sábado, 14 de junho de 2014

Marcelo Spalding (A técnica da pirâmide invertida para além do jornalismo)


    O que mais chama a atenção na técnica da pirâmide invertida, comum no jornalismo, é que não se trabalha com a linearidade temporal, não se prioriza aquilo que veio antes, e sim aquilo que é mais importante.

    Reza a lenda que essa técnica surgiu no tempo da comunicação por telégrafo. Como o sinal era muito ruim e poderia cair a qualquer momento, os repórteres passavam as informações mais importantes primeiro, pois se perdessem o contato não deixariam o editor sem sua matéria, ainda que incompleta.

    Hoje, com o acúmulo de informações e a dificuldade de concentração dos leitores, a pirâmide invertida tornou-se uma técnica produtiva para diversas áreas, pois a partir dela assegura-se que o leitor captou o principal da informação logo no começo do texto, e seguirá lendo apenas se for do seu interesse aprofundar-se no assunto.

    Dessa forma, posts no Facebook e nos blogs, textos publicitários, discursos políticos e até textos de ficção têm concentrado todos os seus esforços no começo, na primeira frase, no impacto inicial que fará o leitor prosseguir.

    Fora dos textos, a lógica de priorizar o mais importante e não o que veio primeiro chegou aos hospitais com o famoso sistema de Manchester de Classificação de Risco, em que pacientes com necessidades mais imediatas são atendidos primeiro, ainda que tenham chegado depois.


    Nas salas de aula, em que a quantidade de conteúdo para vencer é cada vez maior e o tempo de permanência e atenção dos alunos é cada vez menor, também já tem se deixado para trás a ideia de apresentar os conteúdos em uma ordem linear (do começo da apostila para o fim, do mais fácil para o mais complexo, do que surgiu antes para o que surgiu depois).

    Ao invés disso, lista-se o que é fundamental que o aluno compreenda e faz-se um planejamento para que se consiga trabalhar plenamente com esse conteúdo (por exemplo, um conteúdo por mês). É possível que sobre tempo dentro do mês, aí será o momento de aprofundar aquele conteúdo de acordo com o que seria importante que ele soubesse mas não havia sido abordado anteriormente.

    No texto acadêmico, o resumo tem um pouco esse papel da pirâmide invertida, ao antecipar o que o leitor encontrará nas diversas páginas seguintes. Com isso, o leitor não apenas pode decidir se deve ou não ler o texto como saberá se guiar ao longo da leitura, podendo inclusive saltar capítulos que não sejam de seu interesse específico.
    Em suma, a técnica da pirâmide invertida reconhece a primazia do leitor, seu direito de não ler, de pular páginas, de escolher o que ler, etc, tornando a escrita ainda mais desafiadora.
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Marcelo Spalding ministra o Curso de Criação Literária Online

    O curso de Criação Literária Online traz conceitos e técnicas de criação literária para aprimorar o texto de quem aprecia literatura ou quer ser escritor. O curso é indicado tanto para quem é escritor e quer aprimorar o seu ofício com técnicas e teorias quanto para quem quer se iniciar na vida literária, pois a troca de textos com o professor permitirá um olhar mais técnico e crítico de seu trabalho.

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Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4197/o-nome-das-personagens

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo VI

Era a primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem. Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inexplicável alvoroço.

Posto que não amasse nenhum dos dois, apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um deles e viesse a amá-lo apaixonadamente.

Dos dois rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães, cujo espírito galhofeiro e presença insinuante deviam influir mais no espírito da moça.

Minutos depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente, sem se demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará em ceder.

Magalhães tinha a vantagem de conservar todo o sangue frio no meio da situação que se lhe apresentava, e isso era excelente para não descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha interesse em conservar.

Pouco depois, entrou Oliveira. Magalhães deu-se pressa em o chamar de parte.

— Que há? perguntou Oliveira.

— Boas notícias.

— Falaste-lhe? — Positivamente não; mas encaminhei o negócio de maneira que talvez em poucos dias tenha a tua situação mudado completamente.

— Mas que houve? — Falei-lhe de amores; ela pareceu indiferente a essas ideias; disse-lhe então gracejando que a amava...

— Tu? — Sim. De que te admiras? — E que disse ela? — Riu-se. Então perguntei-lhe velhacamente se amava alguém. E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me parecia uma afirmativa. Deixa o caso por minha conta.

Amanhã, desfaço a meada; digo-lhe que eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o comendador.

Efetivamente, Vasconcelos chegara à janela onde os dois estavam. Uma das manias de Vasconcelos era comentar durante o dia todas as notícias que os jornais publicavam de manhã. Os jornais daquele dia falavam de um casal encontrado morto num quarto da casa em que residia. Vasconcelos desejava saber se os dois amigos optavam pelo suicídio, circunstância esta que o levaria a adotar a hipótese do assassínio.

Foi esta conversa uma completa diversão ao assunto amoroso, e Magalhães aproveitou o debate entre Oliveira e Vasconcelos para ir conversar com Cecília.

Falaram de coisas indiferentes, mas Cecília estava menos expansiva; Magalhães supôs a princípio que fosse um sintoma de esquivança; não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília correspondeu energicamente ao seu apertado aperto de mão.

— Pensas que serei feliz, Magalhães? perguntou Oliveira apenas se acharam na rua.

— Penso.

— Não imaginas que dia passei hoje.

— Não hei de imaginar! — Olha, nunca pensei que esta paixão pudesse dominar tanto a minha vida.

Magalhães animou o rapaz, que o convidou a cear, não porque o amor lhe deixasse largo campo às exigências do estômago, senão porque havia jantado pouco.

Eu peço perdão aos meus leitores, se entro nestas explicações a respeito da comida.

Quer-se um herói romântico, acima das necessidades vulgares da vida humana; mas não posso deixar de as mencionar, não por sistema, mas por ser fiel à história que estou contando.

A ceia foi alegre, porque Magalhães e a tristeza eram incompatíveis. Oliveira, apesar de tudo, comeu pouco, Magalhães largamente. Entendia que lhe cumpria pagar a ceia; mas o amigo não consentiu nisso.

— Olha, Magalhães, disse Oliveira ao despedir-se dele. A minha felicidade está nas tuas mãos; és capaz de dar conta dela? — Não se devem prometer coisas tais; o que eu te afirmo é que não pouparei esforços.

— E pensas que serei feliz? — Quantas vezes queres que to diga? — Adeus.

— Adeus.

No dia seguinte, Oliveira mandou dizer a Magalhães que estava um pouco incomodado.

Magalhães foi visitá-lo.

Achou-o de cama.

— Estou com alguma febre, disse o advogado; dize isto mesmo ao comendador, a quem eu prometi de ir lá hoje.

Magalhães cumpriu o pedido.

Era a ocasião de se manifestar a dedicação de Magalhães. Não faltou este moço a tão sagrado dever. Passava com Oliveira a tarde e as noites e só se separava dele para ir, às vezes, à casa de Vasconcelos, que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.

— Fala-lhe sempre de mim, dizia Oliveira.

— Não faço outra coisa.

E assim era. Magalhães não cessava de dizer que vinha ou ia para casa de Oliveira, cuja doença ia tomando um aspecto grave.

— Que amigo! murmurava consigo D. Mariana.

— O senhor é um bom coração, dizia Vasconcelos apertando as mãos de Magalhães.

— O sr. Oliveira deve querer-lhe muito, dizia Cecília.

— Como a um irmão.

A doença de Oliveira era grave; durante todo o tempo que durou, não se desmentiu nunca a dedicação de Magalhães.

Oliveira admirava-o. Via que o benefício que lhe fizera não caíra em má terra. Grande foi a sua alegria quando, ao começar a convalescença, Magalhães lhe pediu duzentos mil réis, com promessa de os pagar no fim do mês.

— Quanto quiseres, meu amigo. Tira-os ali da secretária.

— Acredita que isto me vexa imensamente, disse Magalhães, metendo na algibeira duas notas de cem mil-réis. Nunca te pedi dinheiro; agora, menos que nunca, devia pedir-te.

Oliveira compreendeu o pensamento do amigo.

— Não sejas tolo; a nossa bolsa é comum.

— Oxalá que esse belo princípio possa ser realizado literalmente, disse Magalhães rindo.

Oliveira não lhe falou nesse dia a respeito de Cecília. Foi o próprio Magalhães que encetou a respeito dela uma conversa.

— Queres ouvir uma coisa? disse ele. Apenas saíres, manda-lhe uma carta.

— Por quê? Crês que...

— Creio que é a hora do golpe.

— Só para a semana poderei sair.

— Não importa, virá a tempo.

Para compreender bem a situação singular em que se achavam estes personagens todos, é mister transcrever aqui as palavras com que nessa mesma noite se despediram Magalhães e Cecília à janela da casa desta: — Até amanhã, disse Magalhães.

— Virás cedo? — Venho às 8 horas.

— Não faltes.

— Queres que te jure? — Não precisa; adeus.
––––––––––––
continua…

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 7 de junho de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 16


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Iamuricumas

Em meio a uma grande festa, os índios haviam concluído a cerimônia de furar as orelhas de seus meninos, após a qual as crianças permanecem de resguardo. Segundo o costume, os homens da tribo foram à pesca para bem alimentá-las, enquanto as mulheres prosseguiram com o corte dos cabelos. Percebendo que os pais demoravam a chegar, o filho do pajé decidiu ir ao rio, onde pôde observá-los batendo o timbó e pegando muitos peixes.

Repentinamente, como por encanto, os índios transformaram-se em animais selvagens. Assustado, o menino correu à tribo, relatando à sua mãe o que sucedera. Esta avisou as outras mulheres e, reunidas, preparavam-se para fugir dentro de poucos dias, pois os homens da pescaria agora representavam perigo!

Pintaram-se e ornamentaram o corpo como se fossem homens. Em seguida a esposa do pajé, à frente do grupo, entoou um canto, conduzindo-o ate a floresta. Lá, untaram-se de veneno, transformando-se no espírito Mamaé.

Após cantarem e dançarem dois dias sem cessar, pediram a um velho que pousando sobre as costas a casca de um tatu, seguisse à sua frente, abrindo-lhes passagem. O homem passou a agir como se fosse o próprio animal.

As mulheres, indiferentes aos homens da pescaria, seguiram o seu caminho, a cantar e a dançar, levando consigo mulheres de mais duas aldeias.

Suas crianças foram lançadas ao rio, tornando-se peixes. Ainda hoje, as Iamuricumás viajam dia e noite, armadas de arco e flecha. Não possuem o seio direito, para melhor manejá-los. E assim, cantando e dançando, continuam a abrir caminhos pela floresta, seguindo eternamente o homem tatu.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (O Nome das Personagens)

Eu já batizei personagens e filhos e posso dizer: batizar uma personagem é bem mais difícil. Ocorre que a personagem você batiza depois que ela existe como forma de representar suas características ou pelo menos ajudar nessa composição. Já um filho você batiza sem saber sua cor, sua personalidade, seus sonhos.

Numa ficção, não veremos o nome de Clara numa personagem de pele escura, a não ser que esse seja o conflito ou parte do conflito da trama. Não teremos um Pedro dócil, já virou até clichê o nome de Pedro para personagens durões como uma pedra. Não veremos um apelido diminutivo para um bandido ou um personagem grande, a não ser com objetivo cômico. E não teremos um sobrenome de origem alemã numa personagem ou trama que não tenha nenhuma relação com a colonização alemã.

Dar nome aos personagens, portanto, requer cuidado e planejamento. Você deve considerar, em ordem:

1) A personalidade da personagem;
2) A sonoridade do nome;
3) Se o nome não é semelhante a outros nomes da trama;
4) A possibilidade que o nome dá de apelidos ou contrações, a fim de evitar sua repetição excessiva.

Num de meus livros, Vencer em Ilhas Tortas mudei o nome de duas personagens. Uma delas se chamava Jane, era uma homenagem a uma escritora amiga. Só que o livro é juvenil, e nessa faixa etária quase ninguém se chama Jane. Sem contar a velha referência a Tarzan. Mudei para Marília, mais fácil.

Outro personagem se chamava Charles. Só que a história se passa num país africano de língua portuguesa em que chegou um imigrante inglês, Michel, que disputava espaço com os moradores do local. O Charles era nativo daquele país de língua portuguesa, então troquei o nome para Júlio, evitando a confusão.

No mesmo livro, o nome do protagonista foi escolhido de forma consciente, para evitar a repetição: Carlos Eduardo. Alguns, na história, o chamam assim, inclusive o narrador, algumas vezes. Mas seu apelido Cauê é o mais usado. E a avó, quando conversa com o neto, o chama de Carlinhos. Foi uma técnica interessante porque nem precisava dizer que era a avó quem falava, pois só ela chamava o protagonista de Carlinhos.

Nunca use nomes próprios completos de pessoas conhecidas. E eu diria que você deve evitar até de usar nomes de conhecidos em personagens que possam lembrá-los. Isso, além de evitar processos judiciais, evita constrangimentos.

Eu mesmo, em outro livro, As cinco pontas de uma estrela, em que há cinco protagonistas, atribuí inicialmente uma letra para cada um: A, B, C, D e E. Depois é que fui escolhendo os nomes. O quinto se chamaria Eduardo, nome do meu irmão e um nome comum com a letra E. O problema é que o personagem se envolve com drogas na história e meu irmão tinha 14 anos na época: imagina a reação da minha mãe ao ler o livro! Mudei o nome para Eloi. Ninguém se chama Eloi por aqui.

É muito comum, principalmente em contos, o autor não dar nome a seus personagens. A vantagem é que esse personagem pode ser qualquer um, aumentando a chance de nos identificarmos com ele. Só que a grande desvantagem é o texto ficar confuso, em especial se há mais de um personagem. Aí seremos obrigados a usar muitos "ele / ela" e isso dificultará nosso texto mais do que ajudará.

Na dúvida, portanto, opte por nomes simples como João, Pedro, Ricardo, Carolina, Isabel. Só use nomes compostos se fizer sentido para a história, se for uma informação relevante para o enredo ou se isso ajudar a compor a personalidade da personagem. Alguns autores procuram o significado dos nomes, a simbologia ou até a a numerologia para compor suas personagens. É uma possibilidade, mas não precisa revelar ao leitor, são informações de bastidor.
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Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4197/o-nome-das-personagens

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 8

(mantida a grafia original)

O Oiro

Oiro, - poder, encanto ou maravilha
Da nossa idade, - regedor da terra,
Que dás honra e valor, virtude e força,
Que tens ofertas, oblações e altares, -
Embora teu louvor cante na lira
Vendido Menestrel que pôde insano
Do grande à porta renegar seu gênio!
Outro, sim, que não eu. - Bardo sem nome,
Com pouco vivo; - sobre a terra, à noite,
Meu corpo lanço, descansando a fronte
Num tronco ou pedra ou mal nascido arbusto.
Sou mais que um rei co’o meu dossel de nuvens
Que tem gravados cintilantes mundos!
Com a vista no céu percorro os astros.
Vagueia a minha mente além das nuvens,
Vagueia o meu pensar - alto, arrojado
Além de quanto o olhar nos céus alcança.
Então do meu Senhor me calam n’alma
D’amor ardente enlevos indizíveis;
Se tento às gentes redizer seu nome,
Queimadoras palavras se atropelam
Nos meus lábios; - profética harmonia
Meu peito anseia, e em borbotões se expande.
Grandes, Senhor, são tuas obras, grandes
Teus prodígios, teu poder imenso:
O pai ao filho o diz, um sec’lo a outro,
A terra ao céu, o tempo à eternidade!
Do mundo as ilusões, vaidade, engano.
Da vida a mesquinhez - prazer ou pranto -
Tudo esse nome arrasta, prostra e some;
Como aos raios do sol desfeito o gelo,
Que em ondas corre no pendor do monte,
Precípite e ruidoso, - arbustos, troncos
Consigo no passar rompidos leva.

A um Menino
Oferecida à exma. Sra. D. M. L. L. V.

I

Gentil, engraçado infante
Nos teus jogos inconstante,
Que tens tão belo semblante,
Que vives sempre a brincar,
- Dos teus brinquedos te esqueces
À noitinha, - e te entristeces
Como a bonina, - e adormeces,
Adormeces a sonhar!

II

Infante, serão as cores
De várias, viçosas flores,
Ou são da aurora os fulgores
Que vem teus sonhos doirar?
Foi de algum ente celeste,
Que de luzeiros se veste,
Ou da brisa é que aprendeste,
Que aprendeste a suspirar?

III

Tens no rosto afogueado
Um qual retrato acabado
De um sentir aventurado,
Que te ri no coração;
É talvez a voz mimosa
De uma fada caprichosa,
Que te promete amorosa,
Algum brilhante condão!

IV

Ou por ventura és contente,
Porque no sonho, que mente,
Fantasiaste inocente
Algum dos brinquedos teus!. . .
Senhor, tens bondade infinda!
Fizeste a aurora bem linda,
Criaste na vida ainda
Um’outra aurora dos céus.

V

O som da corrente pura,
A folhagem que sussurra,
Um acento de ternura,
De ternura divinal;
A indizível harmonia
Dos astros no fim do dia,
A voz que Mêmnon dizia,
Que dizia matinal;

VI

Nada disto tem o encanto,
Nada disto pode tanto
Como o risonho quebranto,
Divino - do seu dormir:
Que nada há como a Donzela
Pensativa, doce e bela,
E a comparar-se com ela...
Só de um infante o sorrir.

VII

Mas de repente chorando
Despertas do sono brando
Assustado e soluçando...
Foi uma revelação!
Esta vida acerba e dura
Por um dia de ventura
Dá-nos anos de amargura
E fráguas do coração.

VIII

Só aquele que da morte
Sofreu o terrível corte,
Não tem dores que suporte,
Nem sonhos o acordarão:
Gentil infante, engraçado,
Que vives tão sem cuidado,
Serás homem - mal pecado!
Findará teu sonho então.

Miserrimus

Quando o inverno chegou, - por sobre a terra
O robe secular espalha a coma,
Que o rábido tufão cortou de morte.
Despida e nua jaz a flor mimosa,
Agora hástea somente; e o sol brilhante
Despede a custo a luz que mal penetra
As nuvens trovejadas que o circundam.
Mas o inverno passou! - De novo assume
Virente rama o robe gigantesco,
A flor formosa e bela vem brotando,
E o sol, rei do horizonte, já rutila
Em céu de puro azul-brilhante.
Mas quando o desengano, qual tormenta
Que por desertos só valente reina,
Do quente coração arranca, esmaga
Esp’ranças, que o amor enfeitiçava,
Em vão a natureza ufana brilha,
Em vão de puro orvalho a flor se arreia,
Em vão dardeja o sol seus quentes raios,
Em vão!... que o coração jaz frio e murcho.
E não mais viverá! - que a alma sentida
Conhece que o amor é só mentira,
Que é mentira o prazer, mentira tudo!
Um dia apareceu um recém-nado,
Como a concha que o mar à praia arroja,
Cresceu; - qual cresce a planta em terra inculta
Que ninguém educou; - a chuva apenas.
Infante - viu de roda sepulturas,
Em que não atentou; - sonhos mimosos,
Acordado ou dormindo, lhe doiravam
A infância leve, d’inocência rica.
Viu belo o ar, e terra, e céus, e mares,
Viu bela a natureza, como a noiva
Sorrindo em breve dia de noivado!
Então sentiu brotarem na sua alma
Sonhos de puro amor, sonhos de glória;
Sentiu no peito um mundo de esperanças,
Sentiu a força em si - patente o mundo.
Forte se levantou! correu fogoso,
E qual águia que nas asas se equilibra,
Começou a trilhar da vida a senda.
Um monte além topou; mais vagaroso
Subiu, - vingou mais lento! - Inda mais outro
Colossal - descalvado - íngreme e liso,
Costeou, mas cansou, que era sozinho!
Sentou-se, e mudo, e fraco, é pensativo,
À borda do caminho; e sobre o peito
A cabeça inclinou, cruzando os braços.
Minha mãe! - soluçou; e um eco ao longe
Minha mãe! - respondeu. - Sentiu que a fome
Dolorosa as entranhas lhe apertava,
E sede intensa a ressequir-lhe as fauces;
Fome e sede curtiu como num sonho.
Do rosto nas maçãs descoloridas
- Filtro do coração - sentiu que o pranto
Ardente escorregava a tez queimando.
Muda era a sua dor, - d’homem que sofre,
Que chora isento de vergonha ou crime.
Encontrou mais além no seu caminho,
Bela na sua dor, sozinha e fraca,
Figura virginal que ali jazia.
Esqueceu-se de si pensando nela;
Nova força criou, - novo incentivo,
Coragem nova o seu amor criou-lhe.
Lavou-lhe os curtos pés, contra o seu peito
Do frio a protegeu, - tomou nos braços
A carga tão mimosa! - E ela co’os olhos,
Que o amor vendava um pouco, agradecia.
E ela pôde viver; - disse que o amava,
Que era o seu coração dele - e só dele: -
Disse, e mais que uma vez, com peito e lábios
No peito e lábios dele; - era mentira!
E ele o conheceu! por precipícios
Descrido se arrojou, sentindo a morte,
Seu berço entre sepulcros procurando.
Aqui - ali - além - eram sepulcros;
E o nome de sua mãe, sequer não pode
Dos nomes conhecer de tantos mortos.
E só no seu morrer, qual só na vida,
Na terra se estendeu; nem dor, nem pranto
Tinha no coração que era já morto!
E alguém, que ali passou, vendo um cadáver
De sânie e podridão comido e sujo,
Co’o pé num fosso o revolveu; - e terra
Caída acaso o sepultou p’ra sempre.
Amizade! - ilusão que os anos somem;
Amor! - um nome só, bem como o nada,
A dor no coração, delícias n’alma,
Nos lábios o prazer, nos olhos pranto
- Tudo é vão, tudo é vão, exceto a morte.

O Pirata
(Episódio)

Nas asas breves do tempo
Um ano e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.
Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh’of’rece;
E bela, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.
Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa nela,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bela!
Nesse palácio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes refletir.
Os ecos alegres soam,
Soa ruidosa harmonia,
Soam vozes de ternura,
Sons de festa e d’alegria.
E qual ave que em silêncio
A face do mar desflora,
À noite bela fragata
Chega ao porto, amaina, ancora.
Cai da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as águas
Na esteira que traça a lua.
Já na vácua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Presago e torvo enfiou..
Malfadado! por que aportas
A este sítio fatal!
Queres o brilho aumentar
Das bodas do teu rival?
Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em maus projetos danados!
Não, que os seus olhos bem dizem
O que diz seu coração;
Terríveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.
Não, que os lábios descorados
Vociferam seu rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seu pontiagudo punhal.
Não, por Deus, que tais afrontas
Não as sói deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciúmes!
Subiu! - e viu com seus olhos
Ela a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.
E ele avançou mais avante,
E viu. . . o leito fatal!
E viu. . . e cheio de raiva
Cravou no meio o punhal.
E avançou... e à janela
Sozinha a viu suspirar,
- Saudosa e bela encarando
A imensidade do mar.
Como se vira um espectro,
De repente ela fugiu!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentiu.
Que foi? - Quem sabe dizê-lo?
Foram vislumbres de dor:
Coração, que tem remorsos,
Sente contínuo terror!
Ele à janela chegou-se,
Horrível nada encontrou. . .
Somente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.
Então pensou que no mundo
Nada mais de seu contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!
Nada mais!... - que lh’importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava -
Água e céus e vento e mar.
Assim pensava, mas nisto
Descortina o seu rival,
Não visto; - a mão na cintura
Cingiu raivoso o punhal!
Mas pensou. . . - não, seja dela,
E tenha zelos como eu? -
Larga o punhal, e um retrato
Na destra mão estendeu.
Porém sentiu que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seu amor no coração.
Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meu!
Nada mais de pensar nela;
Finjamos que ela morreu.
Por entre a turba que alegre
No baile - a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.
De manhã - quando o sarau
Apagava o seu rumor,
Chegava Lia a janela,
Mais formosa de palor.
Chegou-se; - e além -.- no horizonte
Uma vela inda avistou;
E co’a mão trêmula e fria
O telescópio buscou!
Um pavilhão viu na popa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mezena
Um negro vulto encostado.
Eram chorosos seus olhos,
Os olhos seus enxugou;
E o telescópio de novo
Para essa vela apontou.
Quem era o vulto tão triste
Parece reconheceu;
Mas a vela no horizonte
Para sempre se perdeu.

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo V

O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível compreender aquele velho sem aquele estouvamento.

Contava já seus cinquenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a sra. D. Mariana houvesse casado com ele.

D. Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.

Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.

Quando a acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patriotismo: — Somos todos brasileiros.

Enquadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito.

Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D.

Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.

Para os fins de Oliveira era excelente.

Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança. Parece-me ser, disse ela, um excelente coração.

— Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo.

Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa, ficou muito animado.

— Creio que posso ter esperanças, disse ele.

— Nunca te disse outra coisa, respondeu Magalhães.

Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão.

Um dia, Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta.

— Ainda não, deixa-me preparar a coisa.

Oliveira acedeu.

A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone.

Não é.

Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres de outra classe.

Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos.

Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado.

A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade? Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça.

Era de noite; havia gente em casa. 0liveira estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala.

Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjecturas burlescas.

— Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele, acompanhado de outros seus irmãos.

Aquele ressuscitou, para vir dizer a este mundo o que é o paraíso dos chapéus.

Cecília reprimia uma risada.

Magalhães continuava: — Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e como raridade.

Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília.

Repentinamente, Magalhães ficou sério e consultou o relógio.

— Já se vai embora? perguntou a moça.

— Não, senhora, disse Magalhães.

— Guarde então o relógio.

— Admira-me que Oliveira ainda não viesse.

— Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos? — Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.

Houve um silêncio.

Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse: — Feliz aquela que o possuir.

A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá.

— Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães.

— Que pergunta é essa? — É uma curiosidade.

— Nunca amei.

— Por quê? — Sou muito criança.

— Criança! Outro silêncio.

— Conheço alguém que a ama muito.

Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de Magalhães a deixara, disse rindo: — Essa pessoa... quem é? — Quer saber o nome? — Quero. É seu amigo? — É.

— Diga o nome.

Outro silêncio.

— Promete não ficar zangada comigo? — Prometo.

— Sou eu.

Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, havia percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela.

Da parte de Magalhães, não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de cólera, apenas surpresa.

A verdade é que ela não amava nenhum deles.

Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo: — Já sei que ama outro.

— Que outro? — Oliveira.

— Não.

Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a ideia de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília disse ao fim de alguns minutos: — O senhor está brincando comigo? — Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.

A moça não respondia.

— Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota.

O papá é quem decide de mim, disse ela desviando a conversa.

— Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna? — Talvez, murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra.
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continua...

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

terça-feira, 3 de junho de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 15


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Iamulumulu - A formação dos rios

Savuru era um espírito que possuía duas esposas. A pedido dos irmãos Kuát ( Sol) e Iaê ( Lua ), que as cobiçavam, as ariranhas o mataram, ficando sua esposa mais velha com o Sol e a outra com a Lua.

Seguiram então os casais em direção à aldeia de Kanutsipei. Durante o caminho, os irmãos encontraram dificuldades e necessitaram da ajuda de outros espíritos: Iamulumulu lhes curou a impotência, Ierêp fez com que neles nascesse o ciúme das esposas e, uma vez cansados, pediram a Uiaó algo que os fizessem adormecer.

No dia seguinte, dispostos, retomaram a caminhada. Chegando ao local pretendido, estavam sedentos e pediram água a Kanutsipei. A água, porém, estava suja. O irmão Lua, tomando a forma de um beija-flor, voou rapidamente à procura de boa água. Ao voltar contou-lhes que o espírito os enganara, mantendo escondidos muitos potes com a mais pura água. Contrariados, os casais retornaram a sua aldeia, contando a todos o que ocorrera.

O Sol e a Lua uniram-se a vários espíritos, Vanivani, lananá, Kanaratê, os zunidores Hori-hori, invocando também os espíritos das águas que habitavam a copa do Jatobá. Chamaram ainda as máscaras Jakuikutu, Mearatsim, Ivat, Jakuiaép e Tauari. Reunidos, dançaram e resolveram voltar à aldeia de Kanutsipei para tomarem posse de sua água, quebrando todos os seus potes, conduzindo-a a outras regiões.

Mearatsim, o primeiro a chegar, cantou para espantar o dono do local. Chegaram então os outros espíritos e, à medida que os potes foram quebrados, formou-se ali uma grande lagoa, de onde cada um dos espíritos criou um rio.

Assim, o Sol criou o Rio Ronouro; Vani-vani formou o Rio Maritsauá; Kanaratê, o Paranajuva; Tracajá, o Kuluene e Iananá, um afluente do Ronouro.

A formação dos rios não agradou ao Sol, pois todos corriam para Morená, a região sagrada dos espíritos. Iniciou-se ali uma grande confusão, em meio à qual a Lua foi engolida por um grande peixe. O Sol, desesperado, saiu à procura do irmão, no ventre dos peixes que encontrava. Chegou a capturar o Tucunaré, o Matrinxã, o Pirarara e a Piranha. Mas havia sido o Jacunaum que o engolira, informou o Acará. E ambos, unidos, partiram à caça dos peixe.

Pediram a Taperá (andorinha do campo) que lhes conseguisse um grande anzol, ocultando-o num charuto. O Acará nadou à procura de Jacunaum, oferecendo-lhe fumo. Desta maneira, o Sol conseguiu fisgá-lo. Entretanto, dentro do peixe, restavam apenas os ossos de seu irmão.

Desejando ardentemente que a Lua revivesse, o Sol arrumou no chão seu esqueleto, cobrindo-o com as folhas perfumadas do Enemeóp. Aos poucos, como por encanto, a carne foi surgindo, revestindo os ossos até formar um novo corpo. Faltava-lhe ainda a vida. O Sol então introduziu um mosquitinho em sua narina, provocando-lhe um espirro, que o fez finalmente despertar.

Assim foram criados os rios e, a partir daí, iniciou-se a prática da pajelança, tendo sido o Sol o primeiro pajé.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (Começando um texto informativo)

    Lage, em Teoria e Técnica do Texto Jornalístico, procura fazer uma tipologia dos tipos de lead, reconhecendo que para além do lead clássico há outras possibilidades de se começar um texto jornalístico. Façamos um paralelo entre essa tipologia e as possibilidade de se começar um texto informativo:

    O lead clássico

    "O lead clássico ordena os elementos da proposição - quem/o que, fez o que, quando, onde, como, por que/para que - a partir da notação mais importante. Isto é, se o mais importante é o sujeito da oração principal, começa-se pelo sujeito; se o mais importante for o objeto, constrói-se o período na voz passiva; se o mais importante for alguma das circunstâncias, começa-se pela circunstância"

    Como vimos na técnica da pirâmide invertida, esse é o lead que expõe os fatos mais importante primeiros e o aprofundamento, as explicações ou as razões depois. Considerando que os leitores muitas vezes não vão além o primeiro parágrafo de um texto, tem se tornado uma técnica cada vez mais utilizada nos textos informativos.

    O lead narrativo

    "Ao contrário do lead clássico, que começa pela notação mais importante, aqui se alinham os fatos sucessivos que conduzem ao clímax. É como um pequeno conto, de poucas linhas."
   
 O começo de um texto a partir de uma narrativa pode ser útil quando é necessário apresentar ao leitor as personagens envolvidas. É uma técnica muito comum nas petições iniciais dos advogados, em que primeiramente é preciso expor os fatos, para posteriormente fazer a argumentação e apresentar as demandas. No telejornalismo, esse tipo de início também é muito comum, funcionando como uma espécie de metonímia para a matéria abordada.

    O lead resumo

    "Utiliza-se eventualmente na cobertura (continuações) de eventos em que há várias informações de destaque, mais ou menos equivalentes, e que devem ser condensadas em uma única matéria."

    O lead resumo não é uma contextualização anterior à matéria, e sim a apresentação de diversos fatos importantes de forma sucinta. O exemplo trazido por Lage é bastante claro: "Dois dias depois do terremoto que atingiu 20 cidades turcas, o número de mortos elevou-se a sete mil, o de feridos a 30 mil, uma grande refinaria estava ainda em chamas e crescia o temor de que o caos dos transportes e serviços públicos cause fome e epidemias. Há mais de mil desaparecidos e cem mil desabrigados."

    Nesse caso, a sequência do texto é que abordará com um pouco mais de detalhamento cada um dos fatos ali mencionados.

    O lead flash

 
    "Uma frase curta - e de impacto - inicia o texto. Utiliza-se, às vezes, como recurso para estabelecer uma relação retórica - geralmente uma antítese - entre eventos distintos."

    O que Lage chama de lead flash é na verdade uma frase anterior ao lead que funciona para chamar a atenção para o texto. Por exemplo: "Um homem foi crucificado na Arábia Saudita" ou "Bill Gates ficou dez bilhões de dólares mais rico desde a crise cambial russa, que tornou o Brasil mais pobre". Seu uso deve ser extremamente moderado e limitado a situações em que o jogo de palavras justifica essa frase anterior.

    Nariz de cera

    Embora Lage não o aborde em seus tipos de lead, até por não ser mesmo um tipo de lead, o conceito de nariz de cera é muito importante e, quando bem utilizado, pode ser benéfico para o texto informativo. Por definição, é o parágrafo introdutório em um texto que retarda a abordagem do assunto enfocado.

    No jornalismo, o nariz de cera é geralmente condenado por tender à prolixidade e ser o oposto do lead; mas em crônicas, por exemplo, ele tem um papel muito importante, pois com ele o autor quebra o gelo e introduz aos poucos o assunto que abordará (por vezes, polêmico).
 
    Fazendo uma analogia com a fala, o nariz de cera é aquele momento inicial de uma reunião de negócios em que as duas partes falam sobre o clima, o time de futebol e a família, antes de partir para os temas árduos que provocaram a reunião.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4107/comecando-um-texto-informativo