domingo, 22 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Um Passarinho)

Viviam numa casa de campo Mateus e Maria. Às vezes ela o chamava de velho, quando ele dizia ou praticava tolices. No entanto, esta história teve início assim: Um gavião ia ao encalço de um passarinho. Na busca de salvação, a caça desceu mais e mais e avistou uma casa. Voavam sobre as copas das árvores, quase a tocá-las. E se a casa estivesse fechada? Arriscaria entrar por uma brecha da porta ou de uma das janelas e, assim, escaparia das garras do predador. A casa se aproximava mais do coitado. Entretanto, as janelas pareciam escancaradas. Logo, o gavião também invadiria a casa. Voava o passarinho já quase sem forças. O pio agudo do gavião soava nos ares. Não havia outra saída, quer dizer, outra entrada, a não ser a janela. Súbito o choque, a dor, o desmaio. Havia um vidro na janela.

Em outra ocasião, Mateus contou a história assim: Perseguido, assustado, em busca de abrigo, ninho, comida (suposições), ofuscado pela luz do Sol, pela neblina (não lembrava mais a hora e a estação do ano), um passarinho esbarrou no vidro de uma janela. O ruído provocado pelo encontrão despertou o dono da casa. Seria ladrão quebrando o vidro? Pedra jogada por moleque? Cauteloso, dirigiu-se à janela. Não, o vidro permanecia intacto, apesar de maculado de sangue. Olhou para o lado de fora: Nem ladrões, nem moleques. No chão, ao pé da janela, agonizava um pássaro. Chamou Maria. Precisava de ajuda.

A mulher contava a segunda parte da história de outro modo: O vento açoitava portas e janelas, em prenúncio de chuva. Mateus passeava pela casa, inquieto. Aproximou-se da janela, a resmungar: “Essa ventania não para”. Maria queria ouvir notícias na televisão, saber de vendavais, furacões, tempestades, porém o vento atrapalhava e o marido não parava de grazinar. Sentia dor? Não, mas precisava de ajuda.

O homem correu até a sala, abriu a porta, aos gritos, e se precipitou no jardim. O pássaro se debatia, no chão. O vento zunia nas árvores. Formigas se acercavam do corpinho. Uma dúvida ocorreu de imediato: Abandonava a avezinha ou lhe dava socorro? À porta, Maria observava a cena e fazia perguntas. Acocorado, o homem levou as mãos ao chão e, com cuidado de pai, ergueu a criatura à altura do peito. O passarinho piava sem parar.

Para Maria, mal se aproximou da ave, Mateus se ajoelhou e, quase a chorar, se pôs a dar consolo ao moribundo. Acolheu-o nas mãos, ergueu-se e voltou para casa, a perguntar pela gaiola. Tempos passados livrara um pássaro mantido na prisão. E a gaiola, por que não a destruiu? Porque não havia mal nenhum nela. Mal havia no aprisionamento de pássaros.

A mulher buscou a gaiola e, às pressas, a depôs aos pés do homem. Não, antes de aprisionar o passarinho, urgia fazer-lhe curativos, dar-lhe alpiste. Onde achar alpiste? Servia qualquer comida: Arroz cozido, banana, água. Dias e noites de cuidados. Acordava assustado: Teria morrido a avezinha? E se o gavião voltasse, disposto a rematar a caçada? Maria se irritava. Fosse cuidar da casa, do jardim.

Nunca mais apareceu o rapinador, e o passarinho sarou, cresceu, cantou. O homem se animava, a rezingar: Filhos e netos precisavam ver a ave. Maria se agastava: Os filhos precisavam cuidar de si mesmos e dos próprios filhos; os netos careciam de brincar, estudar, viajar. Passarinhos gostavam de matas, liberdade. Soltasse o passarinho. Mateus cuidava cada vez mais do prisioneiro.

A mulher contou o último capítulo da história assim: O velho fez questão de convidar filhos e netos para um almoço. A casa vivia tão sem graça, silenciosa, sossegada! Necessitava de gente, barulho, vida. Não se acostumava a viver sozinho com Maria.

Para Mateus almoços e jantares significavam alegria. Saudades dos tempos de infância dos filhos. Naquele tempo tudo, até o choro dos meninos, terminava em riso.

Naquele almoço de fim de vida, Mateus serviu o passarinho aos filhos e netos, como se servisse arroz, feijão, legumes.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem = http://www.fotosdahora.com.br

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 11 – 20 de janeiro de 1887

Cousas que cá nos trouxeram
De outros remotos lugares,
Tão facilmente se deram
Com a terra e com os ares,

Que foram logo mui nossas
Como é nosso o Corcovado,
Como são nossas as roças,
Como é nosso o bom-bocado.

Dizem até que, não tendo
Firme a personalidade,
Vamos tudo recebendo
Alto e malo, na verdade.

Que é obra daquela musa
Da imitação, que nos guia,
E muita vez nos recusa
Toda a original porfia.

Ao que eu contesto, porquanto
A tudo damos um cunho
Local, nosso; e a cada canto
Acho disso testemunho.

Já não falo do quiosque,
Onde um rapagão barbado
Vive... não digo num bosque,
Que é consoante forçado,

Mas no meio de um enxame
(É menos mau) de cigarros,
Fósforos, não sei se arame;
Parati para os pigarros;

Café, charutos, bilhetes
Do Pará, das Alagoas,
Verdadeiros diabretes,
E outras muitas cousas boas.

Mas a polca? A polca veio
De longas terras estranhas,
Galgando o que achou permeio,
Mares, cidades, montanhas.

Aqui ficou, aqui mora;
Mas de feições tão mudadas,
Que até discute ou memora
Cousas velhas e intrincadas.

Pusemos-lhe a melhor graça,
No título, que é dengoso,
Já requebro, já chalaça,
Ou lépido ou langoroso.

Vem a polca: Tire as patas,
Nhonhô! — Vem a polca: Ó gentes!
Outra é: — Bife com batatas!
Outra: Que bonitos dentes!

—Ai, não me pegue, que morro!
— Nhonhô, seja menos seco!
— Você me adora? — Olhe, eu corro!
— Que graça! — Caia no beco!

E como se não bastara
Isto, já de casa, veio
Cousa muito mais que rara,
Cousa nova e de recreio.

Veio a polca de pergunta
Sobre qualquer cousa posta
Impressa, vendida e junta
Com a polca de resposta.

Exemplo: Já se sabia
Que esta câmara apurada,
Inda acabaria um dia
Numa grande trapalhada.

Chega a polca, e, sem detença,
Vendo a discussão, engancha-se,
E resolve: — Há diferença?
— Se há diferença, desmancha-se.

Digam-me se há ministério,
Juiz, conselho de Estado,
Que resolva este mistério
De modo mais modulado.

É simples, quatro compassos,
E muito saracoteio,
Cinturas presas nos braços,
Gravatas cheirando o seio.

— Há diferença? diz ela.
Logo ele: — Se há diferença,
Desmancha-se; e o belo e a bela
Voltam à primeira avença.

E polcam de novo: — Ai, morro!
— Nhonhô, seja menos seco!
— Você me adora? — Olhe, eu corro!
— Que graça! Caia no beco!

Desmancha, desmancha tudo,
Desmancha, se a vida empaca.
Desmancha, flor de veludo,
Desmancha, aba de casaca!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Airton Monte (Velho ao Telescópio)

Do sobrado via-se o quintal: verde, ondulado mar de goiabeiras, figueiras, bananeiras e o gorjeio dos pássaros ao fundo reinventando Bach. Os óculos na ponta do nariz dão-lhe um ar de velho carpinteiro. Falta-lhe apenas Pinóquio para ser Gepeto.

No centro do terraço, um pouco elevado em relação ao resto do sobrado, repousa um telescópio coberto por uma capa de lona. Todo o universo gira em torno desse objeto mágico, principalmente o telescópio, autor de maravilhosas alquimias: sonhos cansados de um homem velho que vai morrendo aos poucos envolto em estranho brilho.

A vida resume-se em atos tão simples como comer, dormir (não, não pode comer muito, o velho estômago ranzinza rezinga em demasia), sentar-se ao telescópio e ver os mundos.

Sim, por certo ver os mundos. Não somente olhar como se olha o sujo no canto da unha, o nó da gravata, a poeira que sobe do chão cheirando a chuva e abre os dedos magros no ar.

Isso passara a vida aprendendo. Tudo que lhe restara fazer. Mais nada antes ou depois. Quanto mais agora, que se achava prestes a despedir-se. Pensava com seus rotineiros botões: não sabia contar histórias. Fazer histórias era ocupação mais tola que não lhe cativava. Também, pra que criar, contar histórias? Não tinha netos a quem contá-las. O único filho há muito engolido pelo mundo sem qualquer notícia todos esses tristes, longos anos.

A mulher, coitadinha, quase cega pela catarata, caduca, pernas entrevadas, o dia inteiro na cama, as mãos desenrolando fios pesados do passado do carretel de lã jogado no assoalho.

O telescópio comprara faz trinta anos, na primeira e última viagem feita à capital. Mas o sobrado já existia há tanto, tanto, tanto tempo. Nele nascera e dentro do sombrio e austero casarão, criança ainda, vira morrer os pais no mesmo quarto onde alguns anos mais tarde juntara o corpo em frêmito ao de Cândida, então bonita e tão cheia de pudor. Ela atendia pelo doce apelido de Candinha e não tinha os dedos engrossados pelo reumatismo. A pinta negrazulada no ombro esquerdo que a camisola de branca renda realçava não era esta verruga eriçada de pêlos negros como o dorso de uma caranguejeira.

Onde depositar seu beijo mais doce? Sua carícia mais suave, louca fragrância perdida, delírio manso? Cotovelos no balaústre o olhar se aperta, a boca se franze num sorriso murcho quando lembra o filho miúdo, monstrinho enrugado, cara chocha, sumida entre as cobertas bordadas, o rosto cansado de Candinha banhado de felicidade naquela madrugada. Um filho, emoção mais súbita, brusca torrente solta pelo peito na alegria acesa das brasas dos charutos, no brilho borbulhante da champanha.

Depois, já homem feito, alto, magro, belo, Gonçalvinho indo estudar na capital, o trem desenrolando o futuro nos trilhos batidos de sol. Um belo dia a notícia: Gonçalvinho preso. O telegrama tremia-lhe nas mãos. Passou em claro toda a noite. Os dois, pois Candinha desfiou quilômetros de orações no rosário prateado, um com medo de olhar pro outro, Candinha rezando o terço em voz contrita.

Bem que avisara. Lendo todos aqueles livros de língua enrolada, os amigos esquisitos de ocultas conversas deslizando pelos botequins, pelos bares, pelos redutos das sofridas repúblicas de estudantes.

A longa peregrinação pelos amigos influentes, estendendo a mão num apelo mudo, o coração de pai exposto à piedade dos coronéis, deputados, até o filho ser solto finalmente. Vinha mais magro de volta do trem. Olheiras profundas, chega quase não se podia ver os olhos azuis. Mas, o brilho de seu olhar era o mesmo, a mesma fala apaixonada tentando explicar-lhe coisas que não compreendia muito bem, mas sentia o coração encolher, encolher até que não havia mais coração nem nada e no vazio do peito opresso medrava o fruto áspero do medo.

Súbito, o sumiço. Rápido, brutal, sem palavras, sem abraço último, beijo derradeiro na face barbada. Seis meses depois, chegou a carta com endereço de Paris. Breves palavras de um carinho vago e a sentença cortante:

“Pai, tudo bem comigo. Vou pra Espanha lutar pela liberdade. Não me queiram mal. Sua bênção. Do filho que muito lhe ama”.

A vida foi só isso. Dez palavras numa carta em papel azul que Dona Candinha trazia sempre fechada no cofre de pinho junto às poucas joias da família: colar de pérola, brincos de diamante, uma pulseira de prata mexicana.

No quarto ouve a tosse seca da mulher. De quando em quando um suspiro comprido, frase solta, gemido. Hoje os pardais estão tardando. Não gosta de sabiás. Lembra o filho pequeno armando arapucas na sombra da velha mangueira. No bolso do pijama o pão desfeito em migalhas tão inúteis na tarde. Por que não vêm os pardais? Foram pra Espanha também?

A frieza da tarde embaça os óculos. A mão trêmula esfrega lentamente o vidro espesso da janela. Não tem pressa. Não precisa ter pressa. Não tem nenhuma razão pra ter pressa. Portanto, apenas move lentamente os olhos circunvagando o espaço em volta. O telescópio no terraço. Céu bonito em volta. Pode ser que chova. Há pouco ouviu o grito das marrecas. Não gosta de chuva. As estrelas somem e ele fica preso no sem mundos, cada vez mais só.

Se o filho tivesse pelo menos na lua. Aguçando a vista um pouco quem sabe não divisava seu vulto entre os buracos do queijo? Diabo é que a Espanha é longe, do outro lado do mundo. A Espanha é muito mais longe que a lua. Dona Cândida conversa sozinha com seus fantasmas. Feliz dela, de nunca estar sozinha.

Muitas vezes ficara matutando, olho grudado na Ursa Maior; quem irá primeiro? Melhor que seja ela, pobrezinha. Assim não sofreria tanto. Se for ele primeiro, quem vai cuidá-la de noite? Fechar a janela se o frio aumentar? Lembrar do xarope pra tosse, do remédio pra asma? O chá de erva-doce, doces, tenros peitinhos de frango boiando na canja dada de colherinha na boca de menina velha? Quem lhe ouvirá as histórias mais bobas? Quem lhe trará a lã vermelha para o eterno sapatinho do filho?

A morte é uma coisa muito engraçada. Depois que a gente se acostuma com a ideia tudo fica mais fácil, indolor, destituído de mistério. Até o medo vai encolhendo, ficando do tamanho daquele sujo de mosca na vidraça.

Morrer deve ser bom. Quem sabe não vira pardal, pedaço de cometa, luz de meteoro, quinta ponta de uma estrela? Mas, quando não houver mais Dr. Gonçalves neste mundo de meu Deus, o que será do telescópio? Quem untará, numa carícia de noivo, suas juntas entorpecidas de animal mitológico, raspando a ferrugem com punhados de bombril? Que olho substituirá seu olho por trás da lente arranhada? Ou simplesmente não haverá mais pupilas sonhadoras rastreando mundos no fim de cada tarde?

Podem até demolir o casarão, vender o telescópio como ferro velho, objeto de antiquário, ou simplesmente deixá-lo apodrecer em qualquer sótão, esquecido, vazio de mundos, coberto de sujo, o tripé de madeira trabalhada todo roído pelo dente fino dos ratos.

Ergue a lona devagar como se despisse uma mulher. Como se trocasse as fraldas, madrugadinha, de um bebê. A primeira gota cai na ponta do nariz. É enorme e brilha nas sete cores do arco-íris. Repõe a lona depressa com cuidados de mãe. Ri do pensamento avariado. Pode pegar um resfriado. Resfriado. Como se telescópio fosse capaz de sentir essas tais coisas frágeis de gente humana. Telescópio não é besta não. Não é à toa que ele sempre vê mais longe, vencendo o olho humano.

Entra, corre a porta de vidro e fica olhando a chuva cair, monótona e dolorida.

– É, com esse tempo assim pesado, bem capaz de não vir nenhum pardal.

 (Airton Monte, Homem Não Chora)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Airton Monte

Antônio Airton Machado Monte (Fortaleza, 1949) é médico-psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará; cronista do jornal O Povo, mas essencialmente poeta e contista. Iniciou-se na revista O Saco, onde publicou contos. Foi um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura. Estreou, no gênero conto, com O Grande Pânico (1979), seguido de Homem não Chora (1981) e Alba Sanguínea (1983). Tem inédito Os Bailarinos. Participou de algumas antologias: Queda de Braço: uma antologia do conto marginal, Os Novos Poetas do Ceará III, Antologia da Nova Poesia Cearense, Verdeversos e 10 Contistas Cearenses. Publicou também a coletânea de crônicas, selecionadas de sua coluna de jornal, Moça com Flor na Boca (1ª. Edição, Fortaleza: FUNCET, 2004; 2ª. Edição, Editora da UFC/Coleção Literatura no Vestibular, 2005), além do livro de poesia Memórias de Botequim (Fortaleza: edição do autor, 1979), que venceu o Prêmio Governo do Estado do Ceará em 1979.

Em O Grande Pânico são visíveis a olho nu três histórias essencialmente metafóricas. Toda história é uma metáfora. Uma ou mais. Porque toda leitura implica uma interpretação. Ocorre o contrário geralmente com as obras consagradas pelos críticos. Na verdade, uma metáfora pode ser mais ou menos perceptível. Assim, existe em razão da ótica do leitor. Em “A Última Noite” até a personagem principal tem nome simbólico – Cidadão. É o homem diante do medo coletivo de desobedecer a norma ou o costume. Alguém tem de se fazer ovelha negra e pintar a casa de azul, numa sociedade em que o costume impõe o cinzento. Cor de cárcere, de prisão. O azul simboliza o firmamento, a vastidão, a liberdade. A atmosfera é nitidamente kafkiana nesse conto.

O traço marcante do livro, no entanto, é outro: o drama do homem suburbano, do marginal, da “gente chinfrim, ralé miúda”. Na mesma categoria estão os loucos, os alcoólatras, as prostitutas pobres, os pivetes, os fracassados de todo o gênero. Embora pertencendo todos ao mesmo mundo, ao mesmo espaço marginal da sociedade, existe uma espécie de muralha a separá-los. De um lado estão os profundamente angustiados, os candidatos ao suicídio, os identificados como loucos, e são personagens-narradores. Seus discursos não chegam a constituir histórias, embora o contista afirme “que o homem é um ser sedento de ouvir histórias”. Falam sempre de seus medos (“sou somente um amontoado de medos”, em “Os Gritos Circulares”) e de seus desesperos (“O barco vai afundar”, em "Diário de Bordo”).

Quase todos os contos do livro são histórias bem contadas, dessas que o homem sempre gostou de ouvir, sem hermetismos e sem rebuscamentos de linguagem. Não quero dizer histórias pobres, meros “causos”. Pelo contrário, algumas delas chegam a arrepiar, a causar assombro, de tão magníficas. Assim são “Manuel Lombinho”, “Domingo, Futebol e Cachaça” e “Ave Noturna”, sem as quais qualquer antologia brasileira de contos poderá ficar capenga.

A primeira delas, assim como “Mulher Só”, parece capítulo de romance. Os personagens são os mesmos: o mascate Manuel, a puta Laura e Urucungo. Não só isso: a vidinha miúda de um arraial onde prosperam os coronéis e seus lacaios e onde se aviltam na miséria as putas, os corcundas, os deserdados em geral.

Em “Da Angustiante Espera Causada por um Simples Fenômeno Celeste” há uma história subjacente. Ela emerge como música-de-câmera, misturando-se às pequeninas histórias contemporâneas de cada personagem. É a história do eclipse prestes a acontecer. Então a vida gira em torno do fenômeno celeste, como se sem ele nada de novo pudesse acontecer a um e a outro personagem.

Alguns contos poderiam estar fora do livro: “Fábula algo Engraçada”, “Cotidiano” e “Pega o Ladrão”. Os próprios títulos os denunciam. O primeiro é uma historiazinha de pivetes, embora não lhe falte beleza poética. O outro pode ser considerado apenas a reunião de quatro historietas cujo tema é a  morte. O terceiro, embora sátira do sentimento de insegurança individual na cidade grande, não passa de história algo engraçada.

Proposital ou não, Airton Monte cometeu um deslize – o de utilizar duas vezes a mesma ideia poética, a mesma figura, quase a mesma frase. Em “Os Gritos Circulares” escreveu: "dentro da mala o passado dobrado em dois como uma calça velha”, e na última história: “na mala surrada a vida dobrada em dois como uma roupa usada”.

Encerra o volume um conto longo, positivamente fragmentos de um romance: a quarta parte do livro. Vale como história curta, mesmo dentro da concepção do contista.

Apesar de tudo, O Grande Pânico faz de Airton Monte não apenas um criador, mas um escritor que sabe manejar a palavra, até mesmo o adjetivo.

Esse mundo à parte, que habita os diários sensacionalistas, os bares, os cabarés, as ruelas escuras, os subúrbios, os manicômios, é, na verdade, um mundo dividido em si mesmo.

Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.

Airton Monte aproxima-se mais do ficcionista revelador do que do falso criador. Como Dostoievski. Delineia a psicologia dos tipos descobertos. Como Machado de Assis. Veja-se Felizbelo. E quase todos os personagens de Homem Não Chora. Seres humanos desesperados no amor impossível, em “O Enforcado”. Farrapos humanos que teimam em viver ou perdem toda e qualquer esperança. Cegos, mendigos, prostitutas decaídas, cornos, devoradores de moscas, tarados, velhos, solitários, assassinos arrependidos e idiotizados, loucos, como Berta, todos loucos, pois a loucura não é senão sentir-se sem rumo, sem esperança, sem saída.

Apaixonado pelas pessoas, Airton Monte apaixona-se também pelas suas personagens. A umas dedica a mais mordaz antipatia. E as torna feias, monstruosas, irracionais. De outras, sente a mais santa piedade. Por serem também miseráveis, criaturas sem eira nem beira, catrevages de carne e osso. Mesmo quando o personagem-narrador se identifica com ele, quando narrador e protagonista se confundem, e o texto se transforma num choro de bêbado, num grito de aflito, num discurso de angustiado.

O narrador, como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver. Nunca verão Felizbelo. No entanto, Airton Monte o viu, porque o procurou, o descobriu, o revelou. Delineou-o por dentro e por fora, feito um deus.

Não se revela o homem, porém, com a linguagem jornalística, seca, sem vida, sem paixão. Pois a linguagem de Homem Não Chora é poética, ritmada, ondulante, viva, apaixonada. Como no conto “Velho ao Telescópio”, talvez um dos mais poéticos e inventivos contos da literatura brasileira.

É quase certo tenham sido os contos reunidos em Homem Não Chora escritos ao longo de alguns anos. Nuns, o contista parece deixar com que as palavras se esparramem sobre o papel, como numa confissão, numa elegia, num pranto poético. Noutros, se adstringe a um enredo e faz narrativa. É o caso de “Atrás de Cada Porta Tem um Sonho”. Aliás, o mais longo do livro. E, como no primeiro livro de Airton Monte  – O Grande Pânico –, alguns contos são profundamente metafóricos, repletos de simbolismos. Em “Os Mercadores” vislumbra-se a importância da tragédia grega na sua formação. Em “O Sábio Haroldo” os personagens se locomovem num ambiente kafkiano, que tanto pode ser um asilo de loucos como uma micro sociedade totalitária, onde se fabricam loucos, feras ou simplesmente se adaptam indivíduos a uma brutalidade instituída. E desde o lar, passando pela escola e chegando ao local de trabalho, o que tem sido a nossa sociedade?

Um dos contos mais estranhos do livro intitula-se “Pequeno Interlúdio para o Desespero”. E por que estranho, se todo o livro é isso que diz esse título? O tempo parou para Maria. De repente todos os de sua casa viraram estátuas. E também ela. Esse conto vale por todos os protestos e gritos feministas.

Em outras histórias do livro encontramos situações igualmente estranhas, a exigirem do leitor reflexões mais demoradas. Num deles o contista fala mais metafisicamente do homem: “Compreende, afinal, e quase fica louco, que existem vitrines separando as pessoas entre si e somos todos manequins se olhando em silêncio, impassíveis testemunhas e cúmplices.” (“Vitrines”, p. 14). De uma simples atitude, embora própria de um alienado, revela Airton Monte um tipo e, a partir dele, discute a condição humana. Em apenas duas páginas.

Incrédulo diante do homem, o contista vasculha as vísceras de uma sociedade embrutecida e revela criaturas que os mais crédulos pensavam existirem apenas no reino da fantasia. Embora o cachorrinho de madame de um dos contos pareça mais mitológico do que real. Nele Airton Monte se revela um criador. Ou um recriador, porque nem assim se confunde com os falsos criadores, os que nunca viram de perto, de bem perto, o ser humano.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 7)

 Este é um país fascinante,
produto de muitas mãos.
– Aqui, nativo e imigrante
parceiros somos, e irmãos!
A. A. DE ASSIS – PR

Arquivei na minha mente
lendas que trazem saudades,
e eu as vivo, simplesmente,
como se fossem verdades.
ADEMAR MACEDO – RN

Paquerador, mas casado,
da aliança faz segredo.
Sai por aí, o safado,
com um “bandeide” no dedo.
ADILSON DE PAULA – PR
 

Eu canto no triste encanto
saudades do teu amor,
porém se ouvires meu canto,
eu peço graça ao Senhor.
AGOSTINHO RODRIGUES - RJ

Morre o sonho, e as nossas vidas,
antes, caminhos iguais,
são duas trilhas perdidas
que não se cruzam jamais.
ALBA CHRISTINA C. NETTO – SP

Nestas ondas espumantes,
onde pesquei meu sonhar,
eu sou pescador de instantes,
nos encantos que encontrar.
ALZIRA DALL’ AGNOL – SC
 

Relógio, fique parado!
Não deixe o tempo passar...
Eu quero ser enganado
quando a velhice chegar!
AMÁLIA MAX – PR

Se amamos todos a vida
(ninguém deseja ser morto...),
que estupidez essa lida,
dos que defendem o aborto!
AMILTON MACIEL MONTEIRO – SP

Mulher é sopro de vida,
é brisa terna e envolvente,
aragem leve, sentida,
roçando o corpo da gente.
ANTÔNIO MANOEL ABREU SARDENBERG

Das rosas do meu jardim,
Maria sempre a mais bela…
Perfuma mais que o jasmim,
Que floresce em torno dela!
APOLLO TABORDA FRANÇA – PR

A criança é flor mimosa,
desabrochando pra vida,
e traz o encanto da rosa
já orvalhada e florida.
ARLENE LIMA – PR

Ceará terra da Luz,
de homem forte, bem valente,
o seu coração reluz,
planta do amor, a semente.
CÁRITAS  SOUZZA - CE

Dios nos dio sabiduría
para poder ben vivir...
siempre con paz e alegría
para dar e compartir...
CARMEN PATIÑO FERNÁNDEZ-ESPAÑA

Ainda bem que tenho os meios
de não ficar tão sozinha:
desenho e bordo, abro e-mails,
faço versos na cozinha...
CLEVANE PESSOA –  MG

Ó velhice, eu que temia
que chegasses de repente,
vivo em tua companhia,
sem notar que estás presente!
DELCY CANALLES – RS

Não pule do trem do tempo
em desembarque apressado.
Viaje sem contratempo
e não pare adiantado.
DINAIR LEITE – PR

Trago um sonho pequenino
Guardado dentro do peito
Que é morar sempre um menino
Neste corpo de homem feito...
DOMINGOS CARDOSO – PORTUGAL

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes,
pescam nosso coração!
EFIGÊNIA COUTINHO – SC
 

Pescador mais esportivo
deixa seu peixe escapar,
melhor solto que cativo,
para assim o preservar.
ELIANA RUIZ JIMENEZ – SC

Confirmando as suas lendas,
por capricho, o velho mar,
cobre as areias de rendas,
quando a praia, vem beijar...
FABIANO WANDERLEY – RN

No teu regaço dormi...
Como em cama de jasmim
Foi no teu sonho que eu vi,
O quanto gostas de mim!
FERDINANDO FERNANDES – PORTUGAL

Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – RS
 

Eu vou trilhando esta senda
tão difícil da poesia,
e nela quero ser lenda,
eis meu "sonho  fantasia"!
FRANCISCO NEVES MACEDO – RN

Nos lençóis brancos, macios,
de nossa cama deserta,
o tempo desmancha os fios
da minha pobre coberta.
GISLAINE CANALES – RS


Cristo, o maior pescador,
pescou peixes, pescou almas,
resgatou do mundo a dor,
em manhãs belas e calmas!
GLEDIS TISSOT – SC

O bilro, velho instrumento,
que entrelaçou tantas rendas,
tece, agora, num momento,
as rimas de minhas lendas.
IEDA LIMA – RN

Nem sempre a felicidade
vem da vitória ou da fama;
pode estar numa saudade
ou nos olhos de quem ama!
JEANETTE DE CNOP – PR

Mesmo vencendo a contenda,
e os medos da tenra idade,
o lobisomem é a lenda
que vive em minha saudade!
JOAMIR MEDEIROS – RN

Poeta, és  velho coreto
onde, na noite estrelada,
teus sonhos fazem dueto
com a voz da  madrugada...
JOÃO PAULO OUVERNEY – SP

Mais do que fadas e mitos,
num cenário encantador,
tenho sonhos tão bonitos,
que viram lendas de amor!
JOSÉ LUCAS DE BARROS – RN

Vinho e uva de montão
morro abaixo, morro acima
não estranhe, amigo, não
é a festa da vindima
JUSSARA C. GODINHO – RS

La noche se hace plateada,
mientras la samba yo danzo,
y a la luna apasionada,
un dulce mirar yo lanzo.
LAURA ROJAS – CHILE

¡Que bueno es ser tu amigo!
¡Ser tu amigo , que te adora!
Por eso tus pasos sigo
¡linda y bella Trovadora!
LEONARDO HUERTA – MÉXICO

Num tropel de evoluções,
a lua, no céu, galopa,
entrelaçando bilhões
de áureas estrelas em tropa!
LISETE JOHNSON – RS
 

Lá vai o bom pescador
por esses mares desertos,
lá vai ele, o sonhador,
pescando em  portos incertos!
LUCAS BARBOZA – SC

Era sonho, se desfez,
se desfez minha ilusão;
restou-me a insensatez,
cinzas quentes da paixão.
MANOEL DANTAS – RN


Tempo que reparte a vida,
 faz o meu destino assim:
 Vida é lenda dividida...
 Parte é começo, outra é fim!
MARA MELLINI DE ARAÚJO GARCIA – RN

La amistad me dio la vida
las ansias de libertad
a compartir nos convida
y a los sueños despertad.
MARIA CRISTINA FERVIER – ARGENTINA

Para a alma aliviar
na dor, conflito, paixão,
a lágrima acalma o olhar;
um poema, o coração!
MARIA ELIANA PALMA – PR

Papai Noel, eu queria
Que sempre em cada Natal
Trouxesses mais alegria
ao Brasil e a Portugal.
MARIA JOSÉ FRAQUEZA - PORTUGAL

Pelas ruas, no passado,
nos realejos risonhos,
o periquito amestrado
passava vendendo sonhos.
MARINA DE SOUZA VALENTE – SP

Se o mar da vida, tristonho,
faz meu sonho naufragar,
iço as velas de outro sonho
e outra vez volto p'ro mar!
MARISA VIEIRA OLIVAES – RS
 

Todo cão é prestativo
um amigo verdadeiro,
com o seu dono, é festivo,
efusivo companheiro.
MIFORI -SP
 

A primavera, suponho,
que tendo sonhos de amor,
faz, sim,com que cada sonho
nasça em forma de uma flor.
MIGUEL RUSSOWSKY – SC

Sonhar é o jeito mais certo
de dar um passo gigante:
o sonho traz para perto
o que parece distante.
MILTON SEBASTIÃO SOUZA – RS

Chamou-me de bela flor,
mexeu na rede emoção,
transformou-se em pescador
e pescou meu coração!
MIRIAM WEBER –SC
 

Luiz Otavio, no infinito,
em sua estrada já traçada,
nos ensina quão bonito
é uma trova declamada!
NEI GARCEZ – PR
 

Meu coração é um gigante,
que guarda muita emoção,
e nele tem habitante,
guardado com devoção.
NEIVA DE SOUZA FERNANDES – RJ
 

Há na mente da criança
um ideal tão fecundo,
que toda desesperança
torna-se lenda no mundo.
PAULO ROBERTO DA SILVA – RN

Primavera é foto linda,
de uma infância toda em flor;
parece que nunca finda
a primavera do amor!
PROF. GARCIA - RN
 

Aquele que firme avança,
sem receio de fracassos,
mantém consigo a esperança
levando o sonho nos braços.
REGINA CÉLIA DE ANDRADE – RJ
 

Não há nada que retalhe
os poemas que componho,
pois cada verso é um detalhe
do tamanho do meu sonho!
RENATA PACCOLA – SP

O sonho mais belo e ardente
da minha infância querida
virou cinzas, de repente,
nas fogueiras desta vida!
RENATO ALVES – RJ
 

A Natureza hoje chora
a cruel devastação
que faz o verde ir embora
e veste de cinza o chão !…
SONIA MARIA DITZEL MARTELO – PR
 

A vitória que se alcança
tem lição para ensinar.
– Não fique na praia mansa,
saiba as ondas enfrentar!
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – PR
 

Navegam os trovadores
em e-mails de ilusões,
computando riso e dores,
conectando as emoções!!!
VÂNIA ENNES – PR

Paolo Ricci (Juliana)

Foi num destes fim de semana deste Ano Santo, a aproveitar o sossego de Salinas sem veranistas, buzinas e cantar de pneus pelas madrugadas, que ela apareceu enxerindo-se em nossas vidas.

Uma cadela preta, pobre vira-lata sem donos, sem dengos nem vacinas, mas bela no seu porte esbelto, de pelo bonito mas sem trato, a atestar a irônica verdade de que até para nascer cachorro é preciso ter sorte.

Fez-nos festas como se nos reconhecesse por donos e aboletou-se casa a dentro, confraternizando com o pequinês de "pedigre", a mendigar agrado e um prato de comida, entre a oposição da mulher que não queria cão vadio e sabe lá raivoso dentro de casa, e a afetividade dos meninos que logo lhe deram nome: "Juliana".

Que é isso, meninos? Então, colocar nome de gente em cachorro, e logo nome bonito, de rainha, até? Mas, o nome ficou e calhou-lhe bem que, "Juliana" vira-lata, sem tratos e enteada da sorte, tem porte de imperatriz.

E, suprema ironia, num mundo de ódios, agressividade e violência, onde homens quase latem, rosnam, mordem e atacam, "Juliana" fez-se mensagem de mansidão, de amor e afetividade, a pedir e dar atenção, com suas patas como que amestradas para isso, que se estendiam dóceis e elegantes a nos roçar o corpo, a fazer correr outros cães vadios que se aproximavam de casa, a latir de noite, diligente e vigilante, a nos acompanhar à praia, sob protestos da mulher, aos quais a pobre cadela, de pelo belo mas sem trato, fazia ouvidos moucos.

À partida, "Juliana" deixou em nossas retinas e nossas mentes uma vaga lembrança de tristeza e nos corações dos meninos um preciso sentimento de saudade.

E, em todos os fins de semana, deste Ano Santo, "Juliana". A cadela sem tratos e sem donos parecia adivinhar nossa chegada. Momentos após invadia a casa a pular, pesada, em nossos peitos, a distribuir agrados e afeto.

No último fim de semana ali passado, "Juliana", cadela sem tratos e sem donos, sem dengos nem vacinas, foi trazida pelos meninos ante a "Xereta", para o registro colorido de um momento de sossego e tranquilidade.

Dentro da nossa atual cultura, onde o escopo do homem é a competição agressiva, a ânsia de prestígio, classe, *'status", poder e riqueza, certas coisas não fazem sentido, como dar atenção e tecer loas a vira-latas sem donos, sem vacinas nem "pedigree".

Mas, para os que nao perderam o sentido de beleza e de poesia, ver "Juliana" dentro da natureza ampla e luminosa, a correr livre e solta pela praia, espadanando águas e varando o vento, a chamar nossa atenção e divertir-nos, ela deixa de ser a cadela vira-lata, sem tratos e sem dengos, sem classe e sem vacinas, para transformar-se aos nossos olhos em uma lembrança de paz é imorredoura magia e encanto.

Fonte:
Antologia da Academia Paraense de Letras. Poesia & Prosa. Belém/PA: Cultural CEJUP, 1987.

Paolo Ricci (1925 – 2011)

Paolo Ricci nasceu em Lucca, na Itália, em 08 de setembro de 1925 e faleceu em 08 de maio de 2011 em Belém do Pará.

Foi cronista, poeta, romancista e artista plástico de expressão internacional.

Integrou a Academia Paraense de Letras (APL) desde 21 de outubro de 1980, ocupando a cadeira de número 19.

Seus pais vieram da Itália morar em Rio Canaticu, na Ilha do Marajó, ainda na época áurea da borracha.

Graduou-se em Direito, estudando em Belém do Pará, colaborando com jornais paraenses da época como “Folha do Norte” e “A Província do Pará”.

Tendo demonstrado desde a infância forte tendência para o desenho   e desejando, ainda menino, aprender pintura, era desestimulado pelos pais que consideravam as artes como "coisas mortas", sem utilidade prática. Em novembro de 1950 recebeu sua primeira aula de pintura realizando um "d'aprés" no salão onde expunha, em Belém, o artista    holandês Wín Wan Dijck. Incentivado a continuar, prosseguiu auto didaticamente quando, em 1951. pintando a nave da Catedral de Belém, foi visto pelo grande interiorista Leonidas Monte, cearense radicado e ativo em Belém, daí em diante tornando-se amigo e discípulo desse artista. A partir desse ano também passou a contar com a orientação critica de Frederico Barata, com quem viria a trabalhar em "A Província do Pará", reinstalada pelos "Diários  Associados".

Em 1966, a convite do Governo dos E.E.U.U. de setembro a novembro visitou artistas. Academias. Museus, Universidades e Galerias de Arte em Washington. Filadélfia, Nova Iorque, Chicago, Búfalo, Oakland, São Francisco e Los Angeles, polemizando e discutindo problemas da arte contemporânea, confirmando o que escrevera Mário Cravo Jr. a seu respeito: "polêmico, preocupado basicamente com sua arte".

Integrou vários júris, inclusive o da Pré-Bienal de 1974, de São Paulo: foi membro de banca examinadora na Universidade Federal do Pará. proferiu inúmeras palestras sobre composição e outros temas, destacando-se a realizada em 1978, no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (uma sinopse sobre a História da  Pintura no Pará), por ocasião da coletiva "Artistas do Pará e Minas Gerais", na Galeria Rodrigo M.F. de Andrade, da FUNARTE,  da qual participou.

Pesquisador incansável das artes plásticas no Pará, organizou a exposição “Artistas Plásticos Paraenses do Século XIX” e o livro “As Artes Plásticas No Pará”. É citado pelo “Dicionário de Artes Plásticas” do Ministério da Educação como um dos mais importantes artistas plásticos do Brasil.

Publicações
Poesia – Riso dos Insanos, 2001;
Entre o espaço e o tempo, 2003;
Revoada de anseios, 2004;
25 Madrigais de Amor e Dor, 2004.

Fontes:
Projeto Memória da Literatura do Pará
– Antologia da Academia Paraense de Letras. Poesia & Prosa. Belém/PA: Cultural CEJUP, 1987.

Clevane Pessoa (Poema de Natal)

Dizem que altos anjos
Da Divina hierarquia,
Na verdade, casulos de luz
- Pura energia criadora
Desceram de outras dimensões
Para apreciar um nascimento
Muitíssimo essencial...

Dizem que flocos de neve
Caíram das alturas
Cada um mais especial
Com formas que jamais se repetiram...

Dizem que o ar ficou de tal maneira
Perfumado de rosas e jasmin
e embriagou os passarinhos
-Que mais docemente cantaram
E girandolando voejaram
Saindo a anunciar
O evento anunciado
Que acabara de acontecer...

Dizem que uma alegria intensa
Se apossou dos pastorinhos,
-Pensaram então fazer parte
Da corte de um certo rei
E se sentiram comovidos,
Não de ouro e prata vestidos
Mas vestidos de Alegria
E canções de ninar entoaram
Louvando a chegada do Menino...

E é por isso que até agora
Quando chega o Natal
Também vestimos a alma
De cores especiais
E a nossa voz se eleva
Para acima de qualquer treva
E desejamos a todos
Votos de tantas coisas
Boas de acontecer...

Quem disse? Quem contou
Essa história às pessoas aqui da Terra?
Ora, os bardos, com a Poesia
Dos que precisam de Luz
Dos que necessitam de esperança
E querem levar alegrias
Pelo menos uma vez ao Ano
Para que os homens não desistam
De renovar seus sonhos
E de aproximar os que sonham...

 ...E agora, plenificada
de Amor, quem vos reconta,
sou eu: no colar dos contadores
mais uma conta que conta

mais uma ponta que canta...

Fontes:
A Autora
Imagem = http://jardins-encantados.blogspot.com

Humberto de Campos (Vitória-Régia)

A canoa, puxada a quatro remos, descia o pequeno afluente do Amazonas, desviando-se, ligeira, das grandes manchas de plantas aquáticas que a correnteza preguiçosamente arrastava, quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada, começou a contar-me a mais formosa lenda daquelas ribeiras.

- Antigamente, meu senhor, este rio era limpo de toda sorte de aguapé, e de corrente tão clara que se podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandís, rabeando, no fundo, no grande leito da areia dourada. Nesse tempo, morava na cabeceira do rio, onde as águas são mais puras, um velho índio, o famoso Tauí, cuja filha, Jaciara, assim chamada por ser a senhora da lua, era, com os seus olhos mais negros do que o acapú, a mais formosa moça das redondezas.

O caboclo enfiou, de novo, o úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar, soturno, nas profundezas dágua silenciosa, e levantando-o, gotejante, continuou a narrativa:

- Um dia, voltando da caça, adivinhou Tauí, de longe, a presença de um estranho na palhoça que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre as folhas do chão, estava o pobre pai a poucos passos da porta de esteira, quando de lá pulou um homem, que desapareceu, de um salto, no seio da mataria.

Duas remadas ressoaram, de novo, profundas, no leito do rio, impelindo a canoa, e Tibúrcio reatou a história:

- Furioso com a traição da filha, o índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-a, e abriu-lhe, de lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito isso, enfiou no seu corpo as grandes unhas de tamanduá, e arrancou-lhe, sangrento, o coração ainda palpitante, que atirou, da porta da palhoça, à clara correnteza do rio.

Impeliu, mais uma vez, a canoa ligeira, fazendo roncar no seio da água o seu pesado remo de massaranduba, e rematou:

- Desde esse tempo, meu senhor, começaram a aparecer no rio estas verdes plantas errantes, cuja flor, alva como a lua, dorme no fundo das águas, e rebenta, à noite, com grande estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do seu perfume.

E apontando-me uma "vitória-régia" que descia, alva e enorme, nos braços cariciosos das águas, acrescentou, compungido:

- Olhe, lá vai uma. É o coração de Jaciara...

E impeliu a canoa, com força.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de bronze.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 10 – 10 de janeiro de 1887

Depois de férias tão longas;
Tão docemente cumpridas,
Ó musa, minhas candongas,
Voltemos às nossas lidas.

Assim faz a Pátria, às vezes,
E é certo que não estoura;
Descansa um mês ou dois meses
O nosso C. B. de Moura.

E a Pátria, meia enfadada
Daquelas extensas férias,
Volta mais fortificada
Aos combates e às pilhérias.

Eia, pois, minha gorducha,
Vê que recomeça a aurora,
Puxa daqui, puxa, puxa,
Vamos trabalhar lá fora.

E antes de tudo, inclinando
O gesto a todos os lados,
Vai a todos desejando
Plácidos dias folgados.

Desejarás uma boa
Vereança aos cariocas,
Que se não esgote à toa,
Em longas brigas e mocas;

Que eleja pacatamente,
Sem atos tumultuários,
O seu vice-presidente
E os restantes comissários.

Pouco calor, pouca chuva,
Nenhuma peste que assole,
Algum vinho feito de uva,
E menos gente que amole.

Grandes bailes mascarados
E passeatas nas ruas,
Câmaras de deputados
Sem as discussões tão cruas.

Boatos, sobre boatos,
De modo que quem passeie
Por esses bonds ingratos
Tenha cousa que recreie.

E mais que tudo, meu anjo;
Anjo meu do meu sacrário,
Desejo um bonito arranjo
Ao nosso estafado erário.

Não sei se leste a mensagem
De Cleveland, um documento
De americana homenagem
Lá, para o seu parlamento.

Pois conta-se aí (por esta
Luz do céu minh'alma jura
Que não é peta funesta,
Mas pura verdade, pura);

Conta-se que a renda é tanta
Que urge cortar-lhe os babados,
Que é demasiada a manta
Para tão vastos Estados.

Que, se vão nessa carreira,
Pagam aqueles senhores
Em breve a dívida inteira,
E ficarão sem credores.

Depois vem maior excesso
De renda, e será tamanho
Que não haverá processo
De o dar a melhor amanho,

Porque ou fica no tesouro,
Inútil, mudo e parado,
Ou saem carradas de ouro
Para os delírios do Estado.

Ora bem, estes fenômenos
Dados como desastrosos,
Terríveis paralipômenos
De grandes livros lustrosos,

Hás de pedi-los, amiga,
Mas pedi-los de maneira
Que uma segunda barriga
Coma sem dor da primeira.

Es decir, que aquela caixa
Que ronca de tanta altura,
Se quiser ficar mais baixa
Tem receita mais segura:

Pegue em si, tire metade
E verá como lhe pego,
Pego-lhe com ansiedade,
Com ansiedade de cego.

E digo ao Tesouro nosso
— Amigo, aqui tens dinheiro;
Precisas deles, aqui posso
Dá-lo às tuas mãos inteiro.

Vê tu que singular obra
A deste mundo peralta,
Geme um — pelo que lhe sobra,
E outro — pelo que lhe falta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

João Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) 1

Certa hora de pleno dezembro, por véspera do Natal, estava eu desassossegadamente abanando os mosquitos, quando, por mão de alto e grave sujeito, chegou-me um pacote, atado em cruz por cadarço listado; farta placa de lacre fechava a laçada do atilho, nem endereço nem sinete.

— Mandam-lhe!

Assim disse e logo saiu o imperturbado bípede.

Fiz - há! - solentemente e estendi a mão, tomando o volume, trégua foi para os mosquitos, que apertaram as evoluções e o zumbir.

Mas logo, mirado o pacote e o seu anonimato, despontou a dúvida, o receio, a inconveniência de um engano, uma troca...

Verificar, lógico, o verificar impunha-se.

— Oh! senhor?!... clamei.

O senhor sumira-se; nem sombra dele nem rastro; dobrara a esquina..., sumira-se, era o certo. Pois...

Se fora a desfiar ponderações sobre a interrogante - e muda - expectativa, não bastaria a hora, aquela, de pleno dezembro, por véspera do Natal, etc. etc.

Fui-me ao laçarote: o lacre o impediu de correr, quebrei o lacre e ainda o laçarote não correu... Cortei-o!

Sublime lance! Recordei o de Alexandre, o magno, perante o nó górdio...

Enquanto isso, os mosquitos revigoraram o ataque. Olhei-os com furor, à nuvem oscilante com ódio! E abanei, abanei-os em acelerado, com o próprio sobredito pacote. Súbito, passei de irado para pacífico; estaquei, e, num sorriso arguto, soprei ao ignoto:

— E - isto - se é uma broma?...

E sopesei o... problema: leve.

Apalpei-o: brando.

Olfatei-o: inodoro. Inodoro, bem, não. algo de lacre e de cadarço novo...

Apus-lhe o ouvido: mudo. Figura geométrica: ladrilho. Comentário de estética: papel de embrulho, amarelo, pingentes de cadarço; escamas de cera com breu e ocre. Lamentável!

Âmbito de conjetura: tudo.

Ímpeto de curiosidade: abre!

Conselho de prudência: vê lá!

O livre arbítrio: ora!...

E sem mais tardança esventrei o calhamaço. Era um robusto caderno salpintado de muito porém legibilíssimo bastardinho da mão inteligente de um Padre vigário, arquivista alegre nas horas vagas, e que na primeira página, com sutil e perita malícia, tracejara o título:

CASOS DO ROMUALDO

Subsídios para as suas esperadas memórias póstumas, caso nestas esqueça aqueles.

Ora, aqui tem o leitor o primeiro da série dos que vão, talvez fazê-lo dizer:

— Apre!...

Eu, de mim, ignoro quem foi Romualdo. Contados os seus casos na prosa chata que se vai ler, muito perdem do sabor e graça originais; guarde porém o leitor a essência da historieta e repita-a, - por sua vez: recorte-a, enfeite-a com o brilho do gesto e da dicção, acrescente um ponto a cada conto.., e terá presente, imaginoso, criador, inesgotável.., serás tu próprio, leitor, o Romualdo, redivivo...

Verifique o mais incrédulo: em roda de palestra há dois temas que fornecem - sempre - matéria para assunto; histórias de cobras e de jóias perdidas. Quando a conversação amodorrar, quando nela forem caindo retalhos de silêncio, pausas longas, frases dispersas... experimente, amigo: fale de cobras e de jóias perdidas; e, daqui por diante... nos casos do Romualdo!

CASOS DO ROMUALDO

Sou eu, o homem!

É no geral sestroso e dado a pôr em dúvida o que com outrem se passa o indivíduo mal-andado por este mundo de Deus.

Que pode saber do que vai - além - o homem que nunca - daqui — moveu-se, mesmo a passo de cágado?

Por isso sou mirado, eu, Romualdo, por esses tais, com um olhar parado, dentro do qual as dúvidas galopam...

É admissível, afinal, e eu perdôo-lhes: pois se eles - nunca — viram nada! Cada um viveu como um toco plantado no terreiro... como soleira de porta... como parafuso de dobradiça!

Bastará já que tivesse vivido como galo de torre de igreja, como coleira de cachorro ou como sanguessuga de barbeiro... e já muito mais cousas teria visto, cem novidades saberia, mil sucessos poderia referir. E, melhor ainda, se vivera como realejo de minhas aventuras?... Nada, pois que nada -nunca! - viram.

Entre os segundos o negócio muda um tanto de figura: falo, mas pouco, e pouco porque ainda não seria bem compreendido. Agora, quando sou centro dos terceiros, ah! então, sim, ouvidos haja, porque língua tenho e acontecimentos sobram!

Abro o saco e conto o muitíssimo que tenho visto, as aventuras em que fui parte. Dos meus verdadeiros - casos, posso citar inúmeras testemunhas... infelizmente quase todas mortas e as restantes morando longe; há mesmo algumas cujos nomes esqueci, mas cujas fisionomias guardo nos escaninhos da memória.

Como neste assunto não sou obrigado a reger-me pelo Código do Comércio, que exige os lançamentos por ordem de datas, irei consignando os meus depoimentos, conforme se me forem eles apresentados. E se, apesar das minhas afirmativas, pretender alguém pôr em dúvida os meus casos, peço a esse alguém que suspenda o seu juízo. Suspenda-o e consulte-me.

De corporal, sou baixinho e gordo, ruivo e imberbe; de moral, sou calado e tagarela, violento e calmo; em tudo, homem para as ocasiões.
======================
CONTINUA…

Folclore Grego (Gykia, a heroína de Chersonesos)

Lamachos era um rico morador da cidade de Chersonesos. Era tão rico que seu gado tinha uma porta exclusiva para entrar na cidade. Ele tinha uma filha única, de nome Gykia, ela era a mais linda e inteligente da cidade, tendo o seu pai se esmerado em educá-la com os mais sábios professores.Gykia era uma boa moça e queria de alguma forma ser útil pra a sua cidade.

Entretanto, na província de Bósporo reinava Asandros, que louco de ganância queria a cidade de Chersonesos para si. Ele tinha tentando tomar à força uma vez, só que falhou. Então armou o plano de casar seu filho com Gykia, assim quando Lamacho morresse o filho dele governaria e depois seu neto.

Tudo aconteceu de acordo com a o plano, Gykia casou com o filho de Asandros. Mas havia uma cláusula que dizia que se o marido saísse da cidade para encontrar o pai, seria executado. Gykia amava o marido sinceramente. Ele parecia ser uma boa pessoa, um fiel cidadão e era cheio de boas ações. Só que Lamachos morreu dois anos mais tarde e o Conselho da cidade decidiu entregar o governo não para o seu marido, mas para Zethos, um cidadão de destaque da cidade. O marido não desistiu, e ficou esperando uma oportunidade para tomar o poder.

No aniversário da morte de seu pai, Gykia organizou uma comemoração, regada a muita comida e bebida. O marido dela resolveu usar um dos aniversários de morte do sogro para tomar a cidade. Ele enviou um escravo dedicado a Panticapaion (a capital do reino do Bósforo) com uma mensagem que ele tinha encontrado uma maneira de tomar o controle sobre Chersonesos.

O pai enviou navios a seu filho com guerreiros dentro, como se eles estivessem trazendo presentes para a festa. Os barcos bósforo chegaram na Baía de Símbolos, e o filho de Asandros enviou cavalos para eles. Eles foram a cidade, entregaram os presentes, e alguns ficaram escondidos na casa de Gykia, enquanto os remadores partiam dando a impressão de que eles tinham partido.

Os escravos que o filho de Asandros trouxe de Bósporos o ajudaram, dizendo para todos que eles tinha deixado a cidade e dando comida e água para eles. Tudo foi feito secretamente. Gykia não suspeitava o que estava acontecendo em sua própria casa.

O prazo para o cumprimento do plano era o terceiro aniversário da morte Lamachos. Por dois anos ele reuniu em segredo cerca de duzentos guerreiros de Bósporos. O filho de Asandros supôs que no dia da comemoração todos iriam divertir-se até tarde da noite e ficar totalmente bêbados, e quando dormissem, ele levaria seus guerreiros para realizar seu ato traiçoeiro. Nessa altura, a frota de seu pai estaria pronta para o ataque contra Chersonesos.

A trama foi descoberta por acidente, isso porque uma das servas de Gykia estava de castigo em um aposento, e sem querer deixou cair um grampo, quando foi pegá-lo no chão, ele viu os soldados escondidos no andar de baixo. Imediatamente ele pediu para alguém trazer sua patroa e falou a ela o que estava acontecendo. Gykia não teve dúvidas, o amor pela cidade era maior que qualquer coisa, e decidiu matar a todos, inclusive seu próprio marido, que acabou por ser um traidor.

Ela pediu a seus parentes para reunir os mais valentes cidadãos. Ela fez eles jurarem que se tudo fosse verdade, depois da morte dela, ela deveria ser enterrada dentro d perímetro da cidade. Eles juraram cumprir seu desejo, Gykia satisfeita revelou a traição do marido. Quando eles ouviram a estória, congelaram de medo.

Ela combinou que as comemorações deveriam ocorrer de maneira normal. Todos beberiam, dançariam, cantariam, mas de maneira comedida e sem esquecer o perigo. Deveriam também juntar mato em suas casas. Assim, quando a festa terminasse, os portões seriam fechados e todos iram para suas casas, pegariam os galhos e folhas e iriam a casa dela, colocariam tudo lá e ateariam fogo, assim que ela saísse, é claro. Cuidando para que ninguém mais saísse vivo de lá.

Como havia sido combinado, no dia do memorial de Lamachos , os habitantes da cidade se divertiram durante todo o dia nas ruas. Gykia generosamente distribuiu vinho na festa em sua casa, entreteve seu marido, mas ela mesma não bebeu e ordenou o mesmo de sua servas. Gykia bebia água de uma tigela púrpura que parecia vinho.

Quando a noite chegou, e os cidadãos retornaram a suas casas e Gykia convidou seu marido para dormir. Ele concordou prontamente. Ela ordenou que os portões e entradas fossem fechadas, como de costume, e imediatamente enviou servas de confiança para levar roupas, ouro e decorações diversas para fora da casa.

Tudo ficou silencia na casa e o marido bêbado adormeceu, então Gykia saiu do quarto, fechou a porta atrás de si, e chamando de servas, deixou a casa. Na rua, ela disse que ateassem fogo em cada lado da sua casa. Logo a casa estava envolta em chamas. Os guerreiros bósforos tentaram fugir, mas foram imediatamente mortos. Em um instante todos os conspiradores foram executados.

Desta forma Gykia manteve Chersonesos fora do perigo, os cidadãos ergueram duas estátuas em sua homenagem.

Quando, mais tarde, Gykia lembrou o conselho da cidade sobre a sua promessa de enterrá-la dentro do perímetro da cidade , mas alguns ficaram contra dizendo que a necrópole de Chersonesos estava longe das muralhas da cidade, e eles nunca enterravam os mortos em bairros residenciais. Em vez disso, eles propuseram reconstruir a casa dela, em troca.

Ela não desistiu. Alguns anos mais tarde a sábio Gykia decidiu testar se seus concidadãos se eles iriam manter sua palavra na prática. Ela disse a seus escravos para espalhar a notícia de que ela tinha morrido. Todos ficaram tristes. As pessoas lotaram a praça da casa de Gykia. Seus escravos e parentes prepararam o corpo para o rito fúnebre.

Após uma longa reunião da anciãos eles decidiram não infringir o rito antigo dos gregos, e sim quebrar o juramento, e ordenaram levar o corpo dela para fora da cidade e para enterrá-la na necrópole.

Quando o cortejo parou diante do túmulo aberto, Gykia levantou-se do sarcófago, e começou a acusar os cidadãos amargamente. Os anciãos ficaram envergonhados e juraram pela terceira vez realizar o seu desejo. Ela foi autorizada a encontrar um local de sepultamento dentro da cidade, que foi marcado com um busto em cobre dourado da heroína.

E aqueles que quisessem admirar a beleza dela, poderiam escova o pó do busto de cobre e ler na placa a estória de seu feito corajoso.

Fonte e Imagem:
http://www.chersonesos.org/?p=history_tls1&l=eng. Tradução do grego por N. Khrapunov

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) V

RIMBAUD

Após oito anos luz
Pelos caminhos do inferno
Entro num cabaré
Faminto de olhos tetas e bocados
Regados a sossego.
No chope gelado
Uma réstia de sol ilumina
Ainda que tardiamente
Meu pensamento.

CÂNDIDO

Pintura milagre da luz
Transformada em nuanças coloridas
pela mente mãos cálidas
De um pintor completamente genial
Desses iluminados
Na loucura refinados
Saborosos como o sal da vida
Parida na cor dolorida do amor.

SEGUINDO A LINHA

Deixei meu passado entulhado
Num canto qualquer da memória
Não vim de ontem sou de hoje
Não tenho história.
Experiência?
É o ar que respiro na brisa do agora.
É reaprender cada minuto que morre
Sem envelhecer
No tempo que corre.

DOR ESQUECIDA

No torpor vermelho vinho
As canções são mais sentidas
Estranhamente coloridas
Feito quadros de Dali.
Uma lágrima traiçoeira
Desgarrada incontida
Revela uma ferida
De não cicatrizar.

RIMBAUD II

Escarros vermelhos ecoam no infinito azul
Batalhões tombam aos pés do rei
Que os xinga...
Enquanto pequenos deuses
Do alto de seus altares
E suas taças de ouro
Embalados por preces e cantos adormecem.
Só despertam
Quando mãos estendidas calejadas
Sofridas subjugadas
Entregam-lhes tudo o que têm:
O último vintém.

FERNANDA
(UMA ROSA AZUL)


Eu vim e vou caminhar
A estranha estrada de terra
Vermelho é o sol que se põe
No azul de uma rosa que nasce
Aos olhos infantis que adormecem.

MECKINHO

A imobilidade
Do grande mestre
Contrasta
Com a fúria de seu raciocínio.
Na aparência
Um monge tibetano,
Na determinação mental
Um moderno
Gladiador.

MIRACLE

Rimo a rima que rimar
Escrevo a fala do cantar
Sonho pensamento futuro
Sinto o que sinto sei lá.

Estranho é estranhar minha palavra
Pois ela não cura ou agrava
Um estado de coisas suaviza
Sendo assim só faz melhorar

Esse espaço esse ar essa lida
Colorida poesia bonita
Que inútil seria explicar
O milagre singular dessa vida.

CANDELÁRIA

A polícia reza missa
Com a voz da metralha
Mata um
Mata dois
Mata oito
Na candelária.
Tenta cortar
O mal pela raiz
Podando apenas
As folhas da violência,
Que demência!

VOLPI

Enfim
Cansado de colorir
Suas bandeirinhas
O garoto escolheu
A mais bela estrela
E cobrindo-se de azul
Adormeceu.

GUERREIROS

Soldados valentes
Crédulos e cansados
De carregarem
Sobre os ombros doentes
A cabeça de um rei
Eternamente embriagado.

QUINTANA

Tenho nas mãos uma jóia
Lapidada por um menino
Franzino de 87 anos
Que solitário segura o céu
Como uma bela e imponente
Coluna grega.

2001

Virei com o século
Venci o pesadelo
E neste segundo sono
Escolherei meu sonho
Com maior desvelo.

ÓCIO

Uma garrafa vazia
Um copo pela metade
Pablo Neruda na mão
Na mente uma canção
De liberdade.

SEM PALAVRAS

O poeta necessita
De palavras em seu poema
Mas a poesia
Dispensa
Palavras e poetas.

CALEIDOSCÓPIOS
 

Olhe-me veja
Remexa já não sou
Vire
Lá estará outro eu
Outro lugar
Somos assim
Caleidoscópios a girar
Se transmutar
Explicar isso não dá
Mas ainda podemos cantar
Aquela canção do sorrir e caminhar...
Caminhar por este chão
Comum camaleão.

LOUCOS ALEIJADOS

Quantas vezes
Usamos as muletas
Da religião da moral da sanidade
Por não confiarmos
Em nossas convicções
Sentimentos idéias e ideais...
Por não confiarmos
Em nossa própria loucura.

CONSELHO

Sabe de uma coisa colega
A vida está difícil demais
Mas um poeta não se entrega
E não desanima meu rapaz.

Ser poeta, meu amigo.
É ser criança forte e frágil
Humano, fera, rocha e abrigo.
É trazer na alma a chama indecifrável...

Não deixar morrer em seu olhar
Aquele espanto primordial
De menino puro ao amar

Nem deixar viver em seu ser
Aquele medo primordial
De homem imaturo pra morrer.

CIRANDA

Acordo de manhã
E aí está o mundo
Barulhento, traquinas
Saudável criança.
Fazer o quê?
Senão entrar nesta ciranda
E brincar de crescer.

HIPOCRISIA

Procuramos ter
Pensamentos puros e elevados
Enquanto emporcalhamos
Nossos rios mais sagrados.

NO HORIZONTE UM SOL SEMPRE

No horizonte
Vermelho
Brilhante
Morre
Naturalmente
Um sol
No ocidente

No mesmo instante
No oriente
Um sol
Naturalmente
Nasce
Brilhante
Vermelho
No horizonte.

ESTAÇÃO LIBERDADE

Sobram bancos e mármores
Nessa estação de metrô
O trem é rápido
As pessoas apressadas
Devagar vomito
Numa lixeira próxima
Impecavelmente
Limpa.

MEDO

Minha sensibilidade
Escondeu-se atrás do medo
Minha inteligência
Atrás do muro
O coração não vê presente
A cabeça não vê futuro
Silencioso tateio meu caminho
Zigue - zagueando poesia.

IDADES

Meu corpo
Tem a idade de um homem
Minha mente
A de um ancião
A idade de uma criança
Tem meu coração.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Nilto Maciel (Punhalzinho Cravado de Ódio)

Caminha Ana pelo beco esburacado, perninhas de embuá, doida para alcançar a esquina. Saltita, feito catita, de ilha em ilha, com medo de se afogar nas poças de lama. Cachorros sonolentos abrem os olhos para sua figura miúda e se espreguiçam e expõem as indecências encarnadas de entre as pernas. Voltam a sonhar, sérios, acanhados, magros.

– Cambada de vagabundos!

O sol assa a areia, os pesinhos gordos da anã, racha a taipa dos casebres, os lábios da mulher, reluz nos cacos de vidro expostos no meio da rua, nos olhos da caminhante.

– Arre égua!

Abertas as portas da bodega de Bodinho, anunciada por placas de Coca-Cola. Dentro, moscas fartas, catinga de cachaça, salpicada de escarros, sortida de mil mantimentos para gentes e bichos.

Venta para todas las bandas e tudo se mexe, remexe, rebola, remoinha. Os vira-latas acordam raivosos, voa poeira entre as casas, papéis de embrulho viram arraias bicós e o bodegueiro pragueja.

E vão embora gritos, pules de jogo do bicho, esperanças, tudo em fuga pelos becos. Do lado de dentro do balcão, Bodinho arruma jornais de ontem e inventa pragas contra o diabo da ventania. Sunga as calças e a pança balança, fofa, mole, cheia. Zunem moscas alvoroçadas. Pousam nos braços curtos da freguesa, pegajosas. Fazem cócegas na pele grossa de Ana.

– Desgruda, desgraçada!

Pela porta atrás da anã entra Pêu, arreganha os dentes podres. Estica as pernas, pula para um caixão de sabão, quase a roçar nos cabelos de Ana. Atrás do balcão, Bodinho assobia e ri.

Solta na buraqueira desde os tempos de chupeta, Anazinha meteu-se cedo nos becos da molecagem. Anãzinha praqui, Aninha pracá, conheceu um a um os moleques do Pirambu. Com Pêu experimentou as primeiras dores.

– Casar? Nunquinha.

Também nunca pegou barriga de nenhum cabra safado, muito menos de Pêu.

– Ainda bem.

E não teve a sorte de conhecer um de seu tamanho, de feitio anão, do jeito de seu agrado.

Mãosinhas postas sobre o cocô das moscas, pede a anã o milho de suas galinhas. Depressa, enquanto o cão esfregasse o olho.

Todo santo dia, quer chovesse, quer fizesse sol, ia Ana comprar a janta de suas criações. Bodinho nem precisava perguntar o que queria ela. Precisasse de querosene para as lamparinas, voltava noutra hora ou dormia no escuro. Carecesse de alimento para si, passava fome ou dava outra viagem, embora os cachorros da rua vivessem a espiá-la do rés do chão.

– Cambada de vagabundos!

Como não se vissem frente a frente desde os tempos das sacanagens, Pêu coçou o queixo, lambeu os bigodes sujos, futricou os ovos e não pediu cachaça: se Aninha comia milho.

Toda a raça do Pirambu sabia de sua predileção por galinhas. Na bodega de Bodinho só ela comprava milho. Todo dia, tarde cedo. Criava as bichinhas com fartura e amor, sem sovinice de nada. Muitas. E só não possuía o maior galinheiro do mundo porque precisava vender sempre uma para dar de comer às outras. A preço de banana, mais baratas do que bolo em fim de festa. Não, nunca comeu sequer o pé de uma.

– Deus me livre!

Ri Pêu da sabedoria da anã e pede uma talagada. Desapeia do caixão e encosta-se à antiga companheira de sacanagens detrás dos morros de areia. O bodegueiro demora-se a ver os olhos reluzentes de Ana, aquele fogo a queimar seus jornais velhos, aquela pua a furar o outro freguês.

Já ida pela casa dos trinta, a anã não rompia as fronteiras do metro, mas a cada dia se alargava, feito um saco de algodão. Sua boca armazenava todos os ódios do Pirambu e, quando não suportava mais contê-los, não escolhia as caras e cuspia insultos até contra os vira-latas.

– Perdeu alguém parecido comigo, baitola?

Entrega Bodinho o embrulho de milho, apanha a garrafa, sem despregar da anã os olhos, derrama veneno no copo e levanta a taça de vencedor.

Nenhuma palavra sobe do porão de Ana, que agarra sua ração, agacha-se e a deposita ao pé do balcão. Pêu despeja goela a dentro toda sua vida e solta um grito de terror.

Em sua virilha, um punhalzinho enferrujado e cheio de ódio acabava de se cravar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Nilto Maciel

Nilto Fernando Maciel (Baturité, 1945) ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77. Regressou a Fortaleza em 2002. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais: “Brasília de Literatura”, 90, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, com A Rosa Gótica, todos na categoria romance nacional, além de prêmios no gênero conto. Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes, 2006, e 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilíngue español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo. Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007. Publicou novelas, romances, poesias, ensaios literários, além dos livros de contos Itinerário (1974), Tempos de Mula Preta (1981), Punhalzinho Cravado de Ódio (1986), As Insolentes Patas do Cão (1991), Babel (1997), Vasto Abismo (1998), Pescoço de Girafa na Poeira (1999) e A Leste da Morte (2006).

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

José Inácio Vieira de Melo (Poesias Escolhidas)

CARAMUJOS

Os caramujos da Ribeira do Traipu
mugem em um tempo que se foi.

Os caramujos eram os bois da minha boiada.
Quando os invocava era prontamente atendido,
mas eles tinham lá seus nomes e seus matizes
(e ali já estava o poeta batizando as coisas):

e vinham Manjerona, Paixão, Diamantina,
Fachada, Chuvisco, Carnaval, Meia-Noite,
e vinha toda a vacaria de caramujos
encantar aqueles dias com seu leite de sonhos.

De repente, dava um redemoinho
na minha cabeça de vento
e já era outra história:

Ivaldo, numa atitude inaugural,
– possível apenas para quem goza
da sabedoria dos cinco anos –
bradava para que fossemos
ouvir o mar nos caramujos.

[A terceira romaria – livro inédito]

DESERTO

Nem o deserto do Saara mais todo o Sertão
são desertos quanto o eu deserto.

E segue o peregrino na aridez dessa demência:
deserto dia – noite deserta: a mesma intensidade.

E de repente vejo o que não vejo,
o voo que sempre levanto e nunca voei,
e assomam os meus fantasmas:
anjos e demônios e poetas e vampiros,
putas e bruxas e santas e fadas,
deus e deuses e musas e a mulher,
vaqueiro e cavalo e gado e cachorro,
música toada, música embolada, música zoada.
E Moisés Vieira de Melo – meu avô –
tangendo esses bichos todos
dentro do deserto do romeiro de mim.

E os desertos cantam na imensidão do nada,
e canto este canto meu (porque de dentro):
eu não sabia do caos do eu,
eu não sabia da miragem que tudo é,
eu não sabia da angústia,
eu não sabia do gozo.
Eu, sabiá...

O deserto de mim diante de todos os olhos.

E assim segue o peregrino
– nessa romaria que o sufoca e o deleita –
em busca de oásis,
abrigo de mim.

O peregrino – deserto a buscar.

[Decifração de Abismos]

ESPELHO

Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles

Que ninguém se engane:
os caminhos são tortos

E no sertão do ser
– deserto e mar
nossos de cada dia –
o outro nome do nome:
HOMEM

E no oráculo antolhar:
a imagem é a dor escarlate
de um labirinto
onde vago vago

E indaga o oráculo:
– Qual a tua graça?

Como o quem? Saber como?
Tal Torquato com fé ficciono
e confecciono a palavra

Poeta há de ser a graça
E indaga o oráculo:
– O que fazes de teus passos?

O que dizer dos rastros
conquanto já não são meus?
Como aquele Minotauro cego
sigo pela noite
guiado pela menina poesia

E o oráculo:
– Não haverá mais tempo
apenas a poesia:
Mãe e Manhã

[Códigos do Silêncio]

MATURI
para Cássia

A primeira vez não tinha paredes,
havia um voyeur: a Lua.

Um cajueiro frondoso
abençoava aquela descoberta
farfalhando suas folhas,
e das folhas secas
que buscavam a terra: o colchão.

E tudo conspirava para o êxtase:
os olores dos cajus,
o agridoce gosto da deusa morena:
musa canora que entoava gemidos
– cantigas sopradas pelos deuses.

Na primeira vez,
senti, pela primeira vez,
o mistério das estrelas.

E as vacas pastavam
na mansidão dos campos,
na imensidão da noite.

[A terceira romaria – livro inédito]

EPITÁFIO PARA GUINEVERE

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem.
Domingos Carvalho da Silva


Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.
Não mais invadirei o vento montado no teu galope.

Que fique inscrito na tua lápide
o verso de lágrimas dos meus cavalos.

Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,
o relinchar da paixão pagã
dos cavalos que trago dentro de mim.

[Decifração de Abismos]
MÃE FILHA

Ela não oferecia pão a um carnívoro,
ela era a carne e a caridade,
era a ovelha dos desgarrados.

A cruz recebia entre as pernas,
o seu sino era no meio das pernas,
ela era a sua própria igreja.

Ela tinha a ferida e a cura,
e todos os homens salivaram ali,
e todos ganiram o lamento do sino.

Era a vida d'A Casa das Primas,
ninguém jamais saiu daquele templo
seco em seus apetites.

Para uma sede, outra sede maior;
para a solidão, os sentidos de Mãe Filha
e de todas as suas discípulas – as primas.

[A terceira romaria – livro inédito]

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico.

Nelly Novaes Coelho (Conto de Fadas & Conto Maravilhoso)

Tela de Salvador Dali
Desse imenso caudal narrativo (hoje transformado ou simplificado em literatura folclórica ou literatura infantil), duas formas destacam-se, não só pela divulgação que alcançaram através dos séculos, mas principalmente pela identificação feita entre uma e outra, como se ambas tivessem a mesma natureza. O que não é verdade.

Trata-se do Conto de Fadas e do Conto Maravilhoso, formas de narrativa maravilhosa surgidas de fontes bem distintas, dando expressão a problemáticas bem diferentes, mas que, pelo fato de pertencer ao mundo maravilhoso, acabaram identificadas entre si como formas iguais.

Nosso propósito, aqui, será portanto deslindar os possíveis fios que se emaranharam em torno delas e tonar visíveis as duas atitudes humanas por elas expressas, atitudes que se vêm sucedendo na vida e na Literatura, desde o princípio dos tempos em nossos dias. Referimo-nos à luta do eu, empenhado em sua realização interior profunda, ao nível do existencial, ou em sua realização exterior, ao nível do social.

Embora uma não anule a outra (muito pelo contrário, ambas devem completar-se em uma realização integral), não podemos esquecer que, por temperamento ou personalidade, cada indivíduo, consciente ou inconscientemente, privilegia uma delas, e é essa escolha que orienta sua luta pela vida. Daí a atualidade visível no conto de fadas e no conto maravilhoso e a importância de os redescobrirmos desde as raízes.

Entretanto, por um simples confronto entre a Bela Adormecida, a Bela e a Fera ou Rapunzel, de um lado, e O Gato de Botas, o Pescador e o Gênio o Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, de outro, nota-se que há uma diferença essencial. Diferença quase inexistente ao nível da forma (pois todos pertencem ao universo do maravilhoso), mas que pode ser facilmente percebida ao nível da problemática matriz de cada conto. Indo direto a essas «diferenças«, temos:

As narrativas do primeiro grupo são contos de fadas. Com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial...

...No segundo grupo, temos os contos maravilhosos. São narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares, objetos mágicos, gênios, duendes, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática social (ou ligada à vida prática, concreta). Ou melhor, trata-se sempre do desejo de autorealização do herói (ou anti-herói) no âmbito socioeconômico, através de conquista de bens, riqueza, poder material, etc.

Enfim, os contos de fadas e os contos maravilhosos expressam atitudes humanas bem diferentes diante da vida. Optar por uma ou outra é questão do quê? Destino? Personalidade? Circunstâncias de vida? Meio social? Influências culturais? Quem o pode responder com exatidão? A verdade é que através dos milênios as duas atitudes vêm tendo expressão na Literatura, porque vêm sendo vividas na vida.

Fonte:
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. SP, Ática, 1991.