segunda-feira, 24 de março de 2014

Bernardo Guimarães (A Separação)

 A uma légua, pouco mais ou menos, da antiga vila de Tamanduá, na província de Minas Gerais, e a pouca distância da estrada que vai para a vizinha vila da Formiga, via-se, há de haver quarenta anos, uma pequena e pobre casa, mas alva, risonha e nova. Uma porta e duas janelinhas formavam toda a sua frente.

Um estreito caminho, partindo da porta da casa, cortava o vargedo e ia atravessar o capão e o córrego, por uma pontezinha de madeira, fechada do outro lado por uma tronqueira de varas. Junto à ponte, de um lado e outro do caminho, viam-se duas corpulentas paineiras, cujos galhos, entrelaçando-se no ar, formavam uma arcada de verdura, à entrada do campo onde pastava o gado.

Era uma bela tarde de janeiro. Dois meninos brincavam à sombra das paineiras: um rapazinho de doze a treze anos e uma menina, que parecia ser pouco mais nova do que ele.

A menina era morena; de olhos grandes, negros e cheios de vivacidade, de corpo esbelto e flexível como o pendão da imbaúba.

O rapaz era alvo, de cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua fisionomia como em todo o seu ser transluziam indícios de uma índole pacata, doce e branda.

A menina, sentada sobre a relva, despencava um molho de flores silvestres de que estava fabricando um ramalhete, enquanto seu companheiro, atracando-se como um macaco aos galhos das paineiras, balouçava-se no ar, fazia mil passes e piruetas para diverti-la.

Perto deles, espalhados no vargedo, umas três ou quatro vacas e mais algumas reses estavam tosando tranqüilamente o fresco e viçoso capim.

O sol, que já não se via no céu, tocava com uma luz de ouro os topes abaulados dos altos espigões; uma aragem quase imperceptível mal rumorejava pelas abas do capão e esvoaçava por aquelas baixadas cheias de sombra.

- Vamos, Eugênio. São horas... vamos apartar os bezerros e tocar as vacas para a outra banda.

Dizendo isto, a menina levanta-se da relva, e, atirando para trás dos ombros os negros e compridos cabelos, sacudiu do regaço uma nuvem de flores despencadas.

- Pois vamos lá com isso, Margarida, exclamou Eugênio, vindo ao chão de um salto, e ambos foram ajuntar as poucas vacas que ali andavam pastando.

- Arre! com mil diabos!... que bezerrada mofina! - exclamou o rapaz tangendo os bezerros. - Por que é que estes bezerros da tia Umbelina andam sempre assim tão magros?

Ora! pois, que é que você quer? mamãe tira quase todo o leite das vacas, e deixa um pinguinho só para os pobres bezerros. Por isso mesmo quase nenhuma cria pode vingar, e algum que escapa mamãe vende logo.

- E por que é que ela não te dá uma bezerrinha? aquela vermelhinha estava bem bonita para você...

- Qual!... não vê que ela me dá!... e eu que tenho tanta vontade de ter a minha vaquinha. Há que tempo Dindinha prometeu de me dar uma bezerra e até hoje estou esperando...

- Mamãe?... ora!... é porque ela se esqueceu... deixa estar, que eu hei de falar com ela... mas não, eu mesmo é que hei de te dar uma novilha pintada muito bonitinha que eu tenho. Assim como assim, eu tenho de me ir embora mesmo, que quero eu fazer com a criação?

- Como é isso?... - exclamou Margarida com surpresa. - Pois você vai-se embora?...

- Vou, Margarida; pois você ainda não sabia?...

- Eu não; quem me havia de contar? para onde é que você vai, então?

- Vou para o estudo, Margarida; papai mais mamãe querem que eu vá estudar para padre.

- Deveras, Eugênio!... ah! meu Deus!... que ideia!... e é muito longe esse estudo?

- Eu sei lá; eles estão falando que eu vou para Congonhas...

- Congonhas?... ah! já ouvi falar nessa terra; não é onde moram os padres santos?... ah! meu Deus! isso é muito longe!

- Qual longe!... tanta gente já tem ido lá e vem outra vez. Mamãe já mandou fazer batina, sobrepeliz, barrete e tudo. Quando tudo ficar pronto, eu hei de vir cá vestido de padre para você ver que tal fico.

- Tomara eu ver já!... você há de ficar um padrinho bem bonitinho!

- E quando eu for padre, você há de ir por força ouvir a minha primeira missa, não há de, Margarida?...

- Se hei de!... e também mais uma coisa, que hei de fazer... adivinha o que é?...

- O que é?... fala.

- Mamãe costuma dizer, que eu já estou ficando grande, e que daqui a um ano bem posso me confessar, e para isso anda me ensinando doutrina; mas eu não tenho ânimo de me confessar a padre nenhum... Deus me livre! tenho um medo... uma vergonha! Mas com você é outro caso estou pronta, e por isso não quero me confessar enquanto você não for padre...

- Está dito, Margarida; prometo que há de ser você a primeira pessoa que hei de confessar; antes disso, não confesso pessoa nenhuma, nenhuma desta vida; eu te juro, Margarida.

- Muito bem! muito bem! está dito. Agora me conta, Eugênio; quando é que você vai-se embora?

- É para o mês que vem...

- Ah! meu Deus! pois já tão depressa! e você não há de ficar com saudade de mim!...

- Se fico!... muita, muita saudade, Margarida. Quando penso nisso fico tão triste, que me dá vontade de chorar.

- E eu, pobre de mim!... como vou ficar tão sozinha! com quem é que eu hei de brincar daqui em diante?... não sei como há de ser, meu Deus!...

Eram quase ave-marias. A sombra do crepúsculo ia de manso derramando-se pelas devesas silenciosas. A favor daquela funda e solene mudez, ouvia-se o débil marulho das águas do ribeiro, escorregando sob a úmida e sombria abóbada do vergel; um sabiá, pousado na mais alta grimpa da paineira, mandava ao longe os ecos do seu hino preguiçosamente cadenciado, com que parece estar acalentando a natureza prestes a adormecer debaixo das asas próprias da noite.

Os meninos caídos e taciturnos olhavam em derredor de si com tristeza. Pela primeira vez, cismas saudosas, anuviadas de um leve toque de melancolia, pairavam sobre aquelas frontes infantis. Dir-se-ia que, nos vagos rumores do fim do dia, estavam ouvindo o derradeiro adeus do gênio prazenteiro da meninice, e que, no dúbio clarão róseo que afogueava ainda a orla extrema do ocidente, entreviam o último sorriso da aurora da existência.

Foi Margarida quem interrompeu aquele triste silêncio.

- Meu Deus! - exclamou ela - o que estamos aqui fazendo embasbacados? Há que tempo o sol já entrou, Eugênio! Está ficando muito tarde. Vamos! vamos... toca as vacas.

- Eia! Dourada!... eia!... Minerva!... Duquesa!... eia!... eia!...

Eugênio correu a abrir a pequena tronqueira das vacas, que ficava além da ponte. Apartados os bezerros e passadas as vacas, Eugênio tornou a fechá-la. Passando um braço sobre o ombro de Margarida, e esta enlaçando com o seu a cintura do companheiro, foram voltando calados e ainda sob a mesma impressão de tristeza, tangendo diante de si os bezerros até a casa de Umbelina, a uns quinhentos passos de distância.

Margarida recolheu-se a casa, e Eugênio, enfiando o caminho por onde viera, ganhou de novo a ponte e a tronqueira, deitou-se a correr pelo rincão afora dirigindo-se para a fazenda que ficava a meia légua de distância.

Fonte:
Bernardo Guimarães. O Seminarista.

Dáguima Collection - Trova 2

Fonte:
Facebook da autora

Antologia Poética do Jovem Escritor II

Poemas do Ensino Médio

ANTÔNIO DUARTE CABRA
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

E se o mundo acabasse amanhã?

Ainda que tentássemos fazer a nossa parte
Ainda que pudéssemos ajudar esse planeta tênue
Mesmo que os insolentes homens se conscientizassem
Será que o planeta permaneceria incólume?

Será que nós poderíamos suscitar uma nova força
Transformar essa humanidade pernóstica
Garantir um futuro melhor para todos?
Ainda assim, seria um grande desafio
É! Desafio! É o que a humanidade realmente precisa
Buscar novos horizontes, dar a volta por cima.
Mostrar que temos o poder para mudar o mundo
E na maior expectativa, poder perscrutar o que é realmente perene.
Podendo assim ser dignos de viver nesse mundo.
Isso mesmo! Tente, faça, e mesmo que não consiga, continue tentando.
Dê o seu melhor
Não deixe que o ambiente em que vive acabe assim tão facilmente.

Afinal, quem ama, preserva!

MARIA LUIZA GUIMARÃES COELHO
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

Apenas recordações

Saudades de um tempo que jamais voltará.
Onde os pastos eram verdes,
E ouvíamos pássaros cantantes
As florestas vívidas
E uma natureza exuberante.

O ar puro e limpo
As árvores e a sombra fresca
A água doce e cristalina
A flora bela, a fauna rica,
Retratam sua beleza.

O homem possui desejos
E por estes o ambiente desmata.
Constrói casas e edifícios
E com seu egoísmo,
Não pensa em mais em nada.

O meio ambiente,
Por cuidados hoje implora
Será que o homem não percebe?
Deste, ele só explora.

As paisagens já não são belas
Os pássaros, hoje já não cantam,
As matas já não são mais verdes,
A fauna rica? Hoje não existe mais.
A poluição tomou conta.
A natureza de antes, não voltará jamais.

Agora, o que nos resta,
É o pouco que temos de preservar
Para que este bem tão precioso
De vez não se acabar!

PEDRO QUEIROZ
Ensino Médio da Escola Técnica de Formação Gerencial

Aclamação à natureza

Oh natureza!
Quão triste estás tu
Sem teu verde e o azul
Do teu rio seminu.

Que triste que é ver
Tuas matas à mercê
Do homem na ganância
No dinheiro, sua ânsia.

Sem limites ou compaixão,
Tua vida é exterminada
Com dor e ambição
No princípio da alvorada.

Mas alguns se erguem
Da defesa se servem
Em busca da condenação
Aos que ferem teu coração.

Oh natureza chorosa!
Não lance sobre os inocentes,
A ira de perda dolorosa
Criada pelos homens imprudentes.

Enquanto os homens se esquecem
Que do teu fogo é que se aquecem
Suplica–lhes paciência
E que nossa lição se dê com clemência.

Por fim, eu te faço
A última confissão
Que por Deus eu trago
Teu amor no coração!

BRENDA BATISTA BURMANN
Ensino Médio da Escola Estadual Ione Lewick Cunha Melo

A criação de Deus
 

Deus criou o mundo
Com toda perfeição
O homem com toda sua ignorância
Está destruindo tudo
Sem dar satisfação.

O homem sem perceber
Esta grande perfeição
Não está enxergando o meio ambiente
Acabando com tudo
Para satisfazer a sua ambição.

Criou Deus também os animais
Com infinita inspiração
Cada um para servir o outro
Tornando assim
Uma boa habitação.

Os pássaros voam no céu
Alegrando–nos com sua melodia
As flores com toda sua beleza
Vêm nos trazer harmonia.

Muitos benefícios o meio ambiente nos traz
Por isso não vamos o destruí–lo
Vamos cuidar bem dele
Porque sem ele
Não iremos resistir.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Machado de Assis (A Viúva Sobral)

CAPITULO I

— Explico-me.

— Mas explica-te refrescando a goela. Queres um sorvete? Vá, dois sorvetes. Traga dois sorvetes... Refresquemo-nos, que realmente o calor está insuportável. Estiveste em Petrópolis.

— Não.

— Nem eu.

— Estive no Pati do Alferes, imagina por quê? — Não posso.

— Vou...

— Acaba.

— Vou casar.

Cesário deixou cair o queixo de assombro, enquanto o Brandão saboreava, olhando para ele, o gosto de ter dado uma novidade grossa. Vieram os sorvetes, sem que o primeiro saísse da posição em que a notícia o deixou; era evidente que não lhe dava crédito.

— Casar? repetiu ele afinal, e o Brandão respondeu-lhe com a cabeça que sim, que ia casar. Não, não, é impossível.

Estou que o leitor não sente a mesma incredulidade, desde que considera que o casamento é a tela da vida, e que toda a gente casa, assim como toda a gente morre. Se alguma coisa o enche de assombro é o assombro de Cesário. Tratemos de explicá-lo em cinco ou seis linhas.

Viviam juntos esses dois rapazes desde os onze anos, e mais intimamente desde os dezesseis. Contavam agora vinte e oito. Um era empregado no comércio, outro da alfândega. Tinham uma parte da vida comum, e comuns os sentimentos. Assim é que ambos faziam do casamento a mais deplorável idéia, com ostentação, com excesso, e para afirmá-lo, viviam juntos a mesma vida solta. Não só entre eles deixara de haver segredo, mas até começava a ser impossível que o houvesse, desde que ambos davam os mesmos passos, de um modo uníssono. Começa a entender-se o espanto do Cesário.

— Dá-me a tua palavra que não estás brincando? — Conforme.

— Ah! — Quando eu digo que vou casar, não quero dizer que tenho a dama pedida; quero dizer que o namoro está a caminho, e que desta vez é sério. Resta adivinhar quem é.

— Não sei.

— E foste tu mesmo que me levaste lá.

— Eu? — É a Sobral.

— A viúva? — Sim, a Candinha.

— Mas...? Brandão contou tudo ao amigo. Cerca de algumas semanas antes, Cesário levara-o à casa de um amigo do patrão, um Viegas, comerciante também, para jogar o voltarete; e ali acharam, pouco antes chegada do Norte, uma recente viúva, D. Candinha Sobral. A viúva era bonita, afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram em achar singulares. Os olhos, porém, eram o menos. O mais era a reputação de mau gênio que esta moça trazia. Disseram que ela matara o marido com desgostos, caprichos, exigências; que era um espírito absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro cantos de um império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece, ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no rosto; Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão notara-lhe nas narinas o indício da teima e da perversidade. Duas semanas depois tornaram a encontrar-se os três, conversaram, e a opinião radicou-se. Eles chegaram mesmo à familiaridade da expressão: — má rês, alma de poucos amigos, etc.

Agora entende-se, creio eu, o espanto do amigo Cesário, não menos que o prazer do Brandão em dar-lhe a notícia. Entende-se, portanto, que só começassem a tomar os sorvetes para não vê-los derretidos, sem nenhum deles saber o que estava fazendo.

— Juro que há quinze dias não era capaz de cuidar nisto, continuava o Brandão; mas os dois últimos encontros, principalmente o de segunda-feira... Não te digo nada... Creio que acabo casando.

— Ah! crês! — É um modo de falar, é certo que acabo.

Cesário acabou o sorvete, engoliu um cálice de cognac, e fitou o amigo, que raspava o copo, amorosamente. Depois fez um cigarro, acendeu-o, puxou duas ou três fumaças, e disse ao Brandão que ainda esperava vê-lo recuar; em todo caso, aconselhava-lhe que não publicasse desde já o plano; esperasse algum tempo. Talvez viesse a recuar...

— Não, interrompeu Brandão com energia.

— Como, não? — Não recuo.

Cesário levantou os ombros.

— Achas que faço mal? pergunta o outro.

— Acho.

— Por quê? — Não me perguntes por quê.

— Ao contrário, pergunto e insisto. Opões-te por causa de ser casamento.

— Em primeiro lugar.

Brandão sorriu.

— E por causa da noiva, concluiu ele. Já esperava por isso; estás então com a opinião que ambos demos logo que ela chegou da província? Enganas-te. Também eu estava; mas mudei...

— E depois, continuou Cesário, falo por um pouco de egoísmo; vou perder-te...

— Não.

— Sim e sim. Ora tu!... Mas como foi isso? Brandão contou os pormenores do negócio; expôs minuciosamente todos os seus sentimentos. Não a pedira ainda, nem havia tempo para tanto; a própria resolução não estava formulada. Mas tinha por certo o casamento. Naturalmente, louvou as qualidades da namorada, sem convencer ao amigo, que, aliás, entendeu não insistir na opinião e guardá-la consigo.

— São simpatias, dizia ele.

Saíram depois de longo tempo de conversação, e separaram-se na esquina. Cesário mal podia crer que o mesmo homem, que antipatizara com a viúva e dissera dela tantas coisas e tão grotescas, quinze dias depois estivesse apaixonado ao ponto de casar. Puro mistério! E resolvia o caso na cabeça, e não achava explicação, não se tratando de um criançola, nem de uma descomunal beleza. Tudo por querer achar, à força, uma explicação; se não a procurasse, dava com ela, que era justamente nenhuma, coisa nenhuma.

CAPITULO II

Emendemos o Brandão. Contou ele que os dois últimos encontros com a viúva, aqui na corte, é que lhe deram a sensação do amor; mas a verdade pura é que a sensação só o tomou inteiramente no Pati do Alferes, de onde ele acaba de chegar. Antes disso, podia ficar um pouco lisonjeado das maneiras dela, e ter mesmo alguns pensamentos; mas o que se chama sensação amorosa não a teve antes. Foi ali que ele mudou de opinião a respeito dela, e se deixou cair nas graças de uma dama, que diziam ter matado o marido com desgostos.

A viúva Sobral não tinha menos de vinte e sete anos nem mais de trinta; ponhamos vinte e oito. Já vimos o que eram os olhos; — podiam ser singulares, como eles diziam, mas eram também bonitos. Vimos ainda um certo jeito da boca, mal aceito ao Cesário, enquanto as narinas o eram ao Brandão, que achou nelas o indício da teima e da perversidade. Resta mostrar a estatura, que era muito elegante, e as mãos, que nunca estavam paradas. No baile não lhe notou o Brandão esta última circunstância; mas no Pati do Alferes, na casa da prima, familiarmente e a gosto, achou que ela movia as mãos sempre, sempre, sempre. Só não atinou com a causa, se era uma necessidade, um sestro, ou uma intenção de mostrá-las, por serem lindas.

No terceiro dia, começou o Brandão a perguntar onde estava a maldade do gênio de D.

Candinha. Não achava nada que pudesse dar indício dela; via-a alegre, dada, conversada, ouvindo as coisas com muita paciência, e contando anedotas do Norte com muita graça. No quarto dia, os olhos de ambos andaram juntos, não se sabendo unicamente se foram os dele que procuraram os dela, ou vice-versa; mas andaram juntos.

De noite, na cama, o Brandão jurava a si mesmo que era tudo calúnia, e que a viúva tinha mais de anjo que de diabo. Dormiu tarde e mal. Sonhou que um anjo vinha ter com ele e lhe pedia para trepar ao céu; trazia a cara da viúva. Ele aceitou o convite; a meio caminho, o anjo pegou das asas e cravou-as na cabeça, à laia de pontas, e carregou-o para o inferno. Brandão acordou transpirando muito. De manhã, perguntou a si mesmo: — Será um aviso? Evitou os olhos dela, durante as primeiras horas do dia; ela, que o percebeu, recolheu-se ao quarto e não apareceu antes do jantar. Brandão estava desesperado, e deu todos os sinais que podiam exprimir o arrependimento e a súplica do perdão. D. Candinha, que era uma perfeição, não fez caso dele até à sobremesa; à sobremesa começou a mostrar que podia perdoar, mas ainda assim o resto do dia não foi como o anterior. Brandão deu-se a todos os diabos. Chamou-se ridículo. Um sonho? Quem diabo acredita em sonhos? No dia seguinte tratou de recuperar o perdido, que não era muito, como vimos, tão somente alguns olhares; alcançou-o para a noite. No outro estavam as coisas restabelecidas. Ele lembrou-se então que, durante as horas de frieza, notara nela o mau jeito da boca, o tal, o que lhe dava indício da perversidade da viúva; mas tão depressa o lembrou, como rejeitou a observação. Antes era um aviso, passara a ser uma oportunidade.

Em suma, voltou no princípio da seguinte semana, inteiramente namorado, posto sem nenhuma declaração de parte a parte. Ela pareceu-lhe ficar saudosa. Brandão chegou a lembrar-se que a mão dela, à despedida, estava um pouco trêmula; mas, como a dele também tremia, não se pode afirmar nada.

Só isto. Não havia mais do que isto, no dia em que ele referiu ao Cesário que ia casar.

Que não pensava senão no casamento, era verdade. D. Candinha voltou para a corte daí a duas semanas, e ele estava ansioso por vê-la, para lhe dizer tudo, tudo, e pedi-la, e levá-la à igreja. Chegou a pensar no padrinho: seria o inspetor da alfândega.

Na alfândega, notaram-lhe os companheiros um certo ar distraído, e às vezes, superior; mas ele não disse nada a ninguém. Cesário era o confidente único, e antes não fosse único; ele procurava-o todos os dias para lhe falar da mesma coisa, com as mesmas palavras, e inflexões. Um dia, dois dias, três dias, vá; mas sete, mas quinze, mas todos! Cesário confessava-lhe, rindo, que era demais.

— Realmente, Brandão, tu estás que pareces um namorado de vinte anos...

— O amor nunca é mais velho, redarguiu o outro; e, depois de fazer um cigarro, puxar duas fumaças, e deixá-lo apagar, continuava a repetição das mesmas coisas e palavras, com as mesmíssimas inflexões.

CAPITULO III


Vamos e venhamos: a viúva gostava um pouco do Brandão; não digo muito, digo um pouco, e talvez muito pouco. Não lhe parecia grande coisa, mas sempre era mais que nada. Ele fazia-lhe amiudadas visitas e olhava muito para ela; mas, como era tímido, não lhe dizia nada, não chegava a planejar uma linha.

— Em que ponto vamos, em suma? Perguntava-lhe o Cesário um dia, fatigado de só ouvir entusiasmos.

— Vamos devagar.

— Devagar? — Mas com segurança.

Um dia recebeu Cesário um convite da viúva para lá ir a uma reunião familiar: era lembrança do Brandão, que foi ter com ele e pediu-lhe instantemente que não faltasse.

Cesário sacrificou o teatro nessa noite, e foi. A reunião esteve melhor do que ele esperava; divertiu-se muito. Na rua disse ele ao amigo: — Agora, se me permites franqueza, vou chamar-te um nome feio.

— Chama.

— Tu és um palerma.

— Viste como ela olhava para mim? — Vi, sim, e por isso mesmo é que acho que estás botando dinheiro à rua. Pois uma pessoa assim disposta... Realmente és um bobo.

Brandão tirou o chapéu e coçou a cabeça.

— Para falar a verdade, eu mesmo já tenho dito essas coisas, mas não sei que acho em mim, acanho-me, não me atrevo...

— Justamente; um palerma.

Andaram ainda alguns minutos calados.

— E não te parece esplêndida? perguntou o Brandão.

— Não, isso não; mais bonita do que a princípio, é verdade; fez-me melhor impressão; esplêndida é demais.

Quinze dias depois, viu-a o Cesário em casa de terceiro, e pareceu-lhe que ainda era melhor. Daí começou a frequentar a casa, a pretexto de acompanhar o outro, e ajudá-lo, mas realmente porque começava a olhá-la com olhos menos desinteressados. Já aturava com paciência as longas confissões do amigo; chegava mesmo a procurá-las.

D. Candinha percebeu, em pouco tempo, que em vez de um, tinha dois adoradores. Não era motivo de pôr luto ou deitar fogo à casa; parece mesmo que era caso de vestir galas; e a rigor, se alguma falha havia, era que eles fossem dois, e não três ou quatro. Para conservar os dois, D. Candinha usou de um velho processo: dividindo com o segundo as esperanças do primeiro, e ambos ficavam entusiasmados. Verdade é que o Cesário, posto não fosse tão valente, como dizia, era muito mais que o Brandão. De maneira que, ao cabo de algumas dúzias de olhares, apertou-lhe a mão com muito calor. Ela não a apertou de igual modo, mas também não se deu por zangada, nem por achada.

Continuou a olhar para ele. Mentalmente, comparava-os: Um dia o Brandão descobriu um olhar trocado entre o amigo e a viúva. Naturalmente ficou desconsolado, mas não disse nada; esperou. Daí a dias notou mais dois olhares, e passou mal a noite, dormiu tarde e mal; sonhou que matara ao amigo. Teve a ingenuidade de contá-lo a este, que riu muito, e disse-lhe que fosse tomar juízo.

— Você tem coisas! Pois bem; somos concordes nisto: — deixo de voltar à casa dela...

— Isso nunca! — Então que queres? — Quero que me digas, francamente, se gostas dela, e se vocês se namoram.

Cesário declarou-lhe que era uma simples fantasia dele, e continuou a namorar a viúva, e o Brandão também, e ela aos dois, todos com a maior unanimidade.

Naturalmente as desconfianças reviveram, e assim as explicações, e começaram os azedumes e as brigas. Uma noite, ceando os dois, de volta da casa dela, estiveram a ponto de brigar formalmente. Mais tarde separaram-se por dias; mas como o Cesário teve de ir a Minas, o outro reconciliou-se com ele à volta, e dessa vez não instou para que tornasse a frequentar a casa da viúva. Esta é que lhe mandou convite para outra reunião; e tal foi o princípio de novas contendas.

As ações de ambos continuavam no mesmo pé. A viúva distribuía as finezas com igualdade prodigiosa, e o Cesário começava a achar que a complacência para com o outro era longa demais.

Nisto apareceu no horizonte uma pequenina mancha branca; era algum navio que se aproximava com as velas abertas. Era navio e de alto bordo; — um viúvo, médico, ainda conservado, que entrou a cortejar a viúva. Chamava-se João Lopes. Já então o Cesário tinha arriscado uma carta, e mesmo duas, sem obter resposta. A viúva foi passar alguns dias fora, depois da segunda; quando voltou, recebeu terceira, em que o Cesário lhe dizia as coisas mais ternas e súplices. Esta carta deu-lha em mão.

— Espero que me não conservará mais tempo na incerteza em que vivo. Peço-lhe que releia as minhas cartas...

— Não as li.

— Nenhuma? — Quatro palavras da primeira apenas. Imaginei o resto e imaginei a segunda.

Cesário refletiu alguns instantes: depois disse com muita discrição: — Bem; não lhe pergunto os motivos, porque sei que me hão de desenganar; mas eu não quero ser desenganado. Peço-lhe uma só coisa.

— Peça.

— Peço-lhe que leia esta terceira carta, disse ele, tirando a carta do bolso; aqui está tudo o que estava nas outras.

— Não... não...

— Perdão; pedi-lhe isto, é um favor último; juro que não tornarei mais.

D. Candinha continuou a recusar; ele deixou a carta no dunquerque, cumprimentou-a e saiu. A viúva não desgostou de ver a obstinação do rapaz, teve curiosidade de ler o papel, e achou que o podia fazer sem perigo. Não transcrevo nada, por que eram as mesmas coisas de todas as cartas de igual gênero. D. Candinha resolveu dar-lhe resposta igual à das primeiras, que era nenhuma.

Cesário teve o desengano verbal, três dias depois, e atribuiu-o ao Brandão. Este aproveitou a circunstância de achar-se só para dar a batalha decisiva. É assim que ele chamava a todas as escaramuças. Escreveu-lhe uma carta a que ela respondeu deste modo: Devolvo o bilhete que me entregou ontem, por engano, e desculpe se li as primeiras palavras; afianço-lhe que não vi o resto.

O pobre-diabo quase teve uma congestão. Meteu-se na cama três dias, e levantou-se resolvido a voltar lá; mas a viúva tornara a sair da cidade Quatro meses depois casava ela com o médico. Quanto ao Brandão e o Cesário, que estavam já brigados, nunca mais se falaram; criaram ódio um ao outro, ódio implacável e mortal. O triste é que ambos começaram por não gostar da mesma mulher, como o leitor sabe, se lembra-se do que leu.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 22 de março de 2014

Antonio Brás Constante (E tudo começou no braço...)

Na vida é sempre interessante tentarmos transformar limões em limonada, ou pelo menos em uma boa caipirinha. Neste caso, o limão foi à fisioterapia que iniciei no braço esquerdo (mais uma doença em minha coleção particular), transformada no texto que você está começando a ler agora.

Para se tratar de um braço com tendinite, um bom lugar é em uma clínica de fisioterapia. Um local parecido com uma academia de ginástica, pois conta com apetrechos para prática de exercícios, mas que dividem espaço com estranhos equipamentos eletrônicos. Outra diferença é que ao invés de instrutores vestidos em roupas esportivas, encontramos ali atendentes usando jalecos brancos. Para minha sorte, fui atendido por gente simpática e competente, como a jovem fisioterapeuta Berta e de seu fiel escudeiro e auxiliar Luciano. Eram eles que decidiam em qual máquina os pacientes deveriam padecer primeiro (para mim “padecer” significava ficar preso aos tais equipamentos, com os olhos livres para ler todas as revistas que eu pudesse arrebanhar da sala de espera).

De todas as máquinas utilizadas em meu tratamento, a que tinha mais botões, mais fios ligados ao meu braço (que era antes lambuzado com gel), e que demorava mais tempo presa ao corpo (uns vinte minutos), era uma belezinha chamada TNS. Sendo a única que demonstrava surtir algum efeito positivo, pois causava algo parecido com um formigamento (sem a necessidade de colocar o braço num formigueiro). Tal benefício suscitou à vontade de utilizá-la de uma forma mais prolongada. Um aparelho assim em casa poderia ser melhor do que muita aspirina. Bastaria deixá-lo ligado ao braço lesionado, posicionar uma caixa de isopor cheio de cervejas ao alcance do outro braço, adicionar a este cenário um confortável sofá, uma almofada e uma televisão, e o tratamento ficaria perfeito.

Para por essa ideia em prática, o primeiro passo foi verificar com a turma da fisioterapia se aquilo era viável. Mas, para minha tristeza, a explicação dada foi de que o aparelho não curava nada, atuando somente no combate a dor. Na verdade, eram os outros aparelhos (que eu tanto desprezei), que traziam melhorias ao problema.

Pensei em argumentar, que se talvez utilizássemos algum tipo inovador de catalisador misturado ao gel, como por exemplo, o pó das tais pedras de criptonita descobertas recentemente, o TNS não poderia surtir efeitos mais milagrosos (lembro que no seriado SMALLVILLE, isto sempre dava certo). Caso isso acontecesse, ele poderia ser empregado em várias enfermidades, tais como a diarréia, a caspa, a gripe, o mau-olhado, a urucubaca entre outras moléstias que existem por aí. Quem sabe até atuar na cura de uma das maiores doenças da humanidade, a corrupção.

Mas preferi não arriscar este tipo de ideia. Afinal, pior do que ter uma dor no braço, é acabar sendo forçado a começar um outro tipo de tratamento, algo somente realizado em locais especiais, também conhecidos como clínicas psiquiátricas.

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/humor/547350

Dáguima Collection [Trova 1]


Paulo Setúbal (O Príncipe de Nassau)

- Às armas!

A guarda do Palácio de Friburgo acudiu prestes ao grito da sentinela. Soou um toque áspero de clarim. Rufaram as caixas com estrépito. Os soldados holandeses, com os chapelões de plumas, bateram forte as alabardas no chão: Maurício de Nassau, o Príncipe magnífico, surgiu no pórtico do palácio. Sua Alteza, como de costume, saía para o passeio da tarde.

Fora, no pátio, os cavalos estavam prontos. Estrembon, pajem e camareiro, precipitou-se a segurar as rédeas do alazão. Era o cavalo mais belo de Pernambuco, o mais árdego dentre os trinta que o Príncipe tinha habitualmente nas cavalariças.

Maurício, desempenado e ágil, galgou a sela. Carlos Tourlon, Capitão da Guarda, também montou. Seguiram-se duas ordenanças. O Governador de Pernambuco trotou galhardamente para a Cidade Maurícia.

Nassau, naquela tarde, estava radioso. Alegria radiosa, dessas que sacodem a gente, embriagava a sua alma de soldado. É que nessa manhã, ribombando, por entre fragorosas surriadas de mosqueteiros, entrou barra a dentro uma nau louçã, muito garrida, com grandes embandeirados no velame. Vinha da Bahia. Vinha comissionada especialmente pelo Vice-Rei do Brasil, o mui alto e poderoso Senhor Marquês de Montalvão, para trazer a Maurício, numa embaixada de gala, esta nova alvoroçante: Portugal, vencendo a Espanha, proclamara enfim a sua independência. E D. João, Duque de Bragança, fora aclamado rei sob o nome de D. João IV.

Tão alta era a notícia, tão faustosa, que o Príncipe ouvindo-a, arrancou do dedo um anel opulento, onde faiscava baga imensa, dando-o de alvíssaras ao piloto João Lopes, o mensageiro afortunado.

Essa brusca reviravolta política significava, de fato, imediato paradeiro às lutas do Brasil. Era a paz entre Holanda e Portugal. Mais do que a paz: era a aliança forçada entre os dois países para combaterem a Espanha, agora inimigo comum.

Nesse dia, além da nova assim emocionante, havia ainda, para afestoar o coração do Príncipe, certo recado de Montalvão, vindo pela segunda vez, recado secreto, muito confidencial, que significava o triunfo mais envaidecedor do guerreiro político.

Montalvão, ao assumir o governo na Bahia, isso há meses já, houvera feito velejar dois emissários para a Cidade Maurícia. Um fora João Martins Ferreira; outro, Pedro de Arenas. Trouxeram ambos a Nassau, com insufladoras cortesanices, um alto bastão de ouro maciço, cravejado de muita pedraria de preço. Com esse regalo, primor de fidalguia, chegara também, entre fechados sigilos, aquele misterioso recado, recado secreto, muito confidencial, que lisonjeara fundo o orgulho do Príncipe...

Naquele dia, com a embaixada que descera no porto, Montalvão repetira o recado. Que recado era aquele? Ninguém sabia. Mas, o certo é que, naquela tarde, com o coração pálpite, Maurício partiu, entre toques e rufes, para o passeio de costume.

Atravessou o vasto parque de Friburgo, onde frondejavam setecentas palmeiras. Meteu-se pela Cidade Maurícia. Cortou a Praça dos Coqueiros. Desembocou na Ponte do Recife.

Os moradores de Maurícia eram holandeses e judeus. Ao ouvirem o pateado dos cavalos, aqueles homens de língua estranha, muito ruivos, vestidos com gibões de saragoça, corriam atarantados às portas das casas,
desbarreteando-se à passagem do séquito.

Ao pé da ponte, junto à correnteza do Capiberibe, ficava a taberna do velho Snider. Um magote de flamengos, com o taberneiro à frente, vermelhos e desordenados, copos na mão, saiu à rua tumultuosamente, a bradar com efusão:

- Viva o nosso Príncipe!

Maurício sorriu. Do alto da sela, com um gesto condescendente, agradeceu
aos berradores. Novos vivas, grande alarido.

Nassau atravessou por entre aquele bando fremente. Ao entrar na ponte, virou-se para o Capitão da Guarda:

- Não parece que estão borrachos, Carlos Tourlon?

- Tontos de vinho devem andar eles, Príncipe! Hoje, foi dia de festa na taberna de Snider...

- Festa? redargüiu Maurício admirado; festa? E por qual razão, Carlos de Tourlon?

- Vossa Alteza não sabe? Por um motivo grave, tornou o capitão: é que os escabinos decidiram a demanda que Snider pôs contra Manuel Felipe, aquele lavrador de canas. Vossa Alteza não se lembra? Aquela demanda por causa do macho gateado que esteve na pastaria de João Fernandes Vieira.

- Ah! Lembro-me muito bem. E então?

- Snider ganhou a querela. Foi Manuel Filipe condenado a pagar o preço do macho e as custas: setecentos e muitos florins!

- Feia coisa, exclamou Maurício, franzindo o sobrolho. Pesada injustiça! Foi uma decisão má dos escabinos...

A comentarem o caso, num trote manso, os cavaleiros atravessaram a ponte. Entraram cm Recife, a cidade velha. Tudo aí eram portugueses e mamelucos. A essa hora, nesse afogueado cair da tarde, os escravos do senhorio rico, uns chatos negrões de Angola, dentro de suas pantalonas de tela de Flandres, passavam aos bandos, carregando água doce, gotejantes, com enormes cacimbas à cabeça. Índios mansos, tapuias e potíguaras, voltavam dos engenhos e das lavouras, as foices roçadeiras ao ombro, o ar suarento de cansaço.

O Príncipe tocou pela cidadezinha. Cortou-a de ponta a ponta. Depois, sem dizer palavra, enveredou rumo da praia. Pôs-se a trotar vagarosamente pela areia branca. Todos seguiam-no, calados. De repente, num cômoro Maurício de Nassau estacou o ginete. Aí, diante dos seus olhos, estendia-se, largo e belo, um panorama surpreendente.

Que maravilha! Ao longe, muito ao longe, no fundo do horizonte, um grande sol, fulvo e sangrento, atufava-se em chamas como um incêndio. E grossas brochadas de luz, brochadas quentes e uivantes, zebravam de listrões assanhados aquele céu candente dos trópicos.

Maurício de Nassau, embevecido, virou-se para a banda do mar. E soltou pela vastidão das águas um olhar feliz e vitorioso.

Ali estava a seus pés, corcovado de vagas, o férvido oceano espumarento, que os Estados a custo subjugaram. Ali estava, arrepiada em morros, a  imensa terra brasileira, seis ásperas capitanias, inchadas de muito gentio emplumado, que ele, Maurício, com a sua espada, acabava de conquistar galhardamente, debaixo da saraivada das flechas e do estrondo dos pelouros.

Fora lá, nessas águas e nessas terras, que se derramara tanta vez, aos gorgolões, o sangue batavo! Fora lá pelas angras do sul, na Bahia de Todos os Santos, que um dia, pela primeira vez, arribaram por estas bandas, com as flâmulas vermelhas panejando nos mastaréus, as grandes naus côncavas de Jacob Willekens. Fora lá, naquelas mesmas abras, que também fundeara um dia, calada e inútil, a frota assustadiça de Hendrickzoon.

E fora aqui, diante dos seus olhos, nas águas crespas do Arrecife, que aportara enfim, garbosamente, por entre os roncos do canhoneio, a armada triunfadora de Loneq: fora aqui que desembarcaram, nas suas pinaças bojudas, os soldados que ganharam para a Holanda a terra nova.

Quanto sangue jorrado! Quanta desesperada luta! Mas hoje - e o olhar do Príncipe corria ufano os longes do horizonte - mas hoje, por esse infinito além, por esse costão selvagem que o mar lambia, espumejando, tremulavam afinal, nos fortins e no velame dos patachos, as cores dos Estados! E era agora daqui, destes brasis longínquos, que partiam para os depósitos de Amsterdam, inundando-os, aqueles brutos galeões prenhes de açúcar macho; aqueles veleiros de garbosa mastreama, largos e sólidos, abarrotados de pau-brasil de tinta; aquelas fundas barcaças que zarpavam túrgidas de tabacos e de papagaios. Era daqui da terra nova, que ele, Maurício, mandara à pátria, todos os anos trezentos mil florins de décimas, setecentos mil de pensões, afora os dois milhões de lucros na venda dos engenhos e quase seiscentos belos caravelões aprisionados.

A política do Príncipe, desde o início do governo, fora a política de conciliação. Era de ver-se os frutos dela! Que prodígio!

Lá em baixo, na ilha de Antônio Vaz, florescia, nova, os telhados ainda vermelhos, aquela famosa Cidade Maurícia, o assombro da época, com o seu belo Palácio de Friburgo, com as pontes de rijo tabuado, as grossas fortalezas, roqueiras, as ruelas pitorescamente ensombradas de árvores e regadas de águas cantantes. Depois, em frente dela, o Recife; aquele Recife antigo, tradicional, onde os velhos homens da terra tinham as suas moradas alterosas de boa taipa, os tratantes judeus as suas escuras lojas de moeda e de mercância.

Lá estava, à sombra dos falcões de bronze dos fortes, a casa de pedra de João Blaar, o sangrento general de Holanda. Rente dela, com as portas de rótula, a casinha de Frei Manuel do Salvador, o cura jeitoso e politicão, reinol de muitas letras e de muitas lábias. Além, toda de madeira pintada, como em Flandres, a chácara de Gilberto Van Dirth, flamengo apelintrado, um dos três do Conselho Político. Depois, entre coqueiros, o casarão de Gaspar Dias Ferreira, tremendo velhaco, rabulejador e patoteiro, o mais querido dos amigos do Príncipe. E não era só. Lá se viam pela cidade, chatas, nuas de enfeites, as moradas de todos os principais do país: a de João Fernandes Vieira, altíssima personagem da terra, mercante afortunado e rico; a de Antônio Bezerra, velho moedor de canas, pessoa de grandes teres e de grande vida; a de Antônio Cavalcanti, sombrio inimigo de João Fernandes, homem emproado, imensamente ensoberbecido do seu sangue e da sua linhagem; a de Sebastião de Carvalho, lavrador de pau-de-tinta, sujeito estranho, de poucas falas, devotado parceiro dos holandeses...

Maurício, da praia, contemplava, orgulhoso, o panorama soberbo. Com um sorriso, o coração inflado, não pôde reprimir-se:

Como isto é belo, Carlos Tourlon! Como é formosa esta terra! É a mais formosa terra do mundo...

A tarde caíra. Tarde abafada, tarde languescedora, tropical. Ao longe, no porto, as naus adormentavam-se tranqüilas, numa doce quietude, como pássaros enormes pousados à flor das águas. Apenas uma pinaça, velas abertas, balouçava-se agitada, com muita escravaria correndo dentro dela. O Príncipe notou aquele açodamento. E apontando para o barco:

- É o patacho de Israel Voss?

- É, Príncipe. Ainda está a carregar. Veleja amanhã cedo para Cabedelo. Vai nele Segismundo Starke, levando os barris de pólvora que Vossa Alteza manda à Paraíba.

- É verdade atalhou Maurício. Elias Erckmann está com munição escassa. E é preciso não descuidar! Henrique Dias e Camarão andam por aí de emboscada em emboscada. É preciso ter cautela...

Nassau esporeou o alazão. Virou as rédeas. Os do séquito acompanharam-no.

Tombara uma serenidade empolgante. Andavam rumores estranhos pelo ar. Branquejavam o azul, de vez em quando, asas de gaivota. Tiniam pios. Prodigioso cair de tarde...

Os cavaleiros marchavam em silencio. Entraram de novo pelas ruas do Recife. Atravessaram a ponte. De súbito, ao penetrar na Cidade Maurícia, a comitiva topou de chofre com Frei Manuel do Salvador (1).

O religioso, metido na sua loba poeirenta, chapéu negro de aba larga, lá se ia pela estrada, cismarento, montado num burrinho filosófico. Nassau, ao vê-lo, gritou logo num alvoroço:

- Olá, Frei Manuel! Viva! Então Vosmecê ai a caminhar tão pachorrento. Num burrico desses! Aonde vai Vosmecê assim, meu padre, nessa cavalgadura tão derreada?

Frei Manuel desbarreteou-se e, sorrindo com jovialidade, retrucou:

- Deus o salve e guarde, Príncipe! Mas não mofe Vossa Alteza assim do meu rocim. Estou que Vossa Alteza, nas suas cavalariças, com os seus trinta cavalos, não tem alimária mais segura. Aquilo é sempre assim, sempre neste passo, sem corcovos. nem bufos, mas sempre a carregar onde me apraz. Ainda agora, como Vossa Alteza vê, sigo eu para o engenho de João Fernandes Vieira. Vou dar dois dedos de prosa com o velho amigo.

- Vosmecê vai ao Engenho de Várzea? tornou Maurício. Pois é favor, Frei Manuel, dizer a João Fernandes que anda muito arredio. Não há quem mais o veja cá por Maurícia! Que é que sucedeu? Será que João Fernandes, depois que apalavrou o casamento das cunhadas com os filhos de Antônio Cavalcanti, se tornou bicho de toca? Ora... valha-nos Deus! Pois diga-lhe, padre, que deixe de casmurrice e que apareça. Quero felicitá-lo por esse gosto.

- Direi, Príncipe. Direi a João Fernandes que venha logo à Cidade Maurícia; e mais ainda, isto sim, que venha sentar-se à mesa do seu amigo, o Príncipe de Nassau, a fim de bebericarem juntos uma botelha daquele vinho encorpado de Holanda, que há nas cubas de Friburgo.

- Isso, Frei Manuel! Diga-lhe isso, tal e qual!

E rindo-se, rindo-se a bom rir, Maurício despediu-se folgazonamente:

- Adeus, frei; boa jornada e boa pressa!

Caíra a noite. Os cavaleiros tocaram apressados. Na casa de pedra de João Blaar, andava rumoroso borborinho. Havia dentro muitas luzes. Largo vozerio de gente. Maurício de Nassau, ao passar, espantou-se com tanta bulha:

- Que é aquilo, Carlos Tourlon? Hoje também há festa em casa de João Blaar?

- Festa, sim, Príncipe; e festa grande! É que estão lá a brindar o ajuste do casamento de Segismundo Starke com Carlota Haringue. Segismundo parte amanhã, no patacho de Israel Voss, a levar os barris de pólvora para Cabedelo. Por isso a festa dos esponsais é hoje; o casamento fica para a volta.

Maurício olhou o Capitão, com surpresa. Os seus olhos fuzilaram, interrogativos. E depois de uma pausa:

- Carlota vai casar-se com Segismundo?

- Vai, Príncipe.

- E Rodrigo, inquiriu Maurício; e Rodrigo, o afilhado de André Vidal de Negreiros?

- Esse, naturalmente, ficará a espera de outra, tornou Carlos Tourlon; desta vez foi Segismundo quem pescou a truta.

- Bela rapariga, em verdade, exclamou Nassau; é a mais bela de todas as que eu tenho visto no Brasil! Nem sei de outra que se lhe compare...

Tinham chegado a Friburgo. Soaram de novo os clarins. Rufaram os tambores. Os soldados bateram forte as alabardas no chão. Maurício saltou da sela. E virando-se para o Capitão:

- Vosmecê deseja ir à festa de João Blaar, Carlos Tourlon?

- Se Vossa Alteza consentir, Príncipe.

- Pois vá. Hoje não careço mais de Vosmecê.

Arremessando as rédeas ao pajem, João Maurício de Nassau, o mui poderoso Príncipe, galgou as escadarias do Palácio de Friburgo.

 Fonte:
http://biblio.com.br/conteudo/paulosetubal/principedenassau.htm

Machado de Assis (A Segunda Vida)

Monsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido: — Dá licença? é só um instante. Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa: — João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa.

E, voltando à sala: — Pronto, disse ele; podemos continuar.

— Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez? — Não, senhor.

— São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava um milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia recusar.

Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa Reverendíssima no meu lugar? — Não posso saber; depende...

— Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: — "Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!" Lembrou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço: gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama de leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não? — Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.

— Será parente do padre Sousa Caldas? — Não, senhor.

— Bom poeta o padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando...

Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das ideias ou o assombroso das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxilio policial, monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou: — Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores... Não se assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres? — Como quer que saiba?...

— Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia... Ninguém esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos antes, na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim.

Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.

— Com efeito...

— Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo? — Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés...

— Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim...

José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada.

Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: — carros e carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos: — Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres...

— Sim, senhor.

— Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos casamos: tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a frequentar a casa, em Matacavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão.

Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planejando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês.

Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.

— Não alcanço...

— Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: — podia ficar o fastio. Concluí a toalete de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica...

Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa noite... Deixa-me fumar outro cigarro? Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras.

Quem diabo podia ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela lhe desse. — A resposta de José Maria foi uma pergunta.

— Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. "Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado." Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.

— Não, senhor...

— Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. "Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo." Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio meu, em Santana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei fulminado. "Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha notícia da herança." Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu.

Um dia, dois dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer.

Então declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresentei-lho: é este.

Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou: — Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais... Três semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das ilusões de saia rota, nem do tal pássaro...

plás... plás... plás...

E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças.

Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela ideia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue... Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou... Com quem pensava o padre que ele sonhou? — Não atino...

— Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. "Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode ombrear com eles.

Salomão é a sapiência. E sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos." Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: "José Maria, são os teus vinte anos." Era uma gargalhada assim: — cá, cá, cá, cá, cá...

José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos, como viu a mulher diante dele aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido.

"Não, miserável! não! tu não me fugirás!" bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Anna Ribeiro (Cristais Poéticos)

COLETÂNEA VERSOS LIVRES

                            Vida
Na tortuosa estrada
Os sonhos ficaram ,
Na encruzilhada.

                          Tempo...
Lá no horizonte,
O sol deitou com a lua,
A rua escureceu!

                         Desilusão!
Do Amor- Perfeito
Abelha colheu mel,
Do zangão amargo fel!

                        Saudade
No embarque de ilusões!
O barquinho de papel,
Em poças d'agua...

                       Sonhos
Noite sem luar,
Ilumina meus sonhos
O vagalume no ar!

                      Inverno
Frio no amanhecer
Bem-te-vi cantando,
Vento, natureza despertando

                     Alegria
Céu anil de verão,
Andorinhas em sinfonia,
Revoando em verdes prados.

                      Ais...
Na face rugas,
sempre em ilusões,
Assim padeceu o Ancião

ALÉM...

Das palavras trancadas
Sinto-me na contramão
No silêncio desta ponte
Adormecem meus sentimentos.

SAUDADES DO ONTEM

Em tempo infinito...
Anseios e sentimentos
Na pose estudada
Vidas registradas,

Olhares revelados,
De tempos decorridos
Então... mudou-se

Rumos e destinos.
Apenas no sépia
A alma resiste!

SEDE DE AMAR

Voando nas asas da lembrança
Em metáforas...
Versos e ilusões!
Nas razões do ser e do viver

Em linhas as melodias em frases.
Mesmo que em paginas amareladas,
No repassar folha por folha.
Do segredo... Ficou a saudade!

SEGREDOS

Neste poetar,
Sentimentos de um tempo.
Coração persiste!
...Se na alma ausência,

Dos versos enlaçados,
Lembranças entrelaçando solidão.
Despertando saudade!
... Não digo teu nome.

Fica no desejo...
Da boca, o beijo roubado.

ENTRELINHAS

Mesmo espaço
Gosto do agora
O tempo todo
Tudo dentro do hoje

Algo sobre
Estar
Ficar
Olhar de novo...

Descobrindo, mudanças...
Tu e eu... mesmo tempo

CAMINHOS...

Da lucidez vazia?!...
Sou como sou.
Não sou Dolores,
Na estrada da vida
Sou filha das Dores.
O que sinto!
Não conto.
O que penso!
Não Digo
Da traição...
Fingi esquecer.
Do que não soube...
Faço de conta que não entendi.
Afinal;
Dentro de minha alma...
Depende;
Como você me vê

SENTIR

                  Madrugada coração em trapos
                      Uma lágrima no cetim!
                      Céu ,lampejam as faiscas

                          Ardente tremor
                   Na vidraça olhos vidrados!
                        Desaba sentimentos

                  Raios... Claros como o sentir;

                          Da tua despedida.

ACARICIANDO A SAUDADE

Livre em pensamentos...
Já disse em outras linhas
Minha poesia ri!

Por vezes até gargalha!
...Refazendo a alma
Hoje busco silencio!

Não tenho tristeza.

Apenas agrada-me ficar na saudade.

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=78831

A Poesia (História e a Poesia em Portugal)

Pesquisa de Carlos Leite Ribeiro (Marinha Grande/Portugal), do Portal CEN

A poesia, ou gênero lírico, ou lírica é uma das sete artes tradicionais, pela qual a linguagem humana é utilizada com fins estéticos, ou seja, ela retrata algo que tudo pode acontecer dependendo da imaginação do autor como a do leitor. "Poesia, segundo o modo de falar comum, quer dizer duas coisas. A arte, que a ensina, e a obra feita com a arte; a arte é a poesia, a obra poema, o poeta o artífice." O sentido da mensagem poética também pode ser importante (principalmente se o poema for em louvor de algo ou alguém, ou o contrário: também existe poesia satírica), ainda que seja a forma estética a definir um texto como poético. A poesia compreende aspectos metafísicos (no sentido de sua imaterialidade) e da possibilidade de esses elementos transcenderem ao mundo fático. Esse é o terreno que compete verdadeiramente ao poeta.

Num contexto mais alargado, a poesia aparece também identificada com a própria arte, o que tem razão de ser já que qualquer arte é, também, uma forma de linguagem (ainda que, não necessariamente, verbal).

História

A poesia como uma forma de arte pode ser anterior à escrita. Muitas obras antigas, desde os vedas indianos (1700-1200 a.C.) e os Gathas de Zoroastro (1200-900 aC), até a Odisseia (800 - 675 a.C.), parecem ter sido compostas em forma poética para ajudar a memorização e a transmissão oral nas sociedades pré-históricas e antigas. A poesia aparece entre os primeiros registros da maioria das culturas letradas, com fragmentos poéticos encontrados em antigos monolitos, pedras rúnicas e estelas.

O poema épico mais antigo sobrevivente é a Epopeia de Gilgamesh, originado no terceiro milênio a.C. na Suméria (na Mesopotâmia, atual Iraque), que foi escrito em escrita cuneiforme em tabletes de argila e, posteriormente, papiro. Outras antigas poesias épicas incluem os épicos gregos Ilíada e Odisseia, os livros iranianos antigos Gathas Avesta e Yasna, o épico nacional romano Eneida, de Virgílio, e os épicos indianos Ramayana e Mahabharata.

Os esforços dos pensadores antigos em determinar o que faz a poesia uma forma distinta, e o que distingue a poesia boa da má, resultou na "poética", o estudo da estética da poesia. Algumas sociedades antigas, como a chinesa através do Shi Jing, um dos Cinco Clássicos do confucionismo, desenvolveu cânones de obras poéticas que tinham ritual bem como importância estética.

Mais recentemente, estudiosos têm se esforçado para encontrar uma definição que possa abranger diferenças formais tão grandes como aquelas entre The Canterbury Tales de Geoffrey Chaucer e Oku no Hosomichi de Matsuo Basho, bem como as diferenças no contexto que abrangem a poesia religiosa Tanakh, poesia romântica e rap.

O contexto pode ser essencial para a poética e para o desenvolvimento do gênero e da forma poética. Poesias que registram os eventos históricos em termos épicos, como Gilgamesh ou o Shahnameh, de Ferdusi, serão necessariamente longas e narrativas, enquanto a poesia usada para propósitos litúrgicos (hinos, salmos, suras e hadiths) é suscetível de ter um tom de inspiração, enquanto que elegia e tragédia são destinadas a invocar respostas emocionais profundas. Outros contextos incluem cantos gregorianos, o discurso formal ou diplomático, retórica e invectiva políticas, cantigas de roda alegres e versos fantásticos, e até mesmo textos médicos.

O historiador polonês de estética Wladyslaw Tatarkiewicz, em um trabalho acadêmico sobre "O Conceito de Poesia", traça a evolução do que são na verdade dois conceitos de poesia. Tatarkiewicz assinala que o termo é aplicado a duas coisas distintas que, como o poeta Paul Valéry observou, "em um certo ponto encontram união. [...] A poesia é uma arte baseada na linguagem. Mas a poesia também tem um significado mais geral [...] que é difícil de definir, porque é menos determinado: a poesia expressa um certo estado da mente.

Gêneros poéticos


Permitem uma classificação dos poemas conforme suas características. Por exemplo, o poema épico é, geralmente, narrativo, de longa extensão, eloquente, abordando temas como a guerra ou outras situações extremas.
 
Dentro do gênero épico, destaca-se a epopéia. Já o poema lírico pode ser muito curto, podendo querer apenas retratar um momento, um flash da vida, um instante emocional. Poesia é a expressão de um sentimento, como por exemplo o amor. Vários poemas falam de amor. O poema, é o seu sentimento expressado em belas palavras, palavras que tocam a alma. Poesia é diferente de poema. o Poema é a forma que se está escrito e a poesia é o que dá a emoção ao texto.

Licença poética

A poesia pode fazer uso da chamada licença poética, que é a permissão para extrapolar o uso da norma culta da língua, tomando a liberdade necessária para recorrer a recursos como o uso de palavras de baixo-calão, desvios da norma ortográfica que se aproximam mais da linguagem falada ou a utilização de figuras de estilo como a hipérbole ou outras que assumem o caráter "fingidor" da poesia, de acordo com a conhecida fórmula de Fernando Pessoa ("O poeta é um fingidor").
 
A matéria-prima do poeta é a palavra e, assim como o escultor extrai a forma de um bloco, o escritor tem toda a liberdade para manipular as palavras, mesmo que isso implique romper com as normas tradicionais da gramática.

Limitar a poética às tradições de uma língua é não reconhecer, também, a volatilidade das falas.

Poesia de Portugal

A poesia portuguesa tem raízes recuadas, ainda antes da afirmação da nacionalidade.

Poesia arábica em território nacional


Entre os árabes, enquanto estes povoavam o território que mais tarde viria a ser Portugal, encontramos um punhado de poetas de grande valor, o que era constante, aliás, na civilização islâmica da altura, muito dedicada à poesia. Al-Mu'tamid (rei do Taifa de Sevilha), Ibn Bassam (em Santarém, na altura chamada Xantarim), Ibn'Amar e Ibn Harbun (de Silves) são alguns exemplos.

Poesia na idade média cristã

Com a Reconquista Cristã e a fundação da nacionalidade, inicia-se a época da poesia galaico-portuguesa. As cantigas de amigo; as cantigas de amor e as cantigas de escárnio e maldizer, foram compiladas em antologias da época, manuscritas, a que se deu o nome de Cancioneiros. Podemos fazer referência a alguns dos mais importantes:

Cancioneiro da Ajuda - Compilado em Portugal no final do século XIII ou no princípio do século XIV.

Cancioneiro da Vaticana - Compilado em Itália no fim do século XV ou no princípio do século XVI.

Cancioneiro Colocci-Brancutti ou Cancioneiro da Biblioteca Nacional - Compilado em Itália no fim do século XV ou no princípio do século XVI.

O trovadores e jograis (feminino: jogralesas) cultivaram ainda outros gêneros poéticos, como as tenções, as cantigas de seguir, as cantigas de vilão, as pastorelas, os prantos, os descordos, os lais.

Existe uma época da história desta poesia, considerada como uma idade de ouro, que compreende um período afonsino (de 1240 a 1280), com os reinados de Afonso X de Castela (autor das Cantigas de Santa Maria) e de Afonso III de Portugal. Segue-se o período dionisíaco, com o reinado de D. Dinis (filho de Afonso III). O seu filho bastardo, Dom Pedro, Conde de Barcelos (que morre em 1354), autor de algumas cantigas que encerram um período de florescimento poético.

A poesia galego-portuguesa passa, então, por um período de decadência, desde fins do século XIV e ao longo do século XV. Forma-se uma escola castelhano-portuguesa (escrevendo-se nos dois idiomas emergentes). Será Garcia de Resende a efetuar a compilação desta produção poética no seu Cancioneiro Geral, em 1516.

A par desta poesia lírica, outros jograis divulgavam as gestas, poemas de cariz épico e hagiográfico, muitas vezes utilizadas como fontes de informação para os cronistas da época. Alguns estudiosos desta manifestação cultural, como António José Saraiva, Lindley Cintra e Diego Catalán acreditam que terá existido um poema épico, cantado pelos jograis, onde se narrariam os feitos de D. Afonso Henriques. Transmitido oralmente, parece ter servido de mote para cronistas portugueses e castelhanos, que a transformaram e prosa (a forma poética tem também a função de tornar mais fácil de memorizar os longos relatos). O Romanceiro português alia o épico ao lírico nos seus romances bastante diversificados. O alaúde era um instrumento muito usado na época.

Renascimento


Os poetas portugueses representados no Cancioneiro de Garcia de Resende demonstram algum conhecimento de outras poéticas: Dante Alighieri, Petrarca, Juan de Mena, Marquês de Santillana, além de autores do classicismo romano.

Gil Vicente e Francisco de Sá de Miranda marcam, na poesia, o início do Renascimento em Portugal, onde também se destaca António Ferreira.

Luís Vaz de Camões é, contudo, o vulto maior da poesia portuguesa. Os Lusíadas, 1572 é o poema nacional por excelência. Não se deve, porém, esquecer a sua poesia lírica, a todos os níveis incomparável, reunida nas Rimas, postumamente, em 1595.

É com Camões que se faz, também, a nível de estilo e conteúdo, passagem para o Maneirismo, de uma poesia melancólica e de profundo questionamento existencial que já se verifica em Camões (onde a temática do exílio, na sua lírica, e a crítica aos aspectos menos heróicos de Portugal, como o "gosto d'hua austera, apagada e vil tristeza", n'Os Lusíadas, já faz entrever). Diogo Bernardes, Vasco Mouzinho de Quevedo, Baltasar Estaço, D. Manuel de Portugal, Sá de Miranda e Francisco Rodrigues Lobo são alguns dos nomes mais importantes deste período que irá desembocar no Barroco.
 
Luis de Góngora, na Espanha, a par com Francisco de Quevedo, é o modelo a imitar, no que diz respeito à poesia Barroca. Os poetas portugueses da altura, como Jerónimo Baía, Barbosa Bacelar e D. Tomás de Noronha (entre muitos anônimos), sem o mesmo brilho dos mestres espanhóis, glosam, então, num virtuosismo formal intrincado, os temas da Morte, e da inconstância da Sorte e da Fortuna, transmitindo um sentimento que marcava, também, a religião na Península Ibérica, na altura.

Como reação ao Barroco, seguindo o lema Inutilia truncat (cortar o inútil) o Neoclassicismo, inspirado nos modelos gregos e latinos (e no próprio Renascimento), inicia-se com Pedro António Correia Garção (pseudônimo arcádico: Córidon Erimanteu), na segunda metade do século XVII. A Arcádia Lusitana vai ser o movimento poético mais importante desta época até à primeira metade do século XIX, reunindo os nomes de Francisco Manuel do Nascimento (mais conhecido pelo pseudônimo arcádico Filinto Elísio), Manuel Maria Barbosa Du Bocage, Francisco Joaquim Bingre, Marquesa de Alorna, José Anastácio da Cunha, José Agostinho de Macedo, Nicolau Tolentino de Almeida, António Dinis da Cruz e Silva, entre outros.

O século do Romantismo


O século XIX trouxe consigo alguns dos maiores vultos da poesia portuguesa. Ainda que não tivesse sido pródigo na quantidade, este foi o século de Almeida Garrett, Antero de Quental, Gomes Leal, António Nobre, João de Deus, Cesário Verde, Guerra Junqueiro…

O século XX, no entanto, é, segundo as palavras de um dos grandes poetas contemporâneos (Eugénio de Andrade), o século de ouro da poesia portuguesa.

A quantidade e qualidade é, realmente, assombrosa. Destacam-se Florbela Espanca, Teixeira de Pascoais, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Camilo Pessanha, António Botto, Afonso Duarte, Irene Lisboa, Edmundo de Bettencourt, Vitorino Nemésio, José Régio, Saúl Dias, António Gedeão, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Natália Correia, Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, Albano Martins, David Mourão-Ferreira, António Manuel Couto Viana, Alberto de Lacerda, António Maria Lisboa, Fernando Echevarria, Rui Knopfli, Ruy Belo, João Pedro Grabato Dias, António Osório, Liberto Cruz, José Carlos Ary dos Santos, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Luiza Neto Jorge, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel de Magalhães, António Franco Alexandre, Carlos Eurico da Costa, Nuno Júdice, Al Berto, Luís Filipe Castro Mendes, Adília Lopes, Ana Hatherly, Herberto Helder, Luís Miguel Nava, António Franco Alexandre, Daniel Faria , Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Pedro Sena-Lino, José Carlos González, Natercia Freire.
====================
continua… A poesia no Brasil

Pedro Du Bois (Navegando nos Versos) 2

OUTONO
 

A bailarina
para o passo
estanca o corpo
                 diáfano
esconde o sorriso
               radiante

estar ali por instantes

               triste
     bailarina
  parada

sua a dor da descoberta
sua a intenção revelada
sua a vontade primeira

 descalça as sapatilhas
                           e as joga fora
sem cumprimentar ninguém
                                  vai embora.

DESCONHECER

Do que não conheço:
             a distância rítmica com que as lembranças
             se iludem em imagens e fotografias
             de altos prédios de faz de conta e o transatlântico
    dobra outro cabo
                        há desesperança em seu apito
                  frêmito e fremido em espadas divinas
          arestas mal aparadas
          e eu aqui
                    parado confesso e conto
não os reconheço vizinhos e parentes
sei que suas faces obscurecem e branqueiam
enquanto atrás das vidraças quando passo
no trajeto com o livro embaixo do braço
                           no banco da praça leio
                     as palavras que por lá brincam e conversam

desconheço:
            ordens e comandos
                                pois avesso ao começo
                        em viagens enjoo a chegada
                        não carrego malas
                                                 e chapéus
                                                        nem bengalas
                                                 (apenas) levo o que livro.

VIAGEM

Espaço
         tempo
espaçonave

      aqui
     e lá
agora

o corpo com que viaja
traz a imagem
                  do lado de fora

escuro
tempo
a nave

silêncio
dentro e fora
                estática.

HORAS

São horas tantas
passadas
nas músicas repetidas
aos gritos
no bar da esquina

no barulho irritante
dos móveis arrastados
no andar de cima

são tantas horas
insones
a olhar você
dormindo
com as mãos espalmadas
em abrigo
do rosto descansado
de quem sonha

horas tantas são
esperadas
como se o milagre
pudesse as multiplicar
no meu tanto faz.

VÍRUS

O vírus vive (morre) onde ataca. Destaca
a fragilidade aberta ao contato. Vivencia
o ato da disputa: o revés não o aniquila.
Feito paciente no horário determinado.
O corpo não permite ao vírus a entrada.
Cede no cansaço de anos de batalha.
O vírus permanece na oportunidade.

MISTÉRIO
 

Sobre o mistério de eu ter vindo
no longo serpentear do caminho
ignaro e ignoto homem
                         eu sozinho
refeito em paisagens borradas
pelos olhos anteriores
                         eu distraído
esquecido de ser paragem
no horizonte

            nas tênues - poucas -
luzes
     eu trazido
em oferenda e oferta de carinhos
ensimesmado nos castigos
                              eu parido
em primavera longínqua e esquecida
de uma casa sob a rua
                               eu surgido
no minuto terço
                      eu nascido

não explicam as razões
                                  eu estando
nem dizem que o amor esconde
 o canto
em cantigas antigas
                            eu espanto
                     esperta criança
                                          eu corrido
que aguarda nas noites
                                 eu sofrido
a explicação do mistério e a finalidade
de ter vindo
  e ter estado
                 eu aqui.

VIDA

No zumbido
a zombaria
dos garotos
acompanha
a passagem

a raiva transforma
a reação em nada
e o corpo apressa
o passo

o zumbido ecoa
nos ouvidos
a vida escoa
em passos

os garotos
ficam para trás.

ESQUECER

Cada vez revejo
o olvido

no ouvido permanece
o domingo no zumbido
do coro religioso

cada vez refaço
o olvido

em mim se renovam
expostas palavras
que descortinam
o canto dolente
da língua materna

cada vez recomeço
o olvido.

PAIXÃO

a paixão devora olhos e corações
de épocas e sentidos com que
passamos horas e dias frios
para chegarmos a esse tempo
e encontrarmos o vazio
de não havermos encontrado
a pronúncia exata das palavras
na maneira certa de dizer
estamos aqui e a paixão
permanece em nossos olhos
embaçados em lágrimas
de reconhecimento
como naquelas horas
e como serão em futuros
tempos de mãos entrelaçadas

chegamos sem esquecer e sobrecarregamos
a memória e as lembranças com as imagens
nas músicas em altos sons
       e perguntas presas
    em gargantas curtas
   de desejos e secura

a nossa história recortada em quadros
passados lentamente entre as lentes
dos óculos que usamos e nos servimos
para enxergamos o que não vimos cedo

estávamos cegos em blindagens jovens
e tínhamos a certeza de que as incertezas
seriam dos caminhos as trilhas e as armadilhas
que não nos pegariam na passagem

essa paixão extravasa a hora
fôssemos pessoas espiando
o lado de fora de cada um
meros espantalhos em hastes
de empregos e desesperanças
de que tudo termine logo após
o instante em que os corpos
se desencontrem

somos mais que paixões ardentes
dos dentes cravados das serpentes
ávidos pelo fim da história.

Fonte: 
O Autor