quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Natalício Barroso (Rastro de Fogo)

"O ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia"
Kafka


As vinhas da ira bem que poderiam ter uma outra composição se tivesse ocorrido com John Steinbeck o mesmo que aconteceu comigo. Havia terminado de dar um ponto final no meu último romance quando, por descuido, toquei uma das teclas do computador que, no lugar de salvar, deletava depois de mandar as mensagens, via e-mail, para outros computadores – pois foi o que aconteceu. O endereço, felizmente, era de um sobrinho meu mas, como não o encontrei em casa, deixei para telefonar depois; quando telefonei, mais tarde, havia saído novamente. Assim, passei o dia inteiro procurando localizar meu sobrinho; quando dei com ele, à noite, disse-me que havia enviado aquele mesmo texto para uma outra pessoa (não sei qual); como possuía o endereço eletrônico desta pessoa, passou para mim. Não tinha o telefone dela, asseverou, mas não era difícil localizá-la pelo e-mail. Assim tentei.

A sensação que tive quando comecei a mandar e-mails pra um conhecido e outro em busca de Rastro de fogo (como se chamava meu romance) era a de que ele havia se perdido. Tinha entrado na boca de um monstro que, mesmo que atenda pelo nome de Internet, nem por isso é menos voraz do que um buraco negro no interior do qual – se alguém conseguisse vê-lo por dentro – havia de se deparar com coisas extraordinárias: textos antiquíssimos, da época de Assurbanipal, ou outros, mais recentes, mas, nem por isso, menos valiosos.

A noite, quando chegou, encontrou-me debruçado sobre o computador. A luz da vela, que havia posto no canto esquerdo da tela para iluminar meus rascunhos, tal como os monges faziam no tempo dos velhos castelos medievais, apenas bruxuleava enquanto eu escrevia.

Moro sozinho. Minha casa tal como um velho solar abandonado à beira de uma estrada, mais parece um casarão antigo – destes mal-assombrados – do que uma residência; no entanto, é aí mesmo que moro. A intenção, quando resolvi comprar um prédio antigo e mal assombrado num lugar ermo como este foi, justamente, a de não ser importunado por ninguém. Mas sou. As pessoas passam defronte da mansão onde moro e, como a acham muito estranha, resolvem parar o carro para vê-la por dentro. Fosse eu um assassino – ou algo parecido – já teria morto várias delas mas, como não sou, deixo-as pensar que a velha herdade de dois andares com um brasão na fachada está vazia realmente. Assim, seguem adiante. Eu fico por trás das cortinas olhando para elas; quando vão embora respiro fundo. A casa é muito pesada; fosse um trailler dava um jeito de levá-la para longe da estrada; como não é, o jeito é ir me acostumando com ela.

Kafka, autor de livros importantes como O processo e A metamorfose, escreveu, certa vez, que "o ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia" – e tem razão. Afinal, qual o profissional que, para trabalhar, precisa se isolar dos outros?

A comparação mais acertada sobre a vida e a literatura que considero, no entanto, não é nem a de Kafka; a comparação mais acertada que acho é a que fez um autor anônimo quando comparou os poetas e romancistas de seu tempo com monstros tal como o Dr. Jekyll de Louis Stevenson e Charles Ward de Howard Philip Lovecraft. A comparação é evidente. A literatura, assim como uma droga qualquer servida por uma feiticeira em uma taça de ouro, transforma o indivíduo num homem solitário; capaz de praticar qualquer desatino.

Alexandre Dumas, se não tivesse sido escritor, talvez tivesse se tornado um homicida. Basta dizer que, quando escrevia, tinha o hábito de pendurar vários bonecos diante dele; quando seus personagens começavam a brigar o autor de Os três mosqueteiros também se punha a atirar ou a traspassar os seus bonecos com uma espada. Isso, para mim pelo menos, é uma prova mais do que evidente de que Dumas era, no fundo, um assassino.

A maior tolice da humanidade, portanto, é imaginar que a poesia – tanto quanto a música ou a pintura – é inútil. Tenho para mim, que não sou genial, que a poesia é muito mais importante aos homens do que todo o petróleo que se encontra atualmente sob a terra. Assim, a única comparação possível que se pode fazer entre a produção literária e o mundo circundante, é com o amor – pois só o amor, a exemplo da inspiração, é capaz de mudar, completamente, o comportamento das pessoas.

Mas não enveredemos por este caminho.

Voltemos à minha preocupação inicial: a perda de meu livro.

Quantos escritores perderam seus livros no passado? Muitos. Camões foi um deles. Nenhum, contudo, perdeu o seu original da maneira como perdi o meu. Camões, se não me engano, perdeu os seus poemas ("livro de muita erudição, doutrina e filosofia", segundo um de seus contemporâneos, Diogo do Couto) numa viagem que fez de Goa para Moçambique. Eu perdi o meu sem sair de casa e é sem sair de casa que pretendo achá-lo novamente. Afinal, fazer como os escritores antigos que batiam de porta em porta em busca de seus originais, é impossível – pois não há original algum. Há uma série de palavras iluminadas que, da mesma forma como surgiram no mundo, podem desaparecer.

Gostaria até de saber o que acontece com os textos quando a pessoa que trabalha neles digita a tecla destinada a apagar todos eles. Será que desaparecem completamente ou será que viram uma pequena centelha dentro do computador capaz de incendiar uma cidade inteira se, por acaso, forem tocados outra vez? É difícil dizer. A minha situação, em todo caso, não é nada fácil. Camões, quando perdeu seu livro em Moçambique tinha muito mais chances de encontrá-lo do que eu – apesar de não tê-lo achado. Um dia o encontram – quem sabe? A minha obra-prima, infelizmente, jamais. Ela pode até está sendo acessada, neste exato momento, por um português ou um gaulês. Tudo isso é possível. Como ela não existe, porém (pelo menos na mente destas pessoas) ninguém vai imaginar que se perdeu ou que alguém a procura, desesperadamente, na Internet.

Outro dia recebi uma mensagem em árabe no meu site. Como não sei árabe, resolvi apagar a mensagem; hoje, se tivesse recebido esta mesma mensagem não teria feito isso; iria pensar que alguém, depois de atirar o tapete no chão e rezar para Alá com o rosto voltado para Meca, tinha lido o meu apelo e, tendo encontrado o meu livro, mandava um recado para mim.

Como ainda não havia perdido nada na Internet, porém, dei pouca atenção àqueles garranchos todos. Pobre de mim!, comparo-me, na situação em que me encontro, a um pirata que, como o Capitão Ahab no Perquot, procura por uma baleia que, se não é Moby Dick, é, pelo menos, algo tão difícil de encontrar quanto ela. E aqui estou, navegando noite e dia neste mar que, se não tem céu nem estrelas tem, pelo menos, as ondas cibernéticas de um veículo de comunicação.

A aldeia onde nasci é pequena e fica a poucos quilômetros daqui. De vez em quando aparece gente de lá. "Seu pai", dizem elas, "mandou isso e aquilo para você". Eu recebo. Afinal, como todo escritor pobre que tem, como único orgulho, a sua literatura, não posso me dar ao luxo de dispensar seja lá o que for. Assim, recebo meus antigos vizinhos, mas sinto que não gostam de mim.

Houve um tempo, quando morava na aldeia, que me tratavam até com certa deferência; neste tempo, contudo, eu era uma outra pessoa, ainda não tinha descoberto a literatura; hoje, depois que li Tolstoi, Dostoievski e Proust, não sou mais o mesmo. É natural, portanto, que meus antigos vizinhos, quando me veem, se sintam mal. A casa onde moro, por outro lado, não ajuda muito; como costuma ficar fechada noite e dia e a única pessoa que se move, dentro dela, sou eu, não há como negar o pavor que isso provoca nos outros.

Mas isso pouco importa. Melhor do que estas observações fortuitas e pouco esclarecedoras, é que tenho tido notícias de Rastro de fogo. Foi visto no Himalaia, ao pé de um rio que, segundo dizem, percorre aquela região durante o verão; também foi visto na Índia ou em regiões mais distantes como a China; teve um amigo meu que, como morou por lá, disse haver acessado os sites brasileiros e viu o meu livro passar por ele tal como aquele rio que desce o Himalaia durante o verão.

A história mais incrível que ouvi a respeito de meu romance, porém, não foi a de que passou por choupanas ou por palácios requintados; a história mais incrível foi a de uma senhora que, se dizendo muito emocionada depois de folheá-lo (parece que o imprimiu), me falou de vários personagens que, infelizmente, não eram os meus. assim, fica muito difícil dar, na Internet, com o que existe apenas em potencial mas não concretamente; por outro lado é interessante dar com estas pessoas que, antes mesmo que você se apresente, parece que já sabem tudo sobre você: quando nasceu, onde e quando (chegam a este tipo de perversão) vai morrer. No início até estranhava isso; com o tempo, porém, passei a dar pouca importância a este tipo de vidente. Hoje, quando ligo o computador, a única coisa que me interessa é o meu romance. Onde se encontra? Em que tipo de rede está sendo acessado neste momento? Não sei. Alguém, no entanto, talvez o esteja lendo justamente agora quando pergunto por ele e não consigo localizá-lo.

A vida é estranha. As pessoas, por mais que pareçam próximas, por causa da Internet, continuam distantes; esta ideia de que o computador foi capaz de reduzir o mundo a uma simples aldeia de pescadores, não passa de especulação; pois a única coisa que se vê, no mundo, depois do computador, não é a sabedoria mas a ignorância.

Rafael, meu amigo, apareceu no solar onde moro e me trouxe notícias do mundo real. A aldeia onde nasci e onde meus pais ainda residem, foi praticamente varrida por um vento muito forte. As pessoas ficaram tão impressionadas com aquilo – a força do vento – que tiveram medo; algumas delas, por sinal, foram obrigadas a repor as telhas que o vento, depois de sua passagem, havia levado consigo; a casa de meus pais, felizmente, não sofreu nenhum dano – exceto, contou-me Rafael sorrindo, uma árvore enorme, do tamanho de uma torre, que praticamente desabou; não fosse o muro que cerca a casa, ela teria caído mas, como o muro é alto e resistente, manteve-a praticamente suspensa no ar por um bom tempo.

Todas essas histórias de um mundo que eu praticamente havia esquecido, me impressionava bastante. Rafael, enquanto isso, continuava falando: meus pais, depois que o vento passou e levou as folhas verdes (e outras nem tão verdes), resolveram dilapidar a árvore. E assim foi feito. A frente da casa onde moram, portanto, não tem mais aquela velha carnaubeira que, como uma palmeira no deserto, anunciava para as pessoas que o oásis começava ali; a carnaubeira tombou, sob o peso das intempéries; felizmente, como não tombou para dentro mas para fora do terreno onde a casa se encontra, não feriu ninguém.

Rafael, quando me dava essas notícias, sorria. Havia alguma coisa de ingênuo em Rafael, é verdade. Ele via o mundo como sempre foi; era incapaz de reter algo, na memória, que não tivesse, primeiro, passado por um de seus sentidos. Agia, no tempo dos computadores e dos satélites artificiais, com a mesma simplicidade com que os irmãos de José, segundo o Velho Testamento, agiam quando partiam em grupo para o Egito. A maneira de Rafael contar uma história, portanto (ou dar uma notícia) não diferia muito da maneira como os velhos escribas do tempo de Israel relatavam suas profecias; caso tivesse paciência para ouvir Rafael por mais algum tempo, era bem possível que, assim como os aviões que cruzam os céus, ele me falasse de tropas de jumentos que, à semelhança dos camelos que atravessam o Saara, na África, cruzam os sertões com as cangalhas carregadas de frutas ou legumes; como o meu tempo é todo ele dedicado à leitura ou às minhas pesquisas infrutíferas, é verdade, na Internet, despedi-me dele e vi quando, no lugar de entrar num carro, como seria de esperar no século XXI, montou num cavalo – tão bem selado quanto o de qualquer outro do século XIX – e saiu por aí, trotando.

Com a partida de Rafael voltei a meus afazeres costumeiros. A tela do computador, como sempre, mostrava um quadro de Rembrandt que, com o tempo, se transformava num outro, de Rubens, e assim sucessivamente até retornar ao quadro de Rembrandt outra vez; depois que apertei um botão no teclado, porém, tudo isso desapareceu; surgiu, no lugar da pintura voluptuosa de Rembrandt, de Rubens ou de Ticiano, a página branca da Internet sobre a qual me pus a trabalhar. Meu livro, como sempre, era uma incógnita, mas não custava nada dar um novo passeio por aí e ver se o localizava em algum lugar.

Havia um recado para mim. A língua na qual havia sido escrito me era inteiramente desconhecida; em todo caso, como estava determinado a não deixar passar nenhuma informação (mesmo que não fosse sobre meu livro) resolvi imprimi-la e mandá-la para alguém em algum lugar do mundo, que pudesse identificá-la. Assim, imprimi o seguinte:

Os caracteres, como se pode observar, não são ocidentais, mas asiáticos; as letras, imitando ideogramas chineses ou japoneses, até parecem esculpidas e não apenas desenhadas sobre a superfície branca do papel. A decifração delas, contudo, e não a sua aparência, era o que mais me chamava a atenção. O que será que significavam? De onde vinham e quem, dentre as milhares de pessoas que possuem computador no mundo, pode ter pensado em mandá-las para mim? Terão elas alguma relação com meu trabalho literário perdido na Internet ou não? A única maneira de saber isso, naturalmente, era lendo a mensagem – e foi o que fiz. Mandei-a para alguns japoneses que conhecia no Japão, exatamente, e eles me enviaram a resposta. Aquelas garatujas não pertenciam à terra dos samurais nem à China mas a Coréia; um deles, como lia coreano perfeitamente, me mandou dizer o seguinte: meu livro tinha sido lido por uma grande figura da Coréia do Norte; ela, a figura, ficou interessada na história mas, como estava incompleta, gostaria de saber como poderia obter os outros capítulos.

A leitura de meu livro, como se vê, tinha sido feita em coreano. Isso significa que estava sendo traduzido para outras línguas. O esquisito, nisso tudo, era que, apesar de traduzido parece que meu nome e meu e-mail continuavam na capa ou na folha de rosto do romance.

Por outro lado nada me tirava da cabeça que, como meu livro estava sendo impresso e traduzido por aí, não acharia nem um pouco estranho se ele aparecesse publicado com o nome de outra pessoa. Como não estava registrado com meu nome, era natural que não tivesse como provar sua autoria – o que muito me preocupava, evidentemente.

A tela do computador, assim como um buraco negro no interior do qual se pode ver de tudo, funcionava, para mim, como uma janela enorme depois da qual eu tanto podia ver quanto ouvir tudo aquilo que passava na minha frente.

A alegria que senti quando soube que aquelas figuras geométricas que vinham da Coréia tinham algo a ver com meu livro, me deixaram quase sem fôlego. Como manter contato com tal criatura? Como perguntar a ela em coreano ou em inglês que eu não tinha mais os capítulos que faltavam nem possuía aqueles que ela – este seguidor de Buda mal disfarçado em militar – havia lido?

Tudo isso passava por minha cabeça com a mesma velocidade com que os meteoros atravessam a atmosfera terrestre, se iluminam por um instante e desaparecem para sempre em seguida.

Havia, porém, uma alternativa. Aqueles mesmos japoneses com os quais eu me comunicava em inglês e que sabiam do meu romance, podiam me ajudar. E assim aconteceu. A informação de que eu gostaria de receber os poucos capítulos que meu leitor coreano possuía, foi enviada para ele; estes poucos capítulos, contudo, nunca chegaram. A impressão que eu tenho é a de que o coreano, desconfiando de que talvez eu não fosse o autor daquela obra-prima, resolveu não me importunar mais ou, quando muito, não se preocupar mais comigo. Assim, a segunda vez em que tive a informação de meu livro (a primeira foi quando aquela velhinha me escreveu dizendo que o havia lido mas, quando citou os personagens percebi que não se tratava de meu romance mas de um outro) foi uma nova decepção.

As regiões montanhosas da Coréia que ficam entre a China e o Japão, parece que guardam, para sempre, pedaços deste meu trabalho que, pelo visto, se perdeu para sempre.

Santa ignorância!, a Internet, já disse alguém, se parece muito com os redemoinhos que se agitam nas proximidades da Noruega; ali, quando eles aparecem, as pessoas têm o hábito de contemplá-los de longe mas nunca de se aproximar. A tolice que cometi, na minha busca desesperada de ser lido, foi esta: ter apertado um botão, no computador, que não só joga os trabalhos escritos na Internet; também os desmancha completamente no monitor onde foram gerados; assim acho que agi como um náufrago que, tendo encontrado uma ilha e não sabendo como se comunicar com o continente, se serve da única alternativa que dispõe no momento: esvazia as velhas garrafas de rum para colocar, dentro delas, cartas e mapas onde supostamente se encontra no oceano; feito isso espera o momento em que um navio ou um homem de bom coração que tenha lido suas mensagens venha procurá-lo e salvá-lo da solidão.

A casa onde moro, como já disse antes, é um tanto quanto misteriosa. De vez em quando as portas e as janelas batem, sozinhas. Quando isso acontece tenho a impressão de que não estou realmente sozinho neste velho bangalô. Mas deve ser só impressão. Mesmo assim – para tirar todas as dúvidas – desço as escadas de madeira que dão no térreo e saio por aí abrindo e fechando portas e janelas; quando estou muito disposto vou mais longe. Levanto um velho alçapão, em tudo parecido com aqueles que se vê em filmes de terror, e desço uma escada que, se não é de madeira nem por isso deixa de ser tão tétrica quanto aquela: trata-se de uma escada de ferro – bastante enferrujada, por sinal – que vai dar numa antiga adega e num poço cheio de sapos e casas de aranha. Ali abro os baús que se conservam amontoados no chão para ver se encontro algum vampiro dentro deles mas não acho nada nem ninguém.

Não há nada mais absurdo do que procurar fantasmas onde eles talvez não existam – mas como dizem que moro com alguns deles (há quem diga que sou um deles) tomo as minhas precauções pois a fantasia, mais do que a realidade, é responsável por coisas absurdas. Gontcharov, autor de Oblomov, passou a vida toda acusando Turgueniev de haver roubado parte de suas novelas. Chegou ao cúmulo de se trancar com algumas delas num quarto.

Tinha medo de Turgueniev – considerado um pilantra por ele – aparecer por acaso em sua residência e levar as suas últimas produções. Assim, quando penso que há alguém em casa ou que algum fantasma – mal saído das páginas de Oscar Wilde – se infiltrou nos compartimentos lúgubres do velho prédio onde percorro as salas e corredores em silêncio, não penso duas vezes, corro atrás dele; quando o encontro (como se isso fosse possível) (mas há sempre indícios deles em lugares tristes e remotos como este onde me refugio) dou-lhe as boas vindas; quando não me deparo com eles fecho as portas e janelas para que não batam mais e volto para o computador.

A sala onde trabalho também é tão lúgubre quanto o resto da casa, mas, como tem duas janelas – uma que dá para o mar, muito longe, e outra que dá para a aldeia onde nasci – é até arejada. A ventania, quando entra na sala, no entanto (e faz isso com certa frequência), penetra nela com tanta violência que não deixa nada – nem mesmo as cortinas (e olhe que são pesadas) – imóveis. A luz do sol, por sua vez, me deixa ver coisas incríveis. Marcas de antigos quadros que foram pendurados durante muito tempo nas paredes; livros, quase do tamanho de códices medievais retirados das estantes em volta aparentemente com violência e pesados bustos de bronze que apenas sugerem a sua presença com o recorte ainda visível por cima dos plintos mal conservados. Mesmo assim me sinto bem aqui. É como se o corvo de Allan Poe estivesse aqui, entre essas quatro paredes, batendo as asas e esperando o momento certo para, como fez com o poeta norte-americano certa vez, me dizer aquilo que mais temo ouvir neste mundo: "never, never more..."

Foram poucas as pessoas que leram meu romance, realmente. Com exceção de meu sobrinho, para quem mandei uma cópia sem saber, acho que só o amigo dele para quem havia enviado o e-mail, leu o meu livro; esta criatura que mora na Coréia e que teima em ignorar meu apelo para que me mande pelo menos algumas páginas de meu trabalho, foi outro leitor. Assim, num mundo onde habitam quase cinco bilhões de pessoas, talvez apenas quatro ou cinco tiveram a oportunidade – mais do que o prazer, penso eu – de ler meu último romance.

Todos que o leram, felizmente, dizem que gostaram muito. Apenas uma delas – aquela velhinha que, no final, vi que não tinha lido o meu mas outro original – fez uma ressalva: "seu livro é muito bom, disse-me ela, mas há um porém..." Foi a partir deste porém, por sinal, que vi que não se tratava do meu mas de outro texto.

Dizem por aí que quando alguém escreve um livro tem que esperar pelo menos alguns anos para publicá-lo; isso, felizmente, no tempo de Horácio que, quando editou aquele opúsculo a que deu o nome de Poética, escreveu, textualmente, que todo poeta que se preza terá que aguardar pelo menos nove anos para, finalmente, dar à luz seus rabiscos. E quem sou eu para me contrapor a Horácio?

O mundo no qual vivemos, no entanto, não permite mais tamanha disparidade. Tudo no mundo hoje (devido à televisão e ao computador, naturalmente) tem que ser imediato. Talvez por isso não se redijam mais livros como antigamente. Virgílio, quando morreu, ainda não havia terminado a Eneida e Dante, que passou boa parte de sua vida no exílio, só publicou a Comédia (aclamada como "divina" posteriormente) após dez anos de trabalho. Mas será que a literatura terá que ser sempre assim: cheia de exigências? Stendhal, autor de livros famosos como Lucien e Crônicas italianas, que o diga; ele que publicou O vermelho e o negro após muitos anos de trabalho (mas não tanto quanto pretende Horácio) teve que enfrentar um dilema gravíssimo: a partir de quando O vermelho e o negro seria entendido? Stendhal, ele mesmo, respondeu: "daqui há trezentos anos". E foi o que aconteceu.

Pobre Stendhal, fosse médico, o que teria ocorrido? A literatura, felizmente (ou será infelizmente?), tem esta virtude: o autor pode até ser derrotado; a sua produção literária, contudo, pode se sair vitoriosa.

Hoje, no entanto, não se pensa mais assim. A fúria com que os meios de comunicação procuram desvendar o futuro é tão grande que, por mais que se queira exaltar aqueles que se contrapõem a isso, não se consegue.

A literatura, por outro lado, não foge à regra: a poesia, que era escrita com a maior parcimônia (porque era feita para as gerações futuras e não as contemporâneas) sofreu um abalo tão grande com os novos meios de comunicação que deixou de ser poesia para se transformar em letra de música: sendo assim fica difícil imitar Camões ou Fernando Pessoa. Camões porque, como não tinha condições – nem físicas nem financeiras – para publicar Os lusíadas, passou a vida inteira esperando uma oportunidade que só surgiu à beira da morte; Fernando Pessoa, que não estava nem um pouco interessado em se exibir para o mundo como poeta apenas deixou escrito, no baú, o seguinte: "Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,/ eles lá terão a sua beleza, se forem belos/ (...)/ porque as raízes podem estar por debaixo da terra/ mas as flores florescem ao ar livre e à vist" – e assim aconteceu. Seus poemas, como eram belos, vieram à luz e, com eles, a vida boêmia e obscura deste cidadão pacato que ganhava seu sustento traduzindo cartas comerciais num pequeno escritório da Baixa, em Lisboa.

A necessidade de se exibir hoje em dia é tão grande, no entanto, que tanto a poesia quanto as outras artes não têm mais importância alguma: ninguém publica livros ou promove vernissage para mostrar seus trabalhos: o objetivo é outro. A imprensa está aí. A televisão, como atinge milhares de pessoas ao mesmo tempo, é capaz de dar notoriedade a qualquer um, independentemente da qualidade de sua produção. Por isso as "instalações", que não exigem nada do artista, a não ser "boas relações", pululam por aí.

Mas aqui estou eu me metendo onde não devo. Melhor do que falar mal da criatividade alheia é voltar a falar de meu livro que, como continua viajando pela Internet, talvez já tenha sido publicado na Indonésia com o nome de outra pessoa enquanto o autor, que sou eu, fica por aqui remoendo tamanha desdita.

Miguel de Cervantes, para escrever Dom Quixote, imagina que o autor deste livro é um árabe chamado Cide Hamete Benengeli cujos rascunhos encontrou num mercado, comprou e pagou a um outro árabe para o traduzir. O mesmo acontece comigo. O autor de Rastro de fogo (título do meu livro) sou eu; o tradutor, no entanto, seja ele quem for, é quem passou a deter os Direitos Autorais a partir do momento em que assumiu a sua paternidade – e talvez seja assim mesmo. Marco Polo, que nunca escreveu uma linha sequer sobre a sua vida, também é considerado autor daquele livro que desde a Idade Média circula pelo mundo e que tem a China como cenário principal; o verdadeiro autor do livro de Marco Polo, contudo, não foi ele mas um outro veneziano chamado Rusticiano ou Rustigielo de Pisa que, como foi preso pelos genoveses numa torre em 1298 ali se encontrou com o filho de Nicolo Polo e passou a ouvi-lo: ao sair da prisão, Rusticiano, que não era tolo, escreveu e publicou o livro que, até hoje, leva o nome de Marco Polo e não de seu verdadeiro autor.

Meu livro, certamente, não fará o mesmo sucesso de Dom Quixote nem, muito menos, de Marco Polo mas só o fato de ser meu e não ser assinado por mim me machuca tanto quanto aquela segunda parte do Cavaleiro da Triste Figura, escrita, supostamente, por Lope de Veja e que tanto mal causou a D. Miguel – a ponto deste investir furiosamente contra o falsário: "isso não é carga para os seus ombros", vocifera o pacato Dom Miguel contra Lope de Veja, "nem assunto para seu resfriado engenho".

Agora, porém, é tarde. Não dá mais para recuperar o que foi perdido. Miguel de Cervantes conseguiu: matou o ingenioso hidalgo no final de sua segunda saída pelas terras da Mancha; eu, como não disponho nem da primeira nem da última página de minha produção literária, só possuo um consolo: a casa onde moro e que, se fosse vista por um escritor genial – Edgar Allan Poe, por exemplo – é bem provável que tal criatura, num rasgo de imaginação sem limites, comparasse a minha situação com a de "um vírus perdido no interior de um arquivo morto" – e estaria certo. Difícil seria dar com estas palavras num dos textos de Poe.

Mesmo assim fica a imagem: a casa onde moro é, de certa forma, um arquivo; eu, por outro lado, não passo de um vírus que, fuçando os computadores da Europa e da Ásia, procuro um livro que, como a luva de um astronauta antigo que se perdeu no espaço sideral, também se perdeu num espaço que, se não é tão incomensurável quanto o Cosmo, não deixa de ser mais ou menos equivalente a ele: a Internet.

Assim, para que minhas lamúrias não se prolonguem por muito tempo e este "desabafo" não se transforme num novo romance, reproduzo, aqui (à guisa de informação) o refrão que todo dia envio pela Internet: mandem meu livro de volta, ordeno mais do que suplico; preciso muito dele, choramingo em seguida – tanto quanto Merlin quando foi aprisionado por Morgana e ainda hoje se encontra lá mais indefeso do que cativo em sua nuvem.
 
Rastro de fogo, como disse, é o nome do romance que escrevi e que sumiu. A história, banal, tem, pelo menos, uma virtude: boa parte dela se passa no espaço sideral e não aqui, na Terra. As personagens principais, portanto, são um asteróide e um arquiteto. A função do asteróide é a de atingir o arquiteto, no futuro; a deste é servir como prova de que o futuro da humanidade talvez, como diz lá o ditado árabe, já esteja escrito nas estrelas.

A grande surpresa que tive estes dias, no entanto, foi assustadora: alguém, não sei quem, me mandou trechos deste bendito romance pela Internet. Abri o computador um dia e, quando fui ver, lá estavam eles – os trechos. A alegria, no início, foi imensa; com o tempo, porém, vi que não tinha muito motivo para comemorar. Havia tantas mudanças na composição do romance que não era mais o mesmo que redigi. Era outro.
 
As pessoas quando mudam ou fazem uma viagem muito longa, são altamente admiradas por isso – principalmente quando aprendem línguas novas ou falam de lugares por onde passaram e ninguém nunca imaginou que tal coisa fosse possível um dia.
 
A situação do livro é diferente: ninguém quer saber de ler um romance que, tendo sido escrito por uma pessoa, passou por tantas transformações ao longo de sua trajetória, que nenhum leitor saberia identificar o autor nem a língua em que foi redigido. De repente passa do português para o inglês, deste para o alemão e assim por diante como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Assim, para quem lê Homero é preferível pensar que se trata de um único autor do que de vários que, se revezando ao longo do tempo, nos deram estas duas obras-primas que são a Ilíada e a Odisséia.

A mesma coisa – ou quase – ocorreu com meu livro na Internet. A diferença – se houve alguma – foi apenas de lugar (e tempo) mas não de comportamento. As pessoas que se debruçaram sobre a Ilíada e a Odisséia para modificá-los ou para acrescentar alguma nova aventura, todas elas eram gregas; a língua que usaram, portanto, foi a grega; as pessoas que se aproveitaram do meu romance para criar novos personagens ou dar vida às suas idéeas macabras nem todas elas eram portuguesas -–ou de língua portuguesa – pertenciam a vários países e a várias etnias.

As ideias do Dr. Frankestein quando se pôs a juntar restos de cadáveres, eram a de criar o homem do futuro; o mesmo homem que Nietzsche havia profetizado em seus livros e que o Dr. Mengelli, médico nazista, tentou reviver durante a II Guerra Mundial. A criatura que surgiu destas duas experiências, contudo, não foi nem um super-homem, como queria Nietzsche, nem um ser altamente civilizado como o Dr. Mingelli sonhou no futuro mas, como afirma a autora, um monstro abominável.
 
Rastro de fogo, como passou pelo mesmo processo de formação adotado pelo professor Frankenstein no romance de Mary Shelley (Dr. Mengelli não existe neste universo), também não foge à regra. Aquelas criaturas que Santo Agostinho pensava que existiam na América antes desta ser descoberta, perdem é feio para a aparência miserável de meu romance. Caso Rastro de fogo tivesse tido a sorte de ser modificado por aqueles mesmos escritores que substituíram Homero no passado, a sua redação teria melhorado consideravelmente, mas como quem interferiu em sua narrativa não tinha a mesma genialidade dos colaboradores de Homero, o resultado foi o pior possível: Rastro de fogo, hoje, é mais digno de um estudo de teratologia do que de estética.

A história, no entanto, não muda. Continua a mesma. Trata da viagem interplanetária de um meteoro.

A viagem, no meu livro, pelo menos, começa em Saturno, o planeta; dali o objeto perdido no espaço sideral se dirige para a Terra. Neste exato momento nasce, na Terra, uma criança que se chama Eduardo. A trajetória de Eduardo, desde o instante em que nasce até aquele em que se torna adulto, está intimamente relacionada com a do meteoro pois este – mesmo sem Eduardo saber – está destinado a matar o filho de Dona Creuza. Assim, todos os passos que Eduardo dá, na Terra, são imediatamente relacionados com os movimentos que o meteoro executa no espaço.

No meu texto Eduardo não vive no melhor dos mundos; também não vive no pior – tem lá as suas paixões e as suas ambições: arquiteto, pai de família, sai por aí desenhando plantas de casas e acompanhando a construção de algumas delas; quando o engenheiro o interpela por algum motivo, Eduardo não se deixa convencer: exige que a casa em construção seja levantada de acordo com a planta que elaborou e não de acordo com as ponderações apresentadas pela engenharia civil.

A vida de Eduardo, neste caso, é semelhante a de qualquer outro que, como ele, exerce uma profissão dita liberal – pois este homem feliz (pelo menos até certo ponto) – está condenado a ter um fim trágico: o fragmento espacial que surgiu no Universo antes mesmo de a Terra ser o que é – o habitat não só da humanidade mas de uma imensa quantidade de seres vivos – parece que o persegue desde que o mundo foi criado.

Aí está o resumo – mal pincelado, é verdade – de meu romance. A intenção, quando escrevi este livro, foi a de chamar a atenção das pessoas para o fato de que o futuro – se existe – já está no passado: a nossa morte, neste caso, já está resolvida há muito tempo assim como as nossas aspirações, tão difíceis de serem atingidas, talvez já tenham sido alcançadas de alguma maneira.

A história que me chegou pelo computador, como disse antes – apesar de todas as interferências apontadas – não é muito diferente desta. Eduardo que, no meu romance, se chama José Eduardo Horta, no livro que me foi enviado, tem outro nome: Eduardo, apenas; a mulher dele, que se chamava Ane, passou a se chamar Luiziane e a mãe – uma personagem importante na novela – também não se chama Creuza mas Lucíola.

A mudança do nome dos personagens principais, penso eu, tem um objetivo muito claro: confundir o leitor ao mesmo tempo em que procura dar maior credibilidade à nova narrativa.
 
A história principal – aquela que trata da morte de Eduardo por um asteróide – esta é contada na íntegra – com algumas alterações, logicamente: a morte de Eduardo, no romance que escrevi, não se dá num espaço aberto, mas fechado; a morta de Eduardo no livro em questão ocorre numa praça e não numa sala. A diferença de lugar, como se pode notar, também é uma outra estratégia do Lope de Veja moderno para, como no caso do nome dos personagens do meu romance, confundir tanto o leitor quanto o autor verdadeiro.

Agora, porém, não há mais alternativa. Rastro de fogo, o livro que escrevi, não me pertence mais: pertence àqueles que o copiaram e o publicaram na Internet mas, como a Internet tem as suas peculiaridades – nem tudo o que está nela pertence a quem o introduziu mas a quem o descobriu – talvez tenha alguma outra oportunidade: provar que Rastro de fogo me pertence e não a um aventureiro que, tendo tomado conhecimento dele por intermédio da rede mundial de computadores dele se assenhoreou e o publicou como sendo o dono de um livro que nem sequer copiou direito.

A dificuldade que vou ter, claro, vai ser a de provar isso perante a justiça. Caso houvesse uma legislação específica de Direitos Autorais para quem trabalha na Internet, seria mais fácil; mas, como não há, o jeito vai ser apelar para a sorte.

Rafael esteve comigo novamente na casa onde moro e, como sempre, trouxe novas notícias da vila. Meu pai, segundo ele, está muito preocupado comigo; afinal, andam dizendo por aí que não sou mais o mesmo. Aquela criança que jogava bola em torno da aldeia e que todo mundo conhecia como sendo o filho do seu Nô, não existe mais.

As ideias de Rafael, claro, se confundem com as da aldeia mas como o mensageiro de meu pai está mais próximo de mim e de minha família do que os demais, parece que não dá muita atenção ao que escuta. Por isso Rafael, quando fala, me faz rir por dentro.

O fato de meu pai está preocupado comigo, no entanto, me deixa apreensivo. Ele sabe muito bem o que levou a me isolar completamente do mundo no qual vivi até então. Kafka, como citei antes, foi muito feliz quando disse que todo escritor é como um vampiro que não deve ser sequer tocado pela luz do sol quanto mais pelas pessoas que o rodeiam.

A conversa que tive com Rafael, portanto, foi bastante proveitosa. Como Rafael lida com o mundo de uma maneira bastante diferente da minha, acho que esta disparidade facilita – e muito – a nossa conversação mas não é o suficiente para me tirar deste mundo de sonho e fantasia no qual me habituei e no qual outros escritores – Sófocles e Montaigne, por exemplo – também mergulharam completamente.

Após esta longo digressão que começou com as dificuldades que a poesia, o conto ou o romance trazem para aqueles que se dedicam à sua produção e terminou agora com o retorno – feito aos pedaços, é verdade – de meu último romance, voltamos a falar da minha casa e das histórias macabras que a cercam – e por quê? Porque a minha vida, aqui dentro, não difere muito da dos ascetas que, pretendendo se afastar do mundo – seja lá porque for – escolhem um lugar ermo e distante como este para morar; quando estes ascetas são monges ou pessoas dadas à religião, o lugar onde moram (ou o pequeno oratório que constroem perto do tugúrio onde dormem) se transforma em igreja ou em capela que, com o tempo, vira catedral; a minha situação, logicamente, não é nem um pouco semelhante à de tais criaturas até porque, como não tenho a menor pretensão de ser pioneiro em nada, é natural que esta casa velha e mal assombrada venha a ser, no futuro, o que sempre foi: um antro medonho de morcegos e fantasmas.

Por falar em fantasma, aqui vai um segredo aterrador: tenho visto coisas surpreendentes estes últimos dias; desde que meu livro – ou pedaços dele – reapareceu no meu site, aliás, que tenho tido visões estranhíssimas. A primeira delas foi a de que o mar, pacato a princípio, levantava,, como se fossem páginas mal arrancadas de um temporal, ondas e mais ondas de poesia em torno de mim; a segunda – tão esquisita quanto esta – foi a de uma mulher que, como carregava um ramo de oliveira numa das mãos, confundi com uma Suplicante de Minerva – e assim era – mas, no momento de depositar os ramos sob os pés da deusa adorada pelos tebanos no tempo de Édipo, a Suplicante mudava de direção e punha os ramos de oliveira diante de mim.

A explicação mais satisfatória que encontrei – isso depois de vários dias de meditação – foi a seguinte: as ondas do mar, quando se ergueram na minha frente, não estavam apenas me mostrando poemas e contos fabulosos: estavam me incitando, penso eu, a voltar a escrever; as Suplicantes de Minerva, por outro lado, fazia a mesma coisa só que, no lugar de me mostrar o reino mágico da poesia e da prosa, me tratava como se eu fosse um deus – pois só um deus (apontava ela com seu gesto) era capaz de exercer a mesma profissão de Homero.

As visões, neste caso, se sucediam – eram uma atrás das outras e cada uma delas mais fascinante que a outra. Assim, cada janela que batia, cada degrau que rangia ou cada lufada de vento que por acaso entrava no prédio ou na sala onde me encontrava e levantava a poeira quase secular que me envolvia, me chamava a atenção para uma destas visões ou para uma ideia que eu ainda não tinha tido e que era quase impossível esquecer.

Desta forma aqui estou escrevendo estes rascunhos que, a princípio, não tinha a menor intenção de publicar, mas, como parece que se tornaram imprescindíveis para o romance que perdi, aqui estão eles expostos à luz do dia como se fossem velhos manuscritos do Mar Morto recém descobertos em Quram, na Palestina.

Mal conservados e mal traduzidos ainda nem por isso deixo de publicar na íntegra para que tanto os escritores quanto os leitores mais afoitos tomem conhecimento do meu infortúnio e possam se precaver melhor contra tudo e todos que os cercam no momento em que estão lendo ou escrevendo.

Acho até que foi a partir deste dia – este dia em que tomei esta decisão heróica de mostrar as próprias entranhas – que tudo mudou. Abri as portas e janelas do casarão onde moro, afugentei os fantasmas que me perseguiam e deixei que as visões – aquelas visões de escritor mal sucedido que me importunavam tanto – desaparecessem completamente.

Agindo assim cheguei à conclusão de que a poesia, tanto quanto o romance, também tem a sua luz interior, como aquela que guiou os hebreus no deserto no tempo de Moisés, e é capaz de transformar um ser esquivo e arredio como todo escritor num ser humano mais ou menos tratável e equilibrado emocionalmente como deve ser toda e qualquer pessoa…

Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/nb2.html

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – Natalício Barroso

Natalício Barroso nasceu em Itapipoca, 1957. Em 1977 ingressou na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará. Trabalhou no Instituto Municipal de Arte e Cultura – RioArte – e na Fundação Biblioteca Nacional. Publicou Poemas de abril, Philobiblion, 1987; Sintonia, Achiamé, 1992; A triste sina do Imperial, Espaço e Tempo, 1998; e O capacete de Aquiles, Esteio, 1997. De 2006 são A vida amorosa de Marco Polo, Aníbal Barca e a Família Cordebar, num único volume.

Nas quatro narrativas enfeixadas no volume intitulado Novelas Reunidas, Natalício Barroso se mostra um narrador consciente de seu ofício, movendo-se em diversos espaços temáticos. Assim, sem nos atermos à ordem dada por ele às narrativas, parte do passado mitológico e mítico da Grécia antiga, passa pelo século XX e termina num futuro remoto, numa viagem interestelar. Aparentemente, não há nada em comum entre as novelas. No entanto, há muito de “grego”, de busca do destino do homem, na novela “interestelar”. O mesmo se pode afirmar em relação às novelas “cariocas”: nelas está também presente o mito da eterna busca da origem do homem, do destino, do fim. Sendo assim, os conflitos poderiam ser de ordens diversas. Todavia, há um elo comum entre as novelas, no que diz respeito ao cerne do prisma dramático – a morte, a angústia, a dor.

Na primeira novela, “Viagem Sem Fim”, a própria viagem pelo espaço se constitui na célula dramática central, não fosse também o conflito de gerações: os astronautas humanos, de um lado, e os astronautas nascidos na espaçonave, descendentes dos primeiros, de outro. Os dramas vão se desenrolando no dia-a-dia: mortes, crimes, traições. O grande drama é, pois, a infinitude da viagem, como se vê na última frase: “A nossa viagem, definitivamente, não tem fim”. E aí reside a angústia dos personagens, dos navegadores do espaço: nunca mais regressarão à Terra. Como se isso significasse a morte.

As duas novelas intermediárias, “A Triste Sina do Imperial” (na verdade, “O Velho Marinheiro, a Baía de Guanabara e a Triste Sina do Imperial”) e “A Casa de Gustavo”, são de um mesmo tempo histórico, o final do século XX. Os dramas são semelhantes: na primeira, a vida atribulada do velho marinheiro José Valdivino, suas peripécias, suas andanças ou naveganças, e a obsessão do romancista Matheus por escrever o romance da vida do marinheiro; na segunda, mais uma vez um narrador-literato às voltas com um personagem incomum, um jogador de futebol que, após pendurar as chuteiras, decide ser poeta, e, mais do que isso, escrever o grande poema épico brasileiro. Na verdade, não há conflitos nas duas narrativas. As histórias vão se desenrolando como num diário. O tempo vai passando, os personagens vão envelhecendo, perdendo as ilusões, e morrendo. Apenas isto. Nada de tragédias, de grandes traições, de crimes bárbaros.

A última novela (será mesmo novela?), “Cartas de Pilos”, é uma transcriação de um capítulo da Guerra de Troia, dos dias seguintes ao conflito entre gregos e troianos. Não há propriamente dramas. Na verdade, são mencionados alguns “trechos” de dramas (ou tragédias) da Grécia antiga, encontrados nos livros de mitologia e nos poemas homéricos, como o de Édipo.

Natalício Barroso sabe situar muito bem os personagens no espaço da ação, embora na novela “espacial” isto se torne mais difícil. Fora da nave os personagens terão como espaço o “vácuo” e as estrelas; dentro da nave (e há pouca descrição dela) o espaço é minimamente mencionado. Acredito até que Natalício não tenha tido a intenção de escrever ficção científica. Conhecedor da cidade do Rio de Janeiro, onde viveu durante alguns anos, locomove os personagens das duas novelas lá ambientadas pelos mais famosos logradouros e pelas ilhas. O velho marinheiro e o narrador Matheus palmilham a Cidade Maravilhosa, palco da ação de ambos: um como aventureiro, outro como caçador de histórias. Para o leitor é um passeio turístico dos mais gostosos. O espaço da ação na narrativa do  jogador de futebol é mais restrito: a casa onde morava. Os personagens aparecem jogando xadrez na sala de jogos, passeando pelos corredores e pelos jardins, ceando na sala de jantar. E por que o espaço nesta novela não é um estádio ou um campo de futebol? Talvez porque o herói da narrativa seja um ex-jogador de futebol, cujo grande mérito consistia em converter em gol pelo menos um chute em cada partida, e cujo grande demérito se resumia em nada jogar.

O tempo nas novelas de Natalício é um tempo longo, quase interminável na viagem espacial. Nas “Cartas de Pilos” ele flui lentamente: vão cartas, vêm cartas. A cada missiva, uma novidade. A história do marinheiro dura anos e anos. Ora estamos na juventude do herói, ora na sua velhice. Assim também na história do jogador. O tempo referido em ambas novelas é, porém, “controlado” por seus respectivos  narradores, no uso constante do flashback.

            Os personagens de Natalício são bem delineados, sobretudo os principais. São notáveis as aparições de Sorel, o primeiro narrador; Heidegger, “um poeta nato”, filho de Sorel; Kátia, a mulher de Sorel; a outra Kátia; Helsing, Dilthey e outros. As personalidades de cada um afloram a cada momento. Lembrar do velho marinheiro José Valdivino e do jogador-poeta Gustavo é mais fácil ainda. As loucuras sublimes de ambos, seus sonhos, suas angústias – tudo neles é narrado com a riqueza das histórias fabulosas. E o que dizer dos narradores (alter-ego de Natalício?), com seus problemas de relacionamento conjugal e amoroso, suas ânsias de colher os melhores frutos nos pomares das vidas de seus amigos “personagens”?

A linguagem nas novelas de Natalício Barroso é simples, sem ser coloquial. Vê-se concisão nas frases, embora quase não use a frase curta, cortada. Não há excesso de frases. O diálogo cede lugar à narração. O uso do travessão nas falas é pouco frequente nestas narrativas. É mais comum o narrador transmitir as falas dos demais personagens no interior de suas narrações. A descrição é discreta, a não ser num momento, quando se refere às ilhas do Rio de Janeiro. Mesmo nesse caso, a narrativa não perde fôlego e não enfada o leitor.

O ponto de vista na primeira novela, apesar de ser o da primeira pessoa ou o do narrador-testemunha, traz uma novidade: ao morrer o primeiro narrador, outro o substitui, como na vida, como numa viagem, como na “viagem sem fim”.  Nas novelas “cariocas” o narrador às vezes assume a posição de protagonista, sem nunca se confundir com o narrador onisciente. São técnicas usadas por quem leu muito e exercitou em larga escala a arte de narrar.

                Natalício Barroso, poeta de grandes méritos, deu-nos quatro boas novelas, verdadeira viagem sem fim pelos caminhos da imaginação. A prosa de ficção tem mais um cultor erudito, consciente de seu papel no palco da literatura brasileira e da importância de ser um cultivador de palavras e histórias.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

2º Prêmio de Trovas Humorista Chico Anísio/2013 – UBT-Maranguape (Resultado Final) 1a. Parte

ÂMBITO NACIONAL/INTERNACIONAL

TEMA: SORRISO (S)
(Trova Lírica/filosofica)

VENCEDORES

1º. Lugar:

Não tem o céu a candura,
não tem o mar a pujança,
não tem o mel a doçura
de um sorriso de criança.
JOEL HIRENALDO BARBIERI
Taubaté/SP

2º. Lugar:


Tarde sem luz!...E eu, tristonho,
vejo, sem graça, o sol posto...
Finjo um sorriso e me ponho
a por mais luz no meu rosto!
FRANCISCO GARCIA (PROFESSOR GARCIA)
Caicó/RN

3º. Lugar:

Às vezes, meigo e sensível;
outras, de raiva e desdém...
Por um sorriso é possível
enxergar a alma de alguém!
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:


Com seu sorriso de santa
(que a mim encanta e diverte)
e sua voz que acalanta,
qualquer ateu se converte.
RONNALDO ANDRADE
São Bernardo do Campo/SP

5º. Lugar:

Para maior euforia
de Chico, no Paraíso,
Maranguape poderia
ser "Capital do Sorriso"!!!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

6º. Lugar:


Em sonho lembro a vagar,
teu sorriso, teus desvelos,
tuas mãos a deslizar
como a brisa, em meus cabelos.
Sônia Maria Sobreira da Silva
Rio de Janeiro/RJ

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Mesmo sendo renomado,
pintor nenhum há que trace
esse sorriso levado
que emoldura a tua face !
ANTONIO COLAVITE FILHO
Santos/SP

8º. Lugar:


Teu sorriso de menina
No rostinho adolescente,
brilha mais que a purpurina,
sob a luz do sol nascente!
SIMÃO ELANE MARQUES RANGEL
Rio de Janeiro/RJ

9º. Lugar:


O sorriso da criança
revela, além da beleza,
a vitória da esperança
contra um mundo de incerteza!
CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI
Arcoverde/PE

DESTAQUES

10º. Lugar:


Ante o sorriso inocente
- puro e aberto, sem mistério -
de uma criança contente,
quem consegue ficar sério?!
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

11º. Lugar:


Teu sorriso divinal,
que enternece, que inebria,
traz no traço angelical,
todo o ardor, da poesia...
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY
Natal/RN

12º. Lugar:

Sua vida não tem brilho,
carrega pesada cruz,
mas o sorriso do filho
enche seu mundo de luz.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/MG

= = = = = = = = = = =
ÂMBITO: ESTADUAL

TEMA: SORRISO (S)
(Trova Lírica/filosofica)

TROVAS VENCEDORAS

VENCEDORES

1º. Lugar:


Disfarçado de sorriso
Ao som de harpas e banjos
Chico chega ao paraíso
Carregado pelos anjos.
HORTÊNCIO PESSOA
Fortaleza/CE

2º. Lugar:


Este sorriso estampado
na tua face risonha,
por certo será gravado
no coração de quem sonha.
GUTEMBERG LIBERATO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

3º. Lugar:


Mesmo sendo passageiro
Sempre transmite emoção,
Um sorriso verdadeiro
Brotado do coração.
ANA MARIA NASCIMENTO
Aracoiaba/CE

MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:

Na vida, tudo tem preço,
Saber viver, é preciso,
Ser feliz tem endereço
Use a moeda sorriso.
LUIZ CARLOS A BRANDÃO
UBT-Maranguape/CE

5º. Lugar:


Teu sorriso é qual o dia
Quando vai amanhecer:
É doçura, é poesia,
Não dá para descrever.
JOÃO OSVALDO SOARES (VAVAL)
UBT-Maranguape/CE

6º. Lugar:

São Pedro com um sorriso
Sua trombeta tocou
Pois, Chico, sem dar aviso
Em seu aprisco adentrou.
HORTÊNCIO PESSOA
Fortaleza/CE

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Quando se torna abrangente,
Um sorriso de pureza,
Faz o coração da gente
Ser transmutado em beleza.
ANA MARIA NASCIMENTO
Aracoiaba/CE

8º. Lugar:


No Nordeste quando chove
molhando todo sertão
todo povo se comove
com sorriso de emoção.
ARGENTINA AUSTREGÉSILO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

9º. Lugar:

Ante o sorriso sincero
que sempre traz alegria,
traduz-se no que mais quero:
é vivê-lo todo dia.
ARGENTINA AUSTREGÉSILO DE ANDRADE
Fortaleza/CE

DESTAQUES

10º. Lugar:

O sorriso nos faz bem.
Sua dose é sem medida,
Adoça a sorte de quem,
Tem amargores na vida.
ABELARDO NOGUEIRA XAVIER
Aracoiaba/CE

11º. Lugar:


Teu sorriso sedutor
É martírio da saudade
Reacende com fervor
Folguedos da mocidade!
FRANCINETE AZEVEDO
Fortaleza/CE

12º. Lugar:


Com um sorriso estampado
numa face escaveirada,
o retirante, coitado,
abandona a terra amada...
GUTEMBERG LIBERATO DE ANDRADE
Fortaleza/CE
============
continua...

Irmãos Grimm (A Noiva do Coelhinho)

Era uma vez uma mulher e uma filha que viviam num lindo jardim repleto de repolhos, e um pequeno coelho se aproximou, e no tempo de inverno comeu todos os repolhos.

Então, a mãe diz para a filha, — "Vá lá até o jardim, e expulse o coelho de lá."

A garota diz para o coelho: — “Ei, você está acabando com os nossos repolhos.”

O coelho responde: — “Venha aqui, garotinha, e sente no meu rabinho, e vamos juntos para a toca onde eu moro.”

Mas a garota não queria acompanhá-lo.

No dia seguinte, o coelho aparece novamente e come os repolhos, então, a mãe diz para a filha, — “Vá lá até o jardim, e expulse o coelho de lá.”

A garota diz para o coelho: — “Ei, você continua comendo todos os nossos repolhos.”

O coelhinho responde: — “Venha aqui, garotinha, e sente no meu rabinho, e vamos juntos para a toca onde eu moro.”

A garota se recusa.

No terceiro dia o coelho aparece novamente, e come os repolhos.

Diante disso, a mãe fala para a filha: — “Vá lá até o jardim, e expulse o coelho de lá.

A garota diz para o coelho: — “Ei, você continua comendo todos os nossos repolhos.”

O coelhinho responde: — “Venha aqui, garotinha, e sente no meu rabinho, e vamos juntos para a toca onde eu moro.”

A garota decide se sentar no rabo do coelho, e então, o coelho a leva para conhecer a sua pequena toca, e diz: — “Agora, quero que você prepare para mim repolho verde e grãos de milho, e eu irei chamar os convidados para o casamento.”

Então, todos os convidados do casamento chegaram.

"Quem eram os convidados do casamento?" Isso eu posso responder porque uma outra pessoa me contou. "Eram todos coelhos, o corvo estava lá como padre, para casar a noiva com o noivo, e a raposa era a sacristã, e o altar ficava debaixo do arco-íris."

A garota, todavia, estava triste, porque ela estava muito sozinha.

O coelhinho chegou e disse: — “Abram as portas, abram as portas, os convidados do casamento estão felizes.”

A noiva não diz nada, apenas chora. O coelhinho vai embora. Depois, retorna e diz: — “Tirem as tampas, tirem as tampas, os convidados estão com fome.”

A noiva novamente não diz nada, e chora. O coelhinho vai embora.

O coelhinho retorna e diz: — “Tirem as tampas, tirem as tampas, os convidados estão esperando.”

Então, a noiva não diz nada, e o coelhinho vai embora, mas ela confecciona uma boneca de palha com suas roupas, e dá para a boneca uma colher para mexer, e a coloca perto do caldeirão com milho, e volta para a casa da sua mãe.

O coelhinho retorna mais uma vez e diz: — “Tirem as tampas, tirem as tampas,” se levanta, e bate na cabeça da boneca até que a touca dela cai.

Então, o coelhinho viu que não era sua noiva, e vai embora e fica triste.

Fonte:
Contos de Grimm

Concurso de Poesia Popular da UBT Maranguape - 2013 (Trovas : Resultado Final)

ÂMBITO – NACIONAL/INTERNACIONAL
 

Objetivo: Destinado a homenagear ao historiador Capistrano de Abreu, pela passagem dos 160 anos de seu nascimento, ocorrido em 23 de outubro de 1853 em Maranguape/Ceará, patrono emérito da ACLA.

Tema: Deve constar na trova lírica/filosófica uma das palavras:
Capistrano, Capistrano de Abreu, historiador, Maranguape, Ceará, maranguapense, cearense, Columinjuba, academia, ACLA.

TROVAS CLASSIFICADAS

VENCEDORES

1º. Lugar:


Nas letras teve por plano
ser um guerreiro fiel...
E as armas de Capistrano
foram a pena e o papel!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA - Nova Friburgo/RJ

2º. Lugar:


Capistrano, tua glória,
de nós todos tem aval,
por dares crédito à História
do Brasil Colonial!
DODORA GALINARI - Belo Horizonte/MG

3º. Lugar:


Homem de sete instrumentos,
o Capistrano de Abreu,
é dos maiores talentos
que, no Brasil, floresceu.
GERALDO LYRA - Recife/PE

 MENÇÕES HONROSAS:

4º. Lugar:


“Capistrano”, tens na História,
tamanha beleza e porte,
que  revestiste de glória,
transcendendo o tempo e a morte!
IVONE TAGLIALEGNA PRADO - Belo Horizonte/MG

5º. Lugar:


Capistrano, nosso filho,
pelas obras que gerou
e o saber de grande brilho,
Maranguape iluminou.
DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO - Juiz de Fora/MG

6º. Lugar:


Capistrano...um baluarte
que Maranguape bendiz,
na escrita pôs a sua Arte,
no coração...seu País!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA - Nova Friburgo/RJ

MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Capistrano fez história
do Brasil e nos deixou
o seu legado de glória
que ele em vida conquistou!...
THEREZINHA TAVARES - Nova Friburgo/RJ

8º. Lugar:


Capistrano colhe a história
e dela traça o perfil:
- em cada fato, uma glória!
- em cada glória, o Brasil!
CAROLINA RAMOS - Santos/SP

9º. Lugar:


Todo o Brasil reconhece
de Capistrano, o valor.
Maranguape se envaidece
de ser berço do escritor.
ALBA HELENA CORRÊA - Niterói/RJ

DESTAQUES

10º. Lugar:


Maranguape, sua história,
rica de prosa e poesia
tem Capistrano por glória
patronando a Academia.
NILTON MANOEL - Ribeirão Preto/SP

 11º. Lugar:


Capistrano, gente rara,
deixou mensagem sutil:
só com vergonha na cara
salvaremos o Brasil.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO - Belo Horizonte/MG

12º. Lugar:


Por seus feitos culturais,
Maranguape lhe proveu,
Patrono dos Imortais,
oh Capistrano de Abreu!
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY - Natal/RN
=
=

ÂMBITO ESTADUAL - CEARÁ

VENCEDORES

1º. Lugar:


João Capistrano de Abreu
escreveu bem nossa história
por isso é que mereceu
tanta fama e tanta glória.
JOÃO OSVALDO SOARES - Maranguape/CE

2º. Lugar:


Ao longo da trajetória
de grande pesquisador
Capistrano fez História
de imensurável valor.
ANA MARIA NASCIMENTO - Araçoiaba/CE

3º. Lugar:

Um grande homem da história
que Maranguape nos deu
e nos trouxe muita glória,
foi Capistrano de Abreu.
ARGENTINA ANDRADE - Fortaleza/CE

 MENÇÕES HONROSAS

4º. Lugar:


Em território serrano,
foi por lá onde nasceu,
O ínclito Capistrano
De ilustre família Abreu.
HAROLDO LYRA - Fortaleza/CE

5º. Lugar:


Toda História do Brasil
por Capistrano contada,
nos mostra sempre o perfil
desta terra abençoada.
BÁRBARA MAYÃ ALENCAR - Fortaleza/CE

6º. Lugar:


Uma personalidade
que em Maranguape nasceu
nos deu a celebridade,
de Capistrano de Abreu.
BÁRBARA MAYÃ ALENCAR - Fortaleza/CE

 MENÇÕES ESPECIAIS

7º. Lugar:


Por mais um ano de história
De Capistrano de Abreu,
Faz-lhe jus, pela memória,
Maranguape, o berço seu!
ABELARDO NOGUEIRA - Araçoiaba/CE

8º. Lugar:

João Capistrano Honório
Com sobrenome de Abreu.
Um historiador notório.
Maranguape o concebeu.
ARTEMIZA CORREIA - Ocara/CE

9º. Lugar:

Com Capistrano de Abreu,
que grande historiador!-
O nosso povo aprendeu
a pesquisar com primor.
ANA MARIA NASCIMENTO - Araçoiaba/CE

 DESTAQUES

10º. Lugar:


Um marco na nossa história
Capistrano nos legou,
Foi sua profunda glória
O que ele nos deixou.
ARGENTINA ANDRADE - Fortaleza/CE

11º. Lugar:


Capistrano, não morreu,
em Maranguape, a raiz,
o seu nome já venceu
conservado no verniz.
SONIA NOGUEIRA - Fortaleza/CE

12º. Lugar:


Abreu família querida
mais destacada do ano,
cento e sessenta assistida
como o clã de Capistrano.
HAROLDO LYRA - Fortaleza/CE

Michel Roberto (A Filha de Marlene)

Ela olhou bem fundo nos olhos de sua mãe. Havia alguns minutos que aqueles círculos não tão brilhantes despertavam a sua curiosidade. Simplesmente era um mundo novo sendo descoberto a cada piscar de olhos, a cada movimento daquelas mãos que acabaram de sentir o que era uma dor física insuportável.

Seus cabelos loiros, curtos e cacheados eram herança de seu pai, um polaco que vivia enfurnado nas casas de jogos da cidade. Anteontem até duvidaram que ela fosse mesmo filha de Marlene, tamanha era a diferença de cor, cabelo e, principalmente, de vida nos olhos. “Certeza que é essa sua filha, Marlene?” – disse a dona da banca de revista que ficava perto da esquina onde a mãe pedia esmola.

Agora a menina usava seus preciosos minutos para desvendar aquele olhar de sua mãe. Um olhar de alguém que já deveria ter pedido a conta da vida e se ausentado para sempre. Alguém que já estava utilizando um bônus nesse nosso jogo de viver. E desvendar esse olhar tão sem vida não era o principal objetivo da menina, mesmo porque ainda não era capaz de sequer formular algum pensamento válido acerca da tristeza que estava impregnada no olhar de sua mãe. Apenas lhe chamava a atenção o sentimento indeterminado que subia por sua garganta.

Marlene sentiu profundamente sua filha tentando desvendar qual sentimento a mãe lhe passava. Sentimento de dor, esquecimento, desconsideração, talvez uma mágoa que chega de antemão. Nem ela sabia qual sentimento que o seu olhar transmitia para as outras pessoas. Mas sabia sim que de alguma forma um simples contato de olhos modificava a atitude de qualquer um que se atrevesse a cruzar o mesmo campo de visão que o dela. Era amargo demais.

Agora, depois de queimar o dedo de sua filha sem querer com uma brasa do cigarro, Marlene já não enxergava nada em sua frente, a não ser a porta da igreja a sua frente com um Jesus Cristo crucificado sangrando nas mãos, cabeça e pés, pedindo para ela o acompanhar, pois aquela vida já não mais pertencia a ela. Era chegada a vez de sua filha e, nesse momento, deveria ser apenas ela a continuar.

Colocou a menina em cima daquelas caixas de papelão que se transformavam em abrigo durante a noite fria. Passou na banca, avisou a dona que o Polaco estava pra chegar e apanhar a menina. Saiu.

Nunca mais se ouviu falar de Marlene.

Fonte:
Contos Maringaenses

Teófilo Braga (O Cavalinho das Sete Cores)

Recolhido em Lagoa, no Algarve

Um conde tinha ficado cativo na guerra dos mouros. Levaram-no ao rei para que fizesse dele o que quisesse. Tinha o rei três filhas, todas três muito formosas, que pediram ao pai que o deixasse ficar prisioneiro no castelo até que o viessem resgatar. A menina mais velha foi ter com o conde, e disse-lhe que casaria com ele, se lhe ensinasse qualquer coisa que ela não soubesse. O cativo disse:

– Pois ensino-te a minha religião, e vens comigo para o meu reino, e casaremos.

Ela não quis. Deu-se o mesmo com a segunda.

Veio por sua vez a menina mais moça; quis aprender a religião, e combinaram fugir do castelo, sem que o rei soubesse de nada. Disse então ela:

– Vai à cavalariça, e hás de lá encontrar um rico cavalinho de sete cores, que corre como o pensamento. Espera por mim no pátio, à noite, e partiremos ambos.

Assim fez. A princesa apareceu com os seus vestidos de moura, com muitas joias, e à primeira palavra que disse logo o cavalinho das sete cores se pôs nas vizinhanças da cidade donde era natural o cativo conde.

Antes de chegar à cidade havia um grande areal; o conde apeou-se, e disse à princesa moura que esperasse ali por ele, enquanto ia ao seu palácio buscar fatos próprios para aparecer na corte, porque estava com roupas de cativo e ela de mourisca.
   
Assim que a princesa ouviu isto, rompeu em um grande choro:

– Por tudo quanto há não me deixes aqui, porque hás de te esquecer de mim.

– Como é que isso pode ser?

– Porque assim que te separares de mim e alguém te abraçar logo me esqueces completamente.

O conde prometeu que se não deixaria abraçar por ninguém, e partiu; mas assim que chegou ao palácio a sua ama-de-leite conheceu-o, e com a alegria foi para ele e abraçou-o pelas costas. Não foi preciso mais; nunca mais ele se pôde lembrar da princesa. Ela tinha ficado no areal, e foi dar a uma cabana onde vivia uma pobre mulher, que a recolheu e tratou bem; ali foi ter a notícia que o conde estava para casar com uma formosa princesa, e na véspera do casamento a mourinha pediu ao filho da velha que levasse o cavalinho das sete cores a passear no adro da igreja em que se haviam de casar.

Assim foi; quando chegou o noivo com o acompanhamento, ficou pasmado de ver um tão belo cavalinho, e quis mirá-lo de mais perto. O moço que o passeava andava a dizer:

– Anda, cavalinho, anda,
Não esqueças o andar,
Como o conde esqueceu
A moura no areal.

O noivo lembrou-se logo da sorte que lhe tinha caído, desfez o casamento com a princesa e foi buscar a mourinha com quem casou, e viveram muito felizes.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 39 – 6 de dezembro de 1887

Peguei da mais rica pena,
Molhei-a na melhor tinta,
E fiz uma cantilena:
“Tinta que repinta e pinta”.

Que haja nisso algum sentido,
Livre-me Deus de escrevê-lo;
Sentido, bem entendido,
No sentido de entendê-lo.

Mas que há nessa linha escura
Uma íntima harmonia
Com tudo o mais que se apura
De tantos casos do dia,

Isso é que não há negá-lo,
Exceto se uma pessoa
Quiser fazer de cavalo,
Assim, sem mais nada, à toa.

Pois não andou toda a gente
Com a imaginação acesa,
Em busca do presidente
Da República Francesa?

Havia apostas. Um era
Ferry, outro — homem de espada,
Outro Freycinet quisera,
Outro — Floquet, outro — nada.

E de tanta gente oposta
Sai um que a ninguém havia
Feito cuidar em aposta,
Se seria ou não seria...

Já sei... Não me explique, amigo;
Não seja de uns desfrutáveis
Que juram sempre consigo
Explicar os explicáveis.

Por exemplo, não me explique
O Ney, nem a delicada
Ação que faz com que fique
Toda a idade pasmada.

Essa jóia, esses quinhentos
Mil réis dados de pronto,
Como quem espalha aos ventos
Palavras leves de um conto,

Ação foi de grande siso;
Ter-se entre duas pilhérias
Ney, o marechal do riso,
Consolador de misérias.

E muitos pasmados ficam,
Por não crer que alguém possua
Cobres que se multiplicam
E os lance estéreis à rua.

Depois disto vem aquilo
Que a nenhum de nós consola,
Nem deixa a ninguém tranqüilo,
Nem traz figura de esmola.

Refiro-me às ameaças
Da Amazônia, que deseja,
Resguardar as suas graças
Do nosso amor, salvo seja.

Tudo porque há um sujeito,
Cardoso, ou cousa que o valha,
Que, não sei por que respeito,
Na tarefa em que trabalha,

Brigou com outra pessoa,
E os dois, que podiam juntos
Fazer muito cousa boa,
Em variados assuntos,

Agora não fazem nada;
Pregam-me até esta peça
De pôr a quadra acabada
Pendente da que começa.

Depois, daquilo, aquil'outro,
Expressão que ficaria,
Não rimando (e mal) com potro,
Sozinha, sem companhia.

Aquil’outro é a abundância
De roubos eclesiásticos,
Feitos com a petulância
Dos grandes dedos elásticos.

Sacrílegas limpaduras
Da casa de Deus — dos ouros,
Das pratas sacras e puras...
Naturalmente, só mouros.

Mouros — sejam da Mourama,
Ou mouros da Cristandade,
Que os há de uma e de outra rama
Por toda essa humanidade.

Não foram seguramente
Os capoeiras da rua
Que matam e francamente
Pela forte gente sua.

Adeus, versos duros, frouxos,
Sem inspiração nem graça,
Obra destes dias coxos,
Furtados e sem chalaça.

Por isso peguei da pena,
Por isso a molhei na tinta,
E fiz esta cantilena:
“Tinta que repinta e pinta!”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Maria Thereza Leite (O Olhar Sobre uma Avenida)

Caminhar por uma mesma avenida, durante décadas, desde os seus começos até o momento em que esta, engolida pelos automóveis, força o desvio por outras ruas próximas, permite que se desenvolva um olhar perscrutador, às vezes como se debruçado num sonho, num momento de encantação, outras, inquisitivo ou enigmático, sobre aquilo que se pensa ver repetidamente. Talvez um recurso para que, verdade ou ficção, não se perca ali a capacidade de uma leitura atenta do espaço e da sua narrativa diferenciada pelo tempo, carregada de sustos, surpresas, dúvidas ou encantamento. Para que não se mergulhe no tédio e na indiferença e se acredite sempre que há algo de melhor a se fazer ali, ainda, e não se perca de vez a esperança. Mas, afinal, o que um simples olhar pode fazer por uma avenida?! Se “um mesmo homem não atravessa o mesmo rio duas vezes” – pois ambos já mudaram durante a travessia, o que dizer de uma avenida… Tão rápido ela se transforma… Do que ela precisará agora, quando eu também já não estarei lá?

Fonte:
http://therezaleite.wordpress.com/‎

Maria Thereza Leite (Passagem Secreta para Rua)

“Passagem secreta para a rua”, obra de Maria Thereza Leite está situado dentro do que podemos classificar de literatura contemporânea, e nos dá uma ideia do teor literário dos escritores da atualidade.

O conto “Passagem secreta para a rua”, traz uma característica forte dos contos contemporâneos que é a exploração de um tempo interior psicológico. A narração em 3º pessoa existente no conto nos permite entender todo o drama que se passa com os personagens, o sofrimento interior, casos densos de significação humana, indagações próprias da introspecção, formando contextos trágicos, enigmáticos que favorecem o crescimento da narrativa.

A escrita de Maria Thereza é dotada de detalhes, porém não deixam o conto exaustivo, ao contrario prende o leitor faz criar imagens, sons, cores, clima inebriante quase palpável, levando comoção e compaixão ao leitor. O olhar da narradora sobre os fatos detalhados no enredo não é um olhar preconceituoso, mas se derramam em contextos densos, dramáticos, porém suaves, rompendo com qualquer estrutura opressiva, sua linguagem coloquial apresenta vocabulários atuais, inerente a abordagem da atualidade.

Dentro deste contexto faz também uma analise da vida urbana dos grandes centros, de modo poético, sensível e quase imperceptível aborda temas como o crescimento das cidades, a violência, poluição e o estresse criado por tudo isso e a busca neste meio de uma existência um pouco mais satisfatória mudando o modo de viver das pessoas gerando o aprisionamento das mesmas enraizadas na preservação de si e dos entes em suas próprias residências, como deixa transparecer o enredo de “Passagem secreta para a rua”.

As narrativas de Maria Thereza, como podem observar tomando por base o conto analisado deixa entrever a dúvida nos atos dos personagens que dá ao leitor múltiplas significações e entendimentos além texto, o que parece ser uma característica utilizada em recorrência pela autora, destacando em uma leitura limpa e inebriante o brilhantismo da mesma.

Fonte:
artigo publicado por Kercya Nara Felipe de Castro, sob o título Literatura cearense e contemporaneidade:a atualidade expressa no conto de Maria Thereza Leite. Disponível em Brasil Escola

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) – Outros Contistas – Maria Thereza Leite

    
        Maria Thereza Leite nasceu em Fortaleza. Cursou jornalismo na Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-graduação na UECE. Ganhadora de diversos prêmios literários. Estreou em livro com Mosaicos, contos, em 2003. Passagem Secreta para a Lua, também de contos, é de 2007.

            Depois de submeter contos ao olhar de leitores experientes, em concursos, Maria Thereza Leite reuniu no volume Mosaicos algumas daquelas peças e outras inéditas. Apenas uma pode ser considerada curta: “Quando nós éramos pássaros”, com pouco mais de duas páginas. As demais vão de quatro a dezessete. Umas são narradas por protagonista; outras, por narrador onisciente. Os tradicionais diálogos antecedidos de travessão foram abolidos. No entanto, o que sobressai nessas narrativas é o uso constante do discurso indireto livre e do monólogo interior, num ir e vir do foco narrativo, ora em direção ao ser fictício e suas introspecções, ora voltado para o exterior, o ambiente ou o fato, seja ele pretérito ou presente.

Assim, o protagonista de “Mosaicos” inicia a narração com Ana a se balançar numa rede e a vasculhar os céus com o tubo formado pelas mãos, “à guisa de telescópio”. Ao mesmo tempo, descreve o ambiente: os armadores da parede, a varanda de labirinto da rede, os telhados das casas, os prédios, as luzes da cidade, a abóbada celeste. A seguir, como se a luz se apagasse, como se personagem e lugar se envolvessem em sombras, o narrador penetra na alma de Ana e lhe concede a oportunidade de falar ou monologar: “Pois contrariando todas as expectativas, ela estava ali, viva. E sentia-se feliz”. Não exatamente, isto, porque ainda o verbo se emprega na terceira pessoa. No entanto, não há episódios, mas somente flashes do passado, seguidos de análises psicológicas, considerações, observações. Os verbos inativos, por isso, substituem os de ação.

Na apresentação da obra, Carlos Augusto Viana observa: (...) “os contos comportam, ao mesmo tempo, dois motivos: o factual e as ondulações psíquicas, isto é, uma história dentro de outra história”. Verifique-se a construção de “A Desconhecida”. Logo na abertura o narrador se refere à protagonista, que até o final não terá o nome explicitado: “Desde muito pequena, começara a ouvir histórias incomuns narradas por pessoas que iam passando próximas a ela”. Ou seja, a personagem desde menina ia colhendo pedaços de uma história, da história de sua família, de uma desconhecida com quem convivia. “Contavam como aquela mulher vestida de preto (...) retornara à sua cidade natal”. A história se avolumava, aos poucos, para a menina. (...) “Mais adiante (...) os narradores procuravam outras maneiras de tecer hipóteses” (...). Veja-se o constante emprego de vocábulos próprios da teoria da narração. “Precipitados, eles esqueciam que as histórias tinham seus começos” (...). Ou seja, os narradores se precipitavam e esqueciam o início do drama, começando pelo meio ou final. “Mais adiante, quando as dores se deram por amainadas, as narrativas puderam tomar outros rumos” (...). Porque os contos não são lineares, se bifurcam, se estilhaçam. “Os contadores de histórias, já velhos, depois de levarem a filha da desconhecida a passear em paisagens antigas, para melhor se fazer compreender, resolveram entregar as provas de que ela era a herdeira de todas aquelas narrativas”. A menina seria, então, a narradora ou a dona dos dramas. Mais adiante, quase no final, se lê: “Não havia mais o que contar”. A peça ficcional se completava, alcançava o final.

Nos contos de feição tradicional, de enredo plenamente ordenado, em que o descritivo narrativo linear se manifesta com mais ênfase, os personagens são retratos, figuras, seres com feições e nomes próprios. Nas composições modernas e pós-modernas ou sem ação externa, introspectivas, eles tendem a perder as formas, os contornos e até os nomes. São como retratos psicológicos, sem rostos, sem traços característicos, muitas vezes. Ana, de “Mosaicos”, era “moça doente” e só. A protagonista de “A Desconhecida”, assim como os demais seres fictícios, parece totalmente opaca. O narrador de “A angústia das árvores do parque” é um homem a caminhar sozinho num parque. Em “Quando nós éramos pássaros” os seres fictícios são apenas “ele” e “ela”. Quando os nomes são mencionados, como Clara e Vicência, de “Um varal novo para o ‘inverno’”, o que mais importa são a casa, o sítio, as árvores, os bonecos de pano, o tempo a escoar.

Os conflitos nos contos de Maria Thereza Leite são de natureza subjetiva. Os personagens se debatem na solidão, se voltam para dentro de si mesmos, afundam em introspecções, como se não participassem de ações reais. A paisagem é como uma figura colada na parede. O tempo passa e o personagem, ao acordar do torpor, olha para o mundo e é como se não tivesse percebido que também a paisagem muda, as velhas construções são substituídas por outras (casarões por prédios), o mato dá lugar a ruas. “Logo Ana se viu só na casa paterna de corredores vazios, cozinha sem cheiros e salas mudas, onde a craviúna, outrora polida a óleo de peroba, se tornava opaca pela fina poeira”. O protagonista de “A angústia das árvores do parque” relembra um passeio ao parque: “Tudo estava cinza e pesado, num alvorecer chuvoso que não conseguia clarear”. E durante toda a narração prepara o leitor para o desfecho: as árvores choravam e com ele conversavam, como se quisessem avisá-lo da tragédia ocorrida havia pouco. Por isso, os seres não são vazios, bonecos de pano, mas, antes, complexos, em permanente conflito interior.

O espaço da ação nos contos de Mosaicos é essencial para a movimentação interior dos protagonistas. O alpendre onde Ana se balançava, deitada numa rede, e de onde podia ver as estrelas, possibilitava o ir e vir do “emaranhado de lembranças” que a fazia acordada até o amanhecer. O parque, suas alamedas, “as verdes copas das árvores”, “a capela branca do outro lado da rua” – nesse ambiente bucólico se desenhava a tragédia que iria marcar a vida do narrador de “A angústia das árvores do parque”. A casa de “Não perca tempo olhando ursos prateados”, com seu portão de ferro, o alpendre, “as tábuas corridas do nobre angico”, as persianas e a televisão a mostrar “enormes ursos prateados” a tomarem refrigerante, é nessa casa que a personagem se debate em dúvidas. Por isso a importância do olhar nas composições de Maria Thereza Leite. Como o de Ana, a vasculhar os céus, a olhar estrelas. Ou o do homem do parque, a querer ver o voltear alegre de carrossel ou um leve aceno, enquanto as árvores o observavam. Como o do “colecionador de vitrines”, a olhar a exposição dos artigos de luxo e se ver refletido no espelho. Depois, no alto da árvore de Natal, “podia ver lá em baixo, à frente, o mar e o enorme e escuro navio ancorado”. Ao chegar ao topo, podia ver o mundo. E lançar-se ao espaço. Dos mais significativos nesse aspecto é “O ‘olho da libélula’”. Seu Francisco captura uma libélula para o menino e explica: “Ela tinha também o maior olho proporcional do reino animal, com o cristalino multifacetado, o que lhe permitia enxergar a imagem de um objeto, repetida, vinte e quatro vezes”.

Enquanto os personagens olham e veem o mundo, suas partículas, sejam estrelas, sejam grãos de areia, os narradores transformam esses olhares em sons, em palavras. Pois é possível ouvir estrelas, como poetizou Bilac.

Mosaicos são pavimentos de ladrilhos variegados, desenhos, peças de cores, para serem vistos. Se são mosaicos interiores, são pavimentos para serem vistos por todos os sentidos. Pois quando o olhar é proibido, os ouvidos assumem o lugar dos olhos. A menina de “A desconhecida” é toda ouvidos, para escutar as narrativas que se contam na casa onde vive. Mas até ouvir não lhe é permitido: “Uma criança pequena não precisava ouvir aquelas histórias desmedidas”.

Assim são os mosaicos sonoros de Maria Thereza Leite.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A Saudade em Versos Diversos I


ALESSANDRA NEVES
Pra um dia ela voltar

E é sempre assim,
Quando você acha que a saudade se vai
Quando você acha que o vazio se acaba
Quando você acha que tudo passou
A saudade surge!
Aparece!
E você esta ali impotente...
Ela machuca e faz doer
E você nada pode fazer
Talvez chorar
Possa aliviar o peito
Mas nunca curar a alma...
Talvez sorrir, e
Se fizer de conta que não a vê
Talvez ela se vá!
Que nada!
E permanece o tempo que ELA quiser
E você não tem escolha
Fica remoendo os bons momentos
A alegria
Ou até mesmo apenas a falta da presença sentida
E uma hora,
O tempo, que não cura nada,
Faz com que você se acostume com a dor...
Faz com que você se acostume
Com a falta da presença
Faz com que você se acostume...
Pra um dia ela voltar.
=================

BENEVIDES GARCIA
Minha Saudade

Minha saudade parece infinita;
Ela vem de séculos,
Caminha por muitos cantos,
E beija as almas nas lembranças doces.
Ela me conforta nos dias sombrios
Quando a solidão resolve me abraçar.
Está sempre indo e vindo:
Às vezes me dá de presente uma alegria
Mas, sempre me faz chorar...
Tem dias que passa o tempo comigo
Depois parte em busca de novos corações.
E assim tudo se renova
Até chegar o dia,
Até chegar o dia…
========================

FLORBELA ESPANCA
Saudades

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!
==============
 
PATATIVA DO ASSARÉ

Há dor que mata a pessoa
Sem dó nem piedade.
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.
==============

 SONIA NOGUEIRA
Saudade

Quando a saudade bate a porta
O sonho corre longe ao meu sertão
Lembranças da criança em compota
Adoça devagar meu coração

Revejo o gado solta na pastagem
O rio nas enchentes percorrendo
A terra encharcando, só aragem
A lua poderosa pernoitando

Relembro a serenata na calçada
Menina ainda, a tia se afoitando
Chegava tímida na janela disfarçada
O violão nas cordas amor cantando

A casa tão distante da cidade
A paz reinava firme sem barulho
De dia a rotina forte da enxada
Silêncio e solidão, no sonho o vulto

Trazia dois olhares que sonhavam
Promessas de amor em jura eterna
Sonho de menina que voaram
Sumiu na imensidão o sonho hiberna.
=================

SÍLVIA ARAÚJO MOTTA
Vida sem canção

Ah! Se eu pudesse ter os seus abraços
de madrugada, sem ninguém se opor;
parar a hora para atar os laços
sem ver a aurora, tempo que traz dor...

Ah! Se eu pudesse em pautas ter compassos,
prender o amor, manter o seu sabor,
fruto de outrora, doce entre os amassos
do ser amado, meu melhor cantor.

Ele se foi...Mudou a nossa meta;
levou também a imagem do prazer;
e na saudade marcas da traição;

Que faço agora? Trago a dor secreta;
triste, sozinha, não sei que fazer!
Minha alma chora a vida sem canção.

Fonte:
AISENMAN, Jacqueline. Revista Varal do Brasil. Varal da Saudade. ano 4. n. 23. maio/junho 2013.

Irmãos Grimm (Branca de Neve e a Rosa Vermelha)

Era uma vez uma pobre viúva que vivia numa cabana solitária. Na frente da cabana havia um jardim onde dois pés de roseiras cresciam orgulhosos, um dos quais dava rosas brancas e o outro produzia rosas vermelhas. Ela tinha duas filhas que eram parecidas com os dois pés de roseira, e uma delas se chamava Branca de Neve, e a outra Rosa Vermelha. Elas eram boas meninas e viviam felizes, eram ágeis e carinhosas como somente duas crianças no mundo poderiam ser, apenas Branca de Neve era mais tranquila e mais gentil do que Rosa Vermelha. Rosa Vermelha gostava mais de correr pelos campos e pradarias em busca de flores e caçando borboletas; mas Branca de Neve gostava de ficar em casa com sua mãe, e a ajudava nas tarefas domésticas, ou lia para ela quando não havia nada para fazer.

As duas meninas gostavam tanto uma da outra que quando elas andavam pelas ruas, elas sempre seguravam uma na mão da outra, e quando Branca de Neve dizia, "Jamais nos separaremos um dia," Rosa Vermelha respondia, "Jamais, enquanto vivermos," e a mãe delas completou, "O que uma tinha, fazia questão de dividir com a outra."

Muitas vezes, elas gostavam de correr pela floresta sozinhas para colher frutas vermelhas, e nenhum animal nunca fez mal algum a elas, mas gostavam de ficar perto delas, porque confiavam nelas. A pequenina lebre gostava de comer folhas de repolho na mão delas, o cabritinho gostava de ficar pulando perto delas, o veadinho saltitava alegremente nos arredores, e os passarinhos ficavam pousados nos galhos das árvores, e cantarolavam canções maravilhosas para elas.

Nunca, nenhum perigo as ameaçava; se elas ficavam muito tempo na floresta, e a noite chegava, elas se deitavam uma perto da outra sobre a relva, e dormiam até a manhã seguinte, e a mãe delas sabia disto e não ficava preocupada com isso.

Uma vez, quando elas tinham passado a noite na floresta e acordaram somente no alvorecer do dia, elas viram uma linda criancinha vestida numa roupinha branca e reluzente que estava sentada perto de onde elas haviam dormido. O bebê se levantou e ficou olhando tranquilamente para elas, mas não disse nada e seguiu andando pela floresta. E quando elas olharam ao redor elas descobriram que haviam dormido bem perto de um precipício, e certamente teriam caído dentro dele na escuridão se elas tivessem dado apenas alguns passinhos a mais. E a mãe delas disse que deve ter sido o anjo que protege todas as crianças boas.

Branca de Neve e Rosa Vermelha ajudavam sua mãe a manter a casa tão limpa que era um prazer olhar dentro dela. No verão, Rosa Vermelha tomou conta da casa, e todos os dias de manhã ela colocava uma coroa de flores na cabeceira da cama de sua mãe antes dela acordar, na qual havia uma rosa de cada roseira. Durante o inverno, Branca de neve acendia a lareira e pendurava uma chaleira. E a chaleira que era de cobre brilhava como ouro, e era polida até ficar reluzente.

Ao anoitecer, quando caíam os flocos de neve, a mamãe dizia, "Branca de Neve, não esqueça de trancar a porta," e então, elas sentavam ao redor da lareira, e a mamãe pegava os seus óculos e lia um livro em voz alta para elas, e as duas garotinhas ficavam ouvindo, sentadas, enquanto fiavam. E perto delas ficava um cordeiro sentado no chão, e atrás delas estava uma pombinha branca sentada no poleiro e tinha a cabeça escondida debaixo de suas asas.

Uma noite, quando elas estavam assim confortavelmente acomodadas, alguém bateu à porta, como se desejasse entrar. A mãe disse, "Rápido, Rosa Vermelha, abra a porta, deve ser algum viajante que está procurando abrigo." Rosa Vermelha foi e destrancou a porta, achando que fosse algum mendigo, mas não era; era um urso que enfiou a sua cabeça grande e negra para dentro da porta.

Rosa Vermelha gritou e deu um pulo para trás, o cordeirinho berrou, a pombinha se agitou, e a própria Branca de Neve se escondeu atrás da cama da sua mãe. Mas o urso começou a falar e disse, "Não tenham medo, Não vou fazer nenhum mal a vocês! Eu estou meio congelado, e só quero me aquecer um pouquinho ao lado de vocês."

"Pobre urso," disse a mãe, "venha aqui se aquecer perto do fogo, e não se preocupe porque você não vai se queimar." Então, ela exclamou, "Branca de Neve, Rosa Vermelha, saiam, o urso não vai fazer mal a vocês, ele só quer se aquecer um pouco." Então, as duas saíram correndo, e pouco a pouco o cordeirinho e a pombinha também se aproximaram, e não ficaram com medo do urso. Então, ele disse, "Ei, crianças, será que vocês poderiam tirar um pouco de neve dos meus pelos;" então, elas trouxeram uma vassoura e escovaram toda a pele do urso; e ele se esticou perto da lareira e rosnava contente e satisfeito. E pouco tempo depois eles já haviam feito amizade, e já faziam estrepolias com o desajeitado convidado. Elas puxavam os pelos dele com as mãos, colocavam os pés nas costas dele e ficavam rolando, ou elas pegavam o quebra-nozes e batiam na cabeça dele, e quando ele rosnava, elas gargalhavam. Mas o urso aceitava tudo com despreocupação, somente quando elas exageravam um pouco ele gritava, "Crianças, me deem um pouco de sossego. Branca de Neve, Rosa Vermelha, vocês teriam coragem de bater em quem as ama?”

Quando chegou a hora de dormir, e as crianças já tinham ido para a cama, a mãe disse para o urso, "Você pode ficar aí deitado ao lado da lareira, pois aí você ficará protegido do frio e do mau tempo." E assim que o dia amanheceu, as duas crianças o deixaram sair, e ele saiu trotando alegre pela neve rumo a floresta.

Desse dia em diante o urso vinha todas as noites na mesma hora, ficava esticado ao lado da lareira, e deixava que as crianças brincassem com ele até se cansarem; e elas ficaram tão acostumadas com ele que as portas jamais eram fechadas até que o amigo delas de pelagem preta houvesse chegado.

Quando a primavera tinha chegado e tudo lá fora estava coberto de verde, o urso falou numa manhã para Branca de Neve, "Agora eu preciso ir embora e não voltarei durante todo o verão." "Para onde você vai, então, querido urso?" perguntou Branca de Neve. "Eu preciso ir para a floresta e guardar os meus tesouros dos malvados duendes. No inverno, quando a terra fica congelada, eles são obrigados a ficar aqui embaixo e não podem trabalhar; mas agora, que o sol derreteu o gelo e aqueceu a terra, ele abrem buracos, e saem para bisbilhotar e roubar; e o que cai em suas mãos, e entra em suas cavernas, não consegue ver a luz do sol novamente."

Branca de Neve ficou muito triste porque o urso precisava ir, e quando ela foi abrir a porta para ele, e o urso saiu apressado, ele esbarrou na tranca e um pouco dos seus pelos foram arrancados, pareceu a Branca de Neve que ela tivesse visto um brilho dourado através dele, mas ela não teve certeza disso. O urso fugiu rapidamente, para logo desaparecer por trás das árvores.

Pouco tempo depois a mãe mandou que suas filhas fossem até a floresta para buscarem lenha para a lareira. Lá elas encontraram uma árvore muito grande que estava caída no chão, e perto do tronco alguma coisa estava pulando pra frente e pra trás na relva, mas elas não conseguiram identificar do que se tratava. Quando elas chegaram mais perto, elas viram um duende com um rostinho magro e envelhecido e uma barba branca como a neve e com quase cem metros de comprimento. A ponta da barba estava presa na fenda de uma árvore, e um amiguinho dele estava pulando para a frente e para trás como um cachorro que estivesse amarrado a uma corda, e não sabia o que fazer.

Ele ficou encantado com as meninas com seus olhos vermelhos como brasa e exclamou, "O que vocês estão fazendo paradas aí? Será que vocês não podem vir aqui para me ajudar?" "O que você está fazendo aí, anãozinho?" perguntou Rosa Vermelha. "Tola e curiosa menina!" respondeu o duende; "Eu estava tentando rachar a árvore para conseguir um pouco de madeira para cozinhar. Para o pouco que comemos precisamos apenas que alguns gravetos sejam queimados; nós não comemos tanto quanto vocês que são grandes e gulosos. Eu tinha acabado de enfiar um calço dentro da fenda, e tudo estava indo como eu queria; mas a danada da madeira era lisa demais e de repente pulou para fora da fenda, e a árvore se fechou tão rapidamente que não tive tempo de puxar a minha barba branca e delicada; então, agora eu estou preso e não consigo ir embora, e vocês ficam aí rindo, vocês são tolas, ingênuas e bobas! Ugh! Como eu odeio vocês, suas patachocas!"

As meninas fizeram muita força, mas elas não conseguiam tirar a barba que estava muito presa. "Eu vou correndo buscar ajuda," disse Rosa Vermelha. "Sua gansa desajeitada!" rosnou o duende; "porque você iria buscar ajuda? Duas já são demais para mim; será que vocês não conseguem pensar em algo melhor?" "Não fique nervoso," disse Branca de Neve, "Eu vou ajudar vocês," e ela tirou uma tesoura do bolso, e cortou a ponta da barba do duende.
E assim que o duende se viu livre, ele pegou uma sacola que estava encostada entre as raízes das árvores, e que estava cheia de ouro, a levantou, e resmungava consigo mesmo, "Criaturas estúpidas, cortaram um pedaço da minha bela barba. Desejo má sorte para vocês!" (o duende era muito mal humorado) e então, ele jogou a sacola nas costas, e saiu em disparada sem nem sequer olhar para as meninas.

Algum tempo depois Branca de Neve e Rosa Vermelha foram pescar alguns peixes. Assim que elas chegaram perto do riacho elas viram algo que parecia um grande gafanhoto pulando em cima da água, e parecia que ele queria mergulhar. Elas correram em direção a ele e descobriram que era o duende. "O que você está fazendo?" disse Rosa Vermelha; "É claro que você não quer entrar na água?" "Eu não sou tão tolo assim!" exclamou o duende; "vocês não estão vendo que aquele peixe covarde está querendo me empurrar para dentro?" O anãozinho estava pescando ali, e por azar o vento tinha enroscado a sua barba na linha de pescar; bem nesse instante um peixe grande mordeu a isca, e como a criatura era fraca, ele não teve força para puxá-lo; o peixe foi mais esperto que ele e tentou puxar o duende. Ele se segurou em todos os juncos e caniços que pode, mas de nada adiantou, ele foi obrigado a acompanhar os movimentos do peixe, e por pouco não foi arrastado para dentro da água.

As meninas haviam chegado bem na hora; elas seguraram-no bem firme e tentaram soltar a sua barba da linha, mas nada deu certo, a barba e a linha ficaram mais enroscadas ainda. Não houve outro jeito senão trazer a tesoura e cortar a barba, e uma parte dela ficou faltando. Quando o duende viu o que ela fez, ele gritou, "Está certo isso, sua desajeitada, desfigurar o rosto de uma pessoa? Não foi o bastante cortar a ponta da minha barba? Agora você jogou fora a melhor parte dela. Agora não vou mais poder deixar que me vejam assim. Eu gostaria de saber se você poderia correr caso lhe faltasse a sola dos seus sapatos!" Então, ele pegou um saco de pérolas que estava no meio dos juncos, e sem dizer nem mais uma palavra, levou-o para longe e desapareceu atrás de uma pedra.

E aconteceu que pouco depois a mãe mandou que as duas crianças fossem à cidade para comprar agulhas e linhas, e também laços e fitas. A estrada tinha um cruzamento que levava até um brejo onde havia, por toda parte, grandes blocos. Então, elas perceberam que uma grande ave pairava no alto, e voando mais devagar um pouco acima delas; ela veio descendo devagar, e finalmente pousou perto de uma rocha não muito distante. Em seguida elas ouviram um grito alto e penetrante. Correram para o local e viram, com horror, que a águia havia capturado o velho amigo delas, o duende, e já estava se preparando para ir embora.

As meninas, ficaram com pena, e imediatamente seguraram o anãozinho, e lutaram com a águia durante tanto tempo, que finalmente ela soltou a sua presa. Assim que o duende se recuperou do seu primeiro susto gritou com sua voz estridente, "Você não poderia ter feito isso com mais cuidado! Você agarrou no meu casaco marrom com tanta força que ele está todo rasgado e cheio de buracos, suas criaturas inúteis e desajeitadas!" Então, ele pegou um saco cheio de pedras preciosas, e saiu correndo novamente debaixo das pedras e entrou no buraco onde ele morava. As meninas, que já estavam habituadas com a ingratidão do duende, continuaram a caminhar e foram comprar o que sua mãe lhes havia pedido.

Quando elas foram atravessar o brejo novamente ao retornarem para casa elas deram de cara com o duende, que tinha esvaziado a sua sacola de pedras preciosas em um lugar vazio e limpo, nem tinha imaginado que alguém poderia vir até ali tão tarde. Os últimos raio de sol refletiam sobre as pedras; elas brilhavam tanto e espalhavam seus reflexos por todos os lados e tudo era tão encantador que as meninas ficaram paradas e olhava para elas. "O que vocês estão fazendo aí de boca aberta, suas molengas?" exclamou o anão, e o seu rosto que era cinzento começou a avermelhar de tanta raiva. Ele ia começar a falar alguns palavrões, quando, de repente, elas ouviram um grunhido estrondoso, e o urso negro estava saindo da floresta e veio trotando em direção a eles.

O anão deu um pulo de tão assustado que ficou, mas ele não conseguiu entrar na sua caverna, porque o urso já estava bem perto. Então, tremendo que nem vara verde ele gritou, "Querido Senhor Urso, me poupe, eu lhe darei todos os meus tesouros; veja, as belas jóias que eu tenho aqui! Poupe a minha vida; o que você iria querer com uma criaturinha tão delicada como eu? você nem iria me sentir entre os seus dentes. Venha, leve estas duas garotas perversas, elas serão duas tenras iguarias para você, gordinhas como duas codornas; por misericórdia, fique com elas!" O urso não deu atenção às suas palavras, mas deu uma tremenda patada no duende sem coração, que ele nunca mais se moveu.

As meninas haviam fugido, mas o urso as chamou de volta, "Branca de Neve e Rosa Vermelha, não fiquem com medo; esperem, quero ir com vocês." Então, elas reconheceram a voz do urso e o esperaram, e quando ele chegou perto delas, de repente ele se desfez de sua pele de urso, e eis que ali estava um belo e garboso príncipe, todo vestido de ouro. "Eu sou filho do rei," disse ele, "e eu fui enfeitiçado por aquele duende malvado, que roubou todos os meus tesouros; tive de viver correndo pela floresta como urso selvagem até que me libertasse com a morte do duende. Agora ele recebeu sua bem merecida punição."

E finalmente, Branca de Neve se casou com ele, e Rosa Vermelha com o irmão dele, e elas dividiram entre si o grande tesouro que o duende havia juntado e levado para a caverna. A velha mãezinha viveu tranquila e feliz com duas filhas durante muitos anos. Ela levou as duas roseiras com ela, as quais foram colocadas diante da janela, e que todos os anos floriam as mais belas rosas, a branca e a vermelha.

Fontes:
Contos de Grimm
Imagem =Branca de Neve e Rosa Vermelha. Ilustração de Alexander Zick (1845-190
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