terça-feira, 27 de maio de 2014

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 4

Seus Olhos

Oh! rouvre tes grands yeux, dont la paupiére tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ensemble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tu fermes ton coeur.
- Turquety


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, - mais doce que o nauta
De noite cantando, - mais doce que a flauta
Quebrando a solidão.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; - causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.

Assim lindo infante, que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa - a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co’um véu.

Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram sem causa
Um pranto sem dor.

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia.
Com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.

Tristeza

Que leda noite! - Este ar embalsamado,
Este silêncio harmônico da terra
Que sereno prazer n’alma cansada
Não espreme, não filtra, não difunde?

A brisa lá sussurra na folhagem
D’espessas matas, d’árvores robustas,
Que velam sempre e sós, que a Deus elevam
Misterioso coro, que do Bardo
A crença quase morta inda alimenta.

É esta a hora mágica de encantos,
Hora d’inspirações dos céus descidas,
Que em delírio de amor aos céus remontam.
Aqui da vida as lástimas infindas,
Do mirrado egoísmo a voz ruidosa
Não chegam; nem soluços, risos, festas,
- Hilaridade vã de turba incauta,
Néscia de ruim futuro; ou queixa amarga
De decrépito velho, enfermo, exangue,
Nem do mancebo os ais doidos, preso
Ao leito do sofrer na flor da vida.

Aqui reina o silêncio, o religioso,
Morno sossego, que povoa as ruínas,
E o mausoléu soberbo, carcomido,
E o templo majestoso, em cuja nave
Suspira ainda a nota maviosa,
O derradeiro arfar d’órgão solene.

Em puro céu a lua resplandece,
Melancólica e pura, semelhando
Gentil viúva que pranteia o extinto,
O belo esposo amado, e vem de noite,
Vivendo pelo amor, mau grado a morte,
Ferventes orações chorar sobre ele.

Eu amo o céu assim, sem uma estrela,
Azul sem mancha, - a lua equilibrada
Num céu de nuvens, e o frescor da tarde,
E o silêncio da noite adormecida,
Que imagens vagas de prazer desenha.

Amo tudo o que dá no peito e n’alma
Tréguas ao recordar, tréguas ao pranto,
À v’emência da dor, à pertinácia
Tenaz e acerba de cruéis lembranças;
Amo estar só com Deus, porque nos homens
Achar não pude amor, nem pude ao menos
Sinal de compaixão achar entre eles.

Menti - um inda achei; mas este em ócio
Feliz descansa agora, enquanto aos ventos
E ao cru furor das verde-negras ondas
Da minha vida a barca aventureira
Insano confiei; em céu diverso
Luzem com luz diversa estrelas d’ambos.

Ai! triste, que houve tempo em que eu julgava
As duas uma só, - c’o mesmo brilho
Uma e outra nos céus meigas brilhavam!
Hoje cintila a dele, enquanto a minha
Entre nuvens, sem luz, se perde agora.

Meu Deus, foi bom assim! No imenso pego
Mais uma gota d’amargor que importa?
Que importa o fel na taça do absinto,
Ou uma dor de mais onde outras reinam?

O Trovador

Ele cantava tudo o que merece de ser cantado;
o que há na terra de grande e de santo - o amor e a virtude.

Numa terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lira sua inocente
Só cantava o seu amor.

Nenhum sarau se acabava
Sem a Lira de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguém ouvira assim.

E quer donzela, quer dona,
Que sentira comoção
Pular-lhe n’alma, escutando
Do Trovador a canção;
De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lira amante pousou.

E o Trovador conheceu
Que era traído - por fim;
Pôs-se a andar, e só se ouvia
Nos seus lábios: ai de mim!

Enlutou de negro fumo
A rosa de seu amor,
Que meia oculta se via
No gorro do Trovador;
Como virgem bela, morta
Da idade na linda flor,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.

No meio do seu caminho
Gentil donzela encontrou:
Canta - disse; e as cordas d’ouro
Vibrando, o triste cantou.

“Teu rosto engraçado e belo
“Tem a lindeza da flor;
“Mas é risonho o teu rosto:.
“Não tens de sentir amor!

“Mas tão bem por esse dia
“Que viverás, como a flor,
“Mimosa, engraçada e bela,
“Não tens de sentir amor!

“Oh! não queiras, por Deus, homem que tenha
“Tingida a larga testa de palor;
“Sente fundo a paixão, - e tu no mundo
“Não tens de sentir amor!

“Sorriso jovial te enfeita os lábios,
“Nas faces de jasmim tens rósea cor;
“Fundo amor não se ri, não é corado...
“Não tens de sentir amor;
“Mas se queres amar, eu te aconselho,
“Que não guerreiro, escolhe um trovador,
“Que não tem um punhal, quando é traído,
“Que vingue o seu amor.”

Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lira sua, tremendo,
Sem cordas d’ouro ficou.

Mais além no seu caminho
Donzela garbosa encontrou:
Canta - disse: e argênteas cordas
Pulsando, o triste cantou.

“Aos homens da mulher enganam sempre
“O sorriso, o amor;
“É este breve, como é breve aquele
“Sorriso enganador.

“Teu peito por amor, Donzela, suspira,
“Que é de jovens amar a formosura;
“Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
“Dos lindos lábios seus cospe a mentira!

“Já frenético amor cantei na lira,
“Delícias já sorvi num seu sorriso,
“Já venturas fruí do paraíso,
“Em terna voz de amor, que era mentira!

“O amor é como a aragem que murmura
“Da tarde no cair - pela folhagem;
“Não volta o mesmo amor à formosura
“Bem como nunca volta a mesma - aragem.

“Não queiras amar, não; pois que a’sperança
“Se arroja além do amor por largo espaço.
“Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
“Tens longa espada cintilante d’aço.

“Tens a fina armadura de Milão,
“Tens luzente e brilhante capacete,
“Tens adaga e punhal e bracelete
“E, qual lúcido espelho, o morrião.

“Tens fogoso corcel todo arreado,
“Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
“Tens duelos, tens justas, tens torneios,
“Que os fracos corações de medo cerro;
“‘tens pajens, tens valetes e escudeiros
“E a marcha afoita, apercebida em guerra
“Do luzido esquadrão de mil guerreiros.

“Oh! não queiras amar! - Como entre a neve
“O gigante vulcão borbulha e ferve
“E sulfúrea chama pelos ares lança,
“Que após o seu cair torna-se fria;
“Assim tu acharás petrificada,
“Bem como a lava ardente do vulcão,
“A lava que teu peito consumia
“No peito da mulher - ou cinza ou nada -
“Não frio, mas gelado o coração!”

E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seu fado
A lastimar começou.

“Que triste que é neste mundo
“O fado dum Trovador! ,
“Que triste que é! - bem que tenha ,
“Sua Lira e seu amor,
“Quando em festejos descanta,
“Rasgado o peito com dor,
“Mimoso tem de cantar
“Na sua Lira - o amor!

“Como a um servo vil ordena
“Um orgulhoso Senhor,
“Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
“Quero descantes de amor!

“Diz-lhe o guerreiro, que apenas
“Lidou em justas de amor:
“- Minha dama quer ouvir-te,
“Canta, truão trovador! -

“Manda a mulher que nos deixa
“De beijos murchada flor:
“- Canta, truão, quero ouvir-te,
“Um terno canto de amor!

“Mas se a mulher, que ele adora
“Atraiçoa o seu amor;
“Embalde busca a seu lado
“Um punhal - o Trovador!

Se escuta palavras dela, -
“Que a outros juram amor;
“Embalde busca a seu lado
“Um punhal - o Trovador!

“Se vê luzir de alguns lábios
“Um sorriso mofador;
“Embalde busca a seu lado
“Um punhal - o Trovador!

“Que triste que é neste mundo
“O fado dum Trovador!
“Pesar lhe dá sua Lira,
“Dá-lhe pesar seu amor!”

E o Trovador neste ponto
A corda extrema arrancou;
E num marco do caminho
A Lira sua quebrou:
Ninguém mais a voz sentida
Do Trovador escutou!

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo I

Conto em 7 capítulos

I

Havia representação no Ginásio. A peça da moda era então a célebre Dama das camélias. A casa estava cheia. No fim do quarto ato começou a chover um pouco; do meio do quinto ato em diante, a chuva redobrou de violência.

Quando acabou o espetáculo, cada família entrou no seu carro; as poucas que não tinham esperavam uma estiada, e, mediante os guarda-chuvas, lá saíram com as saias arregaçadas.

.............. aos olhos dando,
O que às mãos cobiçosas vão negando.


Os homens abriam os seus guarda-chuvas; outros chamavam tílburis; e pouco a pouco se foi despejando o saguão, até que só ficaram dois rapazes, um dos quais abotoara até o pescoço o paletó, e esperava maior estiada para sair, porque além de não ter guarda-chuva, não via nenhum tílburi no horizonte.

O outro também abotoara o paletó, mas tinha guarda-chuva; não parecia, entretanto, disposto a abri-lo. Olhava de esguelha para o primeiro, que fumava tranquilamente um charuto.

Já o porteiro havia fechado as duas portas laterais e ia fazer o mesmo à porta central, quando o rapaz do guarda-chuva dirigiu ao outro estas palavras: — Para que lado vai? O interpelado compreendeu que o companheiro lhe ia oferecer abrigo e respondeu, com palavras de agradecimento, que morava na Glória.

— É muito longe, disse ele, para aceitar o abrigo que naturalmente me quer oferecer. Eu esperarei aqui um tílburi.

— Mas a porta vai fechar-se, observou o outro.

— Não importa, esperarei do lado de fora.

— Não é possível, insistiu o primeiro; a chuva ainda está forte e pode aumentar mais. Não lhe ofereço abrigo até casa porque moro na Prainha, que é justamente do lado oposto; mas posso cobri-lo até ao Rocio, onde encontraremos um tílburi.

— É verdade, respondeu o rapaz que não tinha guarda-chuva; não me havia ocorrido isto, aceito com prazer.

Saíram os dois rapazes e foram até ao Rocio. Nem sombra de tílburi ou caleça.

— Não admira, disse o rapaz do guarda-chuva; foram todos com gente do teatro. Daqui a pouco haverá algum de volta...

— Mas eu não quisera dar-lhe o incômodo de o reter mais tempo aqui à chuva.

— Cinco ou dez minutos, talvez; esperaremos.

A chuva veio contrariar estes bons desejos do rapaz, caindo com furor. Mas o desejo de servir tem mil maneiras de se manifestar. O rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente de escapar à chuva e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão lhes ficasse. O convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de um desconhecido. Antes de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva deitou um rápido olhar ao seu companheiro, espécie de exame prévio da condição social da pessoa. Parece que a achou boa, porque aceitou o convite.

— É levar muito longe a sua bondade, disse ele, mas eu não posso deixar de abusar dela; a noite está inclemente.

— Eu também costumo esquecer o guarda-chuva, e amanhã estarei nas suas mesmas circunstâncias.

Foram para o hotel e daí a pouco tinham diante de si um excelente pedaço de rosbife frio, acompanhado de não menos excelente chá.

— Há de desculpar a minha curiosidade, disse o rapaz sem guarda-chuva; mas eu desejaria saber a quem devo a obsequiosidade com que sou tratado há vinte minutos.

— Não somos inteiramente desconhecidos, respondeu o outro; a sua memória é que é menos conservadora do que a minha.

— De onde me conhece? — Do colégio. Andamos juntos no colégio Rosa...

— Andei lá, é verdade, mas...

— Não se lembra do Oliveira? Aquele que trocava as réguas por laranjas? Aquele que desenhava com giz o retrato do mestre nas costas dos outros meninos? — Que me diz? É o senhor? — De carne e osso; eu mesmo. Acha-me mudado, não? — Oh! muito! — Não admira; eu era naquele tempo uma criança rechonchuda e vermelha; hoje como vê, estou quase tão magro como D. Quixote; e não foram trabalhos, porque eu não os tenho tido; nem desgostos, que eu ainda não os experimentei. O senhor, porém, é que não mudou; se não fosse esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele tempo.

— E todavia não me hão faltado desgostos, acudiu o outro; minha vida tem sido atribulada. A natureza tem destas coisas.

— Casou? — Não; e o senhor? — Também não.

A pouco e pouco começaram as confidências pessoais; cada um narrou aquilo que podia narrar, por maneira que, ao fim da ceia, pareciam tão íntimos como no tempo do colégio.

Sabemos destas revelações mútuas, que Oliveira era bacharel em direito, e começava a advogar com pouco êxito. Herdara alguma coisa da avó, última parenta que conservara até então, tendo-lhe morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo desejo de entrar na vida política e contava com a proteção de alguns amigos de seu pai, para ser eleito deputado à Assembléia Provincial fluminense.

Magalhães era o nome do outro; não herdara de seus pais dinheiro, nem amigos políticos.

Aos 16 anos, achou-se só no mundo; exercera vários empregos de caráter particular, até que conseguira obter uma nomeação para o Arsenal de Guerra, onde estava atualmente.

Confessou que esteve a ponto de enriquecer, casando com uma viúva rica; mas não revelou as causas que lhe impediram essa mudança de fortuna.

A chuva cessara de todo. Já uma parte do céu se havia descoberto deixando aparecer o rosto da lua cheia, cujos raios pálidos e frios brincavam nas pedras e nos telhados úmidos.

Saíram os nossos dois amigos.

Magalhães declarou que iria a pé.

— Não chove mais, disse ele; ou, pelo menos, nesta meia hora; vou a pé até à Glória.

— Pois bem, respondeu Oliveira; já lhe disse o número da minha casa e do meu escritório; apareça lá algumas vezes; folgarei de reatar as nossas relações da meninice.

— Também eu; até breve.

Despediram-se na esquina da Rua do Lavradio, e Oliveira enfiou pela de S. Jorge. Ambos foram pensando um no outro.

— Parece ser um excelente rapaz este Magalhães, dizia o jovem advogado consigo; no colégio, foi sempre um menino sério. Ainda o é agora, e até parece um pouco reservado, mas é natural porque sofreu.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

XI Encontro de Escritores e Artistas Indígenas

16 º Seminário FNLIJ Bartolomeu Campos de Queirós

Dia 3 de junho/2014 – Terça-feira: 
XI Encontro de Escritores e Artistas Indígenas
Literatura Indígena: A Bola da Vez

A cultura é a alma de um povo. Essa essência pode ser conhecida e reconhecida por diversos meios e manifestações. Para as tradições dos povos indígenas, todo movimento é circular, mas para que se movimente, assim como a bola em um jogo de futebol, precisa de agentes que embora estejam em posições diferentes, são responsáveis uns pelos outros. A literatura escrita pelos indígenas se movimenta no campo literário mostrando a diversidade cultural e a sabedoria dos povos indígenas, falando de uma ancestralidade atualizada, chamando a atenção do mundo para a preservação da diversidade biológica e da educação. A bola da vez é a necessidade de conhecimento que trará mudanças significativas para a qualidade de vida dos brasileiros. No jogo da vida todos são igualmente importantes: a bola precisa ser tocada.

09h – Ritual de abertura

10h – A magia Feminina na Literatura Indígena


Aurilene Tabajara – Escritora – O sabor do saber traduzido em palavras

Eliane Potiguara – Escritora – Mulheres que correm com suas guerreiras

Naná Martins – Escritora – Outros olhares femininos na literatura infantil
 
Mediação: Ninfa Parreiras – Escritora, Tradutora e Especialista em Literatura Infantil e Juvenil

14h – Literatura e leitura: Pontos e contrapontos

Marcelo Munduruku – Escritor – Literatura Indígena, Identidade dos Povos.

Olívio Jekupé – Escritor – O crescimento da literatura escrita pelos indígenas

Tiago Hakiy – Escritor – Poética da floresta para crianças

Mediação: Roni Wasiry Guara – Escritor e ilustrador

15h -– Literatura Indígena: a bola da vez

Ailton Krenak – Escritor – Uma farra da terra: literatura de invenções

Anna Claudia Ramos – Escritora – Jornadas literárias indígenas

Kaká Verá – Escritor – Literatura indígena e infância: o poder das fábulas ancestrais

Mediação: Cristino Wapichana – Escritor

16h30 – Encerramento – Lançamento coletivo de livros de autores indígenas.

LOCAL:Centro de Convenções Sul América
Av. Paulo de Frontin, 1 – Cidade Nova
Centro – Rio de Janeiro

Fonte:
Colaboração de Eliane Potiguara

domingo, 18 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 11


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Kuat e Iaê - A Conquista do dia

No princípio só havia a noite.

Os irmãos Kuát e Iaê - o Sol e a Lua - já haviam nascido, mas não sabiam como conquistar o dia. Este pertencia a Urubutsim (Urubu - rei), o chefe dos pássaros.

Certo dia os irmãos elaboraram um plano para capturá-lo. Construíram um boneco de palha em forma de uma anta, onde depositaram detritos para a criação de algumas larvas. Conforme seu pedido, as moscas voaram até as aves, anunciando o grande banquete que havia por lá, levando também a elas um pouco daquelas larvas, seu alimento preferido, para convencê-las. E tudo ocorreu conforme Kuát e Iaê haviam previsto.

Ao notarem a chegada de Urubutsim, os irmãos agarraram-no pelos pés e o prenderam, exigindo que este lhes entregasse o dia em troca de sua liberdade.

O prisioneiro resistiu por muito tempo, mas acabou cedendo.

Solicitou então ao amigo Jacu que este se enfeitasse com penas de araras vermelhas, canitar e brincos, voasse à aldeia dos pássaros e trouxesse o que os irmãos queriam.

Pouco tempo depois, descia o Jacu com o dia, deixando atrás de si um magnífico rastro de luz, que aos poucos tudo iluminou.

O chefe dos pássaros foi libertado e desde então, pela manhã, surge radiante o dia e à tarde vai se esvaindo, até o anoitecer.

Fonte:
http://www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (O escritor e as cenas: mostrar e não dizer)

   
Abordaremos hoje o grande segredo da criação literária: narrar. O leitor quer ler boas narrativas, boas histórias. Cuide, porém, a diferença entre narrar e contar. É a diferença entre a narrativa e o resumo.

    Fazer literatura não é amontoar fatos, resumos de acontecimentos. É preciso narrar cada fato, individualizando-os e envolvendo o leitor. É importante, também, que o escritor mostre ao leitor o que está acontecendo em vez de dizer, contar.

    David Lodge, em A arte da ficção, tem uma distinção primorosa entre cena e sumário:

    “O Discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura de sem mostrar são as falas dos personagens, em que a linguagem espelha com precisão o acontecimento (uma vez que o acontecimento é linguístico)." Isso seria a cena.

    “A forma mais pura de se dizer é o resumo autoral [chamado aqui de sumário], em que a concisão e a abstração da linguagem do narrador apagam o caráter particular e individual dos personagens e suas ações. Um romance escrito do início ao fim na forma de sumário seria, portanto, quase ilegível. Mas o recurso tem seus usos: é capaz, por exemplo, de acelerar o ritmo de uma narrativa, fazendo-nos passar mais depressa por acontecimentos desinteressantes.”
 

    Imagina que você queira contar a história de um homem extremamente metódico que, por isso, perdeu sua mulher e seu filho. Você primeiro cria toda a história na sua cabeça ou num papel de rascunho, anota episódios e elementos de sua personalidade, de sua infância, faz uma lista das personagens com quem ele convive ou conviveu, pensa em seus atributos físicos, suas manias, etc. Você sem dúvidas tem elementos para um romance, mas irá escrever um conto de no máximo cinco páginas.

    A solução de um escritor iniciante seria simplesmente ir listando os fatos principais, um em cada parágrafo, e rapidamente pulando no tempo e nos informando que ele teve uma infância difícil, pois perdera a mãe muito cedo e foi criado em escola de padres, depois custou a casar, em dúvida entre o casamento ou a vida religiosa, adiante teve uma filha, embora quisesse muito ter tido um filho, depois a filha acabou morrendo, o que o causou muito sofrimento, mas logo a mulher engravidou de um menino que, apesar de ser muito diferente dele, cativou-o desde o primeiro choro. Bem, por aí vai. A essa sucessão de acontecimentos chamamos de sumários.

    Um escritor mais experiente, que sabe da importância de conquistar o leitor através de cenas, escolherá dois ou três episódios da vida desse homem para descrever com mais detalhes estes episódios, individualizando-os.

    Por exemplo, o escritor pode escolher o dia em que o menino chega na escola de padres e retira uma foto da falecida mãe; o dia do nascimento da filha e de como ele olha para o crucifixo na parede, lembrando do quão difícil foi escolher entre isso ou a vida religiosa e de quantas dúvidas tem se fez ou não a escolha certa; um diálogo entre o homem e um conhecido numa pracinha em que os filhos de ambos brincam, diálogo em que o outro brinca com o fato de o menino ser tão diferente do homem, trazendo à tona todas as dúvidas de nosso protagonista e todo o medo que ele tem de perder a criança, a quem tem tanto amor.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4053/o-escritor-e-as-cenas-mostrar-e-nao-dizer

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 3

Inocência

Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.
Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.
Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabe que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.
Corre a vida pressurosa,
como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.
Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.

Pedido

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.
De mim bem longe
Teu pensamento!!
Teu pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.

O Desengano

JÁ VIGÍLIAS passei namorado,
Doces horas d’insônia passei,
Já meus olhos, d’amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.
Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.
Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.
E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou - não mais que um dia
Fingimento e mentira!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?
Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.
Quão insensato fui! - busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, - não achei!
E da esp’rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!
E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu’és feliz.
Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; - mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!

Minha Vida e meus Amores

QUANDO, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
- Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce.
Quanto é bela esta vida assim vivida! -
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
A beira-mar colhida!
Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: - amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; - julguei-o ao menos.
Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
- Eu morrera feliz, dizia eu d’alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.
A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui como ela,
Inconstante vagando em mar de amores.
O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; - somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi’nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! - Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Um dia, em qu’eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
- Eu te amo? - Ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos. . . - mas não posso crê-la.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: - Sonhei contigo! -
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei - talvez! - e já não pude crê-la.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela. ..
Amar-me! - Eu que sou?
Meus olhos enxergam, em quanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
Mau grado meu, crer não posso, .
Mau grado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?
Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.
Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.

Recordação

Nessun maggior dolore...
- Dante

 
Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada, .
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor piedade; - e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d’angústias que meu peito oprime:
Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, - nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
Porque de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. - Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

Machado de Assis (Ernesto de Tal)

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta para cavar um abismo entre duas pessoas.

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo.

Era filha de um coronel.

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

E é agora, em 1862, estando ele tranqüilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

Poupo às pessoas que me lêem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

— Nunca mais a viste? — Nunca.

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande? — Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

— À toa? repetiu Duarte rindo.

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

— Por quê? — A turvação de ontem...

— Que turvação? — Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado.

Presentemente...

Daí a dias, estando com a prima — a intermediária antiga das notícias —, contou-lhe o caso do Ginásio.

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

— Em todo caso, não é a mesma.

— Por quê? Está muito diferente? — Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

— Em Jaguarão? — Não; depois da morte do marido...

— Enviuvou? — Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas.

Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem.

Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a incriminemos por um pecado tão comum.

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

— Querem ver que você está querendo recordar-se... Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento.

Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças? — As mesmas.

— Não mudou nada? — Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

— Usa suíças? — Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominouse e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles: — O Rio Grande é bonito? — Muito: gosto muito de Porto Alegre.

— Parece que há muito frio? — Muito.

E depois, ela: — Tem tido bons cantores por cá? — Temos tido.

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-seia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los.

Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela.

Duas pessoas que se vêem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro.

Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.

“ pensou ele.

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco.

Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas.

Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

— Vejo que fiz mal em falar a você, redarguiu ele rindo.

— Por quê? — Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a frequentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

“Nem parece a mesma,” disse ele consigo.

Outra coisa que ele lhe notou — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar.

Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal.

Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar? — Nada.

— Então...

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

— Pois só mudada; mas está mudada.

— Mudada...

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha os mesmos característicos da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 4, final


OS ESTUDOS FEMINISTAS

Pode-se afirmar que os estudos da mulher na literatura brasileira surgem, no Brasil, como consequência das questões até aqui anunciadas. Se há textos esquecidos, há necessidade de recuperá-los, ressuscitando-os das páginas manuscritas, ou de primeiras edições escondidas nas estantes, ou de reedições esgotadas. Trata-se, neste primeiro caso, de trabalho de resgate.

Com tal intenção, foram fundadas editoras especializadas em textos escritos por mulheres, na maioria com propósitos de divulgação de trabalhos em várias áreas de conhecimento afins[84], ligadas ou não diretamente a agências de fomento e a grupos de pesquisa específicos sobre mulheres.[85]

Pesquisas de âmbito regional são incentivadas, visando o levantamento de dados referentes a escritoras de várias cidades ou Estados do Brasil, em estudos que se fazem necessários, tendo em vista a enorme extensão territorial do país e a diversidade de culturas aí existentes. Pressupõem a pesquisa a periódicos de época, a livros, a catálogos e a demais fontes que possam permitir um mapeamento da produção literária e jornalística de cada região, bem como das trocas culturais, mediante estudos de recepção. O levantamento, relativamente recente, tem contribuído para que se determine um corpus básico, para que, então, se possa proceder às etapas subsequentes de análise crítica e interpretativa das obras, acompanhadas de um sistemático balanço das premissas metodológicas mais adequadas ao objeto em questão.

Como produto desse trabalho, têm surgido reedições importantes, como as de escritoras do século XIX, tanto as que se dedicaram ao romance[86], como à poesia[87], à crônica, ao teatro, ao jornalismo. Acrescente-se ainda a reedição de revistas do século XIX e do século XX, algumas, em edição fac-similar[88], bem como o estudo específico de algumas dessas revistas[89]. E o levantamento, por vezes acompanhado de análise, de textos de gêneros discursivos específicos, até então considerados ‘menores’, como os livros de memórias de mulheres.[90] Também informações úteis aparecem sob a forma de verbetes referentes a, por exemplo, mulheres ensaístas.[91]

Num segundo bloco, situam-se os estudos que tentam reler os textos escritos por mulheres – e por homens, com o objetivo de praticar um novo modo de ler, de cunho na maioria das vezes feminista. Ainda que, dentro dessa linha, possam ser assumidas diferentes posturas teóricas, metodológicas e críticas, tais estudos têm mostrado, de modo geral, uma dupla perspectiva: ora a adoção de uma linhagem anglo-saxônica, com as ramificações norte-americanas, na leitura de tradição marxista, de caráter mais social e político do gender, nas suas relações com a antropologia cultural; ora a adoção de uma perspectiva francesa, mais alerta a questões de ordem psicanalítica, privilegiando a questão da diferença, valendo-se, em algumas vertentes, das relações com a linguística e a semiótica.[92]

Num terceiro bloco, e já como consequência dos dois anteriores, há um linha de conhecimento referente ainda aos estudos literários da mulher na literatura que se move com base no produto concreto dos resultados de leituras específicas desenvolvidas em torno de obras de escritoras brasileiras. E que procura, a partir de tais resultados, com base nas constantes e variantes de construção de tais obras literárias e recusando sistemas fechados, tecer considerações a respeito das respectivas condições contextuais de produção cultural.

O conjunto de tal produção científica evidencia que uma metodologia de história, teoria e crítica de nossa literatura feminina brasileira vem, paulatinamente, sendo montada por nossos estudiosos e estudiosas de literatura, ou de modo individual, ou, mais frequentemente, de modo coletivo, sob a forma de grupos de pesquisa.

Têm exercido papel importante no sentido de desenvolver tais estudos, os vários cursos de Pós-Graduação sobre o assunto e Núcleos de Estudos da Mulher implementados em várias Universidades brasileiras, a partir sobretudo dos anos 80, que geraram uma produção científica de qualidade, divulgada ora em volumes de autoria individual, ora de autoria coletiva.

É o caso do Grupo de Trabalho A mulher na literatura, filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), que, desde sua fundação, em 1987, conta com a adesão de quase duzentas pesquisadoras, e que vem publicando sistematicamente os resultados dos trabalhos, sob a forma de boletins periódicos e coletâneas de artigos e ensaios.[93] O mesmo grupo vem promovendo também, desde 1988, Seminários Nacionais, bienais, realizados em anos alternados aos do GT A mulher na literatura.

Num balanço crítico datado de início dos anos 90, Heloisa Buarque de Hollanda reconhecia três linhas mestras de estudos no grupo de trabalho A mulher na literatura, que denominou de: literatura e feminismo, literatura e feminino, literatura e mulher.[94] A primeira vertente, reconhece como sendo a de caráter participante, “absorvendo desde a pesquisa no sentido da recuperação da história silenciada da produção feminina até a análise dos paradigmas patriarcais e logocêntricos da literatura canônica”. A segunda, literatura e feminino, mais preocupada com a “identificação de uma escritura feminina”, de modelo francês, com uma inflexão marcadamente semiológica e/ou psicanalítica”. E a terceira, literatura e mulher, mais diretamente ligada ao trabalho de análise do papel da mulher na literatura (como autora, narradora, personagem), sem problematizar a questão das relações de gênero.

Tal produção científica tem sido publicada regularmente pelas equipes responsáveis por cada um desses eventos, em estudos que, apesar de estarem implicados entre si, distribuem-se, fundamentalmente, neste final dos anos 90, em três grandes blocos de reflexão, com alterações sutis, mas significativas, em relação aos grupos anteriores: a teoria e crítica feminista; a questão mais específica do cânone; as múltiplas implicações da categoria do gender.[95]

Nota-se, pois, nos estudos mais recentes, pela simples nomeação de cada linha de reflexão, uma preocupação mais acentuada em construir repertórios teóricos que possam examinar a prática da leitura mediante opções por um feminismo que continua sendo, por princípio, não canônico, e que se abre às múltiplas sugestões suscitadas pela categoria do gênero. Mais uma vez, a necessária desconstrução do nome…também de tais estudos: evitando a tradição da generalização de, simplesmente, estudos literários, o enfoque torna-se mais dirigido quando se detém na questão específica da literatura ligada aos estudos da mulher, e, posteriormente, transforma-se em estudos de gênero ao reforçar a interferência cultural na construção dos papéis sociais que se desenvolvem no âmbito das relações humanas entre homens e mulheres. Sob tal enfoque, o trabalho científico tem mostrado resultados substanciais, conforme comprovam os textos publicados na revista especializada na questão do gênero, intitulada Estudos Feministas[96], bem como a publicação de bibliografias mais gerais sobre o assunto.[97]

Também com objetivo de pesquisa, e, algumas vezes, com finalidades práticas de atendimento a um público amplo e diversificado, foram fundados vários núcleos de estudos da mulher ligados a várias instituições universitárias, com publicações próprias. E há também organizações independentes que promovem debates e encontros específicos sobre a questão da mulher na realidade brasileira, com enfoques e metodologias de várias áreas de conhecimento e, quase sempre, de caráter interdisciplinar.

O estágio atual dos estudos até o momento desenvolvidos, sobretudo no que se refere ao questionamento de fundamentos básicos de metodologia de trabalho e à divulgação de textos literários esquecidos e de fontes primárias de pesquisa, mostra que a literatura feminina no Brasil se viabiliza como um campo fértil de investigação, que vem contribuindo para, mediante o diálogo interdisciplinar, estender os resultados de tal investigação ao âmbito mais geral das ciências humanas, aperfeiçoando a discussão de questões que envolvem o ser no campo mais geral da cultura brasileira. O ser e os nomes do ser.

* Esta exposição destinou-se a um público estrangeiro, o que motivou o seu caráter fundamentalmente informativo, patente na seleção de itens e de questões críticas aqui propostas.

NOTAS

[84] É o caso da editora Mulheres, dirigida por professoras de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Algumas dessas editoras mantêm vínculo institucional e são ligadas a Universidades de âmbito federal ou estadual; outras, são empresas particulares.

[85] Também com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas em torno da ‘mulher’, tem fundamental importância o trabalho desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas, com projetos implementados desde o final da década de 70: o primeiro “Projeto Mulher” da Fundação Carlos Chagas, subvencionado pela Fundação Ford, é de 1976; desde 1978 a Fundação vem mantendo concursos para dotação de pesquisa sobre a mulher brasileira e publicando os resultados. Neste sentido, é pioneira a publicação de Mulher Brasileira: Bibliografia Anotada, em dois volumes, em São Paulo, pela Fundação Carlos Chagas e editora Brasiliense: o primeiro volume, com dados bibliográficos referentes à produção da mulher nas áreas de História, Família, grupos Étnicos e Feminismo, em 1989; o segundo, com dados referentes às de Trabalho, Direito, Educação, Artes e Meios de Comunicação, em 1981. Os demais resultados de pesquisas dos concursos vêm sendo sistematicamente publicados pela Fundação.

[86] É o caso, por exemplo, da reedição do romance D. Narcisa de Villar: Legenda do tempo colonial, de 1859, escrito por Ana Luísa de Azevedo Castro, organizado por Zahidé L. Muzart (Florianópolis, Editora Mulheres, 1990).

[87] É o caso, por exemplo, do volume organizado por Luzilá Gonçalves Ferreira, Em busca de Thargélia: Poesias escritas por mulheres em Pernambuco no segundo oitocentismo (1870-1920), tomo I (Recife, FUNDARPE, 1991). Algumas dessas pesquisas têm site na internet, como a que enfoca as “escritoras cariocas”: nielm@openlink.com.br

[88] É o caso de, por exemplo, A Mensageira: Revista literária dedicada à mulher brasileira, publicada em São Paulo de 1897 a 1900 (ob. cit.).

[89] Eis alguns exemplos de revistas que vêm sendo examinadas: A Violeta (Yasmin Jamil Nadaf, Sob o signo de uma flor: Estudo da revista A Violeta, publicação do Grêmio Literário Júlia Lopes, 1916-1950. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1993); Única (por Sylvia Perlingeiro Paixão, “Mulheres em revista: a participação feminina no projeto modernista do Rio de Janeiro nos anos 20”, em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 421-440); Walkyrias (Ana Arruda Callado, “Uma Walkyria entra em cena em 1934”. Estudos Feministas: CIEC-ECO-UFRJ, v. 2,  n. 2, 1994, p. 345-355).

[90] É o caso, por exemplo, de: Maria José Motta Viana, Do sótão à vitrine: Memórias de mulheres. Belo Horizonte, editora UFMG, 1995.

[91] Heloísa Buarque de Hollanda e Lúcia N. Araújo, Ensaístas Brasileiras. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

[92] Entre publicações de caráter acadêmico sobre o assunto, discutindo as diferentes vertentes teóricas e com análise de textos de diferentes escritoras, cito, dentre várias, como exemplo, a revista Gragoatá: Revista do Instituto de Letras, em número especial sobre “Figurações do gênero e da identidade”: UFF, Niterói (RJ), n. 3, 2. semestre de 1997.

[93] Desde 1987, ano em que foi fundado o GT A mulher na literatura, filiado a ANPOLL, já foram publicados sete Boletins que trazem informações a respeito de tais pesquisas, com resumos de textos e textos na íntegra apresentados nos Encontros do GT. Também os grupos responsáveis pelos Seminários têm publicado os trabalhos apresentados nos vários eventos. A título de exemplo, cito uma das primeiras publicações: o volume organizado, entre outras, por Rita Terezinha Schmidt: Organon, n. 16, UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)-Instituto de Letras, 1989.

[94] Heloisa Buarque de Hollanda, “A historiografia feminista: algumas questões de fundo”. Em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 453-463. (Republicado, com algumas modificações, com o título “Mulher e literatura no Brasil: uma primeira abordagem”, em: Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 54-92.) Problematizando a questão mais geral da crítica feminista, da mesma autora é o texto “Introdução: Feminismo em tempos modernos”, em: Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 7-19. E também: Maria Odila Leite da Silva Dias, “Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças”. Estudos Feministas, CIEC-ECO-UFRJ, v. 2., n. 2, 1994, p. 373-382.

[95] Tais temas figuram no programa para o VIII Seminário Nacional Mulher e Literatura, a ser realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em setembro de 1999.

[96] A implementação e a consolidação de tais estudos no Brasil, em âmbito interdisciplinar, incluindo não só as várias sub-áreas dos estudos literários, mas as das ciências humanas em geral, ligadas a estudos de gênero, podem ser examinadas a partir dos 13 volumes já publicados da revista Estudos Feministas  (Rio de Janeiro, CIEC-ECO-UFRJ, no momento: Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ). A revista traz, desde 1992, artigos e ensaios, encartes em inglês, resenhas de livros nacionais e estrangeiros e informações sobre cursos, núcleos de estudos, eventos e publicações, no Brasil e no exterior.

[97] Ver: Yasmin Jamil Nadaf (org.), Catálogo de títulos sobre a mulher. Cuiabá (MT), UFMT, 1997, 2 v.; Cristina Bruschini, Danielle Ardaillon e Sandra G. Unbehaum, Tesauro para estudos de gênero e sobre mulheres. São Paulo, Fundação Carlos Chagas e Editora 34, 1998.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

sábado, 10 de maio de 2014

Mãe em Versos


TERESINKA PEREIRA
(Estados Unidos)

Mãe

       
A  mãe nunca tem
pena de si mesma.
Seu tempo é infinito
e cada instante de sonho
 é um retalho do céu.
====================

CAROLINA RAMOS
(Santos/SP)

Conselhos de Mãe


Meu filho, a vida é dura e fere... e nos magoa...
mas trata-a  com respeito e guarda a dignidade.
Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
não permitas que o mal altere o que é verdade!

Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho,
sem pressa de alcançá-lo e tendo-o sempre à vista!
Cada dia que passa é um dia mais risonho,
quando o amanhã promete as glórias da conquista!

“Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
Os caminhos, verás, se abrirão à medida
que  teu passo provar firmeza e, sem segredo,
revelar o sentido e o  Ideal da tua vida!

Não temas opressões nem quedas. Persevera!
Se achares que ao final o saldo não convence,
reage, continua... a vida tens à espera!
Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!
====================

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
(Guarapari/ES)

Mãe

(Minha mãe, para mim, é e sempre será o ‘Maior Amor Espiritual’ in (Caderno de Segredos).

Hoje desfilam aqui poetas de todos os cantos do Brasil que homenagearam as suas mães. Vamos começar pela encantadora SILVIAH CARVALHO (de Curitiba, no Paraná) que escreveu estas palavras simples, mas de significado profundo para a Autora de seus dias:

“... Mãe, nome semelhante ao amor,
um “erre” a mais, um “til” que sobrou,
hoje no seu dia, todos se levantam para uma homenagem;
mas poucos, na verdade, lhe direcionam o merecido valor, 
como o vento sibilando nas folhas em cálida  aragem...

Seu amor, Mãe, é universal – não existe nada igual.
Defende sua prole pondo em risco a própria vida,
ao tempo que nutre um sentimento diferente -  chega a ser magistral.
Nos seus braços nenhum filho deixa de ter guarida
e aquele carinho do fundo da alma –  único, especial.

Mãe de muitas mães – igualmente querida,
todo dia deveria ser seu, porque nos legou a vida...
E, junto, o respeito, a obediência, o amor e cuidado.
Para nós, seus filhos, o melhor tesouro guardado,
Não deveria, jamais, permanecer no tempo, esquecida.

Sua nobreza – vejo estampada em seu semblante,
sei que o seu amor é acima de tudo mais importante.
Não importa onde cada um de nós esteja como eu, agora, afastada, distante,
Mas sei - me sente aí, como se estivesse ao seu lado!

Ainda que por todos incompreendida,
Maltratada pela vida e também por quem gerou,
Seu coração grandioso o perdão sempre espalhou...
Ah, mãe, se não fosse por você, o que seria da nossa lida?

Deixo aqui, mãe amada, estas palavras simples, como uma canção,
da sua filha (e dos demais), ainda que não esteja ninguém sentado à sua volta.
Amor, mãe, nem sempre é se fazer presente – ou melhor é se sentir ausente, carente...
Vivendo esse agora nas batidas descompassadas do seu coração:
no fundo, mãezinha fica mais forte e pujante,  o calor da emoção!...”;

Esta poesia pode ser vista em “Recanto das letras” (www.silviah.net).
***

A baiana NEUZAMARIA KERNER também se faz presente e verseja:

“... Ao nascer
a mãe o recebe nos braços
e lhe é dito:
- Tome, é teu, mas cuidado que vôa!
A mãe abrirá os braços
o cobrirá com abraços
e suas asas crescerão.
O menino passarinho passará a pássaro adulto
e voará,
mesmo sem salvo conduto.
Pensará que é pássaro-gigante e
dono do mundo quer se tornar.
Continuará voando
aquém e além dos mares
sozinho ou em pares
e a mãe sempre o aguardando
sempre orando em sua solidão
sem saber se seu passarinho
voltará um dia, ou não”
(do livro “Fragmentos de Cristal” Neuzamaria Kerner).
***

“Optar por um filho é decidir em dado momento ter o seu coração caminhando fora do corpo para sempre”.
(Elisabeth Stone citada por David Cruz Vitória Espírito Santo, em seu livro Fragmentos – Crônicas e Sonetos).

**

Ser mãe
1
Quando todos te condenarem
quando ninguém te escutar,
ela te escuta e perdoa,
por ser mãe – é perdoar!

2

Quando todos te abandonarem
e ninguém te queira ver,
ela te segue e procura
pois ser mãe – é compreender!

3

Quando todos te negarem
um pão, um beijo, um olhar,
ela te ampara e acarinha
por ser mãe – sempre é se dar!

(JOSÉ GUILHERME DE ARAUJO JORGE, do Estado do Acre)
***

Mãe
A oração que eu rezo,
todos os dias,
ao acordar...

Suave
presença,
idílio constante,
no meu caminhar...

Mãe,
minha estrela guia,
a maior alegria
meu doce sonhar!...

Meu futuro,
meu agora,
minha luz brilhante no escuro,
meu anjo eterno, a me guiar

(APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA)
===========================

 
DINAIR LEITE
(Paranavaí/PR)

Trovas


Mamãe, através de um verso
agradeço a ti querida
e louvo ao Deus do Universo
pelo dom da minha vida!

Dia das Mães, eu, sozinha
aos pés da Virgem Maria,
choro a saudade mãezinha
mais forte em mim nesse dia

Da mãe tristonha no asilo
brota uma dor que esfacela...
Cuidou de dez e um pupilo
e os onze não cuidam dela
==========================

OLIVALDO JUNIOR
(Mogi Guaçu/SP)

Trovas


A mamãe que Deus me deu
faz de conta que eu não sei
que ela sempre percebeu
no seu filho um novo “rei”.

Um anjinho de fraldinha,
bem “arteiro” e “crianção”,
canta e dança na cozinha
quando a mãe faz macarrão.

A filhinha mais querida,
o filhinho mais amado,
ambos têm a luz da vida
no colinho abençoado.

==========================
TROVAS DIVERSAS

Com que suave ternura
tece a canária o seu ninho!
- Mãe é assim, dengosa e pura,
a nossa e a do passarinho...
A. A. DE ASSIS – Maringá /PR

Depois que, mãe tu partiste,
como uma Santa em seu véu,
o céu que eu via tão longe,
ficou mais perto, e mais céu...
ADELMAR TAVARES – Recife/PE

Mãe, por mais que eu me concentre
na importância do que faço,
não esqueço que o teu ventre
foi o meu primeiro espaço.
ALMERINDA LIPORAGE – Rio de Janeiro/RJ

Mãe, retrato de ternura,
de pura abnegação,
é a mais doce criatura
a quem Deus deu coração.
AMILTON MONTEIRO – S. José dos Campos/SP

Amor de mãe é semente
que germina em qualquer chão,
é feito só de ternura,
é feito só de perdão.
ANFRÍSIO LIMA – ES

Mãe de José, de Maria,
de Antonio, Pedro, de João ...
O nome próprio varia ...
Só não muda o coração.
ANÍBAL VITRAL MONTEIRO – SP

Mãe que traz uma criança
nas entranhas do seu ser,
carrega a própria esperança
no filho que vai nascer.
ANIS MURAD – RJ

Vejo-te, mãe, todo dia
que a tarde cai pra morrer
e que a voz da Ave-Maria
vem minha alma enternecer...
ARCHIMIMO LAPAGESSE – Florianópolis/SC

Mãe não precisa de rima.
Nome de tal esplendor,
diz tudo, para que exprima,
sozinho, um poema de amor!
BAPTISTA NUNES – Rio de Janeiro/RJ

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da virgem Maria:
- Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
BARRETO COUTINHO  – Limoeiro/PE

Mãe – presente do Senhor,
que a humanidade conduz
num barco cheio de amor,
singrando mares de luz!
BENEDITO CAMARGO MADEIRA – Pouso Alegre/MG

A Mãe, por ser indulgente,
tudo em seu coração cabe.
A mãe é aquilo que a gente
quer definir mas não sabe.
CLARINDO B. ARAÚJO – Natal/RN

Mãe não é só quem procria.
nos diz velho ditado.
Ser mãe é também quem cria
com amor um filho adotado.
CLAUDYRA DIAS DA ROCHA – Fortaleza/CE

Minha mãe! Quanta saudade
de quem deixou-me, na Terra,
lições de total bondade
e de paz em plena guerra...
CLEVANE PESSOA – Belo Horizonte/MG

Mãe! criatura querida,
santa heroina sois vós;
quando nos destes a vida,
destes o sangue por nós.
DÉCIO VALENTE – São Paulo/SP

Minha mãe tão delicada,
toda feita de carinho,
continua madrugada
no ocaso do meu caminho!
DELCY CANALLES – Porto Alegre/RS

Se "Mãe" não tem com que rime,
não desistas, trovador...
Troca a palavra sublime
pelo sinônimo "Amor"!
DOROTHY JANSSON MORETTI – Sorocaba/SP

Mãe! quisera eu me deitar
junto à parede, aos teus pés.
adormecer e sonhar,
sentindo os teus cafunés.
FRANCISCO GARCIA – Caicó/RN

Minha mãe, que orava aqui,
é nos céus que reza agora;
foi no meu sonho que a vi
aos pés de Nossa Senhora!
HARLEY CLOVIS STOCCHERO – Almirante Tamandaré/PR

A mãe é essência divina
que todo amor nela encerra;
é luz que a estrada ilumina
para os filhos nessa terra.
HORÁCIO FERREIRA PORTELLA – Piraquara/PR

Oh, minha mãe, em meus cantos,
num grato e eterno estribilho,
bendigo a Deus, que, entre tantos,
me escolheu para teu filho!
J. G. DE ARAÚJO JORGE – Tarauacá/Acre

Minha mãe verteu mais pranto
que a mãe de Nosso Senhor.
A Virgem chorou um Santo;
minha mãe - um pecador!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO – Rio de janeiro/RJ

A Mãe, somente, perdoa
o mal que um filho lhe faça,
embora o coração doa
dá-lhe um sorriso e o abraça!...
LACY JOSÉ RAYMUNDI – Garibaldi/RS

Pra quem é mãe não existe
bem de mais funda raiz,
que o de viver sempre triste,
mas ver seu filho feliz.
LILINHA FERNANDES – Rio de Janeiro/RJ

“Quem tiver filhos pequenos
por força há de cantar:
quantas vezes as mães cantam
com vontade de chorar.”
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH – Curitiba/PR

Dizes que és pobre ... E eu, coitado,
inveja tenho de ti ...
- Tens tua mãe a teu lado,
e a minha - eu nem conheci!
LUIZ OTÁVIO – Rio de Janeiro/RJ

Tendo ao seio o meu menino,
tudo em volta é luz, é brilho.
Nem sei mesmo onde eu termino
e onde começa o meu filho!
MAGDALENA LÉA BARBOSA CORREIA – Rio de Janeiro/RJ

As mães são divinas plantas
que deram flores, sementes...
Para Deus são todas santas,
com milagres diferentes ...
MARIA NASCIMENTO – Coruripe/AL

No embalo suave e silente
de teu ventre já aquecido
recebi maior presente
só por ter de ti nascido.
NEI GARCEZ – Curitiba/PR

Apesar de mim distante,
lembro de ti, mãe querida;
porque foste a mais brilhante
estrela da minha vida!
NEMÉSIO SIMAS – Raul Soares/MG

Título algum de nobreza,
ou nome ilustre qualquer,
tem o valor, a grandeza
do de mãe, dado à mulher!
ORLANDO BRITO – São Luiz/MA

Às vezes a mãe da gente
não é a melhor assessora,
para o aluno inteligente,
mãe também é a professora.
ORLANDO WOCZIKOSKY – Curitiba/PR

Minha Mãe – frase sagrada
da mais sublime expressão,
para ser perpetuada
no fundo do coração.
PEDRO PAULO DE LEMOS – RJ

À minha mãe que voou,
nas asas de um querubim,
pedindo hoje aqui estou
que do céu vele por mim.
SARA FURQUIM – Rio Branco do Sul/PR

Carinhos de filhos, quero!
Fazem bem ao coração:
São frutos do amor sincero;
São frutos da gratidão!
SELMA PATTI SPINELLI – São Paulo/SP

Quem quiser ver a Esperança
olhe uma noiva no altar,
fite os olhos de uma criança,
repare uma mãe rezar!
SEVERINO UCHOA – Aracajú/SE

Mamãe, eras diferente
das outras Mães, para mim.
De ti sinto bem presente
esta saudade sem fim.
SINÉSIO CABRAL – Fortaleza/CE

Caso a sobremesa fosse
escassa, mamãe dizia:
- Tomem! Não gosto de doce!
... e docemente sorria.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ - Curitiba/PR

Minha mãe com harmonia,
curtiu vida com paixão.
No compasso da alegria,
fez pulsar meu coração!
VÂNIA ENNES – Curitiba/PR

Eu rememoro a saudade
de minha mãe, as carícias:
serena necessidade
de seu carinho e delícias...
VIDAL IDONY STOCKLER – Curitiba/PR

Almejo trilhas sem fim,
ornamentadas de rosas!...
Mãe, vais à frente de mim,
cultivando as mais formosas!
WAGNER MARQUES LOPES – Pedro Leopoldo/MG

Transcendo o sonho e refaço
minhas rotas do passado,
para ter de novo o abraço
do ventre em que fui gerado.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ  - Curitiba/PR

Mãe é puro sentimento
que se mistura à razão.
Mãe é tudo num momento,
e... muito mais: coração.
ZENI DE BARROS LANA – Itaverava/MG

Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Tucumã - o surgimento da noite

No início não existia a noite. Esta pertencia a uma enorme serpente, que a mantinha no fundo das águas.

Quando a filha desta se casou, exigiu que viesse a noite, sem a qual não poderia se deitar. O esposo então avisou três mensageiros para que a trouxessem.

A serpente, senhora da noite, recebeu-os com indiferença. Mesmo assim, entregou-lhes um coco, Tucumã, lacrado com cera de abelha, dizendo-lhe que ali estava o que vieram buscar. Não deveriam entretanto abri-lo, pois a noite poderia escapar.

A volta, os índios perceberam que do coco saiam ruídos de sapos e grilos. Um deles, o mais curioso, convenceu os companheiros a abrirem o fruto. E assim o fizeram.

Logo que derreteram a cera, a noite saiu através do coco, escurecendo o dia. A filha da serpente aborreceu-se, pois agora ela deveria descobrir como separar o dia da noite.

Desta forma, ao surgir a grande estrela da madrugada, criou o pássaro Cujubim, ordenando que este cantasse para que nascesse a manhã. Em seguida, criou o pássaro Inhambu, que deveria cantar à tarde, até que viesse a noite. Criou ainda os outros pássaros para alegrar o dia, diferenciando-o da noite.

Aos mensageiros desobedientes, lançou toda a sua ira, transformando-os em macacos de boca preta -devido à fumaça - e risca amarela - pela cera derretida. Assim, a filha da serpente pôde finalmente se deitar e todos os seres puderam dormir.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (Como criar cenas)

Você pode pensar em cada cena como no cinema ou no teatro, já que o próprio conceito de cena vem do teatro. Enquanto a câmera está no mesmo ambiente, com os mesmos personagens e seguindo um tempo linear, temos uma cena.

Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhe para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel.

A menina não se atreveu a levantar os olhos, mas sentiu os olhares assustados prenderem-se a ela, enquanto ia puxando as palavras e exalando-as. Uma voz tocava as notas dentro dela. Este é o seu acordeão, dizia.

O som da página virada cortou-os ao meio.

Liesel continuou a ler. (...)

Todos esperavam o chão estremecer.

Essa ainda era uma realidade imutável, mas agora, ao menos, eles estavam distraídos com o menino e o livro. Um dos garotos menores pensou em chorar de novo, mas, nesse momento, Liesel parou e imitou seu papai, ou até Rudy, aliás. Deu-lhe uma piscadela e recomeçou.

Só quando as sirenes tornaram a se infiltrar no porão foi que alguém a interrompeu.

- Estamos salvos - disse o Sr. Jenson.

- Psiu! - fez Frau Holtzapfel.

Liesel ergueu os olhos.

- Só faltam dois parágrafos para o fim do capítulo - disse, e continuou a ler, sem fanfarra nem aumento da velocidade. Apenas as palavras.

(trecho de A Menina que Roubava Livros, de Markus Zusak)

O diálogo, claro, é um aliado importante para manter a cena, mas evite abusar do diálogo, o bom escritor saberá dosar narrativa com diálogo, lançando mão das falas apenas quando for essencial.

Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã de Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o coração.

Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguesias.

- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! Dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!

- Muita pobreza, mas muita preguiça considerou duramente o padre Natário. - Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas. - Súcia de mariolas, resumiu.

(trecho de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós)

Vale lembrar que na literatura, diferentemente do vídeo, o escritor pode mesclar a narrativa com reflexões dos personagens, descrições do cenário, comentários próprios. Até os pensamentos de um cão, como no genial Machado de Assis, podem ajudar na composição da cena:

Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto, e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa, depois outras idéias.

(trecho de Quincas Borba, de Machado de Assis)

É possível que cada cena ocupe um parágrafo próprio (ou vários, dependendo de sua extensão e importância na trama).

Evite várias cenas no mesmo parágrafo. Evite, também, mudar de ponto de vista narrativo em meio a uma cena. Se o fizer, deixe isso claro para o leitor, talvez trocando o parágrafo.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4052/como-criar-cenas

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 10


Machado de Assis (Entre Duas Datas)

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta para cavar um abismo entre duas pessoas.

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo.

Era filha de um coronel.

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

E é agora, em 1862, estando ele tranquilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

Poupo às pessoas que me leem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

— Nunca mais a viste? — Nunca.

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande? — Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

— À toa? repetiu Duarte rindo.

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

— Por quê? — A turvação de ontem...

— Que turvação? — Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado.

Presentemente...

Daí a dias, estando com a prima — a intermediária antiga das notícias —, contou-lhe o caso do Ginásio.

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

— Em todo caso, não é a mesma.

— Por quê? Está muito diferente? — Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

— Em Jaguarão? — Não; depois da morte do marido...

— Enviuvou? — Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas.

Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem.

Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a incriminemos por um pecado tão comum.

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

— Querem ver que você está querendo recordar-se... Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento.

Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças? — As mesmas.

— Não mudou nada? — Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

— Usa suíças? — Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominou-se e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles: — O Rio Grande é bonito? — Muito: gosto muito de Porto Alegre.

— Parece que há muito frio? — Muito.

E depois, ela: — Tem tido bons cantores por cá? — Temos tido.

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-se-ia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los.

Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela.

Duas pessoas que se veem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro.

Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.“ pensou ele.

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco.

Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas.

Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

— Vejo que fiz mal em falar a você, redarguiu ele rindo.

— Por quê? — Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a frequentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

“Nem parece a mesma,” disse ele consigo.

Outra coisa que ele lhe notou — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar.

Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal.

Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar? — Nada.

— Então...

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

— Pois só mudada; mas está mudada.

— Mudada...

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha os mesmos característicos da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.

Fonte:
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