domingo, 18 de maio de 2014

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 4, final


OS ESTUDOS FEMINISTAS

Pode-se afirmar que os estudos da mulher na literatura brasileira surgem, no Brasil, como consequência das questões até aqui anunciadas. Se há textos esquecidos, há necessidade de recuperá-los, ressuscitando-os das páginas manuscritas, ou de primeiras edições escondidas nas estantes, ou de reedições esgotadas. Trata-se, neste primeiro caso, de trabalho de resgate.

Com tal intenção, foram fundadas editoras especializadas em textos escritos por mulheres, na maioria com propósitos de divulgação de trabalhos em várias áreas de conhecimento afins[84], ligadas ou não diretamente a agências de fomento e a grupos de pesquisa específicos sobre mulheres.[85]

Pesquisas de âmbito regional são incentivadas, visando o levantamento de dados referentes a escritoras de várias cidades ou Estados do Brasil, em estudos que se fazem necessários, tendo em vista a enorme extensão territorial do país e a diversidade de culturas aí existentes. Pressupõem a pesquisa a periódicos de época, a livros, a catálogos e a demais fontes que possam permitir um mapeamento da produção literária e jornalística de cada região, bem como das trocas culturais, mediante estudos de recepção. O levantamento, relativamente recente, tem contribuído para que se determine um corpus básico, para que, então, se possa proceder às etapas subsequentes de análise crítica e interpretativa das obras, acompanhadas de um sistemático balanço das premissas metodológicas mais adequadas ao objeto em questão.

Como produto desse trabalho, têm surgido reedições importantes, como as de escritoras do século XIX, tanto as que se dedicaram ao romance[86], como à poesia[87], à crônica, ao teatro, ao jornalismo. Acrescente-se ainda a reedição de revistas do século XIX e do século XX, algumas, em edição fac-similar[88], bem como o estudo específico de algumas dessas revistas[89]. E o levantamento, por vezes acompanhado de análise, de textos de gêneros discursivos específicos, até então considerados ‘menores’, como os livros de memórias de mulheres.[90] Também informações úteis aparecem sob a forma de verbetes referentes a, por exemplo, mulheres ensaístas.[91]

Num segundo bloco, situam-se os estudos que tentam reler os textos escritos por mulheres – e por homens, com o objetivo de praticar um novo modo de ler, de cunho na maioria das vezes feminista. Ainda que, dentro dessa linha, possam ser assumidas diferentes posturas teóricas, metodológicas e críticas, tais estudos têm mostrado, de modo geral, uma dupla perspectiva: ora a adoção de uma linhagem anglo-saxônica, com as ramificações norte-americanas, na leitura de tradição marxista, de caráter mais social e político do gender, nas suas relações com a antropologia cultural; ora a adoção de uma perspectiva francesa, mais alerta a questões de ordem psicanalítica, privilegiando a questão da diferença, valendo-se, em algumas vertentes, das relações com a linguística e a semiótica.[92]

Num terceiro bloco, e já como consequência dos dois anteriores, há um linha de conhecimento referente ainda aos estudos literários da mulher na literatura que se move com base no produto concreto dos resultados de leituras específicas desenvolvidas em torno de obras de escritoras brasileiras. E que procura, a partir de tais resultados, com base nas constantes e variantes de construção de tais obras literárias e recusando sistemas fechados, tecer considerações a respeito das respectivas condições contextuais de produção cultural.

O conjunto de tal produção científica evidencia que uma metodologia de história, teoria e crítica de nossa literatura feminina brasileira vem, paulatinamente, sendo montada por nossos estudiosos e estudiosas de literatura, ou de modo individual, ou, mais frequentemente, de modo coletivo, sob a forma de grupos de pesquisa.

Têm exercido papel importante no sentido de desenvolver tais estudos, os vários cursos de Pós-Graduação sobre o assunto e Núcleos de Estudos da Mulher implementados em várias Universidades brasileiras, a partir sobretudo dos anos 80, que geraram uma produção científica de qualidade, divulgada ora em volumes de autoria individual, ora de autoria coletiva.

É o caso do Grupo de Trabalho A mulher na literatura, filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), que, desde sua fundação, em 1987, conta com a adesão de quase duzentas pesquisadoras, e que vem publicando sistematicamente os resultados dos trabalhos, sob a forma de boletins periódicos e coletâneas de artigos e ensaios.[93] O mesmo grupo vem promovendo também, desde 1988, Seminários Nacionais, bienais, realizados em anos alternados aos do GT A mulher na literatura.

Num balanço crítico datado de início dos anos 90, Heloisa Buarque de Hollanda reconhecia três linhas mestras de estudos no grupo de trabalho A mulher na literatura, que denominou de: literatura e feminismo, literatura e feminino, literatura e mulher.[94] A primeira vertente, reconhece como sendo a de caráter participante, “absorvendo desde a pesquisa no sentido da recuperação da história silenciada da produção feminina até a análise dos paradigmas patriarcais e logocêntricos da literatura canônica”. A segunda, literatura e feminino, mais preocupada com a “identificação de uma escritura feminina”, de modelo francês, com uma inflexão marcadamente semiológica e/ou psicanalítica”. E a terceira, literatura e mulher, mais diretamente ligada ao trabalho de análise do papel da mulher na literatura (como autora, narradora, personagem), sem problematizar a questão das relações de gênero.

Tal produção científica tem sido publicada regularmente pelas equipes responsáveis por cada um desses eventos, em estudos que, apesar de estarem implicados entre si, distribuem-se, fundamentalmente, neste final dos anos 90, em três grandes blocos de reflexão, com alterações sutis, mas significativas, em relação aos grupos anteriores: a teoria e crítica feminista; a questão mais específica do cânone; as múltiplas implicações da categoria do gender.[95]

Nota-se, pois, nos estudos mais recentes, pela simples nomeação de cada linha de reflexão, uma preocupação mais acentuada em construir repertórios teóricos que possam examinar a prática da leitura mediante opções por um feminismo que continua sendo, por princípio, não canônico, e que se abre às múltiplas sugestões suscitadas pela categoria do gênero. Mais uma vez, a necessária desconstrução do nome…também de tais estudos: evitando a tradição da generalização de, simplesmente, estudos literários, o enfoque torna-se mais dirigido quando se detém na questão específica da literatura ligada aos estudos da mulher, e, posteriormente, transforma-se em estudos de gênero ao reforçar a interferência cultural na construção dos papéis sociais que se desenvolvem no âmbito das relações humanas entre homens e mulheres. Sob tal enfoque, o trabalho científico tem mostrado resultados substanciais, conforme comprovam os textos publicados na revista especializada na questão do gênero, intitulada Estudos Feministas[96], bem como a publicação de bibliografias mais gerais sobre o assunto.[97]

Também com objetivo de pesquisa, e, algumas vezes, com finalidades práticas de atendimento a um público amplo e diversificado, foram fundados vários núcleos de estudos da mulher ligados a várias instituições universitárias, com publicações próprias. E há também organizações independentes que promovem debates e encontros específicos sobre a questão da mulher na realidade brasileira, com enfoques e metodologias de várias áreas de conhecimento e, quase sempre, de caráter interdisciplinar.

O estágio atual dos estudos até o momento desenvolvidos, sobretudo no que se refere ao questionamento de fundamentos básicos de metodologia de trabalho e à divulgação de textos literários esquecidos e de fontes primárias de pesquisa, mostra que a literatura feminina no Brasil se viabiliza como um campo fértil de investigação, que vem contribuindo para, mediante o diálogo interdisciplinar, estender os resultados de tal investigação ao âmbito mais geral das ciências humanas, aperfeiçoando a discussão de questões que envolvem o ser no campo mais geral da cultura brasileira. O ser e os nomes do ser.

* Esta exposição destinou-se a um público estrangeiro, o que motivou o seu caráter fundamentalmente informativo, patente na seleção de itens e de questões críticas aqui propostas.

NOTAS

[84] É o caso da editora Mulheres, dirigida por professoras de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Algumas dessas editoras mantêm vínculo institucional e são ligadas a Universidades de âmbito federal ou estadual; outras, são empresas particulares.

[85] Também com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas em torno da ‘mulher’, tem fundamental importância o trabalho desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas, com projetos implementados desde o final da década de 70: o primeiro “Projeto Mulher” da Fundação Carlos Chagas, subvencionado pela Fundação Ford, é de 1976; desde 1978 a Fundação vem mantendo concursos para dotação de pesquisa sobre a mulher brasileira e publicando os resultados. Neste sentido, é pioneira a publicação de Mulher Brasileira: Bibliografia Anotada, em dois volumes, em São Paulo, pela Fundação Carlos Chagas e editora Brasiliense: o primeiro volume, com dados bibliográficos referentes à produção da mulher nas áreas de História, Família, grupos Étnicos e Feminismo, em 1989; o segundo, com dados referentes às de Trabalho, Direito, Educação, Artes e Meios de Comunicação, em 1981. Os demais resultados de pesquisas dos concursos vêm sendo sistematicamente publicados pela Fundação.

[86] É o caso, por exemplo, da reedição do romance D. Narcisa de Villar: Legenda do tempo colonial, de 1859, escrito por Ana Luísa de Azevedo Castro, organizado por Zahidé L. Muzart (Florianópolis, Editora Mulheres, 1990).

[87] É o caso, por exemplo, do volume organizado por Luzilá Gonçalves Ferreira, Em busca de Thargélia: Poesias escritas por mulheres em Pernambuco no segundo oitocentismo (1870-1920), tomo I (Recife, FUNDARPE, 1991). Algumas dessas pesquisas têm site na internet, como a que enfoca as “escritoras cariocas”: nielm@openlink.com.br

[88] É o caso de, por exemplo, A Mensageira: Revista literária dedicada à mulher brasileira, publicada em São Paulo de 1897 a 1900 (ob. cit.).

[89] Eis alguns exemplos de revistas que vêm sendo examinadas: A Violeta (Yasmin Jamil Nadaf, Sob o signo de uma flor: Estudo da revista A Violeta, publicação do Grêmio Literário Júlia Lopes, 1916-1950. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1993); Única (por Sylvia Perlingeiro Paixão, “Mulheres em revista: a participação feminina no projeto modernista do Rio de Janeiro nos anos 20”, em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 421-440); Walkyrias (Ana Arruda Callado, “Uma Walkyria entra em cena em 1934”. Estudos Feministas: CIEC-ECO-UFRJ, v. 2,  n. 2, 1994, p. 345-355).

[90] É o caso, por exemplo, de: Maria José Motta Viana, Do sótão à vitrine: Memórias de mulheres. Belo Horizonte, editora UFMG, 1995.

[91] Heloísa Buarque de Hollanda e Lúcia N. Araújo, Ensaístas Brasileiras. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

[92] Entre publicações de caráter acadêmico sobre o assunto, discutindo as diferentes vertentes teóricas e com análise de textos de diferentes escritoras, cito, dentre várias, como exemplo, a revista Gragoatá: Revista do Instituto de Letras, em número especial sobre “Figurações do gênero e da identidade”: UFF, Niterói (RJ), n. 3, 2. semestre de 1997.

[93] Desde 1987, ano em que foi fundado o GT A mulher na literatura, filiado a ANPOLL, já foram publicados sete Boletins que trazem informações a respeito de tais pesquisas, com resumos de textos e textos na íntegra apresentados nos Encontros do GT. Também os grupos responsáveis pelos Seminários têm publicado os trabalhos apresentados nos vários eventos. A título de exemplo, cito uma das primeiras publicações: o volume organizado, entre outras, por Rita Terezinha Schmidt: Organon, n. 16, UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)-Instituto de Letras, 1989.

[94] Heloisa Buarque de Hollanda, “A historiografia feminista: algumas questões de fundo”. Em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 453-463. (Republicado, com algumas modificações, com o título “Mulher e literatura no Brasil: uma primeira abordagem”, em: Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 54-92.) Problematizando a questão mais geral da crítica feminista, da mesma autora é o texto “Introdução: Feminismo em tempos modernos”, em: Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 7-19. E também: Maria Odila Leite da Silva Dias, “Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças”. Estudos Feministas, CIEC-ECO-UFRJ, v. 2., n. 2, 1994, p. 373-382.

[95] Tais temas figuram no programa para o VIII Seminário Nacional Mulher e Literatura, a ser realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em setembro de 1999.

[96] A implementação e a consolidação de tais estudos no Brasil, em âmbito interdisciplinar, incluindo não só as várias sub-áreas dos estudos literários, mas as das ciências humanas em geral, ligadas a estudos de gênero, podem ser examinadas a partir dos 13 volumes já publicados da revista Estudos Feministas  (Rio de Janeiro, CIEC-ECO-UFRJ, no momento: Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ). A revista traz, desde 1992, artigos e ensaios, encartes em inglês, resenhas de livros nacionais e estrangeiros e informações sobre cursos, núcleos de estudos, eventos e publicações, no Brasil e no exterior.

[97] Ver: Yasmin Jamil Nadaf (org.), Catálogo de títulos sobre a mulher. Cuiabá (MT), UFMT, 1997, 2 v.; Cristina Bruschini, Danielle Ardaillon e Sandra G. Unbehaum, Tesauro para estudos de gênero e sobre mulheres. São Paulo, Fundação Carlos Chagas e Editora 34, 1998.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

sábado, 10 de maio de 2014

Mãe em Versos


TERESINKA PEREIRA
(Estados Unidos)

Mãe

       
A  mãe nunca tem
pena de si mesma.
Seu tempo é infinito
e cada instante de sonho
 é um retalho do céu.
====================

CAROLINA RAMOS
(Santos/SP)

Conselhos de Mãe


Meu filho, a vida é dura e fere... e nos magoa...
mas trata-a  com respeito e guarda a dignidade.
Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
não permitas que o mal altere o que é verdade!

Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho,
sem pressa de alcançá-lo e tendo-o sempre à vista!
Cada dia que passa é um dia mais risonho,
quando o amanhã promete as glórias da conquista!

“Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
Os caminhos, verás, se abrirão à medida
que  teu passo provar firmeza e, sem segredo,
revelar o sentido e o  Ideal da tua vida!

Não temas opressões nem quedas. Persevera!
Se achares que ao final o saldo não convence,
reage, continua... a vida tens à espera!
Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!
====================

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
(Guarapari/ES)

Mãe

(Minha mãe, para mim, é e sempre será o ‘Maior Amor Espiritual’ in (Caderno de Segredos).

Hoje desfilam aqui poetas de todos os cantos do Brasil que homenagearam as suas mães. Vamos começar pela encantadora SILVIAH CARVALHO (de Curitiba, no Paraná) que escreveu estas palavras simples, mas de significado profundo para a Autora de seus dias:

“... Mãe, nome semelhante ao amor,
um “erre” a mais, um “til” que sobrou,
hoje no seu dia, todos se levantam para uma homenagem;
mas poucos, na verdade, lhe direcionam o merecido valor, 
como o vento sibilando nas folhas em cálida  aragem...

Seu amor, Mãe, é universal – não existe nada igual.
Defende sua prole pondo em risco a própria vida,
ao tempo que nutre um sentimento diferente -  chega a ser magistral.
Nos seus braços nenhum filho deixa de ter guarida
e aquele carinho do fundo da alma –  único, especial.

Mãe de muitas mães – igualmente querida,
todo dia deveria ser seu, porque nos legou a vida...
E, junto, o respeito, a obediência, o amor e cuidado.
Para nós, seus filhos, o melhor tesouro guardado,
Não deveria, jamais, permanecer no tempo, esquecida.

Sua nobreza – vejo estampada em seu semblante,
sei que o seu amor é acima de tudo mais importante.
Não importa onde cada um de nós esteja como eu, agora, afastada, distante,
Mas sei - me sente aí, como se estivesse ao seu lado!

Ainda que por todos incompreendida,
Maltratada pela vida e também por quem gerou,
Seu coração grandioso o perdão sempre espalhou...
Ah, mãe, se não fosse por você, o que seria da nossa lida?

Deixo aqui, mãe amada, estas palavras simples, como uma canção,
da sua filha (e dos demais), ainda que não esteja ninguém sentado à sua volta.
Amor, mãe, nem sempre é se fazer presente – ou melhor é se sentir ausente, carente...
Vivendo esse agora nas batidas descompassadas do seu coração:
no fundo, mãezinha fica mais forte e pujante,  o calor da emoção!...”;

Esta poesia pode ser vista em “Recanto das letras” (www.silviah.net).
***

A baiana NEUZAMARIA KERNER também se faz presente e verseja:

“... Ao nascer
a mãe o recebe nos braços
e lhe é dito:
- Tome, é teu, mas cuidado que vôa!
A mãe abrirá os braços
o cobrirá com abraços
e suas asas crescerão.
O menino passarinho passará a pássaro adulto
e voará,
mesmo sem salvo conduto.
Pensará que é pássaro-gigante e
dono do mundo quer se tornar.
Continuará voando
aquém e além dos mares
sozinho ou em pares
e a mãe sempre o aguardando
sempre orando em sua solidão
sem saber se seu passarinho
voltará um dia, ou não”
(do livro “Fragmentos de Cristal” Neuzamaria Kerner).
***

“Optar por um filho é decidir em dado momento ter o seu coração caminhando fora do corpo para sempre”.
(Elisabeth Stone citada por David Cruz Vitória Espírito Santo, em seu livro Fragmentos – Crônicas e Sonetos).

**

Ser mãe
1
Quando todos te condenarem
quando ninguém te escutar,
ela te escuta e perdoa,
por ser mãe – é perdoar!

2

Quando todos te abandonarem
e ninguém te queira ver,
ela te segue e procura
pois ser mãe – é compreender!

3

Quando todos te negarem
um pão, um beijo, um olhar,
ela te ampara e acarinha
por ser mãe – sempre é se dar!

(JOSÉ GUILHERME DE ARAUJO JORGE, do Estado do Acre)
***

Mãe
A oração que eu rezo,
todos os dias,
ao acordar...

Suave
presença,
idílio constante,
no meu caminhar...

Mãe,
minha estrela guia,
a maior alegria
meu doce sonhar!...

Meu futuro,
meu agora,
minha luz brilhante no escuro,
meu anjo eterno, a me guiar

(APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA)
===========================

 
DINAIR LEITE
(Paranavaí/PR)

Trovas


Mamãe, através de um verso
agradeço a ti querida
e louvo ao Deus do Universo
pelo dom da minha vida!

Dia das Mães, eu, sozinha
aos pés da Virgem Maria,
choro a saudade mãezinha
mais forte em mim nesse dia

Da mãe tristonha no asilo
brota uma dor que esfacela...
Cuidou de dez e um pupilo
e os onze não cuidam dela
==========================

OLIVALDO JUNIOR
(Mogi Guaçu/SP)

Trovas


A mamãe que Deus me deu
faz de conta que eu não sei
que ela sempre percebeu
no seu filho um novo “rei”.

Um anjinho de fraldinha,
bem “arteiro” e “crianção”,
canta e dança na cozinha
quando a mãe faz macarrão.

A filhinha mais querida,
o filhinho mais amado,
ambos têm a luz da vida
no colinho abençoado.

==========================
TROVAS DIVERSAS

Com que suave ternura
tece a canária o seu ninho!
- Mãe é assim, dengosa e pura,
a nossa e a do passarinho...
A. A. DE ASSIS – Maringá /PR

Depois que, mãe tu partiste,
como uma Santa em seu véu,
o céu que eu via tão longe,
ficou mais perto, e mais céu...
ADELMAR TAVARES – Recife/PE

Mãe, por mais que eu me concentre
na importância do que faço,
não esqueço que o teu ventre
foi o meu primeiro espaço.
ALMERINDA LIPORAGE – Rio de Janeiro/RJ

Mãe, retrato de ternura,
de pura abnegação,
é a mais doce criatura
a quem Deus deu coração.
AMILTON MONTEIRO – S. José dos Campos/SP

Amor de mãe é semente
que germina em qualquer chão,
é feito só de ternura,
é feito só de perdão.
ANFRÍSIO LIMA – ES

Mãe de José, de Maria,
de Antonio, Pedro, de João ...
O nome próprio varia ...
Só não muda o coração.
ANÍBAL VITRAL MONTEIRO – SP

Mãe que traz uma criança
nas entranhas do seu ser,
carrega a própria esperança
no filho que vai nascer.
ANIS MURAD – RJ

Vejo-te, mãe, todo dia
que a tarde cai pra morrer
e que a voz da Ave-Maria
vem minha alma enternecer...
ARCHIMIMO LAPAGESSE – Florianópolis/SC

Mãe não precisa de rima.
Nome de tal esplendor,
diz tudo, para que exprima,
sozinho, um poema de amor!
BAPTISTA NUNES – Rio de Janeiro/RJ

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da virgem Maria:
- Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
BARRETO COUTINHO  – Limoeiro/PE

Mãe – presente do Senhor,
que a humanidade conduz
num barco cheio de amor,
singrando mares de luz!
BENEDITO CAMARGO MADEIRA – Pouso Alegre/MG

A Mãe, por ser indulgente,
tudo em seu coração cabe.
A mãe é aquilo que a gente
quer definir mas não sabe.
CLARINDO B. ARAÚJO – Natal/RN

Mãe não é só quem procria.
nos diz velho ditado.
Ser mãe é também quem cria
com amor um filho adotado.
CLAUDYRA DIAS DA ROCHA – Fortaleza/CE

Minha mãe! Quanta saudade
de quem deixou-me, na Terra,
lições de total bondade
e de paz em plena guerra...
CLEVANE PESSOA – Belo Horizonte/MG

Mãe! criatura querida,
santa heroina sois vós;
quando nos destes a vida,
destes o sangue por nós.
DÉCIO VALENTE – São Paulo/SP

Minha mãe tão delicada,
toda feita de carinho,
continua madrugada
no ocaso do meu caminho!
DELCY CANALLES – Porto Alegre/RS

Se "Mãe" não tem com que rime,
não desistas, trovador...
Troca a palavra sublime
pelo sinônimo "Amor"!
DOROTHY JANSSON MORETTI – Sorocaba/SP

Mãe! quisera eu me deitar
junto à parede, aos teus pés.
adormecer e sonhar,
sentindo os teus cafunés.
FRANCISCO GARCIA – Caicó/RN

Minha mãe, que orava aqui,
é nos céus que reza agora;
foi no meu sonho que a vi
aos pés de Nossa Senhora!
HARLEY CLOVIS STOCCHERO – Almirante Tamandaré/PR

A mãe é essência divina
que todo amor nela encerra;
é luz que a estrada ilumina
para os filhos nessa terra.
HORÁCIO FERREIRA PORTELLA – Piraquara/PR

Oh, minha mãe, em meus cantos,
num grato e eterno estribilho,
bendigo a Deus, que, entre tantos,
me escolheu para teu filho!
J. G. DE ARAÚJO JORGE – Tarauacá/Acre

Minha mãe verteu mais pranto
que a mãe de Nosso Senhor.
A Virgem chorou um Santo;
minha mãe - um pecador!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO – Rio de janeiro/RJ

A Mãe, somente, perdoa
o mal que um filho lhe faça,
embora o coração doa
dá-lhe um sorriso e o abraça!...
LACY JOSÉ RAYMUNDI – Garibaldi/RS

Pra quem é mãe não existe
bem de mais funda raiz,
que o de viver sempre triste,
mas ver seu filho feliz.
LILINHA FERNANDES – Rio de Janeiro/RJ

“Quem tiver filhos pequenos
por força há de cantar:
quantas vezes as mães cantam
com vontade de chorar.”
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH – Curitiba/PR

Dizes que és pobre ... E eu, coitado,
inveja tenho de ti ...
- Tens tua mãe a teu lado,
e a minha - eu nem conheci!
LUIZ OTÁVIO – Rio de Janeiro/RJ

Tendo ao seio o meu menino,
tudo em volta é luz, é brilho.
Nem sei mesmo onde eu termino
e onde começa o meu filho!
MAGDALENA LÉA BARBOSA CORREIA – Rio de Janeiro/RJ

As mães são divinas plantas
que deram flores, sementes...
Para Deus são todas santas,
com milagres diferentes ...
MARIA NASCIMENTO – Coruripe/AL

No embalo suave e silente
de teu ventre já aquecido
recebi maior presente
só por ter de ti nascido.
NEI GARCEZ – Curitiba/PR

Apesar de mim distante,
lembro de ti, mãe querida;
porque foste a mais brilhante
estrela da minha vida!
NEMÉSIO SIMAS – Raul Soares/MG

Título algum de nobreza,
ou nome ilustre qualquer,
tem o valor, a grandeza
do de mãe, dado à mulher!
ORLANDO BRITO – São Luiz/MA

Às vezes a mãe da gente
não é a melhor assessora,
para o aluno inteligente,
mãe também é a professora.
ORLANDO WOCZIKOSKY – Curitiba/PR

Minha Mãe – frase sagrada
da mais sublime expressão,
para ser perpetuada
no fundo do coração.
PEDRO PAULO DE LEMOS – RJ

À minha mãe que voou,
nas asas de um querubim,
pedindo hoje aqui estou
que do céu vele por mim.
SARA FURQUIM – Rio Branco do Sul/PR

Carinhos de filhos, quero!
Fazem bem ao coração:
São frutos do amor sincero;
São frutos da gratidão!
SELMA PATTI SPINELLI – São Paulo/SP

Quem quiser ver a Esperança
olhe uma noiva no altar,
fite os olhos de uma criança,
repare uma mãe rezar!
SEVERINO UCHOA – Aracajú/SE

Mamãe, eras diferente
das outras Mães, para mim.
De ti sinto bem presente
esta saudade sem fim.
SINÉSIO CABRAL – Fortaleza/CE

Caso a sobremesa fosse
escassa, mamãe dizia:
- Tomem! Não gosto de doce!
... e docemente sorria.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ - Curitiba/PR

Minha mãe com harmonia,
curtiu vida com paixão.
No compasso da alegria,
fez pulsar meu coração!
VÂNIA ENNES – Curitiba/PR

Eu rememoro a saudade
de minha mãe, as carícias:
serena necessidade
de seu carinho e delícias...
VIDAL IDONY STOCKLER – Curitiba/PR

Almejo trilhas sem fim,
ornamentadas de rosas!...
Mãe, vais à frente de mim,
cultivando as mais formosas!
WAGNER MARQUES LOPES – Pedro Leopoldo/MG

Transcendo o sonho e refaço
minhas rotas do passado,
para ter de novo o abraço
do ventre em que fui gerado.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ  - Curitiba/PR

Mãe é puro sentimento
que se mistura à razão.
Mãe é tudo num momento,
e... muito mais: coração.
ZENI DE BARROS LANA – Itaverava/MG

Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Tucumã - o surgimento da noite

No início não existia a noite. Esta pertencia a uma enorme serpente, que a mantinha no fundo das águas.

Quando a filha desta se casou, exigiu que viesse a noite, sem a qual não poderia se deitar. O esposo então avisou três mensageiros para que a trouxessem.

A serpente, senhora da noite, recebeu-os com indiferença. Mesmo assim, entregou-lhes um coco, Tucumã, lacrado com cera de abelha, dizendo-lhe que ali estava o que vieram buscar. Não deveriam entretanto abri-lo, pois a noite poderia escapar.

A volta, os índios perceberam que do coco saiam ruídos de sapos e grilos. Um deles, o mais curioso, convenceu os companheiros a abrirem o fruto. E assim o fizeram.

Logo que derreteram a cera, a noite saiu através do coco, escurecendo o dia. A filha da serpente aborreceu-se, pois agora ela deveria descobrir como separar o dia da noite.

Desta forma, ao surgir a grande estrela da madrugada, criou o pássaro Cujubim, ordenando que este cantasse para que nascesse a manhã. Em seguida, criou o pássaro Inhambu, que deveria cantar à tarde, até que viesse a noite. Criou ainda os outros pássaros para alegrar o dia, diferenciando-o da noite.

Aos mensageiros desobedientes, lançou toda a sua ira, transformando-os em macacos de boca preta -devido à fumaça - e risca amarela - pela cera derretida. Assim, a filha da serpente pôde finalmente se deitar e todos os seres puderam dormir.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (Como criar cenas)

Você pode pensar em cada cena como no cinema ou no teatro, já que o próprio conceito de cena vem do teatro. Enquanto a câmera está no mesmo ambiente, com os mesmos personagens e seguindo um tempo linear, temos uma cena.

Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhe para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel.

A menina não se atreveu a levantar os olhos, mas sentiu os olhares assustados prenderem-se a ela, enquanto ia puxando as palavras e exalando-as. Uma voz tocava as notas dentro dela. Este é o seu acordeão, dizia.

O som da página virada cortou-os ao meio.

Liesel continuou a ler. (...)

Todos esperavam o chão estremecer.

Essa ainda era uma realidade imutável, mas agora, ao menos, eles estavam distraídos com o menino e o livro. Um dos garotos menores pensou em chorar de novo, mas, nesse momento, Liesel parou e imitou seu papai, ou até Rudy, aliás. Deu-lhe uma piscadela e recomeçou.

Só quando as sirenes tornaram a se infiltrar no porão foi que alguém a interrompeu.

- Estamos salvos - disse o Sr. Jenson.

- Psiu! - fez Frau Holtzapfel.

Liesel ergueu os olhos.

- Só faltam dois parágrafos para o fim do capítulo - disse, e continuou a ler, sem fanfarra nem aumento da velocidade. Apenas as palavras.

(trecho de A Menina que Roubava Livros, de Markus Zusak)

O diálogo, claro, é um aliado importante para manter a cena, mas evite abusar do diálogo, o bom escritor saberá dosar narrativa com diálogo, lançando mão das falas apenas quando for essencial.

Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã de Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o coração.

Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguesias.

- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! Dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!

- Muita pobreza, mas muita preguiça considerou duramente o padre Natário. - Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas. - Súcia de mariolas, resumiu.

(trecho de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós)

Vale lembrar que na literatura, diferentemente do vídeo, o escritor pode mesclar a narrativa com reflexões dos personagens, descrições do cenário, comentários próprios. Até os pensamentos de um cão, como no genial Machado de Assis, podem ajudar na composição da cena:

Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto, e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa, depois outras idéias.

(trecho de Quincas Borba, de Machado de Assis)

É possível que cada cena ocupe um parágrafo próprio (ou vários, dependendo de sua extensão e importância na trama).

Evite várias cenas no mesmo parágrafo. Evite, também, mudar de ponto de vista narrativo em meio a uma cena. Se o fizer, deixe isso claro para o leitor, talvez trocando o parágrafo.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4052/como-criar-cenas

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 10


Machado de Assis (Entre Duas Datas)

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta para cavar um abismo entre duas pessoas.

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo.

Era filha de um coronel.

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

E é agora, em 1862, estando ele tranquilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

Poupo às pessoas que me leem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

— Nunca mais a viste? — Nunca.

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande? — Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

— À toa? repetiu Duarte rindo.

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

— Por quê? — A turvação de ontem...

— Que turvação? — Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado.

Presentemente...

Daí a dias, estando com a prima — a intermediária antiga das notícias —, contou-lhe o caso do Ginásio.

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

— Em todo caso, não é a mesma.

— Por quê? Está muito diferente? — Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

— Em Jaguarão? — Não; depois da morte do marido...

— Enviuvou? — Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas.

Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem.

Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a incriminemos por um pecado tão comum.

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

— Querem ver que você está querendo recordar-se... Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento.

Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças? — As mesmas.

— Não mudou nada? — Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

— Usa suíças? — Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominou-se e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles: — O Rio Grande é bonito? — Muito: gosto muito de Porto Alegre.

— Parece que há muito frio? — Muito.

E depois, ela: — Tem tido bons cantores por cá? — Temos tido.

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-se-ia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los.

Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela.

Duas pessoas que se veem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro.

Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.“ pensou ele.

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco.

Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas.

Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

— Vejo que fiz mal em falar a você, redarguiu ele rindo.

— Por quê? — Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a frequentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

“Nem parece a mesma,” disse ele consigo.

Outra coisa que ele lhe notou — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar.

Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal.

Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar? — Nada.

— Então...

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

— Pois só mudada; mas está mudada.

— Mudada...

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha os mesmos característicos da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 2

A LEVIANA
Souvent femme varie,
Bien fol est qui s’y fie.
- Francisco I


És engraçada e formosa
Como a rosa,
Como a rosa em mês d’Abril;
És como a nuvem doirada
Deslizada,
Deslizada em céus d’anil.
Tu és vária e melindrosa,
Qual formosa
Borboleta num jardim,
Que as flores todas afaga,
E divaga
Em devaneio sem fim.
És pura, como uma estrela
Doce e bela,
Que treme incerta no mar:
Mostras nos olhos tua alma
Terna e calma,
Como a luz d’almo luar.
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etérea mansão.
Assim, beijar-te receio,
Contra o seio
Eu tremo de te apertar:
Pois me parece que um beijo
É sobejo
Para o teu corpo quebrar.
Mas não digas que és só minha!
Passa asinha
A vida, como a ventura;
Que te não vejam brincando,
E folgando
Sobre a minha sepultura.
Tal os sepulcros colora
Bela aurora
De fulgores radiante;
Tal a vaga mariposa
Brinca e pousa
Dum cadáver no semblante.

A MINHA MUSA

Gratia, Musa, tibi; nam tu solattia praebes.
- Ovídio


Minha Musa não é como ninfa
Que se eleva das águas - gentil -
Co’um sorriso nos lábios mimosos,
Com requebros, com ar senhoril.
Nem lhe pousa nas faces redondas
Dos fagueiros anelos a cor;
Nesta terra não tem uma esp’rança,
Nesta terra não tem um amor.
Como fada de meigos encantos,
Não habita um palácio encantado,
Quer em meio de matas sombrias,
Quer à beira do mar levantado.
Não tem ela uma senda florida,
De perfumes, de flores bem cheia,
Onde vague com passos incertos,
Quando o céu de luzeiros se arreia.

Não é como a de Horácio a minha Musa;
Nos soberbos alpendres dos Senhores
Não é que ela reside;
Ao banquete do grande em lauta mesa,
Onde gira o falerno em taças d’oiro,
Não é que ela preside.
Ela ama a solidão, ama o silêncio,
Ama o prado florido, a selva umbrosa
E da rola o carpir.
Ela ama a viração da tarde amena,
O sussurro das águas, os acentos
De profundo sentir.
D’Anacreonte o gênio prazenteiro,
Que de flores cingia a fronte calva
Em brilhante festim,
Tomando inspirações à doce amada,
Que leda lh’enflorava a ebúrnea lira;
De que me serve, a mim?
Canções que a turba nutre, inspira, exalta
Nas cordas magoadas me não pousam
Da lira de marfim.
Correm meus dias, lacrimosos, tristes,
Como a noite que estende as negras asas
Por céu negro e sem fim.
É triste a minha Musa, como é triste
O sincero verter d’amargo pranto
D’órfã singela;
E triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas folhas do arvoredo
Por noite bela.
É triste como o som que o sino ao longe
Vai perder na extensão d’ameno prado
Da tarde no cair,
Quando nasce o silêncio involto em trevas,
Quando os astros derramam sobre a terra
Merencório luzir.
Ela então, sem destino, erra por vales,
Erra por altos montes, onde a enxada
Fundo e fundo cavou;
E pára; perto, jovial pastora
Cantando passa - e ela cisma ainda
Depois que esta passou.
Além - da choça humilde s’ergue o fumo
Que em risonha espiral se eleva às nuvens
Da noite entre os vapores;
Muge solto o rebanho; e lento o passo,
Cantando em voz sonora, porém baixa,
Vêm andando os pastores.
Outras vezes também, no cemitério,
Incerta volve o passo, soletrando
Recordações da vida;
Roça o negro cipreste, calca o musgo,
Que o tempo fez brotar por entre as fendas
Da pedra carcomida.
Então corre o meu pranto muito e muito
Sobre as úmidas cordas da minha Harpa,
Que não ressoam;
Não choro os mortos, não; choro os meus dias
Tão sentidos, tão longos, tão amargos,
Que em vão se escoam.
Nesse pobre cemitério
Quem já me dera um lugar!
Esta vida mal vivida
Quem já ma dera acabar!
Tenho inveja ao pegureiro,
Da pastora invejo a vida,
Invejo o sono dos mortos
Sob a laje carcomida.
Se qual pegão tormentoso,
O sopro da desventura
Vai bater potente à porta
De sumida sepultura:
Uma voz não lhe responde,
Não lhe responde um gemido,
Não lhe responde urna prece,
Um ai - do peito sentido.
Já não têm voz com que falem,
Já não têm que padecer;
No passar da vida à morte
Foi seu extremo sofrer.
Que lh’importa a desventura?
Ela passou, qual gemido
Da brisa em meio da mata
De verde alecrim florido.
Quem me dera ser como eles!
Quem me dera descansar!
Nesse pobre cemitério
Quem me dera o meu lugar,
E co’os sons das Harpas d’anjos
Da minha Harpa os sons casar!

DESEJO

E poi morir.
- Metastásio


Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 3


A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Cecília Meireles, por sua qualidade poética, marcou a história de nossa poesia no século XX. A sua poesia mostra cuidado formal rigoroso. Os versos bem medidos têm musicalidade, com nuances de ritmos e cadências, e plasticidade, em imagens que se distribuem com variedade cromática de tons pastéis. A delicadeza, que gera leveza nos gestos e finos traços, pode ser uma tônica desta poesia. Como resultado final, paira o equilíbrio formal, com simetria de quantidades, em que nada parece sobrar ou faltar. A etereidade de “nuvens” e “mares” é um dos temas centrais de tais versos. Sem ambições de se fixar, e, assim, cristalizar-se, o etéreo flui de modo suave, encadeia-se em sequência de espelhamentos, em busca de uma imagem que está sempre mais além - “face perdida” - que se lhe escapa[70].

Cecília Meireles “paira, simplesmente”, segundo afirmação do crítico Amadeu Amaral[71]. E paira tanto no território da produção, em que a própria autora se instala enquanto voz poética, quanto no da recepção pelo público leitor, ocupando um lugar de realce na literatura brasileira.

Embora Cecília Meireles estreie em 1919, com Espectros, seguido de Nunca Mais e Poema dos Poemas, de 1923, e ainda de Baladas para El-Rei, de 1925, em que tendências simbolistas e traços parnasianos misturam-se, só vai considerar como obra sua os poemas a partir de 1939, com Viagem. Mas desde o início de sua produção, pratica uma poesia de fina sensibilidade e delicadeza.

E o conjunto de sua produção mostra tendências heterogêneas, como bem observou o crítico Mário de Andrade, em referência ao livro Viagem, premiado pela Academia Brasileira de Letras. De fato, se ocorre aí a heterogeneidade que o crítico traduziu pela imagem do "bordado búlgaro", reconhece também outras qualidades que a esta se somam: os "requintes de pensamento refinado" e a “simplicidade popularesca”, por exemplo.[72]

Como resultado da primeira, cria uma poesia que, ainda segundo Mário de Andrade, “parece totalmente sem assunto".[73] E que se pauta por uma preocupação que atravessa a sua produção poética, a de experimentar "femininamente, além das  lágrimas, a angustiada volúpia de ter um nome”, usando, para atingir tal meta, uma técnica "energicamente adequada". E dando vazão a uma "alma grave e modesta, bastante desencantada, simples e estranha ao mesmo tempo, profundamente vivida. E silenciosa".[74] Daí talvez a constante do tema do auto-retrato, em imagens que traduzem a temporariedade dos fatos e sua fluidez em fluxo vital, transfigurando-se em águas, ares e mares.

Da segunda vertente de sua poesia, a do seu pendor popular, surge a marca da musicalidade em sons que constroem canções e serenatas. Cultivando um lirismo de tradição medieval, a escritora exercita a oralidade em linguagem límpida. E dessa pesquisa, advém o seu Romanceiro da Inconfidência, de 1953, quando sua poesia ganha ainda nova dimensão, mediante a construção do retrato nacional do país em momento de crise e de luta, mediante defesa de reivindicações de caráter político que alimentaram a Inconfidência Mineira.

Nesse trabalho ganha vigor a autora poeta e também pesquisadora dos Autos da Devassa, estudiosa do folclore brasileiro, enquanto professora da hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (na época Universidade do Distrito Federal), onde lecionou Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Crítica Literária.

O poema histórico monta-se em quadros sucessivos mediante colagem de cenas e retratos de personagens envolvidos no movimento pela nossa independência e autonomia, em obra de maturidade poética, em que o lirismo social pisa firme o chão da história. E assume o tom de denúncia, a partir do compromisso de luta. Acusa, entre tantos erros, o defeito da corrupção pelo ouro. E o da injustiça.

O conjunto da obra poética de Cecília Meireles caracteriza-se, pois, por uma dimensão individual – a mulher buscando sua imagem – e também por uma experiência de dimensão coletiva – no campo político das reivindicações de caráter libertador.

Seguindo a trilha dessa primeira vertente da poesia de Cecília Meireles, muitas outras escritoras vão procurar, no espaço da representação artística da literatura, a sua identidade de mulher. Entre elas, Adélia Prado, que se reconhece “desdobrável” e que, na sua “bagagem” drummondiana, incorpora um cotidiano em “dor sem amargura” - expressão que, a meu ver, já bem traduz o clima poético de sua obra.[75] Instala-se à vontade neste ponto de encruzilhada de múltiplos papéis, que exigem versatilidade e até acrobacia. Assume atribuições que vai simplesmente incorporando, sem rigorosas triagens eletivas nem exigências constrangedoras. Adere a si, de bom grado e de bom humor.

Em poesia plantada no cotidiano mineiro de Divinópolis a mulher come “arroz, feijão-rouxinho, molho de batatinhas”, tem o Zé, bonito, do lado, tem filhos e compadres, tem fé, que dá certeza e tem Deus, que dá tudo. Talvez por isso, rodeada de tanta graça, seja poesia que mais responde que pergunta.

Parece haver uma gradação neste percurso poético: da sensação ávida, perturbadora, de Gilka Machado, até a suavidade serena, indagadora, de Cecília Meireles, e desta, até a confiança firme e inabalável da fé, em Adélia Prado, em universo de certezas que, no entanto, se desfaz...em algumas outras escritoras contemporâneas.

É o caso de Ana Cristina César, que habita um ponto extremo da contundência e da energia problematizadora, não só nos seus poemas, mas nos seus textos teóricos e críticos, todos de caráter polêmico, de muita erudição, de aguda curiosidade, de rara lucidez. Dificilmente um mundo poético se encontra tão alimentado pelo próprio universo das imagens da arte, da palavra, do livro, da experiência artística, enfim. E nesse mundo marcado pelos tempos do pós-modernismo, nele tudo cabe e nada, finalmente, é verdade: lugares de vários países, citações de vários autores, peças de vários guarda-roupas, num misto de magicista e de camelô ambulante de cidade grande.[76]

Num mural virtual de opções, cujo suporte é sempre a sensação intensa e desesperada, as imagens se somam, por colagens, citações, remissões, numa espécie de clicagem, ancorada em duas propostas de antiga linhagem feminina: o diário íntimo - ficcional, sim, mas quem sabe também autobiográfico? - em que o eu se encontra diante de si mesmo; e a correspondência ou carta, em que o eu se dirige a um outro supostamente ausente. Qual a razão dessa desenfreada interlocução, no sentido de sempre querer mobilizar alguém? De sempre querer atingir esse ponto, do eu, do outro, esticando a malha poética até as últimas consequências? E tal ponto extremo lhe chega, mesmo, sob a forma do suicídio.

A PROSA DE CLARICE LISPECTOR

Antecedendo a contundência extrema de Ana Cristina César, Clarice Lispector tenta também levar às últimas consequências a capacidade de resistência da linguagem, numa arte ‘suicida’. Desmancha a realidade feita, assim, de capas, de invólucros, de máscaras. E reconstrói, do caos primitivo, ou dos cacos de um caos primitivo, restos de uma civilização falida, um jeito novo de ver, ao  mesmo tempo enviesado, perscrutrador, dirigido a profundidades remotas e arcaicas, mas reconhecidas na realidade de superfície em que se desnudam, ou simplesmente aparecem, por um olhar também loucamente direto.

Sob este aspecto, a literatura de Clarice pode ser considerada como um corajoso processo de desconstrução, pela via da linguagem, ela também, a todo momento, questionada, inserindo-se, assim, na fértil linhagem de literatura metalinguística do nosso século. A novidade dessa literatura reside, talvez, no fato de submeter o discurso a essa prova de resistência, elasticizando o movimento de tensão até um ponto determinado que, no seu caso, é o do encontro de si consigo mesmo, que é, ao mesmo tempo, um outro, que é o outro também social, e que, a certa altura, se transfigura em nada.

No decorrer do percurso, a certa altura, sob a figura do paradoxo, Inferno e Paraíso se equivalem. E por um instante, não há senão silêncio. Aí, “a vida se me é”, como afirma em A Paixão segundo G.H.[77], após os difíceis passos de uma via-sacra que levam a personagem a se aproximar do pior e melhor de si mesma - a barata - até se reconhecer aí como essa matéria reles, arcaica, matéria viva pulsando.

O jogo de alteridade, praticado sob diferentes configurações em quase toda a obra de Clarice Lispector, desde os primeiros contos dos anos 40, encontra uma equivalência metafórica de caráter social no seu último romance publicado em vida, A Hora da Estrela.[78] Neste, o “drama em linguagem” - para usar expressão do crítico Benedito Nunes[79] - , faz-se pelo desdobramento já típico dessa autora: o indivíduo que, ao reconhecer-se como tal, aparece já desdobrável num eu e num outro, cada um desdobrando-se, por si, em mais dois, e assim sucessivamente.

Dessa forma, Clarice assina seu nome de autora sobre os treze títulos que dá ao romance. E cria um outro, Rodrigo, que irá escrever o romance, criando, por sua vez, uma outra, a Macabéa, que tem nome de origem judia e é nordestina pobre - como, aliás, a própria Clarice. A experiência individual - a mulher em busca de seu outro criando esse outro em que se espelha - faz-se em vários níveis: autora que vira narrador que vira personagem de si mesma, personagem que também é o narrador e também é a autora.

Numa das cenas que representam tal acoplagem o escritor Rodrigo vê a nordestina ao espelho e “no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos”.[80] Termo eficaz, este, o da intertroca, para traduzir a montagem dessa construção de imagens/personagens que se desdobram ao longo da obra que se faz.

Numa outra cena é Macabéa que, após receber a notícia de que seria despedida do emprego, vai ao banheiro “para ficar sozinha porque estava toda atordoada” e lá se vê jogada em duplo, enxergando-se ora como ‘ninguém’, ora com a ‘deformação’: “Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem”.[81]

O espelhamento de eus faz-se não só no campo das classes sociais, mas no de gêneros e de culturas. A autora Clarice é a que supomos que conhecemos: muito pobre, enquanto imigrante judia passando fome no nordeste, até os seus doze anos - ou vivendo também miseravelmente quando chega ao Rio de Janeiro, onde vive dos 12 aos 23; ou não digo rica, mas de classe alta, enquanto casada com diplomata, vivendo no exterior, primeiro na Itália, depois na Suíça, Inglaterra, Estados Unidos. E é a Clarice novamente bem pobre, mas sobrevivendo por atividade artística, precisando escrever crônicas para jornal e livro por encomenda para cuidar dos dois filhos com quem vive depois da separação do marido, já de volta ao Rio de Janeiro. Passa, pois, por três situações de vida - econômicas e culturais - diferentes. Foi as três. E carregou, pelos menos, as três, ao escrever este seu último romance publicado, no seu último ano de vida.

O narrador Rodrigo também vive a pressão de três classes sociais: é o escritor que é estranho para a classe alta, temido pela média e simplesmente desconhecido pela baixa. Afirma esse narrador Rodrigo a respeito de si mesmo: “A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”.[82]

E Macabéa é tão só a classe baixa, miserável, no seu generalizado ‘nada ter’, numa sociedade marcada pelos bens de consumo. E é ‘sem classe’, se considerada do ponto-de-vista do que ela encarna: milagre de vida inexplicável desde que, apesar de tudo, sobrevive, inconsciente, como verdade de um não-saber, na insignificância e no anonimato.

Paralelamente às classes, as respectivas culturas: a escritora Clarice e o escritor Rodrigo têm o bem cultural da escrita. São autores. E, além disso, pertencem à linhagem dos autores que questionam essa cultura, metalinguisticamente, com sofisticações refinadas. Ao criar, com prazer e dor, desdobram-se num outro, nas suas criaturas, como Macabéa. Esta, como datilógrafa, copia apenas. Não só suja o papel, com dedos de unhas curtas demais e maltratadas, como copia errado, sem saber o que significam as palavras. Escreve “desiguinar”. E pergunta o que é “cultura”. Vive de cultura de massa e de sucata: ouve músicas sentimentais pelo rádio, aprende coisas de almanaque (que, por exemplo, uma mosca leva 28 dias para dar volta ao mundo, caso voe em linha reta) e recorta anúncios das revistas que outros leem.

Também sucedem-se, em cadeia, os gêneros. O feminino de Clarice cria o masculino de Rodrigo que, por sua vez, cria o neutro de Macabéa, que não se descobre socialmente localizado: marginal, não é mulher nem homem, é coisa. Assim, tanto pode ser ‘lida’ como força positiva, quanto negativa, ou seja, nela tudo cabe porque ela nada é. Paira, superior, acima das mesquinharias de uma sociedade como a nossa, regulada pelo império das aparências falsas e enganosas, e aí paira sem nem ter consciência de que representa ‘isso’, esse milagre de resistência, digna de um macabeu, que sobrevive, apesar de tudo e de todos, emitindo, na voz fraca e na morte na sarjeta, o grito mudo de reivindicação de um lugar onde possa sonhar - e se casar com o loiro estrangeiro, bonito e rico. Enfim, onde possa tornar-se sujeito de uma história, até então manipulada pelos outros donos do saber, inclusive pelo seu proprietário intelectual, o escritor, que vive às custas dessa personagem que não pode viver ao seu lado, numa sociedade onde ele também, poderoso, vive escrevendo, criando e...matando Macabéas.

A história de amor do romance também se desdobra, em tantas outras: é a história de amor de Clarice por Rodrigo, este narrador do seu romance, criatura sua, modelada para essa função de contar a história. É a história de amor de Rodrigo por sua personagem Macabéa, criatura sua, modelada  para essa função de contar de quanta miséria -  e, ao mesmo tempo, quanta grandeza - se faz a condição humana. E é a história de amor de Macabéa por Olímpico, o bandido que quer ser deputado. Ou por Hans, o moço bonito anunciado pela cartomante.

Dificilmente, na história da nossa literatura - de homens e de mulheres - houve um questionamento do intelectual de tal envergadura e coragem. Capítulo subsequente dos romances sociais dos anos 30, esse romance de Clarice Lispector desmitifica, ou desconstrói também, a figura do intelectual, do escritor, do artista, que é um dos que têm, em contraste com o seu objeto de arte, ou personagem, o que não tem. Numa experiência da diferença que se faz por dentro - há os que cosem por fora, eu coso para dentro, afirmava Clarice - . a ‘verdade’ dessa injustiça social surge não por teorias, nem por plataformas revolucionárias. Surge por experiência desmitificadora: desmonta o que está feito. E é assim também que cada um conquista a sua hora da estrela, em momento de extrema grandeza e miséria.

O desejo - como manifestação de um querer, que é simultaneamente configurado como individual e coletivo - , traduz-se, também em Clarice, tal como o foi no início do século com Júlia Lopes de Almeida, por um ardoroso apego ao detalhe e por uma aparente ligeireza e banalidade, como se aí nada fosse importante, mas num tom descompromissado que esconde, perversamente, sob a forma da máscara, uma outra realidade.

Nesse espelhamento a mulher, de lá para cá, mudou muito. Sempre em estado de solidão e, por vezes, de insatisfação, tais estados de desejo são elaborados literariamente sob diferentes olhares, por essas mulheres. Um passeio pela ligeireza do cotidiano, como traço quase caricaturesco de uma sociedade em miúda festa da banalidade, com Júlia Lopes de Almeida. Uma reflexão da condição social com aparelhamento ideológico marxista, mediante experimentações modernistas, com Pagu-Mara Lobo; sensível, com aberturas para experiências da fantasia, em Rachel de Queiroz; estritamente familiar, a partir do peso da estrutura conservadora, em Lúcia Miguel Pereira. E metalinguisticamente, em etapas sucessivas, gradativas, ritualisticamente, num processo desconstrutor radical, em Clarice Lispector.

Até essa Hora de Estrela, a Mulher teve de percorrer um longo e penoso caminho. Afinal, não é fácil reconhecer-se, a partir do tudo com que nos deparamos, no extremo nada de que todos, homens e mulheres, somos feitos. E em que, paradoxalmente, a mulher encontra seu brilho próprio. Nessa altura, no entanto, já não se vê mais, pois está feito o percurso necessário “para desaprender o seu nome”, conforme expressão minha para parodiar, à moda de Clarice Lispector, o verso de Cecília Meireles. Sem espelho, sem imagem, sem reflexo, na conquista de si mesma, a mulher-personagem já pode pairar, anônima, no silêncio, enquanto simplesmente um ser.

A descoberta de que o verdadeiro nome está na ausência dele – ser nada e ninguém – por um fluxo narrativo que escava, em profundidade, os invólucros ou artifícios culturais que abafam a selvageria instintiva, pode ser considerada como uma nova etapa de nossa antropofagia cultural. O mundo da privacidade recalcada e até mórbida da mulher, no seu espaço familiar de que se vê na maioria das vezes prisioneira, e a dimensão coletiva em que a mulher descortina a consciência de seu não-espaço, marginal e massacrado, será assunto de outros romances femininos, como os de Lygia Fagundes Telles e Lya Luft, por exemplo.[83] Mas o que se sobressai nesse último romance de Clarice Lispector é o grau de questionamento que leva a mulher até o extremo limite de sua capacidade desconstrutora.

Até o presente momento, é o grito de Macabéa na sua hora de agonia e morte, quando conquista a grandeza da dimensão humana pelo poder de resistência num contexto adverso, que ainda ecoa, forte, como música de fundo de toda uma história da mulher na literatura brasileira.
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NOTAS

[70] Tais propostas encontram-se desenvolvidase em: Nádia Battella Gotlib, “Nem ausência, nem desventura: ser poeta”. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 53: Imagens da Mulher (Org.: Benjamin Abdala Júnior), jan.-dez.1995, p.115-122.

[71] Amadeu Amaral, “Cecília Meireles”. Em: O Elogio da Mediocridade. São Paulo-Hucitec, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1976, p. 159-164.

[72] Mário de Andrade, “Viagem.” Em: O Empalhador de Passarinho. 3. ed. São Paulo, Martins, 1972, p.161-164.

[73] Mário de Andrade, ob. cit., p. 163.

[74] Mário de Andrade, ob. cit., p. 164.

[75] Tal tendência anuncia-se desde seus primeiros livros publicados, Bagagem e O coração disparado, que surgiram pela Editora Nova Fronteira em 1977 e 1978, respectivamente.

[76] A tendência é patente não só nos seus poemas reunidos em, por exemplo, A teus pés (São Paulo, Brasiliense, 1987; esta edição traz, além dos poemas de A teus pés, também os poemas de Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica). Aparece também em outros textos da autora, como em Escritos  da Inglaterra  (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Escritos no Rio (São Paulo-Rio de Janeiro, Brasiliense-Ed. da UFRJ, 1993).

[77] Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H. (1964) 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1974, p. 217.

[78] Clarice Lispector, A Hora da Estrela  (1977) 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1978.

[79] Benedito Nunes, O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1989.

[80] Clarice Lispector, ob. cit., p. 28.

[81] Clarice Lispector, ob. cit., p. 32.

[82] Clarice Lispector, ob. cit., p. 24.

[83] Tais escritoras têm sido privilegiadas pela crítica, ao lado de – apenas para citar alguns exemplos - Nélida Piñon, Zulmira Ribeiro Tavares, Rachel Jardim. Dentre as poetas, Hilda Hilst e Orides Fontella. E dentre as mais jovens, Ana Miranda e Marilene Felinto. Além de trabalhos acadêmicos e livros que têm como assunto a leitura analítica e crítica da obra de cada escritora, têm sido publicados volumes de ensaios e artigos referentes a várias escritoras.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Aparecido Raimundo de Souza (As Eternas Bagagens)

(Recontado de uma mensagem recebida)

QUANDO A NOSSA vida começa, temos apenas uma pequena sacolinha de mão. Na medida em que os anos vão passando, a bagagem vai aumentando, aumentando... Indefinidamente...

Por conta disso, somos obrigados a deixar de lado a sacolinha e arranjar uma mochila, por exemplo, um pouco mais robusta. Que caibam mais tralhas. Os anos seguem passando, e com eles, a tendência desta bagulhada recolhida é crescer de tamanho, de intensidade e volume. Num piscar de olhos, se tornar uma torre de babel.

Geralmente isto ocorre porque existem muitas coisas que vamos catamos pelas diversas sendas que percorremos. Chega num determinado ponto da jornada, o peso da bagagem começa a ficar pesada, a ponto de fazer doer as costas, as pernas e, no mesmo norte, a atingir as raias do insuportável.

Nesta hora, precisamos parar. Estancar os passos, pensar, repensar, meditar e, depois de tudo, escolher: voltar atrás, ou abortar os passos seguintes e ficar à espera que alguma alma caridosa nos ajude. Ou seguir em frente, suportando, sozinho, o peso do fardo que nos foi imposto pelo destino, pelas adversidades da vida e o pior de todos aquele causado pela inconsequência de nossa insana imbecilidade de recolher e guardar velhas quinquilharias imprestáveis.

Todos nós, seres humanos, sem exceção, juntamos coisas de que não precisamos. Colecionamos porcarias que nunca faremos uso. Todavia, há, em contrapartida, outra alternativa: a do desapego. Isto quer dizer o seguinte. Abrir a mala e jogar fora o que julgar não ser essencial. Mas, nesta altura, pelo andar da carruagem, um outro problema vem à baila. O que dispensar a velha lata de lixo? O que seria válido largar de lado e o que não seria? É neste momento angustioso, que surge a dúvida cruel. A mais difícil de todas. O que deixar de vez grosso modo, abandonado definitivamente pelas calçadas?!

O Amor? A Amizade? Amor ou Amizade? Os dois?

Momentos bons, coisas más, lembranças inesquecíveis? Difícil escolha. Meu Deus! Espere... Existe algo mais pesado que pode e deve ser largado para sempre: a raiva. A raiva é como uma pedra enorme que obstrui. Tem a incompreensão que apavora; o medo que desalenta; o pessimismo que entristece; a fúria que aflora de forma maligna, como também a discórdia e a insegurança que, a semelhança dos demais, deixam na alma desalentada marcas indeléveis... Para sempre…

Neste momento, em linha paralela, surgem as lutas. Primeiro a do desânimo que pinta do nada e puxa o coração na ânsia de prendê-lo dentro da mala.

Tem inicio, pois, uma peleja insana, quase irreal, para não nos deixarmos ser vencidos. De repente, eis que entra em cena o Sorriso. Bonito, largo, aberto, atraente, bem apessoado, enlevado numa paz tão imensa que parece mudar o quadro desolador.

De mãos dadas com ele, de roldão, vem a Felicidade. A Felicidade por sua vez traz a Paciência, e, então, por alguns momentos, a gente se sente envolto numa onda gigantesca de tranquilidade indescritível.

Buscamos, às carreiras, o restante das coisas dentro da mala repleta: E se nos deparamos com a Força, com a Coragem, com a Responsabilidade, com a Tolerância, e com o Bom Humor.

Pronto. Problema resolvido. Não há mais nada a ser retirado de dentro da mala. Pois bem! E agora? Pinta o inverso. O que guardar novamente para seguir a viagem em direção ao amanhã?!

Enquanto a gente não se decide, ficamos a olhar ao redor e espiar o futuro. O futuro é longo. Mas igualmente incerto, escuro, solitário, vazio, oco sem nada para se pegar, como a mente conturbada, que não deixa nosso anjo do bem pensar direito: pelo menos no sentido de se saber o que realmente jogar de volta dentro da mala, tranca-la a sete chaves e se pôr, ato contínuo, em marcha.

E uma vez mais na estrada, seguir em frente, cabeça erguida, confiante, dono de nossa vida, do nosso nariz. Temos que seguir, bem sabemos, sem olhar para trás, sem medo de, num leve tropeçar nos passos, metros à frente, voltarmos a cair no mais estúpido dos buracos. O da nossa própria desgraça anunciada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 9


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Mavutsinim

MAVUTSINIM - O PRIMEIRO HOMEM

No principio existia apenas Mavutsinim, que vivia sozinho na região do Morená. Não tendo família nem parentes, possuía apenas para si o paraíso inteiro. Um dia sentiu-se muito, muito só. Usou então de seus poderes sobrenaturais, transformando uma concha da lagoa em uma linda mulher e casou-se com ela. Tempos depois, nasceu seu filho. Mavutsinim, sem nada explicar, levou a criança à mata, de onde não mais retornaram. A mãe, desconsolada, voltou para a lagoa, transformando-se novamente em concha. Apesar de ninguém haver visto a criança, os índios acreditam que do filho de Mavutsinim tenham se originado todos os povos indígenas. Foi também Mavutsinim que criou de um tronco de árvore a mãe dos gêmeos Sol (Kuát) e Lua ( Iaê,) responsáveis por vários acontecimentos importantes na vida dos Xinguanos, antes de se tomarem astros.

MAVUTSINIM  E O XINGU - A FORMAÇÃO DAS TRIBOS


Foi Mavutsinim quem tudo criou; fez as primeiras panelas de barro e as primeiras armas; a borduna, o arco preto, o arco branco e a espingarda. Tomando quatro pedaços de tronco, resolveu crias as tribos Kamayurá, Kuikuro, Waurá e Txukahamãe. Cada uma delas escolheu uma arma, ficando a tribo Waurá com a panela de barro. Mavutsinim pediu à Kamayurá que tomasse a espingarda, mas esta preferiu o arco preto. Os Kuikuros ficaram com o arco branco e os Txukahamães preferiram a borduna. A espingarda sobrou para os homens brancos. A população aumentou em demasia e Mavutsinim resolveu separar os grupos. Mandou que os Txukahamães fossem para bem longe, pois eram muito bravos. Os homens foram para as cidades, bem distantes das aldeias, pois tinham muitas doenças e com as armas de fogo viviam a ameaçar a vida dos outros grupos. Desta forma, as tribos puderam viver em paz.

MAVUTSINIM - O PRIMEIRO KUARUP, A FESTA DOS MORTOS

Mavutsinim, o grande pajé, desejava fazer com que os mortos revivessem e voltassem ao convívio de seus familiares. Cortou dois troncos e deu-lhes a forma de um homem e de uma mulher, pintando-os e adornando-os com colares, penachos e braçadeiras de plumas. Cravou-os no centro da aldeia. Preparou então uma festa e distribuiu alimentos a todos os índios, para que esta não fosse interrompida. Pediu aos membros da tribo que cobrissem seus corpos com uma pintura que expressasse apenas alegria, pois aquela seria uma cerimônia em que, ao som do canto dos maracá-êp, os mortos iriam reviver: os Kuarups criariam vida. No outro dia a festa continuava; os índios deveriam cantar e dançar, embora proibidos pelos pajé de olharem para os troncos. Aguardariam de olhos cerrados a grande transformação. Naquela mesma noite, as toras começaram a mover-se, tentando sair das covas onde foram colocadas. Ao amanhecer já eram metade humanos, modificando-se constantemente. Mavutsinim pediu então aos índios que se aproximassem dos Kuarups sem parar de festejar, cantando, rindo e dançando. Apenas os que haviam passado a noite com mulheres não poderiam se integrar à cerimônia, permanecendo afastados do local. Um destes, porém, com irresistível curiosidade, desobedeceu às ordens do pajé e aproximou-se, quebrando o encanto do ritual. E os Kuarups voltaram à sua forma original de troncos. Contrariado, Mavutsinim declarou que, a partir daquele instante, os mortos não mais reviveriam no ritual do Kuarup! Haveria somente a festa. Ordenou que os troncos fossem retirados da terra e lançados ao findo das águas, onde permaneceriam para sempre.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Helena Sacadura Cabral (O que serei eu? Afrolatino, Afrotuga ou AfroLemos)

Desde que os americanos se lembraram de começar a chamar aos pretos 'afro-americanos', com vista a acabar com as raças por via gramatical, isto tem sido fartamente empregado!

As criadas dos anos 70 passaram a 'empregadas domésticas' e preparam-se agora para receber a menção de 'auxiliares de apoio doméstico' .

De igual modo, extinguiram-se nas escolas os 'contínuos' que passaram todos a 'auxiliares da ação educativa'.

Os vendedores de medicamentos, com alguma presunção, tratam-se por 'delegados de informação médica'.

E pelo mesmo processo transmutaram-se os caixeiros-viajantes em 'técnicos de vendas '.

O aborto eufemizou-se em 'interrupção voluntária da gravidez';

Os gangs étnicos são 'grupos de jovens'

Os operários fizeram-se de repente 'colaboradores';

As fábricas, essas, vistas de dentro são 'unidades produtivas' e vistos de estrangeiros são 'centros de decisão nacionais'.

O analfabetismo desapareceu da crosta portuguesa, cedendo o passo à 'iliteracia' galopante.

Desapareceram dos comboios as 1.ª e 2.ª classes, para não ferir a susceptibilidade social das massas hierarquizadas, mas por imperscrutáveis necessidades de tesouraria continuam a cobrar-se preços distintos nas classes 'Conforto' e 'Turística'.

A Ágata, rainha do pimba, cantava chorosa: «Sou mãe solteira...» ; agora, se quiser acompanhar os novos tempos, deve alterar a letra da pungente melodia: «Tenho uma família monoparental...» - eis o novo verso da cançoneta, se quiser fazer jus à modernidade em voga.

Aquietadas pela televisão, já se não veem por aí aos pinotes crianças irrequietas e «terroristas»; diz-se modernamente que têm um 'comportamento disfuncional hiperativo'

Do mesmo modo, e para felicidade dos 'encarregados de educação' , os brilhantes programas escolares extinguiram os alunos cabuladores; tais estudantes serão, quando muito, 'crianças de desenvolvimento instável'.

Ainda há cegos, infelizmente. Mas como a palavra fosse considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado 'invisual'. (O termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos - mas o 'politicamente correto' marimba-se para as regras gramaticais...)

Para compor o ramalhete e se darem ares, as pessoas cultas da praça desbocam-se em 'implementações', 'posturas pró-ativas', 'políticas fraturantes' e outros barbarismos da linguagem.

E assim linguajamos o Português, vagueando perdidos entre a «correção política» e o novo-riquismo linguístico.

Estamos lixados com este 'novo português'; não admira que o pessoal tenha cada vez mais esgotamentos e stress. Já não se diz o que se pensa, tem de se pensar o que se diz de forma 'politicamente correta'.

E falta ainda esclarecer que os tradicionais "anões" estão em vias de passar a "cidadãos verticalmente desfavorecidos"...

Os idiotas e imbecis passam a designar-se por "indivíduos com atitude não vinculativa"

Os pretos passaram a ser pessoas de cor.

O mongolismo passou a designar-se síndrome do cromossomo 21.

Os gordos e os magros passaram a ser pessoas com disfunção alimentar.

Os mentirosos passam a ser "pessoas com muita imaginação"

Os que fazem desfalques nas empresas e são descobertos são "pessoas com grande visão empresarial mas que estão rodeados de invejosos"

Para autarquias e políticos, afirmar que "eu tenho impunidade judicial", foi substituído por "estar de consciência tranquila".

O conceito de corrupção organizada foi substituído pela palavra "sistema".

Difícil, dramático, desastroso, congestionado, problemático, etc., passou a ser sinônimo de complicado. 
 
Fonte:
http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/1003840.html, 24 ago 2013.