domingo, 2 de fevereiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Mágico

Recolhido no Algarve

Havia numa terra um homem entendido em artes mágicas, que nunca queria tomar criado que soubesse ler para lhe não apanhar o segredo dos seus livros. Foi um moço oferecer-se dizendo que não sabia ler, e assim ficou-o servindo, e leu todos os livros da livraria do mágico, e quando já podia competir com ele, fugiu com todos os livros. Um dia o discípulo achou-se mestre e quis viver das suas artes; disse a um criado que fosse à feira vender um lindo cavalo que devia de estar na estrebaria, disse-lhe o preço, e ordenou-lhe que assim que o vendesse lhe tirasse logo o freio.

À hora da feira o criado foi à estrebaria e lá achou um lindo cavalo e partiu com ele para o mercado. Estava na feira o mágico que tinha sido roubado, e conheceu logo debaixo da forma do cavalo o seu antigo discípulo; foi ajustar o preço, pagou a quantia tão depressa, que o criado se esqueceu de tirar o freio ao cavalo. Quando o quis fazer já não foi possível, porque o mágico disse que o contrato estava fechado desde que lhe entregara o dinheiro. O mágico levou o cavalo para casa, muito contente por se poder vingar à vontade do seu inimigo que lhe tinha roubado toda a sua sabedoria. De uma vez disse ao criado que fosse à ribeira levar o cavalo a beber, mas que não lhe tirasse o freio. O cavalo andava muito triste, cheirava a água mas não bebia; o criado lembrou-se de lhe tirar o freio, pensando que ele assim beberia. De repente o cavalo transforma-se numa rã, e some-se pela água. O mágico que estava à janela de sua casa viu aquilo, e transformou-se em um sapo, para ir apanhar a rã. O discípulo, que sabia a sorte que o esperava se tornasse a cair em poder do mestre, transformou-se em uma pomba, e voou, voou por esses ares; o mágico transformou-se em um milhafre, e correu atrás da pomba para tragá-la.
   
Lá ia muito cansada a pomba, e quase que estava para ser agarrada, quando viu uma princesa que estava em um terraço, e foi-lhe cair no colo, transformando-se em um anel de grande preço. A princesa pasmada com o que viu, e com a lindeza da joia, meteu-a no dedo; o mágico, viu que nada podia fazer, e como ainda estava na forma de milhafre entra pelo quarto do rei dentro e bota-lhe um cabelo no copo de leite que ele estava para beber. O rei, já se sabe, teve uma grande doença, foram chamados todos os médicos, mas nenhum era capaz de o curar; o mágico apareceu sob a figura de médico e prometeu dar saúde ao rei, mas só se lhe desse o anel que a princesa trazia no dedo. O rei disse que sim; então o anel transformou-se em um lindo rapaz e pediu à princesa que quando o rei lhe mandasse entregar o anel ao mágico, que lho não desse na mão, mas que o atirasse ao chão, para ele o levantar. O rei passados dias ficou bom, e assim que o médico veio à corte, pediu o anel; o rei chamou a filha e disse que lhe entregasse o anel.

A princesa mostrou-se triste mas obedeceu; tirou o anel e deitou-o ao chão, como se estivesse zangada. O anel transformou-se em uma romã que toda se esbagaçou pela sala; mas o mágico mudou-se em galinha, e num instante foi engolindo todos os grãos. Ficou um único grãozinho de trás de uma porta, e esse transformou-se numa raposa, que se atirou à galinha e a comeu num instante. A princesa ficou muito pasmada com aquilo, e pediu à raposa que se tornasse em príncipe que casaria com ele. E ele assim fez e foram muito felizes.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 34 – 2 de novembro de 1887

Que fará, estando junto
Sócrates a um hotentote?
Falo de varão defunto,
Pode sair livre o mote...

E, antes de mais nada, digo
Que essa junção de pessoas
Vi hoje mesmo em artigo
Repleto de cousas boas.

O artigo é de sociedade
Espírita e brasileira;
Trata só da humanidade,
É divisa sua e inteira.

Que eu já sou meio espírita,
Não há negá-lo. Costumo
Pôr na cabeça uma fita,
Em vez do chapéu a prumo.

Chamo à vida uma grã bota
Calçada pelo diabo;
Quando escrevo alguma nota,
Principio e não acabo.

Dou o João, velho amigo,
Nascido em cinqüenta e sete;
E ele, quando isto lhe digo,
Todo se alegra e derrete.

E proclamam em recompensa,
Que sou de cinqüenta e cinco;
Rimo-nos em boa avença,
Do meu brinco e do seu brinco.

Aqui há poucas semanas,
Puxei fieira na rua,
E comi sete bananas
Com pimenta e linha crua.

José Telha, que no sótão
Sustenta os seus macaquinhos,
Crê que alguns deles se botam
Para a casa dos vizinhos.

Mas eu respondo-lhe a cada
Palavra com heroísmo,
Que o que parece pancada,
É simples espiritismo.

E, voltando à vaca fria,
Sócrates era um sujeito
De grande filosofia,
Alta mente, heróico peito.

O hotentote, — conquanto
Lembre uma Vênus famosa
Pelo volumoso encanto,
Mas tão pouco volumosa,

Comparada àquela raça,
Tão pouco, como seria
Uma uva a uma taça,
A laranja à melancia;

O hotentote, em bestunto,
É pouco mais que um cavalo,
Dê-se-lhe um simples assunto,
Mal poderá penetrá-lo.

Mas, sendo um e outro feitos
Pela mesma mão divina,
Força é que sejam perfeitos,
Di-lo a grande Espiritina.

Daí a necessidade
De andar a gente em charola,
Não de cidade em cidade,
Mas de uma bola a outra bola.

Morre aqui algum peralta,
Que furtou grandes dinheiros,
Ressurge em bola mais alta,
Entre os simples caloteiros.

Vai a outra, e paga em dia
Todas as dívidas suas;
Vai a outra, e principia
A dar esmolas nas ruas.

Vai a outra, e já suprime
As ruas; chega à perfeita
Máxima pura e sublime
De só saber a direita.

Sobe finalmente à esfera
Onde uma sociedade
De arcanjos lindos o espera,
E o conduz à eternidade.

Ali Sócrates jocundo
Receberá o hotentote,
E falarão deste mundo,
E glosarão este mote:

— Para que há de haver juízes
Em Berlim, ou em outra parte?
Têm aqui iguais narizes
O inocente e Malazarte.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Ronaldo Correia de Brito (Eufrásia Menezes)

– Sentada estou. É aqui que me veem todas as tardes e me imaginam a esperar a noite. O que mais esperaria além da passagem da claridade? A hora em que me trancarei no meu quarto à espreita de um visitante que rondará a casa e que nem sei se é real ou se urdido pela minha fatigada solidão? Meu marido é incerto no vir, e todos o sabem. Pressentem que anoiteço e, se passam à minha porta, me perguntam: “Esperando a noitinha, dona Eufrásia?”. Mas o que me trará a noite além de um vento frio e de um silêncio fundo? O cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão.

Meu filho dorme ao lado, numa rede alva e cheirosa. Ouço o seu respirar leve e tenho a certeza de que está vivo. Habitamos este universo de ausências: ele dormindo, eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu. Ela julga e condena os nossos atos, pela antiga moral de seus senhores, de quem meu marido é herdeiro. Assim, se penso no casual nome de outro, o estrangeiro que me olhou com mansidão, ela me escuta pensar e depois, nos meus sonhos, grita-me com todas as suas vozes. Sou escrava destas paredes, prisioneira de pessoas mortas há anos que, agora, se nutrem de mim. Abarcada pelo calçadão alto, onde me sento e olho a eterna paisagem: o curral, as lajes do riacho, a curta estrada, a capoeira, os roçados, as casas dos moradores. Envolvendo tudo, um silêncio e um céu azul sem nuvens, que o vento nem toca. E longe, onde não enxergo, a terra de onde vim.

Já é quase noite. Meu marido e seus vaqueiros tangeram o gado até o curral e voltaram a campear reses desgarradas. Trouxeram as ovelhas, com seus chocalhinhos tinindo e uma nuvem mansa de lã e poeira. Os animais estão magros e famintos. Também os homens. O sol queima e requeima as doze horas do dia e, à noite, um vento morno e cortante bebe a última gota d’água do nosso corpo. Já somos garranchos secos, quebradiços, inflamáveis. Basta que nos olhem para ardermos numa chama brilhante e fugaz, que logo é cinza.

Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto. Depois cai para o lado. Contemplo o telhado e toco, com as pontas dos dedos, o sêmen morno que molha o lençol.

Não sei como escapar. São tantos os anos e há este filho doce, que repousa na rede. De tardezinha, nos debruçamos na janela e vemos o gado que chega. As vacas mugem, os touros andam lentos. O sol se avermelha, morrendo. É tudo tão triste que choramos, eu e ele. Ensino-lhe o pranto e a saudade. O pai ensina-lhe a dureza e a coragem. Quero este filho só para mim. Fazê-lo ao meu modo é a maior vingança contra meu marido, que me trouxe para cá, terras de Sulidão, onde o galo só canta uma vez a cada madrugada.

É verdade que vim com as minhas pernas, que não fui forçada. Deixei o verde Paraí da minha mãe, onde meu pai descansa morto. Se fecho os olhos agora, vejo os canaviais ondulando e sinto o cheiro da rapadura. Nem sei como os meus pés despregaram de lá. Não consigo recompor o passo, na ligeireza que foi tudo. Um tio me levou para ser professora no Cameçá, a dez léguas de onde nasci. Ficaria por uns tempos na casa dos Meneses, que antes habitavam o Sulidão. Chegados há pouco na nova propriedade, o contato de pessoas civilizadas tinha-lhes imposto a necessidade de conhecer as letras. Meus alunos seriam os filhos: cinco mulheres e nove homens. Os velhos não se dariam a tais vexames.

Uma revoada de aves de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos, chupando a última gota d’água das pedras, lendo no sol, todos os dias, nossa sentença.

Um vaqueiro passa. Um galho de aroeira rasgou-lhe o couro do gibão e do braço. Vão à procura de mastruz para acalmar a ferida. A fome enerva o gado e os homens não conseguiram juntar os garrotes e os touros. Ouço-o dizer que o meu marido está nervoso e ameaçou de morte um chamado João Menandro, o de outras paragens. Desentendera-se. Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou? Tremo e mostro ao homem um canto do quintal onde poderá achar a sua meizinha. Ele me agradece, parece querer dizer outra coisa, porém cala e me olha com pena. Todos me olham assim. Se passam na minha porta, tiram o chapéu, desejam-me boa-hora e seguem em frente. Apesar dos anos passados, veem-me como estrangeira. É difícil o caminho que leva aos seus corações. Gostarão de mim, tão silenciosa e distante? Suspeitarão dos meus ocultos sentimentos? Procuro a resposta no vaqueiro e, quando vai embora, se despede num brusco balançar de cabeça.

No começo tentei amar esta terra e sua gente. Trazia a minha fresca alegria, banhada de novo nas fontes do Paraí. Mas aqui o sol queima forte e somos bebidos até a última gota. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando. Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite. Na casa dos Meneses, fiquei o tempo de me apaixonar por Davi, meu futuro marido, e de ensinar aos alunos as primeiras letras. Fui tratada a açúcar, enquanto os outros comiam rapadura. Tempo de corredores escuros. Conheci a força dos abraços do meu marido, o ímpeto do seu desejo, e cedi. E aqueci minha alma de mulher e nem perguntei pelo amor. Só ardia. Deixei-lhe a mão solta, o membro sem freios. Cavalgada, retornei à casa da minha mãe e esperei o dia do casamento. Dançamos os três dias de festa, viemos para este seco Sulidão. Esta casa fora abandonada por seus antigos donos, mas aguardava o peso cruel das suas presenças. Coube-nos perpetuar neste sertão uma herança de estirpe, sólida como as pedras do calçadão alto.

Meu filho, mexendo-se na rede, traz-me de volta à casa. Está tudo escuro e terei de acender os candeeiros. Numa noite como esta, passou correndo um lobo-guará. Meu marido deu tiros, mas não o acertou. Falou-se sobre o lobo por muitos dias. São os acontecimentos desta terra. Vivo de silêncio e de lembranças. Às vezes, quando não quero sonhar, penso em nomes de pássaros, retardando a hora em que terei de me trancar a ferrolhos. Procuro esquecer um tropel que ronda a minha janela, todas as noites em que me deito só. É a hora de decidir? Ouço um respirar que não é o meu. A noite é um lençol que cobre a fadiga dos homens. Dominada pelo cansaço, adio mais uma vez a minha escolha. A realidade de uma lâmina de faca, guardada sob o travesseiro, lembra-me o instante em que poderei cortar o sono e cavar a vida.

Um vaqueiro vem me avisar que meu marido não retornará esta noite. Celebram uma festa perto daqui. Vieram músicos e mulheres de longe. Na madrugada, ainda se ouvirão os gritos de prazer e as notas perdidas de uma música que não conseguirei identificar. O homem me oferece a companhia de uma filha sua e eu agradeço. Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte. A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem há mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.

João Menandro é um nome que se confunde com o meu sonho. Haverá mesmo, lá fora na noite, alguém que me aguarda, ou o meu desejo inventou esse ser? A noite interminável me cansa e penso em apressar o desfecho de tudo. Não há tempo para contemplar passiva o mundo morrendo em volta. A mão se endurece ao toque da lâmina que o travesseiro esconde. Meu marido retornará sonolento. O outro virá até minha janela. Eu me olharei num espelho. Chegará sim, a madrugada. Aquela que poderá ser a última, ou a primeira.

(Ronaldo Correia de Brito, Faca)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Ronaldo Correia de Brito

Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, 1950) aos cinco anos mudou-se para o Crato e aos dezoito para Recife, onde estudou medicina. Teatrólogo e ficcionista. Escreveu teatro para crianças: O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, O Pavão Misterioso e Arlequim; teatro para adultos: O Reino Desejado, Retratos de Mãe, Malassombro, Auto das Portas do Céu e Os Desencantos do Diabo. Também roteiros de documentários e filmes para televisão e cinema: Lua Cambará (Longa metragem para a TV Cultura), Caboclinhos (Documentário para a TV Universitária), Brincadeira de Mateus (Documentário para a TV Universitária), Cavaleiro Reisado (Documentário para cinema), Brincadeira de Reisado (Documentário para cinema), Maracatus (Documentário sobre para a TV BBC); além dos livros de contos: Três Histórias na Noite (Prêmio Governo do Estado de Pernambuco de 1989), As Noites e os Dias (Recife: Ed. Bagaço, 1996), Faca (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2003) e O Livro dos Homens (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2005).

As histórias de Faca enfocam o ambiente do sertão cearense, num tempo aparentemente indefinido. Na primeira, Velho espera a volante policial, expressão em voga no tempo do cangaço. Em outra, Catarina vive do passado, a pedir ao filho a leitura de árvores genealógicas, que remontam ao início do povoamento português das terras nordestinas. Passado de riquezas; presente de quase miséria: “Não somos mais nada. Da família só guardamos o piano, uns móveis capengas e essa casa, ameaçando ruir”. Também os utensílios domésticos e vestes remetem a um tempo morto: candeeiros, lamparina a querosene, cumbuca, camisa de madapolão.

Os Sertões pode ser considerado o marco de uma literatura brasileira voltada para a interiorização do foco narrativo, que desaguaria no Romance de 30 e, depois, em Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. E não só isso, mas, sobretudo, o enfoque de um período histórico que vai da desagregação do aparato feudal das propriedades rurais, os latifúndios, passando pelo desmoronamento dos engenhos de açúcar, o surgimento do cangaço, até o início da agroindústria, isto é, a implementação de um capitalismo de Estado (Sudene). Pois enquanto a industrialização se desenvolvia na Europa, com o fortalecimento dos Estados nacionais, em Canudos tropas legais massacravam uma comunidade medieval. Pois a Idade Média brasileira teve início quando na Europa o feudalismo estertorava. E terminou quando lá o capitalismo chegava ao apogeu. Enquanto na Rússia acontecia a revolução socialista, no Nordeste brasileiro, bandoleiros sem ideologia política enfrentavam volantes policiais, como se aqui o Estado ainda não estivesse constituído.

Ronaldo Correia de Brito é o retratista mais moderno desse mundo decadente. Com uma linguagem nova, retrata o ambiente sertanejo daquele período histórico, porém voltado para o microcosmo familiar, as desavenças entre greis ou no interior de clãs semifeudais do Nordeste brasileiro. O próprio narrador de “Redemunho” observa este descompasso histórico entre o “mundo” e o “sertão”: “Quando o mundo já falava por rádios e telefones e os aviões cortavam os céus, os sertões ainda se abasteciam nos lombos de burros e cavalos de carga”.

Os personagens de Ronaldo vagam pelos sertões, tabuleiros, vivem em pequenas cidades, viajam em lombo de cavalo, atravessam o rio Jaguaribe. São seres afeitos à violência, à solidão, à morte, às tragédias familiares. Chagas Valadão, perseguido pela volante, é acusado de assassinato. As cenas de violência entre os ciganos de “Faca” se repetem do início ao fim. O dia-a-dia de mãe e filho em “Redemunho” deixa os nervos do leitor à flor da pele, como se a qualquer momento o clima de tensão pudesse desaguar em morte.

Aspecto interessante nos personagens de A Faca são os nomes de batismo: Chagas Valadão, Leonardo Bezerra, Otacílio Mendes, Anselmo Dantas e muitos outros. No Nordeste os nomes mais comuns são José, João, Luís, Raimundo, Pedro, Manoel, Maria, etc. Além disso, quase todos têm nomes duplos, ou nome e sobrenome, como nos ficcionistas hispano-americanos. Alguns se vangloriam dos muitos nomes, como Catarina Macrina Cavalcante de Albuquerque Bezerra. Além disso, se irrita por não ter sido batizada como Cavalcanti, pois descendente de Pedro Cavalcanti de Albuquerque, Cavaleiros da Ordem de Cristo, fidalgos da casa real, governadores de capitanias.

O ponto de vista onisciente prepondera no livro, mesmo em “Lua Cambará”, que tem mais de um narrador. Um homem ou menino (primeira pessoa) não identificado, e de menor importância na trama, inicia a história: “Meu pai jurou que viu”. Não se sabe se, ao narrar a lenda, o ser fictício é adulto ou criança, porque fala do passado: “Eu pulei do colo de meu pai, assustado (...)”. A seguir, a voz assume o ponto de vista onisciente. Outros narradores-personagens surgem entre um quadro e outro, como o vaqueiro Bispo e o Doido Guará. Composto de quadros/cenas, o foco narrativo ora se volta para o menino, seu pai e o vaqueiro Argemiro Bispo, num passado recente; ora regride no tempo, para contar a história-lenda de Lua Cambará, já morta (“assombração que passa/ sem princípio, meio e fim”) no tempo em que o garoto ouve do pai a história da alma penada de Lua.

Ronaldo se vale sempre desse ir e vir do foco de narração, em cenas curtas, em tempos diferentes (retrospectos). Passado e presente (agora ou passado mais recente) se complementam, como se a trama durasse alguns anos (novela, romance). Em “A espera da volante”, Irineia dá notícia ao Velho de que “a volante policial vinha vindo”. Segue-se a narração do encontro dos dois, das conversas: “O Velho balançava a cabeça, ria manso, falava baixo”. Mais adiante o narrador faz um retrospecto, para apresentar ao leitor o protagonista: “Ninguém sabia há quanto tempo o Velho estava ali”. No desenrolar do episódio, o narrador parece perder a onisciência: “Em algum ponto da estrada, a volante avançava em marcha”. Ação distante do cenário principal. Quem a presenciava? No final, ao se aproximar a volante do palco do conflito (a casa do Velho), a voz narradora deixa de fazer conjecturas e, como se narrasse uma ação no presente real (ao vivo, como se diz em televisão), observa: “Como agora, quando o verde da camisa suada dos soldados era visível, e não havia mais dúvidas de que o esperado encontro, finalmente, estava para acontecer”.

Algumas composições de Ronaldo seguem um plano de flashes, com as ações intercaladas, ora num tempo, ora noutro. Veja-se “Faca”: na primeira ação “uns ciganos acharam a faca”; na segunda, há um flashback em que aparecem alguns dos personagens da trama e a faca; a terceira cena é continuação da primeira. E assim até o final. São narrativas em quadros breves (linguagem de cinema), tempos diferentes e intercalados.

Um dos mais interessantes e bem realizados contos da coleção é “Mentira de Amor”. Realidade e imaginação (da protagonista Delmira) dão corpo à história de uma mulher e suas filhas aprisionadas em casa pelo marido e pai. A realidade se circunscreve entre as paredes da casa. Fora, na rua, na cidade, a vida fervilha, sobretudo com a chegada de um circo. Impossibilitadas de saírem de casa, Delmira passa o tempo a imaginar, para si e as meninas, a agitação na cidade, a adivinhar o desfile dos artistas e animais do circo. É a vida imaginada. Como seria o circo? Como antigamente, quando era menina?

Os desfechos às vezes não ocorrem ou são meras conjecturas. Ou a expectativa de um fim, como em “A espera da volante”. Em outros contos os desenlaces são os mais inesperados. Em terceiro grupo se situam as tragédias, com remates entrevistos, adredemente anunciados nas entrelinhas.

A linguagem do contista é erudita, apesar de serem sertanejos os seres fictícios. Não se verifica o linguajar arrevesado, muitas vezes antiquado, dos habitantes dos sertões, sobretudo antes do advento da televisão. Os vocábulos de uso no sertão encontrados na obra são do conhecimento do leitor comum: alpendre, coalhada, candeeiro, comboieiro, baú, todos dicionarizados. E não só isso, também a construção da frase nos moldes da tradição literária. Portanto, não há vislumbres de regionalismo, no sentido restritivo do termo, nestas composições de Ronaldo Correia de Brito, mesmo que os narradores não se esqueçam de mencionar o sertão ou algumas localidades da geografia nordestina ou cearense.

Ao arquitetar as narrativas de Faca, o contista certamente não se prendeu a um esquema, a uma fórmula, pois, apesar das peculiaridades (linguagem objetiva, narração em quadros, personagens trágicos, etc), não se repete nunca. O narrador de “A escolha” se dá até o direito de apontar ao leitor o cuidado que teve ter com o detalhe, o miolo da peça ficcional, o recheio do relato: “As histórias não têm apenas princípio e fim, elas são sobretudo o meio, que é o tempo de maior duração, o de se comer juntos uma arrouba de sal”. Talvez uma lição de narrativa.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Idalina Cotrin Appes (Parto das Rosas Vermelhas)


O Encanto dos Sonhos em Versos

FLÁVIA ASSAIFE
O que é o Sonhar

O que e o sonhar?
Desejar algo, ter vontades, imaginar?
O que e o sonhar?
Viajar sem receios do que encontrar
Liberar a imaginação para voar
Deixar a alegria contagiar
Combustível que faz a vida caminhar...

O que e o sonhar?
Se entregar sem medo
Desvendar os mais íntimos segredos
Mergulhar num oceano de fantasias
Desvencilhar as idiossincrasias

O que e o sonhar?
Uma experiência inconsequente
Uma realidade inconsciente
Um conflito indiferente
Uma vontade consistente
O que e o sonhar?
Ninguém sabe exatamente
Estudos possuem opinião diferente
Compensação, psique, delírio
Longe de ser um martírio

O que e o sonhar?
Para mim e alforriar a alma…

GRECIANNY CARVALHO CORDEIRO
Sonhos

De que são feitos os sonhos?
De uma centelha de esperança
De um brilho refulgente de amor
Das cores do arco-íris
Seja como for...

Sonhos precisam ser cultivados
Arados numa terra a nunca repousar
Semeando grãos de ilusão
De emoção, da mais pura paixão

Sonhos descuidados
Ficam embotados
Sombreados pela amargura
Da mais infinita tristeza

Sonhar e viver
Mais que isso, e se perpetuar
Perdurar por toda a vida
No calor de um abraço
Da mais intensa paixão.

Passaste do amor para a paixão,
Tiraste pés do chão
Sob asas de Cupido.
Para esse voo não há preço,
Vai te botar pelo avesso
Em loucuras do não vivido.

INÊS CARMELITA LOHN
A Virgem Sonhadora

Olhava para o infinito
E sonhava com um amor
Que surgisse de trás dos montes
Num altar de rezas e flores.

Suas vestes eram brancas
E esvoaçavam na ventania
A transparência dos seios
Os longos cabelos cobriam.

Quando a lua surgia la nas alturas
Seu corpo ardia em sonhos e desejos
Uma louca malícia pedia caricias
Afagos, carinhos, abraços e beijos.

O clarão do luar que brindava as noites
Era de uma pureza insana
Dançava ao som do silencio sagrado
Numa sedução ardente e profana.

A sonhadora continuava imaculada e pura
Depois que a lua cheia se escondia
O altar nunca foi enfeitado por flores
E nele, a virgem nunca rezou uma Ave-Maria.

LENIVAL DE ANDRADE
A Mulher dos meus sonhos

Olha aqui meu bem
E veja bem também meu amor
Te dou mais uma flor
E a noite será nossa, em baixo do cobertor
Pois foi DEUS que colocou você em meu caminho
Não ficarei mais sozinho
Ficarei para sempre contigo
Serei mais que seu simples amigo

Vivo a sonhar contigo
Dentro do meu abrigo
Eu te amo
Do fundo do meu coração
Sonho contigo
Quero este sonho poder realizar
E sentir a maior emoção
Dentro do meu coração
Aproximastes o máximo de mim

Estou cada dia mais afim
Marcaste a minha vida
Você e a preferida
Minha eterna querida
Curou e tratou muito bem da ferida
Nunca será por mim esquecida
Tornaste meus dias sempre risonhos
Pois você
E a mulher dos meus sonhos

Luiz Carlos Amorim
Sonhar

Gosto de sonhar, viajar,
a bordo do teu sorriso.
Ele me embala,
me enleva, me leva,
de encontro ao teu coração.
E se pego uma carona
nas asas de outro sonho,
quando volto te encontro,
mais que sorriso, ternura,
pedaço de mim que faltava.
Se embarco numa saudade,
numa lágrima, numa dor,
que falta sinto de ti:
me perco pelo caminho,
a procura da passagem,
a procura do meu sonho,
a janela do sorriso,
o sorriso da chegada.
Teu sorriso e calmaria,
e carinho, e aconchego,
e a minha parceria
para sonhar e ser feliz.

MARIA (NILZA) DE CAMPOS LEPRE
Quimera

Sou um gavião pairando por sobre nuvens de algodão...
Meus olhos observam o mundo como parte de um tabuleiro...
Ali em baixo tudo parece limpo, lindo e em paz...
Agora sou um navegante dos mares de minha alma...
Meu veleiro segue sem rumo ao sabor das correntezas...
Uma brisa refrescante acaricia minhas faces...
Meus cabelos dançam alegres ao sabor dos ventos...
Estou feliz... Sinto-me em paz... Meu corpo não tem peso...
Não caminho... Apenas flutuo como um balão de gás...
Estou num paraíso, aqui nada me fere, nem me atinge...
Mas, que tristeza... Abro os olhos e o sonho se desfaz...
Quem sabe na próxima noite, o sonho continue de onde parou?...

MARILU F QUEIROZ
Sonhos...

O que são sonhos...
Senão mera ilusão, paixão
desmedida e monótona,
do que era para ser e não foi.

O que são sonhos...
Senão a intenção, inclusão,
conclusão de conversas,
sem resposta nem razão.

O que são sonhos...
Senão a vaidade, ilusão
de satisfazer vontades
e querer simplesmente viver.

Portanto, sonhos...
São o alimento da alma,
a esperança que motiva
e aplaca as dores do mundo!

TANIA DINIZ
Sonho

Os sonhos dentro do baú azul
As saudades
Do ano passado
Tudo em celofane
Muito bem embalado
As alegrias poucas
As esperanças
loucas
As amizades
(no meu sem-jeito
aceito)
a fome de paixão
as dores da incompreensão
em tantos embrulhos
remexo e vasculho
reviro meu baú
e meio sem graça retiro
meio feridos, meio tristes
minha alma guerreira,
(a meio pau sua bandeira)
e o meu corpo nu.

Fonte:
Jacqueline Aisenman (org.) Revista Varal do Brasil Edição Especial Sonhar Ainda Pode - Fevereiro de 2014
Imagem - Biblioteca Manuel Antonio Pina

Irmãos Grimm (João, o Sensato)

A mãe do João falou para ele,

"Para onde vais, João?"

João respondeu, "Para a casa de Maria.”

“Comporte-se bem, João.”

“Oh, me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega na casa de Maria,

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que trouxeste de bom?”

“Não trago nada, gostaria de ganhar algo."

Maria presenteia João com uma agulha.

João diz, "Adeus, Maria.”

“Adeus, João."

João pega a agulha, e a joga dentro de um carrinho de feno, e segue com o carrinho para casa.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada; quis apenas que ela me desse alguma coisa.”

“O que Maria deu para ti?”

“Me deu uma agulha.”

“Cadê a agulha, João?”

“Coloquei-a dentro do carrinho com feno.”

“Fizeste mal, João. Deverias ter colocado a agulha na manga da camisa.”

“Não se preocupe, da próxima vez farei melhor."
– – – -

"Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Oh, eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria. "Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que trouxeste de bom para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo." Maria presenteia João com uma faca.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João." João pega a faca, e a coloca na manga de sua camisa, e vai para casa.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não lhe dei nada, mas ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Ela me deu uma faca.”

“Onde está a faca, João?”

“Eu a coloquei na manga da minha camisa.”

“Fizeste mal, João, deverias ter colocado a faca no bolso.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor.”
– – – – – –

“Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Oh, eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria. " Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria presenteia João com um cabritinho.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João." João pega o cabritinho, amarra-lhe as pernas, e o coloca dentro do bolso.

Quando ele chega em casa o cabritinho estava sufocado.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Em casa de Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada, mas ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Ela deu para mim um cabritinho.”

“Onde está o cabritinho, João?”

“Eu o coloquei no bolso.”

“Fizeste mal, João, deverias ter colocado uma corda em volta do pescoço do cabrinho.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor."
– – – – – –

"Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João,”

“Oh, eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João." João chega à casa de Maria.

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria presenteia João com um pedaço de toucinho.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João."

João pega o toucinho, amarra numa corda, e o leva arrastado para casa.

Os cães aparecem e devoram o toucinho.

Quando ele chega em casa, ele tem apenas a corda na mão, e nada está pendurado nela.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada, ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Me deu um pedaço de toucinho.”

“Onde está o toucinho, João.”

“Eu o amarrei numa corda, e quando trazia para casa, os cães o comeram.”

“Fizeste mal, João, deverias ter trazido o toucinho na cabeça.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor.”
– – – – – –

“Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria.

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João.”

“O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria presenteia João com um bezerro.

"Adeus, Maria.”

“Adeus, João."

João pega o bezerro, coloca-o na cabeça, e o bezerro lhe aplica um coice na cara.

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada, mas ela me deu algo.”

“O que Maria deu para você?”

“Um bezerro.”

“Onde está o bezerro, João?”

“Eu o coloquei na minha cabeça e ele me deu um coice na cara.”

“Fizeste mal, João, deverias ter levado o bezerro, e o colocado no estábulo.”

“Tudo bem, da próxima vez farei melhor."
– – – – – –

"Para onde vais, João?”

“Para a casa de Maria, mamãe.”

“Comporte-se bem, João.”

“Eu me comportarei bem. Adeus, mamãe.”

“Adeus, João."

João chega à casa de Maria.

"Bom dia, Maria.”

“Bom dia, João. O que de bom trouxeste para mim?”

“Não trouxe nada, mas gostaria de receber algo."

Maria diz a João, "Irei com você."

João pega Maria, amarra ela com uma corda, levou-a até o cavalete, e a amarrou bem forte.

Então, João vai até a sua mamãe,

"Boa noite, mamãe.”

“Boa noite, João. Onde estiveste?”

“Com Maria.”

“O que levaste para ela?”

“Não levei nada.”

“O que Maria deu para você?”

“Ela não me deu nada, ela veio comigo.”

“Onde deixaste Maria?”

“Eu a levei com uma corda, e a amarrei no cavalete, e espalhei um pouco de grama para ela.”

“Fizeste mal, João, deverias ter lançado olhos gentis sobre ela.”

“Não se preocupe, da próxima vez farei melhor."

João entrou no estábulo, arrancou todos os olhos dos bezerros e das ovelhas, e os lançou no rosto de Maria.

Então, Maria ficou brava, soltou as amarras e fugiu desanimada, tornando-se assim a noiva de João.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/Jo%C3%A3o,_o_sensato

A Saudade em Versos Diversos I

ALBERTO DE OLIVEIRA

Crescente de agosto

Alteia-se no azul aos poucos o crescente,
O ar embalsama, os cirros leva, o escuro afasta;
Vasto, de extremo a extremo, enche a alameda vasta
E emborca a urna de luz nas águas da corrente.

Na escumilha da teia, onde a aranha indolente
Dorme, feita de orvalho, uma pérola engasta.
Faz aos lírios mais branca a flor cetínea e casta,
Mais brancos os jasmins e a murta redolente.

Faz chorar um violão lá não sei onde... (A ouvi-lo
Na calada da noite, um não-sei-quê me invade)
Faz que haja em tudo um como estranho espasmo e enlevo;

Faz as cousas rezar, ao seu clarão tranqüilo,
Faz nascer dentro em mim uma grande saudade,
Faz nascer da saudade estes versos que escrevo.

ALCEU WAMOSY

Duas almas

Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...

A neve anda a branquear lividamente a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa
essa estrada sem fim, deserta, horrenda e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Soneto da defunta formosa

Temos saudade, pálida formosa,
De tudo quanto o pôr-do-sol fenece:
Ou seja o som final de extrema prece,
Ou seja o último anseio de uma rosa...

E mais ligeiramente a gente esquece
Uma hora que a alma de carinhos goza,
Que de ter visto, em roxa luz saudosa,
Uma imperial tulipa que adoece...

Um lírio doente no caulim de um vaso
Faz-nos lembrar um luar em pleno ocaso
Morrendo ao som das últimas trindades...

E nem eu sei, amor, por que perguntas,
Tu que és a mais formosa das defuntas,
Se eu de ti hei de ter loucas saudades.

AUGUSTO DOS ANJOS

O Bandolim
 

Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas,
Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez d'um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão as bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é fria e calma,
Teu canto vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d'alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!

DA COSTA E SILVA
 
Saudade

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho... o caboré com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas da névoa sobre a serra...

Saudade! O Parnaíba — velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...

JORGE DE LIMA
 
Velho tema, A Saudade

Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
— Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama...

Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...
..Um segredo de amor que se desfaz e mente...
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
— Faze que uma saudade a ti seja o presente!
— Faze que tua morte uma saudade seja!

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) Cravo, rosa e jasmim

Recolhido no Algarve

Uma mulher tinha três filhas; indo a mais velha passear a uma ribeira, viu dentro da água um cravo, debruçou-se para apanhá-lo, e ela desapareceu. No dia seguinte sucedeu o mesmo a outra irmã, porque viu dentro da ribeira uma rosa. Por fim, a mais nova também desapareceu, por querer apanhar um jasmim. A mãe das três raparigas ficou muito triste, e chorou, chorou, até que tendo um filho, este quando se achou grande, perguntou à mãe porque é que chorava tanto. A mãe contou-lhe como é que ficara sem as suas três filhas.

– Pois dê-me minha mãe a sua bênção, que eu vou por esse mundo em procura delas.

Foi. No caminho encontrou três rapazes em uma grande guerreia. Chegou ao pé deles…

«Olá, que é isso?».

Um deles respondeu:

– Oh, senhor; meu pai tinha umas botas, um chapéu e uma chave, que nos deixou. As botas em a gente as calçando, e lhe diga: Botas, ponham-me em qualquer banda, é que se aparece onde se quer; a chave abre todas as portas; e o chapéu em se pondo na cabeça, ninguém mais nos vê. O nosso irmão mais velho quer ficar com as três coisas para si, e nós queremos que se repartam à sorte.

– Isso arranja-se bem, disse o rapaz querendo harmonizá-los. Eu atiro esta pedra para bem longe, e o que primeiro a apanhar é que há de ficar com as três coisas.

Assentaram nisso; e quando os três irmãos corriam atrás da pedra, o rapaz calçou as botas, e disse:

– Botas, levem-me ao lugar em que está minha irmã mais velha.

Achou-se logo numa montanha escarpada onde estava um grande castelo, fechado com grossos cadeados. Meteu a chave e todas as portas se lhe abriram; andou por salas e corredores, até que deu com uma senhora linda e bem vestida que estava muito alegre, mas gritou com espanto:

– Senhor! Como é que pôde entrar aqui?

O rapaz disse-lhe que era seu irmão, e contou-lhe como é que tinha podido chegar ali. Ela também lhe contou a sua felicidade, mas que o único desgosto que tinha era não poder o seu marido quebrar o encanto em que andava, porque sempre lhe tinha ouvido dizer que só se desencantaria quando morresse um homem que tinha o condão de ser eterno.

Conversaram bastante, e por fim a senhora pediu-lhe para que se fosse embora, porque podia vir o marido e fazer-lhe mal. O irmão disse que não tivesse cuidado porque trazia consigo um chapéu, que em o pondo na cabeça ninguém mais o via. De repente abriu-se a porta, e apareceu um grande pássaro, mas nada viu, porque o rapaz quando sentiu barulho pôs logo o chapéu. A senhora foi buscar uma grande bacia dourada, e o pássaro meteu-se dentro transformando-se em um mancebo formoso. Em seguida olhou para a mulher, e exclamou:

– Aqui esteve gente! – Ela ainda negou, mas viu-se obrigada a confessar tudo.

– Pois se é teu irmão, para que o deixaste ir embora? Não sabias que isso era motivo para eu o estimar? Se cá tornar, diz-lhe para ficar, que o quero conhecer.

O rapaz tirou o chapéu, e veio cumprimentar o cunhado, que o abraçou muito. Na despedida deu-lhe uma pena, dizendo:

– Quando te vires em alguma aflição, se disseres: Valha-me aqui o Rei dos Pássaros! Há de te sair tudo como quiseres.

Foi-se o rapaz embora, porque disse às botas que o levassem onde estava sua irmã do meio. Aconteceram pouco mais ou menos as mesmas coisas; à despedida o cunhado deu-lhe uma escama:

– Quanto te vire em alguma aflição diz: Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Até que chegou também a casa da sua irmã mais nova; achou-a em uma caverna escura, com grossas grades de ferro; foi ao som das lágrimas e soluços dar com ela muito magra, que assim que o viu, gritou:

– Quem quer que vós sois, tirai-me daqui para fora.
   
Ele então deu-se a conhecer, e contou-lhe como achou as outras duas irmãs muito felizes, mas só com o desgosto de não poderem os seus maridos desencantar-se. A irmã mais nova contou-lhe como estava com um velho hediondo, um monstro que queria casar com ela por força, e que a tinha ali presa por não lhe querer fazer a vontade. Todos os dias o velho monstro vinha vê-la para lhe perguntar se já estaria resolvida a tomá-lo como marido; e que ela se lembrasse que nunca mais tinha liberdade, porque ele era eterno.

Assim que o irmão ouviu isto lembrou-se do encantamento dos dois cunhados, e pensou em apanhar o segredo por que ele era eterno; aconselhou à irmã que fizesse a promessa de casar com o velho, se lhe dissesse o que é que o fazia eterno.

De repente o chão estremeceu todo, sentiu-se como um grande furacão, e entrou o velho, que chegou ao pé da menina e lhe perguntou:

– Ainda não estás resolvida a casar comigo? Tens de chorar todo o tempo que o mundo for mundo, porque eu sou eterno, e quero casar contigo.

– Pois casarei contigo, disse ela, se me disseres o que é que faz que nunca morras?

O velho desatou às gargalhadas:

– Ah, ah, ah! Pensas que me poderias matar! Só se houvesse quem fosse ao fundo do mar buscar um caixão de ferro, que tem dentro uma pomba branca, que há de pôr um ovo, e depois trouxesse aqui esse ovo, e mo quebrasse na testa.

E tornou a rir-se na certeza de que não havia ninguém que fosse ao fundo do mar, nem fosse capaz de achar onde estava o caixão, nem mesmo de o abrir, e tudo o mais que se sabe.

– Agora tens de casar comigo, porque já te descobri o meu segredo.

A menina pediu ainda uma demora de três dias, e o velho foi-se embora muito contente. O irmão disse para ela, que tivesse esperança, que dentro em três dias estaria livre. Calçou as botas e achou-se à borda do mar; pegou na escama que lhe deu o cunhado e disse:

– Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Apareceu logo o cunhado, muito satisfeito; e assim que ouviu o acontecido mandou vir à sua presença todos os peixes; o último que chegou foi uma sardinhinha, que se desculpou por se ter demorado porque embicou num caixão de ferro que está no fundo do mar. O Rei dos Peixes deu ordem aos maiores que fossem buscar o caixão ao fundo do mar. Trouxeram-no. O rapaz assim que o viu, disse à chave:
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– Chave, abre-me este caixão.

O caixão abriu-se, mas apesar de todas as cautelas, fugiu-lhe de dentro uma pomba branca.

Disse então o rapaz, para a pena:

– Valha-me aqui o Rei dos Pássaros.

Apareceu-lhe o cunhado, para saber o que ele queria, e assim que o soube mandou vir à sua presença todas as aves. Vieram todas e só faltava uma pomba, que veio por último desculpando-se, que lhe tinha chegado ao seu agulheiro uma antiga amiga que estava há muitos anos presa, e que lhe tinha estado a arranjar alguma coisa de comer.

O Rei dos Pássaros disse que ensinasse ao rapaz onde é que era o ninho onde a pomba estava, e lá foram, e o rapaz apanhou o ovo que ela já tinha posto e disse às botas que o levassem à caverna onde estava a irmã mais moça.

Era já o terceiro dia, e o velho vinha pedir o cumprimento da palavra da menina; ela, que já estava aconselhada pelo irmão, disse que se reclinasse no seu regaço; mal o apanhou deitado, com toda a certeza quebrou-lhe o ovo na testa, e o monstro dando um grande berro, morreu.

Os outros dois cunhados quebraram ao mesmo tempo o encantamento, vieram ali ter, e foram com as suas mulheres, que ficaram princesas, visitar a sogra, que viu o seu choro tornado em alegria, na companhia da filha mais nova, que lhe trouxe todos os tesouros que o monstro tinha ajuntado na caverna.
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Notas Comparativas

Aparecem outras versões deste conto, nos Contos populares portugueses, n.º XVI; e nos Contos populares do Brasil, coligidos pelo Dr. Sílvio Romero, com o título O Bicho Manjaléu. (Rev. Brasileira, tomo VI, p. 120).

Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, de Brueyre, p. 81 e 119.

Nos Old Deccan Days, de Miss Frere, o conto do Punchkin versa sobre este mesmo assunto de um Mago que encanta todos, e cuja vida estava resguardada sendo impossível descobrir esse e talismã; é uma criança que livra sua mãe e sete tios, príncipes.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 33 – 29 de outubro de 1887

Alá! por Alá! Cá tenho
Inda nos tristes ouvidos
O som duro, o som ferrenho,
Destes termos desabridos:

“Os liberais padecemos
Como os cristãos da Bulgária
Padecem duros extremos
Da turca espada nefária”.

E porque tenho uma veia
Com sangue de Mafamede,
Cousa que não acho feia,
Que não desdoura, nem fede;

Juro que andei azoinado
Com o dito do estadista,
Azoinado e envergonhado,
Sem voz, sem sabor, sem vista.

Mas (Alá é grande!) agora,
Agora, neste momento,
Chegam notícias de fora,
Da Bulgária e de espavento...

Vejo que o governo novo
Daquele povo inquieto,
Para aquietar o povo,
Achou um meio discreto.

Convidou madre Censura
Para rever os diários,
Enterrando a unha dura
Por modos crespos e vários,

Nos trechos em que apareça
Opinião tão à toa,
Que em tudo, se mostre avessa
Ao que ela entender que é boa.

Assim podem os censores
Riscando uma parte ou tudo,
Fazer dos espinhos flores,
Fazer do rudo veludo.

É pouco. Um dos jornalistas
Tantas fez que foi pegado,
E teve, de mãos artistas,
Não pouco, nem moderado,

Castigo de tal volume
Que era de ver... Cem açoites!
Quase lhe levam o lume,
Quase lhe dão boas noites.

E disseram-lhe ao soltá-lo.
Que se voltasse à escritura,
Haviam de castigá-lo,
De outra forma inda mais dura.

Ora, o que me espanta nisto
É que a gente que maltrata
Os pobres filhos de Cristo
São cristãos de pura nata.

Lá que impeçam tais diários,
Acho até bom, não somente
Nos dias incendiários,
Mas nos de vida corrente.

Nunca veio mal de um mudo,
E imprimir o que se pensa,
Tudo, tudo, ou quase tudo,
É desastre, não imprensa.

Assim, acho grão perigo
Que, em obséquio ao Ramalho
Ortigão, meu grande amigo,
Honra do engenho e trabalho,

Desse a Gazeta, uma festa,
De autores e jornalistas,
Cerrada e longa floresta
De opiniões e de vistas.

Conservadores sentados,
Em frente a republicanos,
E liberais afamados
Ao lado de ultramontanos.

Gente ruim, gente feia,
Merecia nessa noite,
Não festa, porém, cadeia,
Não Borgonha, mas açoite.

País de tal liberdade
E tolerância tamanha,
Vai com toda a alacridade
Ao lodo, ao delírio, à sanha.

Olhemos para a Bulgária;
Arruma, cristão amigo,
Simples pancada ordinária,
Cem açoites por artigo.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Luciano Bonfim (De Natureza Cíclica)

– Olho aberto, gritam os patriarcas.

Não poderiam se descuidar da estrada; também preocupavam-se com as crianças, impacientes o necessário para se tornarem presas fáceis. Da última vez encontraram apenas ossos espalhados sobre o terreno.

Antes mesmo de o orvalho se despedir das folhas, homens se armam de pedras, pedaços de madeira e outros objetos que possam ser atirados à distância. Armas de fogo seriam inúteis: os animais podem se assustar e a menor imprudência será um desastre.

A fumaça vinda das fogueiras e chaminés esconde a ponte, e a cerração fecha o anoitecer.

– Botem sentido...

Do pequeno morro, cadeiras, bancos e o chão servem de miradouro; algumas pessoas preferem montar guarda próximo à ponte de onde têm uma larga visão do horizonte, evitando, também, maior aproximação da fazenda do coronel Galdêncio, que expulsa a tiros quem ousa desobedecê-lo.

– A dor ensina...

Não cochilavam em serviço, e quando alguém desiste do posto, indo rumo ao sul ou para o cemitério, seus netos ou parentes mais próximos não deixam descansar os cuidados. Antes mesmo de aprenderem os seus nomes as crianças nutrem raiva e medo pelo bico de ferro.

– Urubu quando canta, não chove...

Aqueles que não possuem animais, e até se beneficiam quando antes das formigas e urubus encontram carne fresca, torcem pelo ‘inimigo’.

– Quem não pode com o pote...

Ao apito da máquina gritaram pelas crianças e atiraram pedras como se fossem seus últimos atos em vida... Seguiu-se uma cortina de fumaça que sumiu a esmo; agora, apenas os trilhos paralelos cruzam o horizonte...

Aliviaram os gestos e começaram outro inventário.

...

No dia seguinte, como acontecia desde que foi instalada a ferrovia, iniciam a espera...

– Olho aberto – murmuram alguns fantasmas...

 (Luciano Bonfim, Dançando com sapatos que incomodam)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Luciano Bonfim


Luciano Gutembergue Bonfim Chaves (Crateús, 1971) é graduado em Pedagogia, pela Universidade Estadual do Ceará, e professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral. Faz mestrado em Educação na Universidade Federal do Ceará. Publicou: Janeiros Sentimentos Poéticos (Crateús: edição do Autor, 1992), de poesias, Dançando com sapatos que incomodam (Fortaleza: edição do autor, 2002) e Móbiles (Fortaleza: Edição do Caos, 2007), ambos de contos. Escreveu para o teatro: As mulheres Cegas (premiado no Festival de Teatro Amador de Acopiara – CE/2000) e Auto do Menino Encantado; e o cordel Como Donana Calunga venceu o mosquito da dengue, adaptado e encenado pelo Grupo Ambulantes.

            Luciano Bonfim se revela um escritor inventivo, versátil, que sabe se desviar do lugar-comum da literatura, da narrativa tradicional e linear. O contista não somente se vale da intertextualidade, ao colar trechos de obras clássicas ou contemporâneas, dar-lhes outra roupagem, como presta homenagem a alguns dos ícones da Literatura, ao conceber novas formas a fragmentos de suas criações, como em “O Cálice dos Desesperados”, numa recriação substantiva de um momento da Metamorfose de Kafka, como se lê aqui: “Até que um dia deparou-se com aquele monstro horrível, e sentiu mesmo uma imensa vontade de esmagá-lo”. Em “combinações aleatórias” as homenagens a escritores são claras. Nelas e no processo de diálogo intertextual, Luciano vai dos clássicos (Sören Kierkegaard, Juan Rulfo, Clarice Lispector) aos mais novos, como Caio Fernando Abreu e Jorge Pieiro.

Afeito à intertextualidade, Luciano sabe dialogar com outros textos, não somente os literários. Ao se aproveitar do recurso intertextual, ele o faz muito mais conscientemente do que inconscientemente, como se vê ao citar nomes e títulos de obras.

O contista demonstra afinidade não somente com escritores, mas também com compositores e pintores, como é o caso de Van Gogh. “Ilustração” se inicia assim: “No campo os girassóis lembram um certo pintor holandês ridicularizado em vida”.

Luciano também se socorre muito da descrição, que vem do seu amor à pintura e ao desenho. Como neste trecho de “Variações”: “Existe, após as casas, um imenso terreno baldio e um pequeno sítio onde cultivam flores e hortaliças; também possuem uma colmeia”.

            Vejam-se as imagens, pinceladas, descrições em “Após a Neblina Cinzenta do Crepúsculo”, cuja poesia se inicia no título: “Em toda a sua extensão a nossa vila turva-se de vermelho, rosa, roxo, verde, florais – estampas de um enorme e denso colorido. A lua nestas noites, desde as primeiras horas, talvez influenciada por tantas mudanças, compõe-se bordô, – reforçando detalhes e apagando eventuais manchas que possam dissimular imagens”. O próprio narrador (“Naquela mesma lua, na espessa calda que recobre a noite, os traços de Zuita Benoar ganham uma conotação cada vez mais confusa – aspecto de rascunho engolido pela paisagem”) se encarrega de enfatizar a tendência de Luciano pelo desenho, pela pintura, pela paisagem. Em “Aves de Arribação” (clara homenagem a Antônio Sales) se lê: “Durante algum tempo, a corda tensa no espaço e o corpo oscilando suspenso no ar, permaneceram compondo a paisagem, tendo o desvão azul e frio do céu como fundo arbitrário de imagem” (grifo nosso). Em “Estúpido Cupido de Giz” (absorção de parte da letra da música de Neil Sedaka, na voz de Celly Campello, gravada em 1959) outra descrição, outra pintura: “O firmamento é um imenso prato raso, onde todos os canais noturnos do inferno astral convergem para além do firmamento blue”.

                Em Luciano há muita poesia, sobretudo nas metáforas, que são abundantes: “Numa noite difusa, silenciosamente, as casas devoraram os seus moradores”. E, se não são metáforas, estamos diante de pura literatura fantástica. Veja-se a poesia deste excerto: “Não me encontrando [em meu coração] especializei-me em vislumbrar abismos”.

Dois de seus personagens – Margot e Gaspar – aparecem em diversas composições, o que levaria o leitor a imaginar a construção de um romance. Talvez houvesse essa pretensão no escritor. Porém, em nenhum momento se percebe nos “móbiles” ou nos “passos” do primeiro livro o espírito de romance.

  Em “Terceiro Caderno” o ser fictício está perdido e nem sabe como narrar, ou o que narrar. O de “Não Existe Apenas uma Forma de Amor & Prazer” mais se assemelha a ensaísta, num ensaio do amor e do prazer carnal. Em “Segundo Rascunho” o narrador-personagem está em completa solidão, desespero: “As ruas não estavam desertas, eu estava”. Em “Sobre Naturezas Humanas” o tema central é o ser humano, como a dizer: “Assim são os humanos”. Em “Por Causa do Gato Lilás”, cujo protagonista é um animal, “Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuímos em casa”. Seria a felina também pintora? Em “Correspondência Violada” o tema é a solidão do escritor, os sonhos literários, e seu cotidiano doméstico.

Em muitas peças nada se vê de descrição ou mesmo de informação geográfica. No entanto, aqui e ali se percebe como espaço das ações a cidade do interior. “Sina” é todo composto de referências ao ambiente rural, em vocábulos e expressões de uso comum no sertão. “Viúva de Marido Vivo” também retrata o ambiente de pobreza, a seca. Em “Apesar de.” “Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidade”.

                A chuva é outro elemento frequente na obra de Luciano, talvez exatamente em face da escassez dela no Ceará. Em “Blues da Finitude.” se lê: “Uma pequena chuva, dessas que não divergem opiniões e nos estimulam ao sexo, lambeu por toda a noite a cidade insone”.

Um conto só é bom se tiver um bom desfecho. Como em “Negócios Importantes para o Futuro da Empresa”: “Dali a pouco, ela pegaria a sua filha no colégio e eu me encontraria com o seu marido, para tratarmos de negócios importantes para o futuro da empresa”. Belo deslinde, inusitado, embora realista.

                Luciano se serve das mais variadas formas ou modalidades de comunicação: a carta – o que não é novidade – (como em “Cartas a Van Gogh”), a propaganda, a conversa fiada, o anúncio, a frase feita, o lugar-comum, o ditado (em “Na Brevidade das Fugas” a pessoa que dialoga com Maria e também o narrador fazem uso constante dessa linguagem). O mesmo recurso é utilizado em “De Natureza Cíclica”. Há até uma “Conversa entre Liquidificadores” (ilegível para o leitor humano, talvez legível por outros liquidificadores, que falariam de si mesmos ou dos humanos, de suas engrenagens, de seu trabalho diário, etc. Sim, sobre o que “conversam” os liquidificadores? Sobre os humanos ou sobre si mesmos?) Em “Noturnos Ópios No 9” Luciano aproveita a fórmula das questões de prova escolar. Em “Variações” encontramos até o que se poderia chamar de relatório oficial: “Casas: iguais e diferentes. /Moradores: análogos e divergentes. /Situações: semelhantes e distintas”. Em “Apesar de.” a forma utilizada é a do diário, o que também não é novidade.

                Muitas de suas composições são bem curtas, constituídas de diálogos breves, quase enigmáticos. Outras são compostas apenas de uma fala e uma narração breve, como em “Implicações Clandestinas das Herméticas Influências”.  “Intervenção Urbana” seria uma síntese de um acidente ou suicídio. Em “Original Lugar Comum” ele brinca com as fórmulas filosóficas, os sofismas, etc. Em “A Realidade Segundo H. P. Down” de novo a linguagem dos filósofos ou uma paródia filosófica. Ou conclusões lógicas, como em “O Filho Alérgico e a Mãe Protetora”.

                Luciano também aproveita com cuidado a sequência de vocábulos ideologicamente análogos, para construir a frase, o enunciado narrativo, como em “Manhã Guardada”: “Confissões, namoros feitos, mágoas, traições refeitas, álcool, amores desfeitos, mulher amada, punhais, olhares penumbros, bichas pavão, lésbicas fumadas, viciados utópicos – a praça para além dos bancos”. Ou em “Filhos de mãe d’água”.

                Tudo isso faz de Luciano Bonfim um escritor absolutamente moderno, novo, embora não se desfaça das fórmulas consagradas de narrar ou escrever, não se afaste dos narradores essenciais e, acima de tudo, não pense que inventou a roda, a pólvora ou mesmo o conto.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 17)

He-heee… pimenta boa!
Tanto assanha o maridão,
Que, emocionada, a patroa
Dobra a ardência do pirão…
A. A. DE ASSIS (PR)
-
Quero, por tudo e por nada,
Esquecer-te a qualquer preço
Mas a distância danada
Já sabe o meu endereço!
ANTÔNIO COLAVITE FILHO (SP)
-
Sou feliz! Não vivo ao lado
das estrelas na amplidão,
mas posso ter um punhado
de vaga-lumes na mão.
ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES (RJ)
-
Desta saudade infinita
não guardo mágoas, porque
foi a coisa mais bonita
que me ficou de você.
APARÍCIO FERNANDES (RN)
-

Que barulho o Zé fazia,
na moita de sabugueiro,
e quem passava sentia
que o barulho… tinha cheiro!
CAMPOS SALES (SP)
-
Uma luz quase apagada…
Um sonho chegado ao fim…
Eis um pedaço do nada
que tu fizeste de mim!
CONCEIÇÃO DE ASSIS (MG)
-
Sou tal qual ave ferida
que as suas asas quebrou
e Deus, para dar-lhe vida,
os seus pedaços juntou.
DIVA DA COSTA LEMOS (RS)
-
Bebo lembranças em tragos,
ao ponto da embriaguez,
para curar os estragos
que a sua ausência me fez!
ELISABETH SOUZA CRUZ (RJ)
-
No jogo da vida é assim:
tem encrenca e desacato,
e, quando ele chega ao fim,
a mãe de alguém paga o pato…
ERCY MARQUES DE FARIA (SP)
-
Desponta sereno o dia,
e o meu sonho, sem demora,
enche o mundo de poesia
ao romper da linda aurora!
EVA GARCIA (RN)
-
A palavra mais ardente
não é o fogo, é a paixão;
queimando o corpo da gente
deixa em brasa o coração.
GILDA MOURA (RN)
-
Aquela ponte que unia
nossas vilas ribeirinhas
une ainda, por magia,
tuas saudades e as minhas.
GISLAINE CANALES (SC)
-
Com ambição desmedida
por coisas materiais,
o homem não tem medida,
nem liberdade, nem paz…
GONZAGA DA SILVA (RN)
-
O sol, eterno andarilho,
Nas rotas do movimento,
Abre as cortinas com brilho
No escuro do firmamento.
HÉLIO ALEXANDRE (RN)
-
A ressaca da bebida
é pra ninguém esquecer.
Por isso a melhor pedida
é não parar de beber.
HELIODORO MORAIS (RN)
-
Quase todo brasileiro
tem esta…“mania”… estranha:
– dá sumiço no dinheiro
mais depressa do que ganha!
 IZO GOLDMAN (SP )
-

Se for teste, meu Senhor,
o viver nesta fornalha,
tu verás que a fé e o amor
de um nordestino não falha!
J.B. XAVIER (SP)
-
Não sei se é pecado ou vício,
bobeira… sei lá mais quê…
esse agridoce suplício
de só pensar em você!
 JEANETTE DE CNOP (PR )
-
Minhas lágrimas serenas,
cada qual mais ressentida,
formam um rosário de penas,
das mágoas de minha vida.
JORGE MURAD (RJ)

 -
Quando nós somos crianças
tantos sonhos são sonhados.
Hoje…adultos, são lembranças
daqueles tempos passados.
JOSÉ FELDMAN (PR)
-
“Escolha a pessoa certa
para entregar-se, querida.”
Mamãe, quando a fome aperta,
não dá pra escolher comida!
JOSÉ TAVARES DE LIMA (MG)
-
Não lastime as tristes horas
da viagem que angustia…
Viver é criar auroras
no ocaso de cada dia!
JOSÉ VALDEZ DE C. MOURA (SP)
-
O vazio dos teus braços,
depois de tristonho adeus,
fez a dor rondar meus passos,
na busca inútil dos teus…
JÚLIA LEAL MIRANDA (RJ)
-
O terapeuta sugere:
- “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
- “Tô” fora! Pimenta, não!
LUCÍLIA DECARLI (PR)
-
De todo “não” que me deste,
o que mais triste me fez
foi aquele que disseste
disfarçado num “talvez”…
LUIZ CARLOS ABRITTA (MG)
-
Nunca temerei fracassos
chegarei mesmo sozinho.
Quem segue do pai, os passos,
sabe as curvas do caminho…
MANOEL CAVALCANTE (RN)
-
“Limpou” o supermercado
e desculpou-se ao ser presa:
- Não é roubo, delegado,
é mania de limpeza!
MARIA DOLORES PAIXÃO (MG)
-
Meu sogro nem “manda brasa”,
mas, quando está de veneta,
deixa a “mala velha” em casa
e sai com qualquer “maleta”..
MARIA NASCIMENTO (RJ)
-
Vão ficando tão distantes
os carinhos do passado,
que eu nem sei se o que era antes
foi vivido… ou foi sonhado…
MARINA BRUNA (SP)
-
Se navegar é preciso,
se é necessário sonhar,
eu sonho no teu sorriso,
navegando em teu olhar!
MARISA OLIVAES (RS)
-
Quando a nuvem da má sorte
Cobre de sombras teu mar,
A esperança é o vento forte
Que faz o tempo mudar.
MILTON DE SOUZA (RS)
-
De tanto sofrer na vida,
eu peço a Deus, sem revolta;
– Abra as porteiras da ida,
feche as porteiras da volta.
MILTON NUNES LOUREIRO (RJ)
-
Loucuras… quantas já fiz
nos tempos da mocidade…
“Morri de amor” – fui feliz!…
Hoje vivo de saudade…
NÁDIA HUGUENIN (RJ)
-
Não há fronteira na vida
que separe um grande amor,
quando a ponte foi erguida
pelas mãos do Criador.
OLGA AGULHON (PR)
-
Do poeta, o maior sofrer
assim pode ser descrito:
É a luta para escrever
o que nunca foi escrito.
OLYMPIO COUTINHO (MG)
-
Nos extremos desta vida,
um contraste se percebe:
– A Terra chora a partida
daquele que o Céu recebe!
OSVALDO REIS (PR)
-
Altruísta, de verdade,
do benfazer! É sequaz,
age, com serenidade,
sem ostentar, o que faz…
PEDRO GRILO (RN)

-
Minha renúncia…Quem sabe…
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!
PROF. GARCIA (RN)
-
Coração, velha gaiola…
A saudade, no poleiro,
com seu canto me consola
noite e dia, o tempo inteiro!
REINALDO AGUIAR (RN)
-
Disse o carteiro, confuso:
- mora aqui o “seu” Leitão?
- Não mais, respondeu o luso:
virou torresmo e sabão.
RELVA DE EGYPTO REZENDE (MG)
-
Quando a paixão é marcada
por possessão, se resume
numa rosa incinerada
na fornalha do ciúme…
RENATA PACCOLA (SP)
-
A vida é um “fogo de palha”
e o tempo se mostra algoz,
mais parece uma fornalha
onde a palha… “somos nós”!…
ROBERTO TCHEPELENTYKY (SP)
-
Se nas revistas reparas,
verás que é questão de gosto:
alguns preferem ver Caras,
outros preferem o oposto…
RODOLPHO ABBUD (RJ)
-
Os dois velhinhos dançavam,
mostrando desenvoltura;
mas sempre que tropeçavam,
trocava de dentadura!
RONALDO AFONSO JÚNIOR (MG)
-
Quando a vida se distrai,
ou dá tudo, ou tudo nega:
Rico… pega o carro e sai;
pobre sai… e o carro pega!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA (SP)
-

Destilando hipocrisia
segue a tola humanidade
queimando a vã fantasia
nas fogueiras da vaidade!
UBIRATAN QUEIROZ (RN)
-

Aquela duna imponente,
que na paisagem se alteia,
tem na origem, certamente,
minúsculos grãos de areia.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ (PR)
-
Que lua-de-mel aquela!
Faltou luz, foi um sufoco:
a noiva queria vela,
o noivo só tinha um toco…
WANDA DE PAULA MOURTHÉ (MG)
-
É sempre ameno, suave, 
é um ápice da emoção,
quando a gente encontra a chave
que destranca um coração!…
ZÉ DE SOUSA (RN)

Irmãos Grimm (Os Seis Cisnes)

Era uma vez um rei que estava caçando numa imensa floresta, e ele caçava um animal selvagem com tanta vontade que nenhum dos que acompanhavam conseguiam segui-lo. Quando a noite chegou ele fez uma parada e olhou ao redor, e então, ele percebeu que ele havia perdido o seu caminho de volta.

Procurou uma saída, mas não encontrou nenhuma. Então, ele avistou uma velhinha que balançava a cabeça continuamente; ela era uma bruxa e vinha em direção a ele.

— “Minha bondosa senhora,” o rei disse para ela, — “Será que a senhoria poderia me mostrar o caminho para eu sair da floresta?”

— “Oh, sim, senhor rei,” respondeu ela, “lógico que eu posso, mas sob uma condição, e se não cumprires o prometido, jamais conseguirás sair da floresta, e morrerás de fome.”

— “E que condições são estas?” perguntou o rei.

— “Eu tenho uma filha,” disse a velhinha, “linda como não existe nenhuma outra no mundo, e muito digna de se tornar sua esposa, e se permitires que ela se torne sua Rainha, eu lhe mostrarei o caminho para sair da floresta.”

Como o rei estava angustiado, ele concordou, e a velhinha o conduziu para a sua pequena cabana, onde a filha dela estava sentada perto do fogo. Ela recebeu o rei como se ela estivesse esperando por ele, e ele constatou que ela era muito bonita, mesmo assim, ela não foi do seu agrado, e ele não conseguia olhar para ela, sem sentir um horror secreto.

Depois de ele ter conduzido a jovem para o seu cavalo, a velhinha mostrou-lhe o caminho, e o rei voltou para o seu palácio novamente, onde foi celebrado o casamento.

O rei já havia se casado uma vez, e com a primeira esposa, ele teve sete filhos, seis meninos e uma menina, a quem ele amava mais do que tudo no mundo. Como ele temia que a madrasta poderia não tratar bem dos seus filhos agora, ou mesmo fazer-lhes algum mal, ele os levou para um castelo solitário que ficava no meio de uma floresta. Ele ficava tão escondido, e o caminho para encontrá-lo era tão difícil, que ele mesmo não conseguiria tê-lo encontrado, se uma fada não tivesse dado a ele um novelo com propriedades mágicas.

Quando ele soltava o novelo, ele se desenrolava e mostrava o caminho até o castelo. O rei, todavia, ia todos os dias visitar os seus filhos queridos na floresta que a Rainha começou a notar a sua ausência; ela ficou curiosa e queria saber o que ele fazia quando estava totalmente sozinho na floresta. Ela deu uma certa quantia em dinheiro para os seus criados, e eles contaram o segredo para ela, e contaram a ela também sobre o novelo mágico que sozinho poderia mostrar o caminho.

E então, ela não conseguiu ter mais sossego, até que ela descobriu onde o rei guardava o novelo, e então, ela fez camisas de seda branca, e como ela tinha aprendido a arte da bruxaria com a sua mãe, ela costurou um encanto dentro das camisas. E quando o rei havia saído para caçar, ela pegou as camisas de seda e foi para a floresta, e o novelo mostrou a ela o caminho. Os filhos, que viram de longe que alguém estava se aproximando, pensaram que o pai deles estava vindo visitá-los, e radiantes de alegria, correram para encontrar-se com ele.

Então, ela lançou uma camisa de seda sobre cada um deles, e mal as camisas haviam tocado seus corpos e eles foram transformados em cisnes, e voaram para longe da floresta. A Rainha voltou para casa feliz e realizada, e pensou que ela tivesse se livrado dos seus enteados, mas a menina não havia corrido com seus irmãos para encontrá-la, e a rainha nada sabia sobre ela. No dia seguinte o rei foi visitar os seus filhos, mas ele não encontrou ninguém além da garota.

— “Onde estão os teus irmãos?”, perguntou o rei.

— “Ah, meu pai,” respondeu a menina, — “eles foram embora e me deixaram sozinha!” e ela contou para ele que tinha visto da sua janelinha como os seus irmãos fugiram para a floresta transformados em cisnes, e ela mostrou a ele as penas, que eles tinham deixado cair no quintal, e que ela apanhou.

O rei ficou triste, mas ele não pensou que a rainha tinha feito essa maldade, e como ele receava que a garota poderia também ser roubada dele, quis levá-la consigo. Mas a pequenina tinha medo da madrasta, e insistiu ao rei para deixá-la ficar apenas mais uma noite no castelo da floresta.

A pobre menina pensou: — “Não posso mais ficar aqui. Irei procurar os meus irmãos.”

E quando a noite chegou, ela fugiu, e foi direto para a floresta. Ela caminhou a noite toda, e no dia seguinte também caminhou sem parar, até que ela não conseguiu continuar caminhando porque estava muito cansada. Então, ela encontrou uma cabana na floresta, e entrou dentro dela, e encontrou um quarto onde havia seis pequenas camas, mas ela não ousou deitar-se em uma delas, mas escondeu-se debaixo de uma das camas, e deitou-se no chão duro, pretendendo passar a noite ali.

Pouco antes do amanhecer, todavia, ela ouviu um barulho de asas batendo, e viu que seis cisnes vinham voando pela janela. Eles pousaram no chão e sopravam as plumas uns dos outros, e as suas penas de cisnes ficaram lisas como camisas. Então, a garotinha olhou para eles e ela reconheceu os seus irmãos, ficou contente e saiu debaixo da cama. Os irmãos também ficaram felizes em verem sua irmãzinha, mas a alegria deles teve curta duração.

— “Aqui não podes morar,” disseram eles para ela.

— “Este é um esconderijo de ladrões, se eles chegarem em casa, e te encontrarem, eles te matarão.”

— “Mas vocês não podem me proteger?”, perguntou a irmãzinha.

— “Não,” responderam eles, somente durante quinze minutos por dia de cada noite nós podemos tirar as nossas plumas de cisnes e usar durante esse tempo a forma humana; depois disso, voltamos novamente a sermos cisnes.”

A irmãzinha chorou e disse,

— “Vocês não conseguem se libertar?

— “Oh, não,” eles responderam, “as condições são muito difíceis! Durante seis anos não poderás falar nem sorrir, e durante esse tempo você deverá costurar seis camisas pequenas feitas de aster para nós. E se uma única palavra for pronunciada da sua boca, todo teu trabalho terá sido em vão.”

E quando os irmãos tinham dito isto, os quinze minutos haviam passado, e eles voaram novamente pela janela como se fossem cisnes.

A garota porém, havia decidido resolutamente libertar os seus irmãos, mesmo que isto lhe custasse a própria vida. Ela saiu da cabana, foi para o meio da floresta, sentou-se numa árvore, e lá passou a noite. Na manhã seguinte, ela saiu para colher aster e começou a tecer.

Ela não poderia conversar com ninguém, tampouco poderia sorrir; ela ficou sentada ali e nada lhe interessava além do seu trabalho. Quando já fazia muito tempo que ela tinha passado ali, aconteceu que o rei daquele país estava caçando na floresta, e o seus companheiros de caça vieram até a árvore onde a garota estava sentada. Eles a chamaram e disseram:

— “Quem és tu?” Mas ela não falou nada.

— “Desça aqui com a gente,” disseram eles. — “Não vamos lhe fazer nenhum mal.”

Ela apenas balançava a cabeça. Como eles a pressionavam com perguntas ela lançou seu colar de ouro para eles, e pensou que isso os deixaria satisfeitos. Eles, no entanto, não paravam, então, ela jogou sua cinta para eles, e isso também não adiantou nada, jogou também suas ligas e aos poucos tudo o que ela usava até que ela ficou só de blusa. Os caçadores, porém, não se tomaram por vencidos, mas subiram na árvore, desceram a menina e a levaram para o rei. O rei perguntou:

— “Quem és tu? O que estavas fazendo em cima da árvore?”

Mas ela não respondia. O rei fez a pergunta em vários idiomas que ele conhecia, mas ela permanecia tão calada como um peixe. Como ela era muito linda, o coração do rei ficou encantado, e ele foi tomado por uma grande paixão por ela. Ele colocou nela a sua manta, levou-a em seu cavalo, e a conduziu para o seu castelo. Depois, ele mandou que ela se vestisse com roupas riquíssimas, e a beleza dela brilhava como um dia reluzente, mas nenhuma palavra ele conseguia tirar dela. Ele a colocou ao seu lado, na mesa, e a sua postura humilde e educada o encantou tanto que ele disse:

— “Ela é a mulher com quem eu quero me casar, e não quero nenhuma outra.” E depois de alguns dias ele se uniu a ela.

Mas o rei tinha uma mãe perversa que não estava satisfeita com este casamento e falava mal da rainha.

— “Quem sabe,” disse ela, — “de onde veio essa garota que não sabe falar? Ela não é digna de um rei!”

Depois que um ano se passou, quando a rainha deu a luz ao seu primeiro filho no mundo, a velhinha tomou dela a criança, e manchou a boca dela de sangue enquanto ela dormia. Depois ela foi até o rei e acusou a rainha de ser uma devoradora de crianças. O rei não quis acreditar nisso, e não permitiu que ninguém fizesse nenhum mal a ela. Ela, no entanto, continuava sempre costurando as camisas, e não se preocupava com mais nada. No ano seguinte, quando ela deu a luz a um belo garoto, a falsa madrasta se utilizou do mesma maldade, mas o rei não aceitava acreditar nas palavras dela. Ele disse:

— “Ela é bondosa e meiga demais para fazer qualquer coisa desse tipo, se ela não fosse muda, e pudesse se defender, a sua inocência seria explicada.”

Mas quando a velhinha roubou o filho recém-nascido pela terceira vez, e acusou a rainha, que não proferia nenhuma palavra ou defesa, o rei não pode fazer nada senão entregá-la à justiça, e ela foi condenada a sofrer a morte na fogueira.

Quando chegou o dia para que a sentença fosse executada, esse era o último dia dos seis anos durante os quais ela não podia falar nem rir, e ela tinha libertado os seus queridos irmãos do poder do encantamento. As seis camisas estavam prontas, somente faltava a manga da sexta camisa. Quando, então, ela era levada para a fogueira, ela levava as camisas em seus braços, e quando ela se levantou e o fogo ia ser acendido, ela olhou ao redor e viu seis cisnes que vinham voando pelo ar em direção a ela. Então, ela percebeu que a sua libertação estava chegando, e seu coração pulava de alegria.

Os cisnes pousaram sobre ela e desceram de modo que ela podia lançar as camisas em cima deles, e a medida que eles eram tocados pelas camisas, suas plumas de cisnes se desfaziam e seus irmãos assumiam sua forma humana diante dela, e eles eram fortes e bonitos. Apenas o mais jovem lhe faltava o braço esquerdo, e tinha no lugar do braço uma asa de cisne em seu ombro. Eles se abraçaram e se beijaram, e a rainha foi até o rei, que estava muito emocionado, e ela começou a falar e disse:

— “Querido marido, agora eu posso falar e declarar para ti que sou inocente e fui acusada injustamente.”

E ela lhe contou toda a maldade que a velhinha havia levado embora os três filhos dela e os havia escondido. Então, para grande alegria do rei, eles foram encontrados e trazidos até ele, e como punição, a madrasta má foi colocada na fogueira e queimou até virar cinzas. Mas o rei e a rainha com seus seis irmãos viveram muitos anos feliz e em paz.
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Nota:
Aster = planta da família das borragináceas também conhecida como murugem.


Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/Os_seis_cisnes