domingo, 5 de janeiro de 2014

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos)


SONETO à FLORBELA ESPANCA
*8.12.1894  - +8.12.1930
-
Foi amando teus versos que aprendi
a soluçar também o mal do amor,
nos desencontros e no frenesi
que envolveram meu estro sonhador...

 Soubeste extravasar todo o calor
que sentias, assim como senti,
das paixões que me fazem ser cantor
dos mesmos temas que provêm de ti.

 Ó divina poetisa, os teus tormentos
expressos na poesia e nos lamentos,
que soluçaste, fazem-te imortal...

 Ninguém foi tão sincera e tão brilhante,
fazendo versos de mulher e amante,
enaltecendo sempre Portugal !

SONETO A RAINER MARIA RILKE
Nascimento do poeta em 4.12.1875

Sonetos geniais vou lendo agora
de um primoroso vate que escreveu:
´´Cartas a um Jovem Poeta´´ e lhe deu
conselhos pra seguir a qualquer hora...

´´A obra de arte é boa quando nasceu
por necessidade...(...),´´; nada descora
a beleza natural de uma aurora
e o que criares sempre vai ser teu !

Rainer Maria Rilke, também busco
em teus escritos muito que preciso
pra poetizar meus versos de sozinho;

e te aprendendo sei que não ofusco
minha tarefa, às vezes, de indeciso,
sempre à procura de um melhor caminho !

SONETO PARA O ANO-NOVO

Há quanto tempo não escrevo um verso,
De amor ardente ou de filosofia...
Quem me dera, fazê-lo neste dia
De Ano-Novo no esplêndido Universo !

Vede a luz que dos céus tanto irradia
Raios difusos quando me disperso
Em pensamentos e me vejo imerso
No mar azul da linda fantasia !...

E quem sinto povoar-me a solidão,
nessas horas em que o sol vai se pôr ?!
- Posso dizer que é uma grande paixão !

E aquela que a causou não vou falar,
Talvez nem saiba compreender o ardor
De minh´alma... Terá que adivinhar !

A PORTA QUE SE ABRIR...

Ouvindo a música suave e mansa
eu passo as minhas horas solitárias...
Que difícil manter uma esperança
quando as próprias ideias são contrárias !

Como desejo ter uma mudança,
nestas ocasiões, tão necessárias;
penso na estrela que jamais se alcança
e na desgraça que recai nos párias...

Entretanto, procuro não cair,
porque os espíritos, enfim, reagem
mesmo perante a mais feroz tristeza...

Espero pela porta que se abrir
em meu destino e assim me dê passagem
p’ra conviver com a tua beleza…

SONETO A GONÇALVES DIAS
Falecimento do poeta em 3.11.1864- In Memoriam -

Poeta das palmeiras e também
dos indígenas, com força genial,
cantou grandes amores que ninguém
houvera feito assim sentimental…

Lendo seus versos a saudade vem
me visitar de modo especial,
da minha terra que palmeiras tem
onde o sabiá modula sem igual.

Gonçalves Dias, vate da natura,
és um astro que em nosso céu fulgura,
com tuas mais românticas poesias…

Soubeste transmitir a inspiração
que as Musas te trouxeram na solidão
do mundo ideal das alegorias !

SONETO A CARLOS MAGALHÃES DE AZEREDO
- Falecimento do poeta em 4.11.1963 aos 91 anos. – In Memoriam -.

Quando leio sonetos dos poetas,
velhos românticos de antigamente,
sinto quão suas musas são diletas
nos versos que escreveram docemente…

Poesias inspiradas e discretas,
mas também outras, de romance ardente,
que tudo dizem, atingindo as metas
que se propunham, na paixão ingente.

Leio Carlos Magalhães de Azeredo,
o seu ´´Verão e Outono´´, em que demoro,
curtindo um verso no final do enredo

em que ele escreve: ´´Doce e amargo encanto !
São tuas próprias lágrimas que choro !´´
E aprendo, então, como é tão forte o pranto…

SONETO A RUI BARBOSA
Nascimento do escritor Rui Barbosa em 5.11.1849 – In Memoriam -

Rui Barbosa
Literato
Foi de fato
Rei da Prosa.

Escritor
Mui correto
Tão dileto
Prosador.

Assombrou
C´o saber
Tão profundo…

Pois honrou
Seu dever
Neste mundo.

SONETO ALEXANDRINO A AMADEU AMARAL
Nascimento do poeta Amadeu Amaral em 6.11.1875 – In Memoriam -

“Rios”, “Sonhos de Amor”, e “A um Adolescente”,
são sonetos de escol que leio comovido,
porque me fazem bem neste dia envolvente
pela nublada luz do céu escurecido…

E fico a meditar, trazendo para a mente,
os poemas “A Estátua e a Rosa”, em sublime sentido;
“Prece da Tarde”, quando exsurge a voz do crente
como um sopro de amor no caminho escolhido…

Estou perante o mestre Amadeu Amaral,
cujos versos serão sempre muito admirados,
como régio cultor da nobre poesia…

Além do mais, ficou sendo vate Imortal,
pois eleito ele foi por membros consagrados
de nossa Brasileira Excelsa Academia !

SONETO PARA CECÍLIA MEIRELES
Nascimento da poeta em 7.11.1901 – In Memoriam -

Procuro viajar nestes poemas
que me emocionam tanto e permaneço
conhecendo em mais variados temas,
a vida alegre ou triste em que padeço…

Procurei fazer versos, de tropeço
em tropeço, p´ra resolver problemas
que enfrentei no viver, desde o começo,
quando me apareciam os dilemas.

Um dia encontrei doce poesia
melancólica, plena de ternura,
mas também sempre límpida e correta.

São horas de tristeza e nostalgia
que me suscitam a feliz candura,
de Cecília Meireles, a poeta !

SONETO A ARTHUR RIMBAUD
Falecimento do poeta francês em 10.11.1891 – In Memoriam -

Jovem poeta que parou bem cedo
de fazer versos plenos de emoção…
Soneto de “Vogais” em cujo enredo
cada uma tem a significação.

Sua obra não foi simples arremedo
de alguém que pensa apenas na ilusão;
não se sabe do enigma nem do medo
de a poesia dar continuação…

O certo é que depois, quando indagado
se era parente de Rimbaud, dizia:
“Eu nunca ouvi falar !” E assim calado

continuou pelo resta da vida, só,
com sua nova e vã filosofia
em que se sabe que seremos pó !

SONETO A AUGUSTO DOS ANJOS
Falecimento do poeta em 12.11.1914 – In Memoriam -

Leio seus versos de poeta ousado,
e me comovo com a verve forte,
que se deprime qual um condenado,
a cada instante lamentando a sorte.

Mas foi um grande, embora desgraçado,
sem ter um lenitivo que o conforte,
em cada verso um passo encaminhado
rumo ao destino que o esperava: a morte !

E sendo um vândalo destruidor,
andou por ´´templos claros e risonhos´´,
como num pesadelo com pavor…

Então, num ímpeto de iconoclastas,
´´quebrou a imagem dos seus próprios sonhos´´,
´´erguendo os gládios e brandindo as hastas´´!

SONETO A CRUZ E SOUSA
Nascimento do poeta em 24.11.1861 – In Memoriam -

Poeta das Visões e dos Mistérios,
Evocando outros mundos de Quimera
Onde devem viver seres etéreos
Que por aqui passaram n´outra Era…

São espíritos cuja Vida austera
Atravessaram cá momentos sérios,
Sem conhecer a eterna Primavera,
Hoje ouvindo dos Anjos os saltérios…

São as almas que o Vate Cruz e Sousa
Evocava em seus versos: “ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?!”

Lembramos que sua alma ora repousa
Por Mundos para nós desconhecidos,
Mas plenos de canções… louvor… hosanas…

APÓS LER CRIME DO PADRE AMARO DE EÇA DE QUEIROZ
Nascimento do escritor em 25.11.1845 – In Memoriam -

Uma história de amor que nos surpreende,
libélulo ao celibato imposto,
lança no espírito feroz desgosto
que por maior esforço não se entende.

São os mistérios que jamais se aprende:
uma existência trágica ao sol-posto
penetra o cérebro e no próprio rosto
dá contrações de nervos e se estende.

O mundo estupefato ao Padre Amaro
lançará seu desprezo inconformado,
pois mesmo que procure achar amparo

na vã filosofia de um idílio,
surgirão tão fatal como o pecado
a pobre Amélia morta e morto o filho…

SONETO  A GREGÓRIO DE MATOS
Falecimento do poeta em 26-11-1696 – In Memoriam -

Gregório de Matos – Boca do Inferno,
assim o apelidou o poviléu,
apesar de às vezes ser mui terno
e descantar também bênçãos do céu…

Na Bahia causavam escarcéu,
suas notas satíricas e hodierno,
se despertou talvez algum labéu,
há de ficar seu estro sempiterno…

Vejo que a data do seu nascimento,
será sete de abril?! ou vinte e três,
ou vinte de dezembro?! Não é certa…

Mas sei que foi poeta de talento,
e tudo o que escreveu, e disse, e fez,
mostra a coragem de sua alma aberta…

VENTO DO MAR

 Vento que sopras furibundo
 e vens meus sonhos despertar,
 as tristezas de todo o mundo
 parece que trazes do mar…

 Ouvindo o lamento profundo
 sempre constante a marulhar,
 quedo-me triste, me confundo
 co’a voz misteriosa do mar…

 Altas horas, cada segundo
 teimas o meu corpo abraçar,
 quando em reflexões me aprofundo
 para obter segredos do mar…

SONETO
Comemora-se no Brasil, o Dia Nacional da Leitura (a partir de 2009 – Lei nº 11.899).

A distração do espírito é a leitura
e os grandes mestres nos ensinam tal;
nas obras-primas, vasto cabedal
a mente encanta e o pensamento apura…

A existência tem fases de amargura,
pois há um confronto assaz fenomenal:
de um lado luta o bem e de outro o mal
e o que vence por fim é o que perdura.

Escrevam, romancistas, seus romances !
Cantem, poetas, salutar poesia !
Porquanto houver na vida tantos transes,

não vão morrer as páginas aflitas
e nem há de ficar a imagem fria
das criações pra todo sempre escritas.

DIA DA CRIANÇA

Julgavas que este amor não encontrasse
pedras e espinhos pela estrada afora,
mas são os sofrimentos e a demora
o que fazem eterno o que é fugace.

Repara-me nos olhos e na face
para ver quanta mágoa me devora,
por não ter alma cândida e sonora
a fim de ser o que teu sonho amasse.

Deixemos de torturas e cansaços,
reclina-te serena nos meus braços,
confia em mim na maior esperança…

Faz de conta que nada mais existe,
então verás alguém que foi tão triste
convertido na mais alegre criança…

SONETO   ÍNTIMO

 Enfrenta teu destino sem alarde;
 que ninguém saiba o que te vai na mente…
 Não te lastimes, murmurando: “É tarde !”
 Esquece o teu passado, indiferente…

 Também não fujas, como vil covarde,
 à luta que te espera, e simplesmente
 pede ao Senhor que te proteja e guarde
 em Sua bondade infinda, onipotente.

 Encontrarás, enfim, sabedoria
 para atingir a meta projetada,
 sem falso orgulho, mágoa ou rebeldia;

 porque tua fé com força redobrada
 renascerá com flores de alegria,
 enfeitando pra sempre tua estrada.

CATULLO DA PAIXÃO CEARENSE
Soneto em homenagem póstuma – In Memoriam

Faz-me lembrar o tempo de menino,
no lar paterno, lá na velha aldeia,
com minha mãe, irmãos e irmãs, na ceia,
de noitezinha, ao bimbalhar do sino…

Depois, eu contemplava a lua cheia
e perguntava aos céus: qual meu destino,
neste mundo que roda e cambaleia,
com momentos de luz e desatino?!…

E ouvia a minha voz na voz do vento,
dizendo que eu tivesse paciência,
estudasse, aprendesse e na paixão

de adquirir maior conhecimento,
ingressasse no reino da sapiência…
Que lindo era o Luar do meu Sertão !…

SONETO DE UM CAVALEIRO TRISTE

O sol descai… Montado no alazão
eu sigo pensativo pela estrada,
ouvindo o triste mugir da manada
que procura abrigar-se no capão.

Horas de amor… horas que o coração
modula calmamente uma toada;
que a tarde vai descendo para o nada
e cheio de poesia fica o rincão.

Morre a tardinha e nasce então o sonho
que anima, que cativa, que reluz,
embora seja às vezes tão tristonho.

A noite vai descendo, foge a luz,
por toda parte um reluzir tardonho
e eu prossigo levando a minha cruz !

SONETO DE UM ANDARILHO

Eu vivo solitário e maltrapilho,
a caminhar por este mundo afora,
e levo a vida por um triste trilho,
boêmio sem amor e sem aurora.

Da solidão sou sempre um pobre filho,
e com imensa dor minh´alma chora,
quando lembro sozinho o nosso idílio,
aquele louco amor que tive outrora.

Hoje, tristonho e maltrapilho vivo,
da sociedade sempre longe, esquivo…
Apenas nas tabernas acho paz.

E lá, quando me afogo na bebida,
olvido a desventura desta vida
e penso, doido, que me amando estás.

SONETO ARDENTE
Aos poucos vou contando minha história
nos poemas, nas crônicas, nos versos
dos sonetos, das trovas… – merencória
poesia – todos por aí dispersos…

Relembrando os amores mais diversos
que passaram, bem sei, longe da glória
de se concretizarem ou perversos,
magoando a minha triste trajetória…

Lendo as páginas de outros sonhadores
que enfrentaram fracassos, dissabores,
eu me ponho a pensar no céu da vida

que me pudesse dar felicidade
e chego a bendizer esta saudade
como se aos beijos da mulher querida…

SONETO TRISTONHO

Que lindo é o modular do passaredo
que canta desde a aurora vir chegando
até que a tarde triste vá tombando
e a noite desça cheia de segredo.

Ai! quem me dera que eu cantasse ledo
sem estes prantos que me vão cegando
e quando a noite vier se aproximando,
cantar contente sem nenhum degredo !

Como meu peito já não quer cantar
e minha vida sem amor definha,
no verso derradeiro a chorar

te peço encantadora moreninha,
que quando a morte me vier buscar,
reza uma prece pela alma minha !

MATE NO GALPÃO

O mate amargo passa de mão em
mão e a gente se lembra de tropeadas
do destino que leva por estradas
desconhecidas, tristes, sem ninguém.

A cuia prateada me entretém,
escutando os causos dos camaradas
que fizeram de suas gauchadas
por terras que se somem pelo além.

Ruivo fogo crepita no galpão,
nobre abrigo dos tauras soberanos
que saudosos se ajuntam no rincão

a fim de recordar passados anos.
E a cuia do gostoso chimarrão
me é tristezas, saudades, desenganos…

SONETO DO FIM DO DIA

A noite vem descendo vagamente,
as estrelas no céu vão apontando,
a lua começa sua jornada urgente,
de um lado para outro vai passeando…

Quem nestas horas, de um amor ausente,
não fica triste a imensidão mirando,
e embora tantas vezes queira e tente
modular, de tristor fica chorando?!

Nesses momentos sempre é que a saudade
me desanima, me tortura, ingrata…
E eu me recordo, olhando a imensidade,

dos felizes passeios pela mata;
e a feroz aflição que então me invade
irrompe dentro em mim como cascata !

SONETO À MULHER MORENA

Linda manhã radiosa me convida
a prosseguir nos passos rumo ao mundo,
porque sonhar amando é tão profundo,
que mais e mais, também prolonga a vida !

Mas se eu pudesse ser um vagabundo,
sem conhecer a estrada percorrida,
com certeza, conceberia a lida
de procurá-la até em um submundo…

Eu sei que vou lhe amar a todo o instante,
com seu sorriso límpido e brilhante,
qual se fosse de Alencar – ´´A Iracema´´!…

E para consagrar meu preito à bela
morena, que não sai da minha tela,
eis o soneto que ainda é o poema !

FARRAPO

Levantou-se o gaúcho sobranceiro
no alto da coxilha verdejante,
carregava uma carga no semblante
dum tristor que seria o derradeiro.

A glória de lutar e ser galante:
o sonho que conduz o aventureiro.
A glória de ser livre e ser gigante:
o lema que conduz o pegureiro.

Este lema e este sonho se fundiram
e assim surgiu o nobre Farroupilha
que lutou com ousada galhardia,

porque a honra e a justiça escapuliram
da canhada e do topo da coxilha,
do pago em que ele viu a luz do dia !

QUANDO MURCHAR A PRIMAVERA

Quando murcharem as flores dos caminhos
e o peito calar-me indiferente
como a serena mudez dos passarinhos
em noite senil e permanente…

Órfão de afetos, insaciado de carinhos
caminharei tristonho de dolente,
buscando outras sensações em novos ninhos
como a cura ao meu amor fervente.

E nada há de curar a viva chaga
que deixaste a sangrar em meu desejo
ao provar a doçura do teu beijo

naquela tardinha rubra e vaga
e onde estiveres chorarás baixinho
a mágoa de deixar-me tão sozinho.

CANSAÇO

No corpo sentírás a lassidão
de uma canseira incrível, de um torpor
que te virá só para em ti depor
as esperanças que te morrerão…

E numa palidez verás, então,
teus olhos magoados pela dor,
vidrados sem o brilho sonhador
que te deixava tão alegre são…

Desejarás dormir nestes instantes.
O sono não virá dar-te um abraço.
Irás cantar, mas inda que tu cantes

passarás amarguras como passo
e enxergarás que em risos deslumbrantes
te sorrirá flamívolo cansaço…

sábado, 4 de janeiro de 2014

Cláudio de Cápua (Meu Sonho)


Irmãos Grimm (A Donzela sem Mãos)

Era uma vez, há alguns anos, um homem que ficava na estrada e que possuía uma pedra enorme de fazer farinha, com a qual moia cereal da aldeia. Esse moleiro estava passando por dificuldades e não restava nada além da enorme pedra de moinho e da grande macieira florida atrás da construção.

Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de prata para cortar lenha, um velho estranho surgiu atrás de uma árvore.
 
- Não há necessidade de você se torturar cortando lenha – disse o velho em tom engabelador – posso adorná-lo de riquezas se você me der o que esta atrás de seu moinho.
 
- O que esta atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? – perguntou-se o moleiro, concordando com a proposta do velho.
 
- Dentro de três anos virei buscar o que é meu – disse o estranho rindo a socapa, e foi embora a mancar, desaparecendo entre os troncos das árvores.
 
O moleiro encontrou sua mulher no caminho. Ela havia saído correndo de dentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.
 
- Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógio mais bonito, nossas cadeiras rústicas foram trocadas por cadeiras de veludo, nossa pobre despensa esta repleta de carne de caça, nossas arcas e baús transbordam de tão cheios. Diga-me, por favor, como isso aconteceu. – e nesse exato momento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo foi puxado e preso num arco dourado.
 
- Ah, disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a ser de cetim. Diante dos seus olhos, seus sapatos de madeira com salto tão gastos que ele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos sapatos. – Bem, isso foi um desconhecido – disse ele, ofegante. - Deparei-me com um homem estranho, com uma sobrecasaca escura. E ele me prometeu enorme fortuna se eu lhe desse o que está atrás de nosso moinho. Ora mulher, claro que podemos plantar outra macieira.
 
- Ai, meu marido! – lamentou-se a mulher dando a impressão de ter levado um golpe mortal. – O homem de casaco escuro era o diabo e o que está atrás do moinho é a árvore sim, mas a nossa filha está lá varrendo o quintal com uma vassoura de salgueiro.
 
E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas sobre seus trajes. A filha permaneceu sem se casar durante três anos, e tinha o temperamento como uma das primeiras maçãs doces da primavera. No dia que o diabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e ficou parada num círculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o diabo estendeu a mão para agarrá-la, uma força invisível o lançou para o outro lado do quintal.
 
- Ela não pode mais se banhar – berrou ele. – Ou não vou conseguir me aproximar dela.
 
Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram em que ela ficou sem se banhar, até que o cabelo ficou emaranhado; suas unhas, negras; suas roupas encardidas e duras de sujeira. Então; como a donzela parecia cada vez mais com um animal, surgiu mais uma vez o diabo. No entanto; a menina chorou e suas lágrimas escorreram pelas mãos e pelos braços. Agora suas mãos e seus braços estavam alvíssimos e limpos. O diabo ficou furioso.
 
- Cortem-lhe fora as mãos, do contrário não vou poder me aproximar dela.
 
- Você quer que eu corte as mãos da minha própria filha? – perguntou o pai horrorizado.
 
- Tudo aqui irá morrer, berrou o diabo. – Você, sua mulher e todos os campos até onde sua vista alcance.
 
O pai ficou tão apavorado, que pedindo perdão a sua filha começou a afiar o machado. A filha conformou-se.
 
- Sou sua filha, faça o que deve fazer.
 
E foi o que ele fez; no final ninguém podia dizer quem gritou mais alto, se foi o pai ou a filha. Terminou assim a vida da menina da forma que ela conhecia. Quando o diabo voltou, a menina havia chorado tanto, que os troncos que lhe restavam estavam novamente limpos, e o diabo foi mais uma vez atirado para o outro lado do quintal quando tentou agarrá-la.
 
Lançando maldições que provocavam pequenos incêndios na floresta, ele desapareceu para sempre, pois havia perdido todo o direito sobre ela.
 
O pai havia envelhecido cem anos, e sua esposa também. Como autênticos habitantes da floresta, eles continuaram como podiam. O velho pai fez a oferta de manter a filha num imenso castelo de beleza e riqueza pelo resto da vida, mas a filha disse achar mais condizente que se tornasse mendiga e dependesse da bondade dos outros para seu sustento. E assim ela fez com que atassem seus braços com gaze limpa e ao raiar do dia ela se afastou da sua vida como havia sido até então.
 
Ela caminhou muito. O sol do meio dia fez com que o suor escorresse riscando a sujeira de seu rosto. O vento desgrenhou tanto o seu cabelo que até parecia um ninho de cegonha com gravetos enfiados de qualquer jeito. No meio da noite, ela chegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos das árvores. Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso. Caiu, então de joelhos, pois estava faminta. Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e fechou a compota para esvaziar o fosso.
 
A donzela caminhou por entre as pereiras sabendo de algum modo que cada fruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles eram também vigiados. Mesmo assim, um ramo curvou-se abaixo para que ela o alçasse, fazendo o galho estalar. Ela tocou a pele dourada da pêra com os lábios e comeu ali em pé ao luar, com os braços atados em gaze, os cabelos desgrenhados, parecendo uma mulher de lama, a donzela sem mãos.
 
O jardineiro viu tudo, mas reconheceu a magia do espírito que a protegia e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer aquela única pêra, ela se retirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.
 
No dia seguinte o rei veio contar suas pêras. Ele descobriu que uma estava faltando, mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o fruto desaparecido. Quando lhe perguntaram o jardineiro tinha a explicação.
 
- Ontem a noite dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim a luz do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pêra que se oferecia a ela.
 
O rei disse que iria montar guarda naquela noite. Quando escureceu ele veio com o jardineiro e o mago que sabia conversar com espíritos. Os três se sentaram debaixo de uma árvore e ficaram vigiando. À meia noite, a donzela veio flutuando pela floresta, com roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braços sem mãos e o espírito de branco ao seu lado. Eles entraram no pomar da mesma forma que antes. Mais uma vez a árvore curvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pêra que estava na ponta do ramo. O mago aproximou-se deles, mas não muito.
 
- Vocês são deste mundo ou não são?- perguntou ele.
 
- Eu fui outrora do outro mundo – respondeu a donzela. – no entanto não sou deste mundo.
 
- Ela é humana ou é um espírito? – perguntou o rei ao mago, e ele respondeu que era as duas coisas. O coração do rei deu um salto, e ele se apressou a chegar a ela.
 
- Não renunciarei a você – exclamou o rei - deste dia em diante, eu cuidarei de você.
 
No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foram amarradas aos seus braços. E foi assim que o rei se casou com a donzela sem mãos.
 
Passado algum tempo o rei teve que ir combater num reino distante e pediu à mãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo coração.
 
- Se ela der à luz a um filho mande me avisar imediatamente.
 
A jovem rainha deu a luz a um belo bebe, e a mãe do rei mandou um mensageiro até ele para lhe dar as boas novas. No entanto no meio do caminho o mensageiro se cansou e, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono. Afinal, adormeceu profundamente às margens do rio. O diabo saiu de trás de uma árvore e trocou a mensagem por uma que a rainha havia dado à luz a uma criança que era metade humana metade cachorro.
 
O rei ficou horrorizado com a noticia, mas mesmo assim mandou de volta uma carta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terrível transe. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio e, sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo adormeceu junto a água. Foi quando o diabo mais uma vez apareceu e trocou a mensagem para:
 
- Matem a rainha e a criança.
 
A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindo confirmação. Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um adormecendo junto ao rio enquanto o diabo trocava as mensagens por outras que ficavam cada vez mais apavorantes, sendo a ultima que dizia:
 
- Guardem a língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta.
 
A velha mãe não pode suportar a ideia de matar a doce jovem. Em vez disso, ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu. Em seguida, ela ajudou a jovem rainha a atar o bebe junto ao peito e, cobrindo-a com um véu, disse que ela precisava fugir para salvar a vida. As mulheres choraram e se beijaram na despedida.
 
A jovem rainha vagueou até chegar à floresta maior e mais selvagem que jamais vira. Na tentativa de procurar um caminho, ela procurava passar por cima, pelo meio e por volta do mato. Quase ao escurecer, o mesmo espírito de branco apareceu conduzindo a jovem a uma estalagem pobre de gente simpática da floresta. Uma donzela vestida de branco levou a rainha para dentro e demonstrou saber seu nome. A criança foi posta no berço
.
- Como que você sabe que eu sou rainha? – perguntou a donzela.

- Nós da floresta acompanhamos esses casos, minha rainha. Agora descanse.
 
E assim a rainha ficou sete anos e se sentia feliz com sua criança e com sua vida. Aos poucos suas mãos voltaram; primeiro como pequeninas mãozinhas de bebes, rosadas como pérolas, depois como mãozinhas de menina e afinal como mãos de mulher.
 
Enquanto isso o rei voltou da guerra, e sua mãe se lamentou com ele.
 
- Por que quis que eu matasse dois inocentes? – perguntou ela mostrando-lhe os olhos e a língua da corça. Ao ouvir a terrível história o rei cambaleou e caiu a chorar inconsolável. A mãe viu a dor e contou que os olhos e a língua eram de uma corça e que ela havia mandado a rainha e o filho fugir pela floresta adentro.
 
O rei jurou não mais comer, nem beber, e viajar até onde o céu continuasse azul para encontrar os dois. Ele procurou por sete anos a fio. Suas mãos ficaram negras, sua barba de um marrom semelhante ao musgo, seus olhos avermelhados e ressecados. Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada, mas uma força maior do que ele o ajudou a se manter vivo.
 
Afinal ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta. A mulher de branco convidou-o entrar, e ele se deitou de tão cansado. A mulher colocou um véu sobre o rosto dele, e ele adormeceu. Quando ele chegou à respiração do sono mais profundo, o véu escorregou aos poucos do seu rosto. Ao despertar, ele encontrou uma linda mulher e uma bela criança que o contemplava.
 
- Sou sua esposa e este é seu filho. – O rei queria acreditar, mas a donzela tinha mãos. – Com todas as minhas afeições e com meus bons cuidados, minhas mãos voltaram a crescer – disse a donzela. 

E a mulher de branco trouxe as mãos de prata que estavam guardadas como um tesouro numa arca. O rei ergueu-se e abraçou a mulher e o filho, e naquele dia houve uma alegria imensa na floresta. Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um banquete. Depois, o rei, e a rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um segundo casamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram essa história para outros cem, que contaram para outros cem, exatamente como vocês fazem parte dos outros cem a quem eu estou contando.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=245592

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 16 – 27 de marco de 1887.

Cousa má ou cousa boa
Traz vantagem boa ou má;
O incêndio da Gamboa
Neste aforismo entrará.

Não fosse aquele medonho
Desastre que ali se deu,
E do qual nada aqui ponho,
Pois que o leitor tudo leu,

Não saberia eu agora,
Pelas narrações que vi,
Uma notícia que chora,
E que — essa, sim — ponho aqui.

Foi quando a água, correndo
Pela rua e para o mar,
Ia ardendo, ardendo, ardendo,
Ardendo de amedrontar.

Então li que os habitantes
De um beco, com tal horror
Viram as águas flamantes,
Arrastando a morte e a dor,

Que pensaram em deixá-lo,
O beco em que há muito estão,
Onde a morte, a fogo e a estalo,
Punha em gelo o coração.

Esse beco, o beco escuso,
O beco que nunca vi,
Beco de tão pouco uso,
Que nunca o nome lhe li,

Chama-se do conselheiro
Zacharias; leiam bem.
E vá, reflitam primeiro,
Como eu refleti também

Ó meu douto Zacharias!
Meu velho parlamentar!
Ó mestre das ironias?
Ó chefe ilustre e exemplar!

Quantas e quantas batalhas,
Deste contra iguais varões!
E de quantas, quantas gralhas,
Tiraste o ar de pavões!

Sólido, agudo, brilhante,
Sincero, que vale mais,
Depois da carreira ovante,
Depois de glórias reais,

Deram-te um beco... Olha, um beco...
De tantas cousas que dar,
Coube-te a ti, homem seco,
Triste beco ao pé do mar.

Não digas que são mofinas
Estas nossas distinções
Pintadas pelas esquinas;
Esquinas fazem barões.

Não cuides que, nesta lida
Em que andamos, tem de ser
Viva ainda a tua vida,
Escrita ou por escrever.

Logo, era uma honrosa graça
Se entrasses no grande rol
Com uma rua, uma praça,
Bem à vista, bem ao sol.

Mas, não. De quanto valias,
Agora nada valeis.
Há o beco Zacharias,
E a rua Malvino Reis.

Daqui, amigo, derivo
Esta antiga e estranha flor:
“Mais vale súdito vivo
Que enterrado imperador”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

José Hélder de Souza (O Estouro do Homem Faminto)

foi mantida a grafia original
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Ora se deu, conta dona Zefa numa história difícil de crer, mas que é veraz, jura ela de pés juntos por tudo que lhe é sagrado, ter um homem sem nome morrido espocado no copiar de sua casa, nos Gerais dos Buritis, depois de passar fome e ter comido um sapo.

Era no tempo seco, os cerrados estorricados, já pela secura de agosto, já pelo fogo mesmo que se alastra na macega e vai devorando tudo: as cobras, as muçuranas, as cascavéis, jararacas e jararacuçus que as muçuranas não haviam comido ainda; os gambás, os tiús, os ratos, os guaxinins-da-mão-pelada, até guará e tamanduá, tudo que é inseto, bichos viventes dos descampados dos cerrados e campos. Menos os sapos, bicho tinhoso, fugidor das labaredas, capaz de se esconder numa loca, num socavão quando vêm as línguas de fogo comendo o capim alto e tostando a folhagem dos pequizeiros, sucupiras e jatobás. Passado o fogo, no rescaldo das cinzas ficam os restos das plantas e dos bichos e o gavião, tudo que é versidade deles, fica nos ares, no alto, penerando devagar, catando os restos dos bichinhos, descem rápidos quando avistam o morto. Só não comem os sapos, parece que têm ciência e sabem que o bicho é envenenado. Só o carcará se atreve a comer sapo, assim mesmo só a barriga.

O fogo tinha vindo de todo jeito: da trempe do terreiro do rancho onde a sinhá dona fez um cozinhado qualquer; do distraído que deixou largado pra lá o pito e a brasinha do fumo passou seu quente para as folhas secas donde nasceu o fogaço; do sol que bateu seu raio num vidro branco, num cristal, e fez, num prisma, espargir aquele feixe de luz colorida que esquentou a folhagem estorricada do barba-de-bode e levantou um fogaréu doido e, mais ainda, do próprio homem botando tudo que é fogo no pasto para ver nascer das cinzas a rama nova, nas primeiras chuvas.

O dito homem que espocou, da história de dona Zefa, era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira dum capão seco, nas lonjuras das chapadas, num lugar chamado mesmo Chapadão dos Neris, por conta do povo desse nome e dono daquelas terras ruins. Sua mulher, ao que se soube, foi se embora, fazia tempo, pois que o marido mandrião não queria muito saber de trabalho e só botava a coitada para roçar mato, fazer plantação e cuidar de encontrar bicho para ele comer. Comia não só os bichinhos que todo cristão devora quando está com fome: galinha, porco, pato ou boi, como também tiú, gambá, tatu, e esses outros viventes dos matos que ela caçava, principalmente paca e cotia, caçadas com bodoque ou armadilha, no meio dos capões de mato.

A mulher largou para lá o homem filho da preguiça e ele ficou com pouca coisa para matar a fome. Quer dizer, não teve milho, nem capim, nem abóbora plantados no terreirinho e muito menos o arroz que plantava no brejinho perto do rancho, para comer no resto do ano. Ele ainda andou jogando na terra uns caroços de feijão e de milho, cavando com um caco de enxada, mas deu pouco.

Por uns tempos ele andou catando o de-comer no mato. Além dos bichos mais impróprios para comida de gente, ele catava umas frutinhas, até lobeira e principalmente as guabirobas, os palmitos e os buritis. Amassava os cocos do buriti, fazia um caldo e passava dias comendo a gorozoba.

Às vezes andava pelas fazendas das vizinhanças. Procurava um servicinho leve que, dizia, estava sem saúde. Com essas tarefas bobas nas casas dos vizinhos, arranjava o que comer e com alguma bondade do povo, umas roupas velhas para se cobrir quando andava andrajoso, aos trapos. Deu de passar, quando ia deixando os trabalhinhos maneiros nas roças e indo embora para seu ranchinho, pelo galinheiro ou pela pocilga e levar, de furto, um franguinho, um bacorinho. Com o sumiço dos bichos o povo foi desconfiando e deixando o preguiçoso sem nome, sem servicinho, sem comida e sem roupa. Se queria tinha mesmo é que trabalhar no eito, como os outros, de sol a sol.

Mesmo querendo arranjar um trabalho para poder ter o que comer, o homem não encontrava abrigo em fazenda nenhuma, as lavouras paradas, o trabalho com gado sem serviço, tudo esperando as chuvas de setembro e o homem, com fome, catando o que comer. Protegeu-se debaixo dum pé de cagaita e lá ficou comendo o docinho das frutinhas amarelas. Comeu tanto que quase se acaba de tanto ir ao mato cagar. Mas não se acabou e continuou sua fome pelos campos, catando o que comer.

Já fazia uns três dias que o homem não comia nada que prestasse, só folha e água, naturalmente. Numa das andanças viu um sapo pinchando na terra seca de um carreirinho de formiga. Se lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar, só deixando o couro nas cinzas dos campos das queimadas. Se carcará podia ele ia poder também. O sapo pinchou outra vez e ele pegou um pau e matou o bicho. Pegou da binga, faiscou, fez um fogo de graveto ali mesmo, sapecou bem o sapo, principalmente na barriga. Com um quicézinho, abriu o bicho e comeu uns nacos. Depois disto encostou-se numa sucupira e descansou daquela sua lida de procurar comida. O sapo enchera um cantinho do seu bucho faminto espantando um tanto a roedeira lá dentro, e ele dormitou encostado no tronco.

O sol já ia baixando quando acordou com uma sede dos diabos, como se tivesse comido o sapão com sal ou então sal com sapo. Levantou procurando grota, e grota por ali não havia. Andou já meio derrubado de sede, uma gastura danada na barriga e viu lá adiante uma casinha. Se achegou, chamou ô de casa. Veio uma mulher, a dona Zefa contadeira de histórias. Pediu água, ela deu. Pediu mais, ela deu mais. Como o homem sem nome quisesse mais água para matar sede grande e ela estivesse muito ocupada na cozinha, dona Zefa mostrou o pote, deu o caneco e mandou-o beber à vontade que ia cuidar da sua vida.

O homem encostou-se num canto, perto do pote e bebeu, bebeu – diz ela –, bebeu tudo que podia. Lá para as tantas ela escutou ele dizendo: – Dona, estou indo. Ao que ela foi e respondeu: – Vá com Deus. Ele se sentindo esmilinguido, perrengando, demais da conta, disse de novo com voz fraca: – Dona, estou indo. – Vá com Deus – respondeu ela de novo, acrescentando para não largar da sua ocupação: – Quando sair feche a porta. Ele ainda disse mais uma vez, com voz sumida, de agonizante, que estava indo, quando ela ouviu um estouro. No que correu para ver o que era, viu que o homem tinha espocado todo, a barriga aquele oco e no meio dum aguaceiro espalhado no chão perto do homem morto, numa sujeira de tudo que é porcaria, pedaços inchados de sapo por tudo que era lado...

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2008/02/jos-hlder-de-souza.html

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) José Hélder de Souza

José Hélder de Souza (Massapé, 1931 – Brasília, 2004) cedo se mudou para o Rio de Janeiro e depois Brasília. Contista, poeta, romancista e crítico literário, é autor de Coisas & Bichos (1977), Rio dos Ventos (1992) e Pequenas Histórias Matutas (2000), no gênero conto. Em outros gêneros publicou A Musa e o Homem (1959), A Grandeza das Coisas (1978), Os Homens do Pedregal (1979), Sonetos de São Luiz (1981), De Mim e das Musas (1982), Cabo Plutarco, O Berro D’água (1982), Raul de Leoni, Poeta de Transição (1984), Relvas do Planalto (1990), Brilhos e Rebrilhos de Goiás (1990).

Apesar dos longos anos longe do Ceará, a sua obra literária tem profundas raízes cearenses. Pelo menos nas narrativas de Rio dos Ventos e Pequenas Histórias Matutas é muito nítida a presença do espaço geográfico cearense, sobretudo do sertão. A começar por “Rio dos Ventos”, um de seus mais longos contos, cuja trama se desenrola na vila de Nossa Senhora dos Remédios, às margens do Rio dos Ventos. A casa dos protagonistas é próxima ao mar, às dunas, aos areais “entremeados de canaviais e coqueirais”. A personagem principal, Profíqua Mendes Carneiro, estudou num colégio de freiras em Sobral. Padre Firmo formou-se no Seminário da Prainha, em Fortaleza. “Sanharão” se passa no sertão. Cazuza Meireles morava numa casa construída “num pequeno vale, quase na quebrada da serra”, no alto da Serra da Meruoca. Em “O Capagato”, José Porfírio vivia nas proximidades da cidade de Saboeiro. Em “Os três enterros de Jasão” o personagem Chico Tripa, quando jovem, frequentava “casas de mulher à toa, no Beco do Pega-e-Puxa, na praia da Fortaleza”. Em “Nicodemus, ajudador da morte”, Manoel Trajano estudou em Sobral. Frequentava esporadicamente igrejas daquela cidade, de Massapé e São José. “A porca história de Elza” se desenvolve num “sobrado centenário”, “nas proximidades de Barbalha, nos confins do mundo do Cariri”. E assim é em quase todas as narrativas.

Também a linguagem dos contos de José Hélder é essencialmente cearense. No entanto, como para fugir à tentação de elaborar histórias baseadas na oralidade sertaneja, matuta, na fala regional, no coloquial, que fizeram a grandeza e a mediocridade da ficção regionalista, o contista cearense optou pelo ponto de vista onisciente do escritor-narrador. Em poucas ocasiões dá voz aos personagens. Em “Sanharão” um deles assim se manifesta: “– Num faço malefício a feme” (...), “mas arreda, mulher, num me estorva o passo.” E outro: “– Num me azougue, dona; vamo lá, Timbaúba.” No decorrer das narrações ocorrem referências a objetos da cultura cearense, ou nordestina: penico de louça, bule de ágata, terrina para a coalhada, cristaleira, espreguiçadeira; a plantas: cajazeira, mulungu, carrapateira; animais e acidentes geográficos. E muitos vocábulos em desuso: sentina, quartau baio, bagual, brivana, bregueço, lambrecar, cotrovia, trastejar, chaboqueiro, roncolho, maxabomba, embeleco, moringa, forroia, mistela, aranhol, facanéa, batota, pelebreu, pondenga, malamanhado.

Também chama a atenção do leitor a reconstituição de crônicas – familiares e pessoais – antigas, algumas delas datadas nas narrações. Em “Rio dos Ventos” o narrador se refere aos “meados dos setecentos”, quando “vieram de Portugal para aquelas bandas algumas fidalguinhas órfãs”. Tempo do Rei Dom José I, do Marquês de Pombal. “Sanharão” se desenrola durante o governo Justiniano de Serpa, tempo dos marretas ou republicanos conservadores, do coronel Franco Rabelo e do Padre Cícero. Em “O homem que fez o trem parar” “corria o ano de 1910”, tempo dos coronéis. Em “Ao crepúsculo, num quarto”, uma das narrativas mais bem realizadas de José Hélder, o protagonista é assassinado numa “pensão reles de cidade decadente, pobre”, por um cangaceiro. Quincas das Contendas, de história do segundo livro, é bisneto do capitão Godofredo Hortêncio de Aguiar, “fidalgote alentejano da Vila Pouca de Aguiar, ribeira de Xarrama, freguesia de Alcáçovas”, ao tempo do aldeamento dos índios Tremembés, nos setecentos. Em “A mistela que comeu o padre Verdeixa” narra-se episódio em que figura o famoso padre Zé Verdeixa. Em “Calunga, o homem de um tiro só” o protagonista é nascido “nos idos de 20 para 30”. Outro personagem foi “eleito deputado estadual na primeira eleição depois da queda de Getúlio, nos quarenta e seis”. Em “Contando os cobres guardados no banco” há referência ao “golpe de 1937”.

Os dramas vividos pelos personagens de José Hélder são quase sempre envoltos em tragédia, muitas vezes em razão de vinganças. Os desfechos coincidem com as mortes dos protagonistas ou das vítimas destes. No entanto, quando o contista se volta para o anedótico ou o humorístico a trama se apresenta frouxa, resultando em histórias do tipo “causos”, de irrisório valor literário. É o caso de “O Bolota da piroca dura” e “Contando os cobres guardados no banco”. A tragédia de “Rio dos ventos”, consubstanciada no amor do padre Firmo pela jovem Profíqua, dá ao marido traído, Francisco Carneiro Pachola, ares de Otelo sertanejo. O capítulo final, intitulado “Amar não é defeito”, pega o leitor pelo colarinho e o conduz à cena final do crime, a vingança. A morte do sacerdote, alvejado em pleno altar, quando rezava missa, seguida do desespero da mulher, é cena para se ler e reler. O desenlace, porém, se dá quando a jovem, quatro dias após o crime, “começou a devorar a comida com sofreguidão e, ao morder a titela da ave assada, um pedaço de osso atravessou-lhe na garganta”.

Do drama amoroso Hélder passa ao conflito familiar e partidário. “Sanharão” é história de cangaceiros, homens valentes, violentos. O pacato e medroso Quincoló mata o valentão Sanharão, ao ser por este abordado numa rua: “– Então, seu rabelista, cuma se lhe vai?” Rabelista, partidário de Franco Rabelo, eleito governador do Ceará em 1912, inimigo dos aciolistas, do partido de Nogueira Acióli. Inicia-se a perseguição ao assassino. E a história termina com a fuga de Quincoló, “num navio a vapor”, rumo ao Espírito Santo. Outra tragédia se lê em “O Capagato”. Acostumado a castrar gatos, José Porfírio encontra sua mulher e a criada mortas em casa e sai em perseguição aos assassinos. Ao final encontra um deles (o outro é morto por este). Subjugado, o homicida é amarrado “com uma tira de couro”. A narração da castração é cena digna dos melhores naturalistas. Em “Nicodemus, ajudador da morte” nada leva o leitor a suspeitar do desfecho. Trajano está muito doente, às portas da morte. Os parentes chamam Nicodemus, “o mais famoso puxador de reza e o melhor ajudador da morte de toda a redondeza”. As rezas não acabam nunca. Nicodemus percebe a chegada da morte e aconselha os familiares do moribundo a chamarem o padre: “Se é cristão, deve receber logo os sacramentos, as bênçãos de um padre, para não morrer nas trevas, na tentação do Diabo.” Ao final, numa “alta madrugada”, o ajudador, após muitas orações, retira-se da alcova de doente: “Acabara de abreviar a agonia de Manoel Trajano, ajudando-o a dar a alma a Deus, metodicamente sufocado.” Em “Ao crepúsculo, num quarto”, publicada nos dois livros, um viajante se hospeda numa pensão, se maldiz da pobreza do ambiente, pensa em se relacionar amorosamente com a arrumadeira (esse solilóquio demora algum tempo e absorve grande parte da narrativa), vê a noite chegar, sempre à janela, quando avista “uma figura ensombrada”. Engana-se, ao supor tratar-se da moça. Ao lavar o rosto e preparar-se para o jantar, batem à porta. Pensa tratar-se da jovem. Abre a porta, “sôfrego”. Ele e o leitor deparam, então, a figura de um assassino: “Nem viu direito o rosto cangaceiro encoberto pelo chapéu de abas largas, pois foi logo o revólver vomitando morte e lhe enchendo o peito e o bucho de balas.”

(...)

Os personagens nos dois livros aqui mencionados são desenhados com traços rudes, como não poderia deixar de ser. Nem mesmo as mulheres aparentam beleza, singeleza, ao contrário do que se vê em outros narradores cearenses. Chico Pachola é “desengonçado e casmurro”. O cangaceiro Zé de França, de “Sanharão”, é “caboclo chaboqueiro de cabelo-de-espeta-caju”. Pedro Silvério, de “Amores lícitos e ilícitos do Silvério e a negridão e o sabor das guabirabas”, é, talvez, o personagem mais favorecido na descrição: “Grandalhão, bem conformado, espadaúdo e um tanto obeso” (...) “tinha cara redonda e cabeça chata, maçãs do rosto salientes e nariz afilado e curto, quase arrebitado”. Nicodemus, de “Onde Nonato encontrou seu calunga, o Bozó”, é “homem grandalhão, barbaçudo e pestanhudo, de grenha intensa, ar bonachão e prestimoso”. O caçador de “A pondenga” é “um magro serrano de cara estragada pela bexiga, boca murcha pela ausência de dentes incisivos, olhar cansado e corpo arqueado de viver e sofrer.”

A par disso, muitos dos personagens vivem situações vexatórias, seja na hora da morte, seja em plena vida. Profíqua morre engasgada com pedaço de osso. A castração do homicida de “O Capagato” é cena do mais puro naturalismo: “a lâmina fina agora a penetrar fundo no seu saco escrotal”; “ouviu-se um berro estrondoso”, “berro horrível, como os dos gatos capados...” A cena de eutanásia em “Nicodemus, ajudador da morte” é inesperada. Elza é deflorada por um porco. Quinca das Contendas morre afogado: “animal e cavaleiro sumiram nas águas barrentas”. Padre Verdeixa, famélico, só encontra “a pobre mistela dos maxixes cozidos na água e sal” para matar a fome. Um dos mais contundentes contos de Hélder é, sem dúvida, “O estouro do homem faminto”. Nem sequer nome lhe é dado. Faminto, “era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira de um capão seco”. Passados dias de fome, “lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar”. Após matar e assar o bicho, “comeu uns nacos”. Dormiu e “acordou com uma sede dos diabos”. Procurou uma casa, conheceu Zefa, pediu-lhe água. Bebeu toda a água do pote e se despediu. Deu alguns passos, “quando ela ouviu um estouro”. O pobre homem “tinha espocado todo”.

José Hélder de Souza é discípulo de Gustavo Barroso, naquilo que o criador de Alma Sertaneja tinha de sedução pelas histórias contadas pelos sertanejos. Tem, no entanto, estilo próprio. Dimas Macedo, em “Um contador de causos”, apresentação de Pequenas histórias matutas, ressalta “a sua fidelidade à linguagem popular, ao lado de seu estilo e do seu jeito de dizer muito peculiar, porque é individualíssima a sua escritura literária.”

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) VIII

MÁSCARA
 

Endureci a face
Para não sofrer com a emoção
Meu rosto virou uma careta
E um calo, meu coração.

CANDLE
 

Se não podes ser sol
Almeje apenas ser uma vela
Que ilumine ao menos
Tuas próprias trevas.

TORCEDOR

No vôo livre da bola
Gira o sonho torcedor
Querendo ver na gaiola
Preso passarinho gol.

Pula xinga dança chora
Briga ri da própria dor
Quando perde vai embora
Mas volta sempre vencedor.

Seja campeão ou vice
Seja último ou não
Não importa o que dizem
Vence sempre a emoção.

SIBA

Meu pai
Era um homem baixo
Franzino e tímido até
Trazia os olhos tristes
Por amor a uma mulher
Sisudo agreste macho
Nunca aprendera a chorar
Sua palavra era silenciosa
E seu sorriso tentava esconder
Passos que não se sabiam...
Nunca precisou de dinheiro para beber
Mas sempre precisou da bebida
Para viver.

AMBROSIA

Minha mãe
Conserva ainda a esperança
E um encanto de criança
Nesses tempos tão hostis!

Em sua santa ignorância
Ensina-me confiança
Lição que desaprendi.

Minha mãe
Apesar de tantos anos
Segue humilde caminhando
Com um sorriso novo em flor...

Quando esquece suas dores
A comparo com as flores
Transbordando de amor.

RIMBAUD
 

Temos todos
Um rebelde dentro da gente
Um anjo caído torto e indecente.
Reminiscências
Da estação que passamos
No inferno da adolescência...
E só purgando no deserto do agora
Damo-nos conta de que aquela
Fora nossa melhor fase.

PEQUENO MERCADOR

Levantava madrugada
Antes de brilhar o sol
Do acordar da passarada
Em seu canto si bemol.

A noite, o vento, o frio
O castigavam franzino
E um medo interior
Massacravam o menino.

No escuro germinando
Ser mente ali brotava...
Quietinho, covarde, esperando

O dia que não nascia,
A feira que já fervia
Na vida que começava.

AMIGOS FOREVER
(para Danillo Feitosa)

Em vários momentos
Tenho saudades de nossa amizade
Tranqüila, sincera
Que nada queria além do instante.
Eu sei não sou
O que fora anteontem
Passo como tudo me transformo.
A paz do universo confidencia
Que as cores em lindas melodias
Desenham toda unidade
Comigo, contigo, contudo...
Espero não ter perdido
Sua amizade.

CANÇÃO DO EXÍLIO

Pátio vazio, olho o gradil
Meu Deus! estou preso!
Pior que cadeia,
Preso em mim mesmo!
Nem tenho direito
A um raio de sol
Que ilumine este pátio,
Que aqueça este peito.
Que me deixe sem jeito
De tentar esconder
Todo meu preconceito
Por não ter aprendido
O real, irreal sentido
Dessa magia, viver.

BLEFE

Não me atrevo
A ser apenas
O que desejo

Escrevo.

Nem admito
Escrever somente
O que sinto

Minto.

DISTRAÍDO

Olhava os pássaros
Procurando caminhos
Enquanto meus passos
Pisavam seus ninhos.

DEMASIADO HUMANO
 

Precisamos de um Deus
Que nos una
Precisamos de um Deus
Que nos ame
Precisamos de um Deus
Que nos puna
Precisamos de um Deus
Precisamos
Mesmo que seja Um
Que nós próprios
Inventamos.

POETA

Todo dia amanhecia verso
Toda vida gostara do outono
Toda noite dormia certo
Não morreria
Enquanto houvesse um sonho.

ENGANO
 

Não sou profeta
Nem vagabundo
Sou um poeta
A caminhar no mundo.

Não sou religioso
E nem ateu
Sou um homem
Que se acredita deus.

Na realidade sei
Que nada sou
Nada serei

Além do engano
De querer ser
Mais que humano.

EU TE AMO!

Meus olhos gritam
O que teus lábios
Teimam silenciar.

CIÚME
 

Olhando para o que não lhes pertence
Meus olhos choram uma dor
Que não deveria ser minha.

ECO

Amor difícil caminho
Eu digo rosas
Você repete espinhos.

MESTRES

Lábios
Dois sábios
Quando mudos beijam.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Caçar com velas

Poucas, as pessoas cuja vida tenha deslizado serena sempre, como um dia de sol sem nuvens; raros, aqueles que viveram sempre ao abrigo da luta pela existência; e se esses, assim postos ao abrigo, por uma circunstância toda especial da fortuna ganha pelos seus progenitores, se esses, digo, fossem de momento lançados àquela luta, provavelmente nela sucumbiriam, por entrarem na liça muito tarde, sem preparo algum nem o hábito da peleja e dos seus rigores nem da utilização das próprias faculdades.

A necessidade é uma grande mestra, e é sempre preferível que os homens moços aprendam com ela.

Houve um tempo em que eu cacei - não como amador, por simples recreio - mas por necessidade, para ganhar a vida, como negócio, em suma. É claro que não ia perder as minhas horas a espera de preás nem tuto-tucos, nem tampouco a levantar bem-te-vis ou pica-paus. Nada: procurava caça redonda, de poder até fazer fortuna com da, pois já não podia atender às encomendas que de toda parte me chegavam.

Cada dia mais avultavam os pedidos: os compradores pagavam à vista e sem regatear, por vezes, para ver-me livre deles, pedia preços loucos.., nem assim! É que eu tinha uma especialidade! -mas que especialidade! - só, somente vendia peles de onças, muito bem tiradas com rabo, cabeça e garras — tudo perfeito, sem um talho, sem um furo, sem um buraco!

Todos podem matar - e alguns, matam - onças a tiro, como eu; mas por melhor que seja esse atirador, ele estragara – sempre - o couro da presa, porque usa balas ou balins ou, pelo menos, chumbo grosso. Eu, não: só empregava... Esperem um pouco.

Parece até que tomava a minha caça em arapuca, inteirinha, sem um arranhão, e esfolava-a tranquilamente, como se depenasse um perdigão.

Era isso o que encantava os compradores dos meus couros... de onças.

Vários bisbilhoteiros acompanharam-me ao mato para verem o meu sistema; deixava-os ir, convidava-os mesmo, porém despistava-os facilmente. Como conhecia os paradouros das onças, encaminhava-me para lá. Afoitamente. Assobiando. Mal os bichos pressentiam a aproximação de gente, principiavam a urrar, já assustados, mas para assustar'...

Eu, então, para fingir medo, punha-me em altos brados, a chamar pelos tais fulanos... e quanto maior a gritaria, mais urravam as onças e... mais fugiam os bisbilhoteiros! Então ficava só em campo, ou antes, no mato, muito a meu gosto.

Outros, invejosos, diziam que eu tinha um - breve - contra onça; outros, que rezava a oração de São Cogominho, que é muito forte contra os perigos do mato. Diziam, porém tudo pura invenção.

O meu segredo era simplíssimo.

Como se sabe, é o homem o único animal capaz de respirar pela boca; todos os demais bichos respiram unicamente pelas ventas: quem lhas tapar, mata-os. Fiz centenas de verificações, por isso afirmo. E mais, todo o bicho preso pelo focinho é bicho dominado. Veja-se o touro, por bravo que seja, uma vez tendo uma argola passada nas ventas, já está dominado, o potro, com um cachimbo bem passado, está entregue; e assim outros.

Foi partindo desta certeza que pus em prática o meu processo, mesmo porque naquela época eu não tinha ainda descoberto minha futura famosa essência - de cachorro - que tão notáveis vitórias granjeou-me. Quando ia para o mato levava duas espingardas - das marrequeiras — de carregar pela boca, e de munição de guerra apenas espoletas, pólvoras e buchas. E em vez de ......     espere um pouco!

No que descobria a onça, fazia barulho, assanhava-a! Ela pulava, encastelava-se numa forquilha de qualquer árvore, agitando a cauda lambendo as barbas, miando rouco, afiando as unhas... Eu, parava-me bem em frente - que e a regra - porque se você dá costas, a onça pula-lhe em cima, e, adeus! era um dia...

Carregava a marrequeira com a sua espoleta, sua carga de pólvora e uma bucha, de sabugo de milho; depois então é que metia a... Espere um pouco!

Mas não despregava os olhos da fera. De tal forma a gente acostuma-se a estes perigos que chega a carregar a arma simplesmente pelo tato e pelo ouvido. Quando estava preparado enfiava na mira a racha do focinho da onça, e pum!

O bicho recebia a carga bem nas fuças; roncava, sufocado, e vinha ao chão, tonto, inconsciente, mortalmente batido, com as ventas entupidas e com o atilho pendurado no focinho. Lentamente corria, por ele amarrava a fera a qualquer ramo e já carregava a segunda espingarda - pra dar à primeira o tempo de esfriar - e assim, ia-me à segunda. terceira, sétima onça, etc.

Caçado o número marcado, sangrava cada uma e tirava-lhe o couro, sem um talho, sem um furo, um buraco: perfeito, sem avaria! Em lugar de balas eu comprava velas de sebo, já preparadas pelo calibre das armas em cada ponta do pavio ia preso um forte anzol.

Com o calor da pólvora, no tiro o sebo saia derretido, e dando bem pela frente nas ventas da onça, entrava por elas a dentro, enchendo-as e entupindo-as; a fera mesmo espirrando não mais podia expelir aqueles batoques, que, endurecendo, asfixiavam-na.

O pavio também seguia o seu caminho: um dos anzóis fisgava certo, no focinho; o outro quase sempre pegava na língua, outra vez numa das beiçolas ou no céu da boca... e cravava-se fortemente. Assim, firmado pelas duas pontes, o pavio formava uma alça.
O.........
A.........

Nem é preciso explicar.

As coisas mais simples são sempre as que parecem mais difíceis. Desvendado, o meu segredo é como o ovo de Colombo; agora todos dizem:

— Ora, que milagre!... Assim, Romualdo, assim, eu também faço!
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continua… mais casos

Fonte:
Wikipedia