dragões;
Fechai o níveo colo aos vendavais dos beijos,
E às noites de luar os vossos corações;

Um dia há de chegar em que ele, informe, tosco,
Sem garbo, sem pudor, grotesco, infame, vil;
Nas grandes solidões irá dormir convosco,
Mordendo em cada seio o lírio mais gentil!

E o que ele adora muito ó virgens romanescas
Não é o que abrigais de etéreo e virginal:
Adora os corpos nus; as belas carnes frescas;
Deixando o resto a vós danados do ideal!

Não vive como nós de cândidas mentiras:
Não comunga do amor esse ilusório pão:
Devora com fervor as pálidas Elviras
E em muitos seios bons dá pasto ao coração!

Tem palácios na sombra e fazem-lhe um tesouro
Maior do que o dos reis; adora as solidões:
Não usa de espadim; não traz esporas de ouro;
Mas vive como os reis das grandes corrupções!

Flores sentimentais! Treinei do paladino,
Do velho D. Juan, feroz conquistador,
A quem da vossa boca um hálito divino,
Em vida, faz fugir talvez cheio de horror;

Mas que um dia virá, na cândida epiderme,
Na sagrada nudez dos colos virginais,
Em hinos de triunfo — o grande César-Verme! -
Colher o que ficou de tantos ideais!

Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas
A aérea multidão de fadas quebradiças,
Gentis aparições dos bailes e das missas,
Desliza no fulgor das pompas sedutoras.

No arfar da casimira há frases tentadoras
E maciezas tais nas lânguidas peliças,
Que as tristes comoções, decrépitas, mortiças,
Ressurgem do letargo á pálidas senhoras!

E muitos hão de ter uns êxtases divinos
Ouvindo soluçar, à noite, aos violinos,
A vaga introdução duma balada aérea;

Enquanto, do futuro, ao toque da alvorada,
Se escuta, a martelar na sua barricada,
Sinistra, rota e fria, a lívida Miséria.
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ANTIGO TEMA

Passai larvas gentis na rua da cidade
Aonde se atropela a turba folgazã;
A noite é um tanto agreste e cheia de humidade
Mas o tédio mortal precisa a claridade
Que em vosso olhar trazeis, visões do macadame!

Estátuas sem calor! Vós sois das grandes vasas
Dum corrompido mar as Deusas menos vis!
Se à noite abandonais, voando, as pobres casas,
E vindes pela rua enlamear as asas,
Quem sabe a fome oculta, as sedes que sentis!

A pálida Miséria em seu triste cortejo
Precisa as contrações de muitos ombros nus:
E vós ides sorrindo ao lúbrico desejo,
Do carro da desgraça arremessando um beijo
Que apenas é de lama em vez de ser de luz!

Embora! Caminhai deixando um grande rastro
De estranhas emoções, de aromas sensuais:
E ao pobre que mendiga a palidez dum astro;
Ao que sonha visões e arcanjos de alabastro
Fazei por despenhar nos longos tremedais!

Do velho idílio, a musa, há muito já que dorme,
E o arroio em vão suspira e chora a nossos pés!
A grande multidão — a vaga, a onda enorme,
Que oscila sem cessar, e gira multiforme
Às corridas, ao circo, ao templo e aos cafés,

Talvez ao pressentir que tudo, enfim, declina,
Adore a imensa luz, em vós, constelações,
Que não baixais do céu; que vindes duma esquina,
Vagando no rumor da aérea musselina,
Em plena bacanal fingindo de visões?

Oh, sois do nosso tempo! A lânguida existência
De tédios se consome e sente febres más!
Aspira ao que é bizarro: a uma esquisita essência
Que exala aquela flor que vem na decadência
E quando a toda a luz sucede a luz do gás!

Do século a voz rude apenas diz — trabalha! -
Ao poste vil amarra o lúbrico ideal
Que expira, enfim, talhando a fúnebre mortalha
Na vossa trança gasta, ó musas da canalha
Que apenas revoais do olimpo ao hospital!

Eça de Queirós (No moinho)

D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. O velho Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:

A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria.

Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre.

Andava-se nas pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor rumor; havia sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital.

Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.

Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar a outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insônias do marido não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distração era à tarde sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda aninhada no chão, brincando tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: embaixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva.

Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata; todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel do seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar toda uma humanidade pronta. Além disso, nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam à devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo daqueles inválidos, tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que administrava agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigira, uma solicitude de mãe pró-vida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimônia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a não ser a do Dr. Abílio — que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:

É uma fada! É uma fada!...

Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido da Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.

D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma profanação. Foi por isso um alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se:
tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cômoda, e queria-o todo para si, o primo, o homem célebre, o grande autor...

Adrião porém recusou:
Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... o que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um moinho e uma represa que são um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?

Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um  sujeito extremamente simples, – muito menos complicado, menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abominàvelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... o que ele desejava era vendê-la.

Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!... Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!...

Mas que superioridade, prima! — exclamou Adrião maravilhado. — Um anjo que entende de cifras!

Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...

No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, Acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contato daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido - e a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença.

Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida diversa daquele abafamento de alcova... Ela também assim o julgava: mas quê! o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama... Ele então lamentou-a. decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido... Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença...

Que hei-de eu desejar mais? — disse ela.

Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria — que falou da paisagem...

Já viu o moinho? — perguntou-lhe ela.

Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima. Hoje é tarde.

Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila. Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã punha entre eles como que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, dum respeito tocante, uma atração que a seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor - a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que ele se tornava assim depositário das suas tristezas.

Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interessado por aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de ano gótico entre fisionomias da mesa redonda. Tudo nela concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...

Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntariamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava.

O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios  de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era dum alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno duma cena de romance, ou, melhor, da morada duma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil, um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, duma linha tão pura, sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado, mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os - e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.

Ficar aqui? Para quê? — perguntou ela, sorrindo.

Para quê? Para isto, para estar sempre ao pé de si...

Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo:

Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...

Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.

E eu venho ajudá-lo, primo! - disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado.

Vem? — exclamou ele. — Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar esses melros!

Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira da água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus negros de verão...

E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, dum só beijo profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:

É malfeito... É malfeito...

Ele mesmo estava tão perturbado - que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele
pensou:

Fui um tolo!

Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi à casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malva as feridas que ele tinha na perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe...

A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência: encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela escondendo a face dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica; e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios. Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da natureza que atravessava, sùbitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, duma ternura varonil e forte, para a cativar... Esse amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta idéia, esta visão: – Se ele fosse meu marido! Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se na sua força... Depois ele deu–lhe aquele beijo no moinho.

E partira!

Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela - a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua costura - lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha desses abatimentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:

Quando se acabará isto?

Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e morrera dum abandono. Essas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas.

Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...

O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir - dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.

Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...

E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.

A Santa tornava-se Vênus.

E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: – e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.

Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.

FIM

Fonte:
http:\\www.nead.unama.com.br

Eça de Queirós (Análise Crítica do Conto “No Moinho”)

(Análise por Miriã Lira, em 30/08/2012)

O conto “No Moinho” de Eça de Queirós traz como personagem principal, Maria da Piedade que “era considerada em toda a vila como uma senhora modelo” que dava orgulho à vila por “sua beleza delicada e tocante; era loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros”, enfim, era considerada “uma fada”. Essa descrição denota a opinião da sociedade sobre a personagem e todas as características reforçam o ideal romântico de mulher apresentado logo no início da narrativa.

De família modesta, mãe “desagradável” e pai bêbado, Maria da Piedade vê como única saída casar-se com João Coutinho, um homem doente, mas rico, com quem teve três filhos, duas meninas e um menino que por herança genética todos nasceram doentes. Assim, restava-lhe viver como enfermeira, cuidando das doenças do marido e dos filhos. Como consequência sua vida é sombria, pois está sempre “vestida de preto” e sua casa parece “lúgubre”.

Então, João Coutinho recebe uma carta de quem tinha orgulho, seu primo Adrião, romancista de Lisboa, anunciando sua chegada para a venda de uma propriedade rural. Imediatamente João manda providenciar estadia para o primo e isso deixa Maria da Piedade apavorada por ter em casa um estranho que quebraria a rotina da residência, porém o primo chega e deseja ficar na estalagem de Tio André para não perturbar a ordem da casa de Coutinho.

Adrião desejava vendar uma fazenda, mas não encontrava comprador, então, João Coutinho ofereceu Maria Piedade para ir com ele à fazenda, pois era boa conselheira e entendia dessas coisas. O primo, então, comentou: um anjo que entende de cifras. E, pela primeira vez, Maria Piedade se sentiu valorizada com o dizer de um homem, pois “corou” com as palavras de Adrião. É nesse momento que ela começa a enxergar o primo com os olhos da alma.

No dia seguinte, encaminharam-se à fazenda e o narrador descreve o dia como “fresco e claro”, características que traduzem tranquilidade e metaforiza o paraíso que antes era inexistente, por ser lúgubre e cheio de trevas.

Decidiram, posteriormente, ir ao moinho para que Adrião conhecesse. “Já viu o moinho? – perguntou-lhe ela. Tenho vontade de o ver, se mo quiser mostrar, prima.” Essa parte do diálogo mostra que os dois já se sentiam atraídos e pouco faltava para que essa atração os unisse. Nesse dia, Adrião vai para a estalagem e percebe que está “interessado por aquela criatura tão triste e doce”, diferente das demais mulheres que ele conhecera, já que era um homem desejado por todas.

Ao descrever a mulher desejada, Adrião demonstra o conhecimento que tem da alma feminina, adquirido com seu último livro, Madalena, pois a obra exigiu “um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil” que o consagrou como mestre na análise da mulher. Após observar aquela que ele chamava de anjo, pôde concluir que ela era presa àquele lugar, à tradição e “bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade”. Nesse trecho é possível perceber o que Adrião já planejava acontecer nos próximos dias.

Como combinado, foram ao moinho e cansada da caminhada, Maria da Piedade senta-se numa pedra e Adrião começa a comparar o moinho com o paraíso e a imaginar como seria se eles para sempre ficassem ali. Então, ela fica corada e ri. Mas, de repente, ele a abraça e a beija profundo e interminavelmente, colocando-a contra seu peito, “branca, como morta”. A palavra morta nesse trecho é usada de maneira dicotômica, representando a morte e a vida, pois até esse momento Maria da Piedade não vive para si e não é feliz, pois vive apenas para o marido e os filhos. Assim, Adrião com um beijo a desperta, como se fosse a Bela Adormecida, para a vida. Após beijá-la, ele fica contente com sua “generosidade” como se ele soubesse as possíveis consequências do beijo na prima, que se evidenciam no trecho onde ele afirma que “de resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe...”.

Maria da Piedade ao sentir e visualizar outras possibilidades para sua existência, além de ser enfermeira do marido e dos filhos, reflete sobre a vida que tem e começa a achar os seus “fardos injustos”, então, compreendemos que quando não se conhece outros “sabores”, resta o contentamento com o que se tem. A partir dessa conclusão a personagem começa a pensar em apressar a morte do marido e a deixar os filhos sujos e sem comida.

Injustiçada, restava-lhe o amor que sentia por Adrião e “refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa”, portanto, ela passara a sonhar, a imaginar aquele homem forte, extraordinário, belo como sendo a razão de sua vida, pois antes de conhecê-lo estava morta ao lado de um homem fraco e doente que era João Coutinho. Inclusive, é possível fazer uma comparação semântica entre o nome de Adrião que reflete expansividade, força, enquanto o de João Coutinho com o diminutivo o faz pequeno e fraco.

Amando Adrião, Maria da Piedade queria tudo “que era ou vinha dele”, por isso “leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara e morrera dum abandono”, nesse momento ela se identifica com Madalena, pois amara e também fora abandonada por Adrião. E lendo, se acalmava e revidava a vida que vivia, pois pegava emprestado essa vivência quando chorava “as dores das heroínas de romance”, logo, “parecia sentir alívio às suas”.

Ela passou a sentir necessidade de ler romances constantemente, assim “criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado”. É nesse momento que a personagem começa a idealizar, coisa que não fazia antes, também começam aparecer revoltas, ocasionadas pelas interrupções à suas leituras românticas.

“O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se a um ser vago que era feito de tudo que a encantara nos heróis de novela”, Maria da Piedade queria ser amada, importante como mulher e possuída pelos homens aos moldes dos romances que lia, pois assim ela preencheria seu vazio com seus amantes que, em geral, eram fortes, o oposto da figura raquítica de seu marido.

“À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.” O momento noturno propiciava reflexão e solidão à Maria da Piedade que mesmo rodeada de amantes, terminava solitária e chorosa à noite. Então, no moinho, a figura de Santa se transforma em Vênus, deusa do amor responsável pelo prazer, pelo sexo e pela satisfação de maneira inconsequente, sendo na Odisseia aquela que também trai.

É preciso reconhecer que Maria da Piedade desejou ser outra antes da sua transformação em Vênus, pois tinha “momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença...”, portanto, não se muda uma pessoa, apenas lhe mostra o caminho, as escolhas e Adrião lhe mostrou um mundo novo, cheio de opções além das enfermidades, a fez livre e por se tornar livre, acabou escandalizando “toda a vila” que tinha princípios morais opostos aos adotados por Vênus.

A traição ocorrida em “No moinho” tem uma mera semelhança com o romance, do mesmo autor, “O Primo Basílio”. No conto, Maria da Piedade mesmo tendo um marido, não tem um companheiro, pois este vive enfermo, assim como Luísa no romance, que tem um marido ausente. Ambas sofrem por essa condição e com a chegada dos primos Adrião e Basílio, respectivamente, a situação é intensificada, culminando no adultério. As duas mulheres, antes vistas como anjos, caem em traição e viram “Vênus”, sendo malvistas pela sociedade a que pertencem.

Ao abordar esse tema (adultério), Eça de Queirós pretende criticar a influência dos romances nas traições matrimoniais, fato bastante evidenciado no conto, onde o narrador afirma que “o romantismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços”. Devido a essa crítica ao idealismo romântico o conto se encaixa na perspectiva naturalista, pois o instinto prevalece à razão, por meio do espaço corrompido moralmente pela traição, assim, provando que o meio é capaz de influenciar o homem.

Fonte
http://www.coladaweb.com/resumos/no-moinho-analise-do-conto-de-eca-de-queiros