sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Clevane Pessoa (Poemas Avulsos)


SERIAL KISSER

Formal, beija-lhe as costas da mão direita
ao despedir-se, numa festa.
Lembra o antigo gesto:
beijava-lhe o côncavo da mão esquerda
a pedir que guardasse o precioso segredo

Até que uma noite, o vê passar de carro,
outra em seu lugar,
a beijar a outra mão
– o mesmo gesto, que julgava seu,
noutra epiderme.
Agora, ato sem perdão,
Modelagem, por certo, em série
Na pedra sabão
Que não mais quer ganhar.

CHUVA ALHEIA

No mundo há os que dizem,
os que dizem e fazem,
os que apenas dizem e nada fazem
e aqueles que pouco falam,
mas realizam, no casulo do segredo,
o que é preciso fazer.

Há os que fingem ser,
na lógica do parecer
e do fechamento de gestalts, protótipos
estratégias e insinuações.
Mas não são, não fazem,
não doam,
apenas simulam,
revolvendo-se em ninho
feito pelos outros,
cantando suas canções.

Se fossem chuva, choveriam com água alheia
à noite, para não serem descobertos
e de dia, para acharem que seriam nuvens férteis.

FUNÇÃO

Lençóis d'água
Subterrâneos frescores
A amenizar
Os fogachos da menopáusica
Mãe Terra...

Jasmins d'água
Em touceiras.
O olor pungente
Bordeja o rio
que borda a Terra...
De longe, querubins
Em miniatura
Adejando brancas asas...
De perto, parecem
Borboletas que não voam,
Presas ao verde...
De quando em vez,
Caem pétalas
Sem ruído perceptível
E cada qual beija a água
Respingando ternura
Flutuando, leves plumas,
Por certo merecem
Que meu olhar
De brasas acesas
Perscrute o ondulado
E frio caminho...

Até onde irão? Aonde
Deságua a água
Cantando,
Ao mar se entregando?
Ou... Fenecerão antes
Que o Tempo e a poluição as insulte
Roubando-lhes a beleza?…

MISTÉRIO

Para onde se vão
os escritos perdidos
nesse universo cibernético?
Será que há um batalhão de
anjinhos
garis de palavras perdidas,
a recolhê-las?
Será que caçadores de
antiguidades
(saiu do hoje, já é passado,
saiu do agora,
já é antigo...)
as recolhem no limbo
de outras dimensões
e por elas cobram fortunas
de gotas d'água ao sol,
para que os arco-íris
não se acabem jamais?
Será que os escribas
já em outra dimensão
lêem, corrigem
aprovam, declamam,
repassam,
fazem pastas de nuvens
e arquivam?
Quem souber,
conte aos poetas,
conte-me que lhes repasso...
Mas... para onde foi o poema
feito ainda agora
e que fugiu para o espaço?
Será que vai chover Poesia?

CHOVENDO

Tempo no gerúndio, coisa de poetas:
A natureza continua
chorando em cima das últimas pétalas...
vestígios de lágrimas
nas calçadas da rua.

TERMÔMETRO

O beijo, essência do real
promove sensações
no soma, na anima, no animus
toca espaços antes ignotos.
- mesmo se dado na boca
atinge mil points de prazer.
O beijo é mediado  pela impossibilidade
de não acontecer.
Em simbiose de quereres,
faz-se medida do desejo.
Se frio, bom desistir
de investir num futuro pobre
ao lado de quem ser parceiro
arqueiro mais que certeiro
ao alvo a atingir
mas não acende o devido aceiro:
não acende chamas
quando beija o beijo
que não logrou aquecer

INÚTIL NÃO
 

Lamenta pela vida inteira
o beijo que não deixou acontecer,
Qual saber da brasa sob cinzas
e não soprá-la para reacender...
E o frio se instalou no centro
de sua frustração.
Agora, ouve a sinfonia repetitiva do Não
qual antigo disco quebrado…

Irmãos Grimm (O Irmãozinho e a Irmãzinha)

O irmãozinho pegou a irmãzinha pela mão e disse: — “Desde que a nossa mãezinha morreu não fomos mais felizes, e a nossa madrasta bate em nós todos os dias, e se tentamos nos aproximar dela, ela nos expulsa com os pés. A nossa refeição são os pedaços de pães duros que sobram, e o cachorrinho que fica debaixo da mesa tem mais sorte, porque para ele ela joga pedaços melhores. Tomara que o céu tenha pena de nós. Se a nossa mãe soubesse! Venha, vamos sair e andar pelo mundo.”

Eles andaram o dia todo pelas pradarias, campos, e lugares cheios de pedras, e quando chovia a irmãzinha dizia: — “O céu e os nossos corações estão chorando juntos.”

À noite, eles chegaram a uma grande floresta, e eles estavam tão cansados de tristeza e fome, e também por causa da longa caminhada, que eles se deitaram numa árvore oca e dormiram.

No dia seguinte quando eles acordaram, o sol já ia alto no céu, e lançava seus raios escaldantes sobre as árvores. Então, o irmão disse: — “Irmãzinha, estou com sede, se eu conhecesse algum riacho por aqui, eu iria para pegar água para beber, acho que estou ouvindo um aqui perto.”

O irmão se levantou e pegou a irmãzinha pela mão, e partiram para encontrar o riacho.

Mas a madrasta malvada era uma bruxa, e ela viu quando as crianças foram embora, e saiu às escondidas atrás deles sem que eles notassem, como as bruxas costumam fazer, e ela tinha enfeitiçado todos os riachos da floresta.

Ora, quando eles haviam encontrado um pequeno riacho pulando alegremente por sobre as pedras, o irmão ia beber um pouco de água, mas a irmã escutou uma voz que vinha do riacho:

— “Quem beber de mim será um tigre, quem beber de mim será um tigre.”

Então a irmã exclamou: — “Por favor, querido irmão, não beba, ou você se transformará num animal selvagem, e vai me rasgar em pedaços.”

O irmão não bebeu, embora ele estivesse com muita sede, mas ele disse, — “Saberei esperar pela próxima fonte.”

Quando eles chegaram no próximo riacho a irmã ouviu quando ele também disse: — “Quem beber de mim será um lobo, quem beber de mim será um lobo.”

Então a irmã gritou: — “Por favor, querido irmão, não beba essa água, ou você vai ser tornar um lobo, e irá me devorar.”

O irmão não bebeu, e disse: — “Eu vou esperar até quando chegarmos na próxima fonte, mas eu então eu vou beber, diga você o que disser, porque a minha sede é grande demais.”

E quando eles chegaram na terceira fonte, a irmã ouviu que as águas diziam: — “Quem beber de mim será um cabrito, quem beber de mim será um cabrito.”

A irmã disse: — “Oh, eu te imploro, meu irmão, não beba ou você irá se transformar num cabrito e irá fugir para longe.”

Mas o irmão se ajoelhou no mesmo instante na margem do rio, e se inclinou e bebeu um pouco de água, e assim que as primeiras gotas tocaram os lábios dele, ele se transformou num filhote de cabrito.

E a irmãzinha começou a chorar porque o irmãozinho havia sido enfeitiçado, e o pequeno cabrito também chorou, e se sentou amargurado perto dela. Mas, por fim, a garota disse: — “Fique tranquilo, meu querido cabritinho, eu nunca, nunca vou te deixar.”

Então ela soltou sua liga dourada, e a colocou em volta do pescoço do cabrito, e ela colheu juncos e os trançou transformando-os numa corda macia. Assim ela amarrou o pequeno animal e poderia conduzi-lo, e ela andava e andava cada vez mais para dentro da floresta.

E quando eles tinham percorrido uma grande parte do caminho, eles chegaram, finalmente, em uma pequena cabana, e a garota olhou dentro, e a cabana estava vazia, então ela pensou: — “Nós poderíamos ficar aqui e morar.”

Então ela começou a procurar folhas e musgos para fazer uma cama macia para o cabrito, e todas as manhãs ela saía para colher raízes, frutas e nozes para ela, e trazia grama verde para o cabrito, que comia tudo na mão dela, e estava contente e ficava brincando em volta dela. À noite, quando a irmãzinha estava cansada, e após ter feito as suas orações, ela punha a sua cabeça nas costas do cabritinho, que ficava como travesseiro, e ela dormia suavemente sobre ele. E se o seu irmão adquirisse de volta a sua forma humana, a vida se tornaria maravilhosa.

Durante algum tempo eles ficaram sozinhos na selva. Mas um dia o rei daquele país realizou uma grande caçada na floresta. Então se ouviram rajadas de buzinas, latidos de cães, e os gritos felizes dos caçadores ecoavam pelas árvores, e o cabrito ouvia tudo, e estava muito curioso para estar lá.

— “Oh,” disse ele para a irmã, “eu também quero ir caçar, não aguento de vontade,” e ele insistia tanto que finalmente ela concordou.

— “Mas,” disse ela para ele, “volte quando anoitecer, porque eu preciso fechar a porta para que os caçadores não entrem, então bata na porta e diga: “Minha irmãzinha, me deixe entrar!” para que eu possa saber que é você, e se você não disser isso, eu não abro a porta.”

Então o pequeno cabritinho saiu dando pulinhos, porque ele estava muito feliz e era livre como um pássaro.

O rei e o caçador viram a linda criaturinha, e partiram em direção a ele, mas não conseguiram pegá-lo, e quando eles achavam que estavam quase conseguindo, ele fugia para longe pelo meio do mato até que não conseguiam mais vê-lo.

Quando ficou escuro ele correu para a choupana, bateu na porta e disse: — “Minha irmãzinha, me deixe entrar.” Então a porta se abriu para ele, e ele entrou dando pulinhos, e descansou a noite inteira em sua cama macia.

No dia seguinte a caça recomeçou, e quando o cabritinho ouviu novamente o toque da corneta, e o rou! rou! dos caçadores, ele não teve paz, mas disse: “Irmãzinha, me deixe sair, eu preciso sair.”

Sua irmã abriu a porta para ele, e disse: “Mas você tem de estar aqui novamente ao anoitecer e dizer a sua senha para entrar.”

Quando o rei e os caçadores novamente avistaram o cabritinho com um colar de ouro, todos se puseram a caçá-lo, mas ele era muito rápido e ágil para eles. E assim foi o dia todo, mas, finalmente, ao anoitecer, os caçadores o cercaram, e um deles o feriu no pé de leve, de maneira que ele mancava e corria devagar.

Então um caçador seguiu escondido atrás dele até a cabana e ouviu quando ele disse: “Minha irmãzinha, me deixe entrar,” e viu que a porta se abriu para ele, e se fechou imediatamente.

O caçador tomou nota de tudo, e foi até o rei e contou para ele o que ele tinha visto e ouvido. Então o rei disse: “Amanhã nós voltaremos a caçar.”

A irmãzinha, todavia, ficou muito assustada quando ela viu que o seu cabritinho estava machucado. Ela lavou a ferida dele, colocou ervas no machucado, e disse: “Vá dormir, querido cabritinho, para que você fique bom logo.”

Mas o ferimento era tão superficial que o cabritinho, na manhã seguinte, não sentia mais nada. E quando ele ouviu barulho de caça do lado de fora, ele disse: “Eu não aguento mais, eu preciso sair, eles verão que não é tão fácil me pegar.”

A irmã exclamou e disse: “Desta vez eles vão te matar, e aí eu ficarei sozinha na floresta, abandonada por todo mundo. Não vou deixar você sair.”

“Aí é que eu vou morrer de tristeza,” respondeu o cabrito, “quando eu ouço o toque da corneta, eu sinto como se fosse pular para fora de mim mesmo.”

Então a irmãzinha não poderia fazer outra coisa, mas abriu a porta para ele com uma dor no coração, e o cabritinho, cheio de saúde e alegria, correu para a floresta.

Quando o rei o viu, ele disse para o caçador: “Agora vamos caçá-lo o dia todo até o cair da noite, mas tomem cuidado para que ninguém o machuque.

E assim que o sol se pôs, o rei disse para os caçadores: “Agora venham e me mostrem a cabana da floresta,” e quando o rei estava na porta, e bateu e chamou: “Querida irmãzinha, me deixe entrar.”

Então a porta se abriu, e o rei entrou, e lá estava a jovem mais adorável que ele já viu. A jovem ficou assustada quando viu não o seu cabritinho, mas um homem que vinha usando uma coroa de ouro na cabeça.

Mas o rei olhou gentilmente para ela, estendeu a sua mão, e disse: “Você iria comigo para o meu palácio e seria a minha esposa adorada?”

“Sim, majestade,” respondeu a jovem, “mas o pequeno cabritinho deve ir comigo, não posso deixá-lo.”

O rei disse: “Ele ficará com você enquanto você viver, e não lhes faltará nada.”

Só então o cabritinho veio correndo, e a irmã novamente o amarrou com a corda feita de juncos, o pegou em suas mãos, e foi embora da cabana com o rei.

O rei levou a linda jovem em seu cavalo e a conduziu ao palácio, onde o casamento foi realizado com grande pompa. Agora ela tinha se tornado rainha, e eles viveram felizes e juntos por muito tempo, o cabritinho era cuidado com muito amor e carinho, e passava o tempo correndo pelos jardins do palácio.

Mas a madrasta perversa, a qual era a culpada pelas crianças terem saído pelo mundo, achava o tempo todo que a irmãzinha tinha sido reduzida a pedacinhos pelos animais selvagens da floresta, e que o irmão tinha sido morto como cabritinho pelos caçadores. Então quando ela soube que eles estavam tão felizes, e passavam bem, a inveja e o ódio tomaram conta do seu coração e ela não conseguia ter paz, e ela não queria pensar em nada que não fosse infelicitar a vida deles novamente.

A sua própria filha, que era tão feia quanto um filhote de cruz credo com Deus me livre, era caolha, e disse resmungando para ela: “Rainha, eu é que devia ser a rainha.”

“Pode ficar sossegada,” respondeu a velhinha, e a consolava dizendo: “quando chegar a hora eu estarei preparada.”

A medida que o tempo passava, a rainha teve um menino lindo, e um dia o rei tinha saído para caçar, então a velha bruxa tomou a forma da camareira, foi para o quarto onde a rainha ficava, e disse a ela: “Venha, o seu banho está pronto, ele lhe fará bem, e vai lhe proporcionar novas forças, apresse-se antes que esfrie!”

A filha também estava perto, então elas levaram a rainha para o banheiro, e a colocaram na banheira, depois, elas trancaram a porta e saíram correndo. Mas no banheiro, elas tinham aquecido o banho com um calor tão infernal que a bela e jovem rainha se sentiu sufocada.

Depois de terem feito isso, a velha pegou a sua filha e colocou uma touca de dormir na cabeça dela, e a colocou na cama do rei no lugar da rainha. Ela deu à filha a forma e a aparência da rainha, ela somente não conseguiu melhorar o olho que a sua filha tinha perdido. Mas para que o rei não percebesse isso, ela deveria se deitar do lado onde ela não tinha um olho.

À noite, quando o rei voltou para casa, e soube que ele tinha um filho ele ficou muito feliz, e foi para a cama da sua querida esposa para saber como ela estava. Mas a velha gritou rápido: “Pela tua vida, mantenha as cortinas fechadas, a rainha não pode ver a luz ainda, e precisa descansar.”

O rei saiu, e não descobriu que a falsa rainha estava deitada na cama.

Mas a meia noite, quando todos estavam dormindo, a babá, que estava sentada no quarto do bebê perto do berço, e que era a única pessoa acordada, viu a porta aberta e a verdadeira rainha entrando. A jovem rainha tirou a criança do berço, colocou-a em seus braços, e deu de mamar a ela. Depois ela sacudiu o travesseirinho, deitou novamente a criança, e a cobriu com uma pequena manta. E ela não se esqueceu do cabritinho, mas foi até o cantinho onde ele estava e fez um carinho nas suas costas. Depois ela saiu silenciosamente pela porta novamente.

Na manhã seguinte a babá perguntou aos guardas se alguém teria entrado no palácio durante a noite, mas eles responderam: “Não, não vimos ninguém.”

Ela vinha então durante muitas noites e nunca falava uma palavra: a babá sempre a via, mas ela não ousava dizer nada para ninguém.

Quando tinha passado algum tempo nesta mesma rotina, a rainha começou a falar a noite e disse: “Como está o meu filho, como anda o meu cabritinho? Vim duas vezes, e depois não virei nunca mais.”

A babá não respondeu, mas quando a rainha tinha saído novamente, ela foi até o rei e lhe contou tudo.

O rei disse: “Oh, céus! o que é isto? Amanhã à noite eu vou ficar vigiando perto da criança.”

À noite ele foi até o quarto do bebê, e a meia noite a rainha apareceu novamente e disse: ”Como está o meu filho, como anda o meu cabritinho? Uma vez eu vim, e depois nunca mais.”

E ela cuidou da criança como ela fazia antes de desaparecer. O rei não ousou falar com ela, mas na noite seguinte ele fez vigília novamente. Então ela disse: “Como está o meu bebê, como vai o meu cabritinho? Desta vez eu vim, mas depois nunca mais.”

Então o rei não conseguiu se conter, e correu em direção à ela e disse: “Você deve ser ninguém mais que a minha querida esposa,” e no mesmo instante ela viveu novamente, e com a graça de Deus, ela ficou viçosa, rosada e cheia de saúde.

Então ela contou ao rei a maldade que a bruxa perversa e a sua filha eram culpadas do que tinha acontecido com ela. o rei ordenou que elas fossem apresentadas diante do tribunal, e o julgamento foi decidido em condenação para elas. A filha dela foi levada para a floresta onde ela foi feita em pedacinhos pelos animais selvagens, mas a bruxa foi atirada no fogo e queimada até virar brasa. E quando ela era queimada, o cabritinho mudou o seu aspecto e tomou a forma humana novamente, então a irmãzinha e o irmãozinho viveram felizes juntos até o fim dos seus dias.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Fuga do Hospício e outras crônicas) Parte II

análise por Édson Carlos (UFRN), especialista em Linguística (UnP)

PARTE II – MUNDO MODERNO

Nesta parte, encontram-se aquelas que versam sobre os aspectos da época e da sociedade em que o autor viveu: o transporte através dos bondes, a visita de personalidades importantes em sua época e fatos marcantes que ocorreram em tais dias, como um famoso caso de bigamia, um homem que deu à luz e outros ocorridos relevantes em seu tempo. O autor não deixa de se preocupar, como bom cronista, com a nova realidade por que passava o país. A urbanização, o cosmopolitismo gerado pelo capitalismo, o processo de desenvolvimento social e científico, tudo vai ser captado com a perspicácia e visão crítica desse escritor carioca, considerado pela crítica como “o implacável crítico da consciência humana” e o grande observador da sociedade de sua época.

Como comportar-se no bonde

Publicada em 4 de julho de 1883. O autor, de modo lúdico, constrói um conjunto de regras para todos que queiram usar os bondes como meio de locomoção. O texto se baseia em 10 artigos que definem como deve se portar desde os passageiros com resfriado, até aqueles que queiram ler jornal durante a viagem. Critica a sociedade e suas atitudes cotidianas. Partindo de algo simples como usar um bonde, o autor ironiza a própria sociedade e sua falta de respeito, educação e cortesia ao tratar a se mesma. É, como sabemos, a função do cronista, ou seja, captar um flagrante social e expor de forma analítica e crítica. É o escritor do dia-a-dia.

Visita de um anarquista

Publicada em 20 de outubro de 1895. Narra a viagem da anarquista Luísa Michel ao Brasil. Conta um incidente ocorrido entre ela e um grupo de locatários. Os capitalistas vão até a anarquista e pedem-lhe ajuda, expondo as amarguras financeiras que lhes são impostas por seus inquilinos. Ao ouvir tal relato, a anarquista vibra de emoção, julgando o anarquismo já consumado no Brasil. O texto ironiza a ignorância dos locatários ao demonstrarem sequer saber o que é anarquismo e, mesmo assim, o temerem. Critica também o fato de que, aos olhos da anarquista, o anarquismo já se consumou no país. Com tal postura, o autor nada mais quis do que atacar a falta de ordem que dominava a sociedade, o que, aos olhos de uma estrangeira era algo nunca antes visto. Ele relacionou a doutrina política com o significado pejorativo que o termo “anarquismo” adquiriu com o passar dos anos. O autor versa sobre a realidade política brasileira e a (des)organização pública de nosso país.

Um acontecimento inusitado

Publicada em 7 de julho de 1878. Crônica que analisa o caso de um quadragenário da cidade de Caravelas, na Bahia, que dera à luz a uma criança:

(...) sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da criatura, que não chegou a viver.

Depois, de um modo bem humorado, mas com teores de ponderação, o autor concluiu:

E porque não suponho que ocaso de Caravelas deve ser o único, acontece que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que vai me cair nos braços e bradar (...) “sou mãe”. Esta palavra retine-me os ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz (...)

Aqui se percebe um caráter profético, bem pouco cultivado por autores da época. Não esqueçamos que o autor foi um dos maiores críticos da ciência, do positivismo, sobretudo.

Progresso

Publicada em 15 de março de 1877. Narra a inauguração do sistema de bondes em Santa Teresa, fazendo uma referência à modernidade e, a seguir, de modo bastante descontraído, afirma que os bondes farão bem a santa Teresa, que agora “vai ficar à moda”. Percebe-se que, por trás do aparecer ar de felicidade, existe uma forte crítica do narrador.

Espiritismo

Publicada em 5 de outubro de 1885. O autor narra uma incursão ida a um encontro espírita de um modo bastante inusitado: sua alma desprende-se de seu corpo e vai à reunião, mas, ao retornar, encontra seu corpo possuído pelo diabo o qual, depois de fazer insinuações sobre a doutrina espírita, devolve o corpo ao espírito.

O texto versa sobre o espiritismo, comparando-o a um medicamento novo, que promete curar as doenças de modo eficaz que todas as medicações antigas. A crônica pode ser vista, também, como uma crítica a todos aqueles que, ao manterem um primeiro contato com uma nova religião, aceitam – sem questionar – todas as suas doutrinas e ensinamentos, suplantando, com eles, suas antigas crenças. Não se pode deixar de observar, por outro lado, a obsessão e o interesse do autor pela metafísica. Afinal, em várias de suas narrativas esse tema salta aos olhos. Podemos citar narrativas como A cartomante, A igreja do Diabo, O enfermeiro, por exemplo.

Verbas públicas

Publicada em 1 de setembro de 1878. Crônica que fala sobre a atitude da Câmara Municipal de negar o fornecimento de jantar para o júri quando as sessões se prolongassem até tarde. O autor se mostra a favor do fato, complementando que isso desordenaria a mente dos jurados e encerra seu texto afirmando:

O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há processos longos e juízes famintos?
Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperam alguns mais.

O texto também pode ser visto como uma crítica ao comodismo da sociedade e sua necessidade de sempre receber algo em troca do serviço que esteja prestando, não importa qual seja ele.

Direitos dos burros


Publicada em 10 de junho de 1894. Ao sair em seu jardim, o autor encontra um burro. O animal dirige-lhe a palavra e pede que ele, como homem da imprensa, interceda por sua espécie tão injustiçada. A crônica critica a disparidade existente na aplicação de penas existente entre ricos e pobres. Os primeiros, não importa o que façam, safam-se da justiça mediante seus recursos financeiros, os outros, por mais insignificantes que sejam seus crimes, cumprem penas exageradas. Em outro momento, Machado de Assis aproveita para criticar as propostas de ensinar o inglês nas escolas públicas, afinal, para alguns professores de seu tempo, tal idioma possuía mais importância que o português.

O boi

Publicada em 1 de outubro de 1876. Fragmento de crônica que critica a opinião pública para representar. O autor usa a figura do boi para representar a pecuária criticada pela opinião pública, partindo de tal analogia, ele ressalta o papel do boi em tal embate, afirmando que ele nada tem a ver com tal debate, afinal, seu interesse nunca importa, sempre estando subordinado aos interesses do produtor, do intermediário e do consumidor.

Caso de bigamia

Publicada em 23 de setembro de 1894. Partindo de um suposto caso de bigamia que não pode ser comprovado perante a lei (já que existe um atestado de óbito para a primeira esposa do homem), o autor defende que o único meio de se chegar até a verdade é através do espiritismo. O texto critica o fato de que apenas levamos a sério, ignorando-as. Veja, por exemplo, o que acontece com o personagem “Camilo”, de A cartomante.

História de bichos

Publicada em 1 de julho de 1894. O texto narra outro dilúvio. O autor reuniu sete casais de cada animal e, pondo-os em uma arca, tentou conter as diferenças entre eles, no final, soltou uma pomba pela janela e ela não voltou, soube assim que o dilúvio havia acabado e liberou os animais que saíram juntos, alguns enroscados amigavelmente em outros e outros, por sua vez, oscilando entre voos e saltos de felicidade. A crônica trata das diferenças entre aqueles que, à primeira vista, são semelhantes, dos desentendimentos surgidos pela superlotação e, sobretudo, da alegria daqueles que sobrevivem a acidentes e desastres, uma alegria que derruba todas as barreiras.
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continua…

Fonte:
Passeiweb

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 46 – 10 de fevere1ro de 1888

Eu, acionista do Banco
Do Brasil, que nunca saio,
Que nunca daqui me arranco,
Inda que me caia um raio,

Para saber como passa
O Banco em sua saúde,
Se alguma cousa o ameaça,
Se ganha ou perde em virtude.

Li (confesso) alegremente,
Li com estas minhas vistas,
O anúncio do presidente
Convocando os acionistas.

Para quê? Para o debate
Do reformado estatuto,
Obra em que há de haver combate,
Que traz gozo, que traz luto.

Pois nesse anúncio, à maneira
De censura, escreve o homem
Que é já esta a vez terceira
Que chama e que eles se somem.

Minto: sumiram-se duas.
Não tem culpa o anunciante,
Se há necessidades cruas
Do metro e de consoante.

Pela vez terceira os chama,
E agora é definitivo,
Muitos que fiquem na cama,
Um só punhado é preciso.

Mas eu pergunto, e comigo
Perguntam muitos colegas,
Que, indo pelo vezo antigo,
Não vão certamente às cegas;

— O acionista de um banco,
Só por ser triste acionista,
É algum escravo branco?
Não tem foro que lhe assista?

Não pode comer quieto
O seu costumado almoço,
Debaixo do próprio teto,
Velho já, maduro ou moço?

Barriga cheia, não pode
Dormitar o seu bocado,
Para que o não incomode
O que tiver almoçado?

Pois então a liberdade
Que tem toda a outra gente
Cidadã, meu Deus, não há de
Tê-la esta pobre inocente?

É certo que os diretores
Do Banco são reduzidos
A quatro, e que outros senhores
Vão a menos: suprimidos.

Em tal caso, é razão boa
Para que, firmes, valentes,
Compareçam em pessoas
Diretores e gerentes.

Res vestra agitur. Justo.
Mas que temos nós com isto?
Para que me metam susto
Só outra cousa, está visto.

Sim, o que algum susto mete,
Transtorna, escurece, arrasa,
Não é que eles sejam sete
Ou quatro os chefes da casa.

Sejam sete ou quatro, ou nove,
Disponham disto ou daquilo,
É cousa que me não move,
Posso digerir tranqüilo.

Porquanto, digo, em havendo
Nas unhas dos pagadores
Um bonito dividendo,
Que nos importam divisores.

Tenham estes cara longa,
Cabelo amarelo ou preto,
Nasceram em Covadonga,
Em Tânger, em Orvieto;

Usem de barbas postiças,
Ou naturais, ou nenhumas;
Creiam em sermões, em missas,
Ou na sibila de Cumas;

Para mim é tudo mestre,
Contanto que haja, certinho,
No fim de cada semestre
O meu dividendozinho.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Teófilo Braga (A Feia que fica Bonita)

Recolhido no Algarve

Era uma vez uma velha, que tinha uma neta, que era feia como um bicho. A velha morava defronte do palácio do rei, e meteu-se-lhe em cabeça de vir a casar a neta com o rei. Lembrou-se de uma gíria. Todas as vezes que o rei saía a passeio, ao passar por diante da porta da velha, ela despejava para a rua uma bacia de água de cheiro, e dizia:

— A água em que a minha neta se lava cheira que rescende.

Sucedeu isto assim tantas vezes, que o rei reparou para o caso, e pediu à velha que lhe deixasse ver a neta, que se lavava em água tão cheirosa.

A velha escusou-se dizendo que não, porque a neta era muito vergonhosa, mas que tudo se arranjaria, porque assim que fosse noite iria com ela fazer uma visita, e por este engano a levaria ao palácio. Disse também ao rei que era a cara mais linda do mundo; o rei esperou que anoitecesse, até que ouviu o sinal combinado, e veio buscar a rapariga.

A velha foi-se embora, pensando que o rei ficaria com a neta; quando o rei chegou ao seu quarto e acendeu a luz, deu com uma mulher feíssima e desengraçada; ficou zangado com o logro, e na sua raiva despiu-a toda e fechou-a numa varanda ao relento da noite.

A pobre rapariga não podia perceber a sua desgraça, e com o frio e com o medo da escuridão estava bem perto de morrer.

Lá por essa meia-noite passou um rancho de fadas, que andavam a distrair um príncipe que tinha perdido o riso; o príncipe assim que viu a rapariga nua desatou logo às gargalhadas. As fadas ficaram muito contentes, e quando viram que a causa fora aquela rapariga nua, negra e feia, disseram-lhe:

— Nós te fadamos, para que sejas a cara mais linda do mundo.
   
Quando de madrugada o rei veio ver se a rapariga teria morrido, achou-a lindíssima, e ficou pasmado do seu engano. Pediu-lhe muito perdão, e pediu-lhe logo para casar com ela. Casaram e fizeram-se grandes festas.

A velha avó, que morava defronte do palácio, soube que a nova rainha era a sua neta; foi ao palácio pedir para lhe dar uma fala. Chegou-se ao pé da neta e perguntou-lhe baixinho:

— Quem é que te fez tão bonita?

A neta respondeu na sua boa verdade:

— Fadaram-me.

Como a velha era surda, entendeu que lhe dizia: «Esfolaram-me».

O rei, deu-lhe muito dinheiro assim que ela se despediu, e ela foi logo a casa de um barbeiro para que a esfolasse, porque queria ficar outra vez nova.

O barbeiro não queria, ela deu-lhe todo o dinheiro que levava; por fim começou a esfolá-la, e a velha morreu no meio de grandes dores, pensando que ficava bonita.
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Nota

Nos Contos Populares Portugueses, nº LXV, há uma versão de Coimbra com o título A Velha Fadada.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Emilio de Menezes (Viagem a Aparecida do Norte) Impressões

"Já que entramos nesse detalhe das refeições, justo é fazer uma referência à boa qualidade e à abundância dos pratos servidos aos peregrinos pelo Hotel. Andrade. Uma nota que não pode deixar de ser registrada aqui abona grandemente a comissão da imprensa que esteve naquele hotel.

Creio que raramente se poderá observar fato idêntico. 0 vinho, para todos os peregrinos, era pago como extraordinário. Pois bem, tendo os jornalistas presentes ordens francas da respectiva comissão e apesar de o vinho ser ali vendido a 2$ a garrafa (vinho nacional!) as despesas extraordinárias de vinho e águas minerais, para cinco jornalistas e mais seis pessoas agregadas à comissão geral, montaram à fabulosa soma de 34$500! ...

E ainda dizem que os jornalistas são chupistas!. .

Mas, volvendo ao Cônego Andrade- Era de esperar, como dissemos apesar de sua idade, um dos esplêndidos triunfos oratórios a que ele, de há muito, habituou os nossos fiéis. É um consagrado do púlpito, e não raros são os que o preferem, e nesse caso estamos nós, ao atual bispo de Olinda, Monsenhor Brito, uma das figuras mais sugestivas da tribuna sagrada.

0 seu sermão foi, portanto, brilhantíssimo admirável de dialética, sóbrio de gestos, conciso, mas não foi uma surpresa. Todos esperavam por isso.

Uma verdadeira revelação, para nós, foi o discurso do Padre Ricardino Séve. Não o conhecíamos em pessoa.

0 seu nome no entanto, nos passara diversas vezes pelo bico da pena, pois não poucas foram as objurgatórias que paroquianos de São Cristóvão nos vieram trazer contra o eminente sacerdote, sob forma de reclamações. Nessas reclamações o Padre Séve era dado em geral, como um desvairado, um energúmeno, sem o menor senso sacerdotal, sem o menor critério de. homem, sem mesmo a mínima intuição moral.

Tinha de falar, à noite, na despedida dos romeiros, um outro sacerdote, que não sabemos bem por que motivo se escusou à última hora.

Soubemos, então, que o Sr. Arcebispo mandara chamar um outro padre e lhe pedira que subisse ao púlpito. Não sabíamos qual fosse o padre. A certeza, porém, de que nenhum dos pregadores presentes poderia exceder Monsenhor Andrade, fez com que deixássemos igreja, finda a cerimônia, em busca das acomodações no "especial" Mal ganháramos o pátio e uma voz forte, clara, vibrante, se ouvir. Paramos.

-É fulano, dissera quase imperceptivelmente um nosso companheiro.

-Quem?

Não tivemos resposta.

O companheiro reentrara na igreja. Reentramos. Todas as faces voltadas para o púlpito. Erguemos os olhos. A nossa primeira exclamação, sopetada, ter sido esta:

-Que belo padre!

Ouvíamos. Queríamos ao mesmo tempo observar na grande mas dos fiéis a impressão produzida por aquela palavra estranha que nos arrebatava, também. Vimos e ouvimos.

Terminada a estupenda peça oratória, esperamos o padre escada do púlpito. Queríamos dizer-lhe qualquer coisa, mesmo no atrapalhamento da emoção, saber-lhe o nome, felicitá-lo.

Qual! O homem curvou-se como quem não quer ver e disparou para a sacristia.

Lá lhe fomos ao encalço. Suava, risonho, mudando as vestes. Um redentorista alemão nos embargava o passo, teutonicamente comovido, e nos explicava na sua meia-língua, trôpega como um ébrio e áspera como um cardo bravio:

-Tifino! Tifino! jamados última horas, badre Zefe, faz tisgursa zuplime!...

Afastamos o redentorista e nos precipitamos para o pregador:

-Reverendo, somos da imprensa. Em nome dela viemos felicitá-lo pelo seu brilhante sermão.

-Discurso, volveu ele, discursinho...

-Quis tomar notas, lhe disse Oscar Dermeval, mas...

-Difícil, difícil! Quando preparo os meus sermões, ainda pode ser apanhados, mas assim, pegado de improviso, como fui, o me desejo é terminar, acelero sem o querer, deixo-me levar na corrente e se estou feliz, não me sei refrear na impetuosidade que levo. Abandono-me ao impulso adquirido.

-Pois, reverendo, em nome da imprensa...
 
-Da imprensa? Que jornais? Tenho sido muito vitimado por ela, acrescentou risonho. Correio, Tribuna, Paiz, jornais caricatos todos enfim me têm atacado.

Isto dizia sem ódios sem rancores, mas numa afirmação de superioridade, em que se lhe sentiam o vigor, a energia, a aptidão para a luta. Afinal, não nos contivemos:

-Mas reverendo, o seu nome. Não sabemos de padre assim tão atacado.

-Ricardino Séve! ...

-O Padre Séve?! o de São Cristóvão?! ...

-Esse mesmo!

-Pois então reverendo! Batemos o nosso mea culpa, porque também o temos
descomposto à vontade! ...

-Já sei, é natural, não me conhecem, informações. . .

-Chegamos com Vossa Reverendíssima até à torpeza do trocadilho.

-Sim? Qual foi?

-Dissemos alhures que os dois padres mais dignos. . . de nota eram o Séve e o Seve... riano! - Riu. Disse-nos então todo o motivo dessa luta em que tem estado na paróquia, mas sem recriminações, sem ressentimentos.

Sente-se nele o homem superior, tenaz, enérgico, que pode vencer todas as campanhas, pois para isso não lhe faltam qualidades físicas e intelectuais.

É um forte na melhor acepção da palavra.

Alto, varonil, de uma inexcedível beleza máscula, olhos de uma mobilidade inenarrável, insinuantíssimo, e depois com aquele poder mágico da palavra, estamos convencidos de que ele há de, em breve, chamar a si as boas graças de todos os seus paroquianos.

Nós pelo menos, consideramos uma verdadeira felicidade o acaso que nos proporcionou o conhecimento desse belo espírito que se chama Ricardino Séve!

O remate, que esse estupendo senhor da tribuna sagrada deu aos festejos propriamente rituais da Aparecida, foi em tudo digno dos prodígios de eloquência que fez nessa piedosa romaria o excepcional talento de Afonso Celso Júnior.

E se isso foi um bem, se tivemos a felicidade de embalar o espírito, durante horas, ao acalentador carinho da fé católica e da intelectualidade brasileira, devemos esse bem, devemos essa felicidade à gentileza, ante a qual todos os agradecimentos são poucos, do Sr. Com. José Pereira de Sousa.

Com meia dúzia de crentes da ordem desse digno cavalheiro, cremos que muitas conversões se fariam no nosso meio.

A ele, pois, todas estas linhas."

Fonte:
Emílio de Menezes, Obra Reunida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Emílio de Menezes (O Último Corvo de César)

Estes "Salpicos", em geral são rimados, mas a rima, coisa de poeta, participa da natureza deste. É inconstante e indolente. Até a última hora, não nos chegaram os versos esperados e resolvemos preencher a seção de qualquer maneira. Há sempre numa redação coisas inúteis, insultas e mal vernaculizadas, que ficam a entulhar gavetas e armários para os dias fatais de falta de matéria. (Falta rara, felizmente, cá por casa). São colaborações anônimas e gratuitas de vários gêneros e sabores vários.

Numa devassa pelos móveis, com todos os rigores de busca e apreensão com que Aurelino costuma arranjar as provas de uma conspirata, resolvemos tudo e demos com essas tiras que aí vão, em súmula, já amarelentas, como as faces semitapuias do Sr. Pires Ferreira

0 que aí segue perdeu em graça o que julgou ganhar em filosofia e perdeu em filosofia o mesmo que deixou de ganhar em graça. É uma velha anedota de cunho autenticamente histórico e que, apesar da falta de graça e ausência de filosofia, talvez possa, com retoques, ter uma aplicação de atualidade. Vamos resumí-la. Como sabem, o corvo, na Europa, só tem de comum com o nosso urubu, malandro ou não-malandro, a cor. É um conirostro palrador que, dentro da plumagem hemeterícamente escura, e sem os tons verde-amarelos da alma jacobina do Sr. Lopes Trovão e do nosso papagaio, fala como este e como este aprende coisas.

Quando César voltava triunfalmente das Gálias, um patriota qualquer, desses que amam o oportuno fio da espada, conseguiu ensinar o seu corvo predileto que, por sinal, não era de todo negro, a dizer esta frase: "Eu te saúdo, César vencedor!" César, ao passar ficou maravilhado ante o prodígio e fez imediatamente adquirir o plumitivo exaltador da sua onipotência e da sua vaidade. Foi uma praga. Quem tivesse corvo à mão, entrava logo a ensinar-lhe aquelas palavras excelentemente glorificadoras. E César começou a comprar corvos, mas tantos comprou que já se lhe entupiam as oiças com o coro infernal das glorificações.

Um mísero sapateiro, cuja vida lhe corria pior que a do Sr. Cunha Vasconcelos nos tempos de hoje, concentrou todas as esperanças de salvação financeira, tal qual Pernambuco, num corvo que filha amorosa lhe mandara de longes terras. Todos os dias, por vinte ou cem vezes, pacientemente repetia as palavras sagradas e o corvo ouvia.

Mantinha-se fúnebre, no seu crocitar primitivo, sem mostras de entender patavina daquilo, na mesma pirronice com que o Bezerra não quer entender de agricultura.

De todas as vezes, o velho sapateiro se erguia desolado, abandonava a sovela e o cerol e exclamava: "Perdi meu tempo e meu trabalho!" e o corvo moita.

Passam-se as semanas, correm os meses. "Eu te saúdo, César vencedor!" - "Perdi meu tempo e meu trabalho!

Acontece, porém, que César, passando certo dia pela tenda do gaspeador de botas, com o ruído das aclamações, o corvo, até então mudo como o índio no Senado, despertou e, por singular coincidência, pronunciou inconscientemente a saudação por tanto tempo ouvida.

César, já cansado de comprar corvos, não ligou. Mas o corvo tinha decorado também o resto e grasnou: "Perdi meu tempo e meu trabalho!" 0 vencedor das Gálias retrocedeu e foi esse o último corvo que adquiriu.

Quem será o último corvo de César?

Fonte:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Frei Caneca (Não Posso Contar Meus Males)

Não posso contar meus males,
Nem a mim mesmo em segredo
É tão cruel o meu fado,
Que até de mim tenho medo.

GLOSA
Dos homens sendo a paixão
Incêndio voraz no peito,
Sempre tem funesto efeito,
Se não rebenta o vulcão.
Eis porque, meu coração,
Pouco falta, que me estales;
Porque nos montes, nos vales,
Em deserto, ou povoado,
Não posso soltar um brado,
Não posso contar meus males.

Horrenda sorte, e funesta,
Escasso fado mofino,
Até me roubas, malino,
O alívio que me resta!
Tudo que sinto me atesta
Que os do Cocyto ainda excedo;
Porque não tendo eles medo
De contra Deus blasfemar,
Não posso de mim falar;
Que até de mim tenho medo.

Ver o pólo negro arder
Em raios abrasadores;
Feros Notos berradores
Dos montes cedros varrer;
Todo o mundo estremecer,
Dos trovões ao rouco brado;
Da terra o centro rasgado
Nações inteiras sorvendo,
Quanto ver isto é horrendo!

É tão cruel o meu fado.
O peito d'antes sereno
Centro de amor e ternura,
Agora é morada escura
De males mil, com que peno.
Vós p'ra quem um fado ameno
Aponta com áureo dedo,
Fugi de mim, porque cedo
Mudar-se vereis a sorte;
Pois o meu mal é tão forte,
Que até de mim tenho medo.

Fontes:
Portal Domínio Público
Imagem Renato Dias Martino

Hora da Trova (3 de Março de 2014, 19hs)

AMIGO(A),

Tenho a honra de anunciar que, no dia 03.03.14 - uma segunda-feira - às 19h., será retomado programa radiofônico da UBT Porto Alegre, HORA DA TROVA, através da Web Rádio Primeira Região, acessada da seguinte forma:

http://radioprimeiraregiao.blogspot.com

Tenho certeza que vais gostar e até mandar mensagem, o que é muito fácil, na própria tela.

Vou passar as notícias do mundo da trova, recitar muitas trovas e tocar três músicas do nosso cancioneiro por semana.

Ah, e terão os colunistas ou comentaristas. Olha só: PEDRO MELLO, de São Paulo, ELIANA JIMENEZ, de Balneário Camburiu, JAQUELINE MACHADO, de Cachoeira do Sul, e MILTON SOUZA, de Porto Alegre. Sensacional, não?

Vou contar com tua audiência!!!
 
Flávio Stefani (RS)

Bruno Seabra (O Senhor Papa-Suspiros)

Bruno Henrique de Almeida Seabra
Tatuoca (Pará), 6 de Outubro de 1837 — Salvador, 8 de Abril de 1876
–––––––––––-

Cena cômica

Personagem: O senhor papa-suspiros

Representa um homem de 45 à 50 anos, vestido burlescamente.

A ação passa-se no Rio de Janeiro

Época: atualidade (Século XIX)


O teatro apresenta uma pequena praça

À frente casas em perspectiva! À esquerda, um lampião. — É noite.

Ao levantar-se o pano a personagem entra em cena pela direita

Cena única

O senhor Papa-Suspiros,

(Indo até o lampião cantarolando fanhosamente)

Com jeito se leva o mundo,
De tudo o jeito é capaz,
O caso é ajeitar-se o jeito
Como muita gente faz.1

(Pára; tira de dentro do chapéu um grande ramo de flores, beija e o cheira com entusiasmo: vem à cena, torna a beijá-lo; e passeia vagaroso.)

(Recita; é burlesco até o fim.)

(Rindo:)

Ah-ah-ah! ah-ah-ah! Forte lembrança!
Ora a gente também tem seus amores?!

(Pára e se dirige à platéia:)

E esta! que massada! pois um homem
Não tem alma também como os senhores?

(Canta)

Amor é como defluxo
De qualquer venta se apossa
Sem dar contas ao nariz;
Seja nariz de visconde,
Ou de ministro ou de moça,
Branco, escuro ou verniz.

(Pequena pausa; depois pergunta, cantando desentoadamente:)

Sendo assim pois
Quem se livra destes dois?

(Passeando:)

Ah-ah-ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente também tem seus amores?

(Beija o ramo com entusiasmo.)

(À platéia;)

Eu me chamo o senhor Papa-Suspiros,
Que é nome de família deste cujo;
Já sonhei uma vez com o baronato,
Apesar de me verem assim tão sujo:
E moro num quartinho muito estreito,
E não pago um vintém pela morada!
Filante não sou eu! porém pergunto,
Há de um homem teimar com a namorada?

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Oh que bela invenção, que bela idéia!

(À platéia:)

Acreditem que a gente vive muito
Quando sabe viver à custa alheia.

(Passeando:)

 Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Oh que bela invenção, que bela idéia!

(À platéia:)

Eu nasci p’ra viver à custa alheia,
E vivo assim, assim meio contente;
Pois se a gente nasceu para ser pobre
É melhor ir vivendo assim a gente!

Cada qual vai vivendo como pode,
E porque foi com a gente a sorte avára
Há de a gente fazer-se de soberba,
E deixar de viver de meia-casa?!

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente tem seus amores!

(Á platéia:)

Eu como, visto e bebo à custa delas,
Que vida regalada, meus senhores!

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente tem seus amores!

(Á platéia:)

Namoro a rapariga mais galante,
Que meus olhos já viram sobre a terra;
Quando penso em casar com a rapariga,
Meu terno coração no peito (Forte) ber...ra!

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Nasce um homem também p’ra ser marido!
Oh que dia feliz! (À platéia) quando me lembro
Tenho ânsias de ir como perdido!

(Canta)

Com jeito se leva o mundo,
De tudo o jeito é capaz,
O caso é ajeitar-se o jeito
Como muita gente faz.

(Passeando:)

Quero agora mandar fazer um fato.

(Atoleimado:)

E então fui comprar dez réis de flores;

(Mostrando o ramo para a platéia:)

O ramo é o capital... o fato os juros,
Que me hão de pagar os meus amores.

(Beija o ramo com entusiasmo:)
(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora um homem também já compra flores?!

(À platéia:)

Pois o caso é assim, comprei-lhe flores
Faz-se um mimo de um ramo à rapariga,
Depois... a gente pede qualquer coisa...
Não tem mais que dizer, — vendeu a espiga!

Pois amor é assim, o mais é bucha,
Eu cá sigo os amores desta laia.
Para paio de amor sou muito pobre,
Ela é mais rica, seja ela — paia!

(Canta:)

Com jeito se leva o mundo
De tudo o jeito é capaz,
O caso é ajeitar-se o jeito
Como muita gente faz.

A gente é como é — diz o que pensa,
Quem não pensa o que diz — faz como a gente,
Põe-se aí a pregar sermão aos outros
E pega — vai fazendo o que não sente.

Namorar, namorar como eu namoro,
Isto sim fica bem e a todos cabe;
Não é andar aí quebrando cantos.

(Rindo burlesco:)

Suspirando de amor por quem não sabe!

(Dentro batem 10 horas.)
(Depois de contar as horas:)

Já dez horas, Jesus! Não tarda a bicha!

(À platéia:)

Ai! que tenho ciúmes dos senhores!

(Olhando com atenção para a platéia e camarotes.)

Tanta gente... e que olhos curiosos
Para a cena gentil de meus amores!

Mas senhores, desejo a sós com ela,
A minha namorada, os meus amores,
Um momento ficar, para entregar-lhe.

(Mostrando:)

Este raminho de inocentes flores.

Como podem porém nos seus juízos,
De nós — ambos fazer — idéia injusta,
Eu lhes passo a contar um episódio
Para que vejam — quanto a moça custa.

(Canta ou recita ao som da música:)

A moça que eu amo
Tem olhos de gata
A cor da mulata,
Cabelos de lã;
Seus dentes são brancos,
Seus lábios vermelhos,
Que lembram dos velhos
A calva louçã.

Só veste os vestidos
À moda da França,
Seu nome é ‘Sperança,
Negaça de amor;
‘Svelta e gorducha
Tem fina cintura,
Na boca doçura,
No hálito odor.

Dez vezes lhe tenho
Um beijo pedido,
Não é meu marido,
— Responde, — e não dá!
Se intento agarrá-la
Me foge sorrindo,
E eu fico fingindo,
Dizendo-lhe que má!

Mas, amo esta moça,
Que nega-me um beijo,
E foge, e tem pejo,
Se teimo em pedir;
A moça, que fácil
Consente o amante
Beijá-la... adiante...
Promete — cair.

Há dias, a furto,
Beijei-a na orelha,
Se fez tão vermelha
Qual brasa em fogão!
Que mal faz na orelha
Beijar minha amante?
Tornou-me — tratante,
Cachorro... vilão! (Forte)

Que mal? Pois não sabe...
Não sabe e calou-se!
A moça engasgou-se

Com o fim da oração
Fitou-me nos olhos
— Em chamas ardidos;
Os meus atrevidos
Fitei-os no chão!

**

Já vem que essa moça
‘Stá fora de moda,
Não cabe, não se engoda
Com choros de amor!
Já vêem meus senhores,
Que a moça é inocente,
Palavra da gente
É toda pudor.

**

Eu me chamo o senhor Papa-Suspiros
Porque tenho vivido deste modo,
Suspirando d’amor pela Esperança,
Criada a mais gentil do mundo todo!

(Retirando-se:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente também tem na esperança!

FIM

1 Note-se que, na grafia da época, século XIX, jeito e ajeita-se grafavam-se com a letra gê, com o que o autor faria uma sugestão psicológica entre “geito”, “ageita-se” e gente.

Fonte:
Portal Domínio Público

Machado de Assis (Fuga do Hospício e outras crônicas) Parte I

análise pelo Prof.  Édson Carlos (UFRN), especialista em Linguística (UnP)

O livro Fuga do Hospício e Outras Crônicas é uma antologia com alguns textos publicados por Machado de Assis.

Divide-se em três partes, cada uma contendo dez crônicas com temática que se relacionam exatamente com o título de cada parte. São elas:

PARTE I – ALMA HUMANA
 
A primeira parte da seleção de crônicas ressalta bem as peculiaridades do íntimo humano, o pensamento, a postura e as atitudes do ser humano nas mais variadas circunstâncias, ressaltando a loucura, a ganância, a hipocrisia, o abandono, o canibalismo e muitas outras atitudes de cunho negativo que podem ser produzidas pela alma humana.

Fuga do hospício

Publicada em 31 de maio de 1896. O autor narra uma fuga de loucos que ocorreu num hospício carioca e discorre sobre seu temor em dirigir a palavra às pessoas na rua da tal fuga, afinal, qualquer uma delas pode ser um dos loucos que fugiram do hospício, como nos revela este trecho:

De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.

Machado defende que todos podem ser loucos, afinal, naqueles dias “o juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese”. Justifica tal afirmativa ao descrever os fatos que ocorreram durante a semana, como se os mesmos fossem fruto da loucura que compõe tais dias:

De resto, toda esta semana foi de sangue, – ou por política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso de Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é privilégio de oficio, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador Ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu ao diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas (...)

O autor encerra o texto apontando a música como uma solução à demência, à loucura de seus dias:

Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. (...) se consideramos (...) a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e divina (...).

Um pouco de astronomia


Publicada em 23 de dezembro de 1894, versa sobre o ocorrido durante a semana. Num primeiro momento, o autor narra um jantar realizado pelos ministros da Suécia e Noruega junto a oficiais da marinha e os cônsules da Holanda e Dinamarca.

Num segundo momento, através de uma pergunta feita por seu criado, o autor discorre sobre política e encerra seu texto falando sobre a descoberta de um novo planeta entre Marte e Mercúrio, relacionado à descoberta do astro com um terremoto ocorrido na Itália.

(...) um astrônomo diria sobre este novo planeta coisas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma relação entre os planetas que aparecerem e as cidades que ameaçam desaparecer com terremotos (...)
Andará a terra com dores de parto, e alguma coisa vai sair dela, que ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o planeta novo não foi o filho que ela deu à luz por ocasião dos terremotos italianos?

Por fim, num teor reflexivo, conjectura se a ganância das grandes nações fará que estas, depois de dominarem o continente africano por completo, não decidirão partir para a conquista dos outros planetas. Mais uma vez, narrando os fatos da semana, constrói uma crítica. Seu alvo agora é a ganância das grandes nações que exploram a África, as quais acabam por digladiar ideológica ou belicamente por necessidade de impor sua economia e ideologia às nações daquele continente.

Abolição e liberdade


Publicada em 19 de maio de 1888, um homem reúne seus amigos para um jantar e anuncia que, mesmo sem a escravidão ser abolida, dar alforria ao seu escravo Pancrácio. Tamanho ato de humanidade é elogiado por todos os seus companheiros. O homem permite que o negro continue morando em sua casa e trabalhando em troca de um salário. No entanto, mesmo alforriado, o negro apanha constantemente do patrão, o qual almeja um cargo na política:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um direito que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O autor busca, através deste irônico caso em particular, demonstrar sua opinião acerca da escravidão e, sobretudo, criticar a postura hipócrita daqueles que buscam, através de demonstrações públicas de um falso caráter, angariar a simpatia e admiração da sociedade, quando, em seus íntimos, continuam a ser pessoas mesquinhas e pobres de espírito.

Bondes elétricos

Publicada em 16 de outubro de 1892, num bonde, o narrador nota que, enquanto o cocheiro e o condutor cochilam, os dois burros que puxam o veículo conversam. Ambos falam um ao outro sobre a tristeza e a amargura de serem burros e o destino que lhes é reservado, afinal, quando não servirem mais para puxar bondes serão enviados para puxar carroças. Depois quando não servirem mais para tal serviço, serão abandonados nas ruas, onde morrerão e serão levados por uma carroça, puxada por outro burro, o qual possuirá o mesmo destino. O diálogo entre os dois animais e o assunto sobre o qual falam é uma espécie de metáfora sobre velhice, esquecimento e abandono e, por fim, a morte. O autor busca traçar uma crítica à modernidade que suplanta os antigos moldes de trabalho, pois os bondes elétricos começavam a surgir pelas ruas do Rio de Janeiro, substituindo os burros que antes faziam tal tarefa.

Carnívoros e vegetarianos

Publicada em de março de 1893, uma greve de açougueiros corta o abastecimento de carne para a cidade. O autor, vegetariano por escolha própria, revela as vantagens da dieta composta apenas por vegetais. Aponta as diferenças entre a carne repleta de vícios) e os vegetais (repletos de virtude). Mudando um pouco de assunto, encerra o texto criticando o pensamento de que a instrução pública de sua época devesse ensinar a língua italiana para as crianças e jovens, tendo em vista o grande número de imigrantes italianos no Brasil. O objetivo central do texto é, partindo de assunto da greve dos açougueiros (assunto em alta na semana em questão), criticar as propostas entabuladas nas discussões entre os senhores Capelli e Maia Lacerda sobre lecionar, na instrução pública brasileira, o idioma italiano. O autor usa de seu sutil sarcasmo ao construir o texto, concluindo em tom de sugestão:

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano a povo, antes ensinar nossa língua aos italianos. Mas, posto que isso não tenha nada a ver com o vegetarianismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

Poder relativo

Publicada em 20 de abril de 1885, nela o autor justifica seu posicionamento acerca de ter seu nome citado nas listas de sugestão para o Ministério e defende sua vontade em ingressar na política. Mesmo falando sobre si mesmo, machado ironiza:

Creia o leitor só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce.

Crônica que deixa de lado o ato de narra ou comentar os acontecimentos da semana, o autor concentra-se apenas em falar sobre seus desejos de ingressar na vida política.

Antropofagia

Publicada em 1 de setembro de 1895, a crônica discorre sobre as notícias de enforcamento de um professor de inglês que devorou algumas crianças em Guiné. Como de costume, o autor utiliza-se da ironia ao cogitar que talvez, o professor, ao devorar as crianças, estivesse apenas tentando explicar de modo prático o que era a antropofagia. A seguir, faz apontamentos sobre casos semelhantes de canibalismo ocorridos no Brasil. A crônica parte de tal fato para, num tom sutil criticar o academicismo e a intelectualidade, como vemos no trecho:

Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou um pequeno e comeu-o. os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos. É o que em pedagogia se chama ‘lição das coisas’.
 
Se fosse assim, deveríamos antes lastimar o sacrifício que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas.

Uma fábula persa

Publicada em 11 de agosto de 1878. O autor traça uma comparação entre o partido republicano e uma lenda persa, em que um jovem decide plantar limas para vender. Como as mesmas não se desenvolvem, ele passa a culpar o sol ao invés do solo, do adubo ou de sua própria inexperiência como lavrador. O sol foi assim escolhido por ser a razão mais visível, que lhe servil ao desabafo e que pudesse gritar e esbravejar seu ódio mesmo que não fosse culpado. O jovem arranca as ervas do solo e fica sem ofício. O autor conclui, numa relação mais do que direta ao Partido Republicano, afirmando que o mesmo deve conhecer toda a política social antes de entrar na vida política do país, para que num problema causado por sua própria incapacidade, um inocente não seja acusado injustamente.

Devaneio de um rei

Publicada em 11 de março de 1894. Partindo da história da colonização da ilha de Trindade, o autor defende que, se fosse rei, o preferiria ser sem súditos. Viver em uma ilha apenas com sua rainha e seu cozinheiro. O texto é uma crítica aos bajuladores dos poderosos, afinal, se ele desejava ser rei sem súditos era apenas para livrar-se tanto de petições e burocracia quanto de bajuladores, como fica evidenciado nas palavras do autor. Tratar-se, portanto, de uma forte crítica à conduta humana, sobretudo, quando levamos em conta o assédio bajulatório característico de pessoas que buscam um reconhecimento social através de “amizades” com homens públicos, para obterem respaldo e, quem sabe, posição pública favorável:

Quando nascesse uma espinha na cara, não haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma açucena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; (...) Se eu perdesse um pé, não teria o prazer de ver coxear os meus vassalos.

A forma irônica e picante com que o narrador se pronuncia nessa passagem demonstra sua habilidade em detectar e expor as falhas e os interesses humanos, que se apresentam como seres fracos e venais, não escolhendo postura ética ou moral para que possam ascender-se a alcançarem reconhecimento perante a sociedade.

Sobre a morte e o morrer

Publicada em 6 de setembro de 1896. Influenciado pela lembrança das mortes dos amigos Alfredo e Artur Gonçalves, o autor faz considerações sobre o envelhecer e o morrer. Versa sobre o número cada vez mais crescente de mortes que permeiam sua época:

Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O livro da semana foi o obituário, e não terás lido outra coisa, fora daqui, senão mortes e mais mortes.

Prossegue falando sobre os homens que matam uns aos outros e encerra discorrendo não sobre a morte impingida de um homem a outro, e sim à morte causada pela própria natureza:

E ainda não como aquele gênero de morte que nas mãos dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribuí-la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida por um terremoto, com a gente que tinha.

Aqui podemos observar uma forte tendência do escritor: o questionamento existencial e a reflexão acerca do sentido da vida. Não podemos deixar de referir-nos ao fato de que o autor vivenciou as contradições do fim do século, deixando-se, portanto, impregnar-se de angústia e desilusão em relação à euforia materialista que tomou conta do mundo desde a segunda metade do século XIX. Não é de se estranhar que em várias narrativas do autor aparecem personagens que passam pela angústia do viver e que buscam no tempo, na solidão e na própria escrita literária uma forma de exorcização de suas certezas metafísicas.
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continua…

Fonte:
Passeiweb

Jangada de Versos do Ceará (10) – Márcia Theóphilo

Márcia Theóphilo
Fortaleza/CE, 1940


A NOITE

No princípio havia noite
não se sabia o que era noite
havia somente luz e era tão intensa, nos trópicos
que se tinha a sensação de passar períodos de azul
de vermelho, de verde
era tão forte a luz que as pessoas tinham
a sensação de flutuar
dentro das cores
dentro das plantas
tudo o que hoje não fala, falava
intercomunicava-se entre si
as árvores falavam
e estimulavam o pensamento com suas flores
não se sabia o que era negro
existiam somente as cores que emanavam da luz
e distribuíam energia-pensamento
mas não se dormia
porque a música nasceu com o silêncio e com a noite
a música nasceu com a consciência dos primeiros ritmos
e com a noite nasceu o primeiro canto.

OS COQUEIROS

 O rosto daquela mulher
impressionou-me muito
éramos cinco
um morreu pelo caminho
e os outros
será que estão vivos?:

—olha o puxa-puxa criançada  olha o puxa-puxa!—

outro dia viajei
por terras desconhecidas
nos contornos das praias
os coqueiros

—água de coco gela água de coco gelada!—

as porções de açúcar estão crescendo
o fôlego
estou perdendo fôlego

está havendo aumento de terra
não existe mais água.

AS VITÓRIAS RÉGIAS

Eram estrelas que caiam no rio, eram estrelas:
as vitórias régias. Eu sei, Yanoá pensa,
não só os animais, tudo da natureza têm uma alma
uma alma alada que deixa o mundo quando sonha.
E ela sempre sonha lugares desconhecidos.
«Yanoá, Yanoá desperta
que os pássaros podem te levar em suas asas
os sonhos podem te destruir».
Acordava espantada de seus gritos.
«Os pássaros querem levar minha alma,
eu não quero ficar sozinha com meus pensamentos».
Seu rosto se ilumina e os cabelos espessos e lisos escorriam
pelo rosto enrugado, antigo, esculpido dos sonhos e do sol.
Um dia Yanoá, andará com seus sonhos, junto com Yara
ao fundos das águas. Yanoá,
vem brincar comigo, protege-me
dos peixes que dominam as águas e as plantas
crescidas no fundo do mar.»
O dia inteiro os peixes vão e vêem
entre teus longos cabelos.

FLORESTA MEU DICIONÁRIO

Louca risada a tua
ressoa afiada
mandioca brava, tua risada
tuas caricias, teu prazer agudo.
Kupahúba vive, anda, e volta
até o sol desaparecer, no dia
entre folhas e ervas,insetos, apodrecidas
matérias vegetais; nos multiplicaremos
o movimento não é deserto, é rio
rouba, saqueia, bebe o que quiseres
é abundante este rio, não para continua
para cantar o som das palavras
Açana, Yana, Nacaira
Caja, Pacaba, Maçaranduba
cada palavra um ser, palavras que escrevo
eu vejo um ar cheio de palavras
a floresta é meu dicionário
palavras, vivas e machucadas
ásperas de caminhos percorridos
Acana, Tapajura, Igarapé
cada palavra um ser, ressoando afiada.
Kupahúba abriu os olhos e aprendeu a ler.

FESTA DA LUA NOVA

Não escutas as músicas que se expandem no alto?
Todos cantam e bailam sem parar.
Invocam a lua nova.
Por quatro dias dançando
com corpo pintado de um vermelho vivo.
Para a festa da lua
os dançarinos vão à casa das máscaras.
Vestem-se de animais e troncos de arvores.
Depois, na praça da aldeia,
todos cantam e contam: seus ódios, seus amores.

MUNGUBA

Alguém olhando-me
mede meu esplendoroso corpo
mas eu, Munguba frondosa
sou mais ampla
grandes são minhas flores
brancas, amarelas, rosadas
um olhar não basta para me conter
luzes e sombras, alargam-me, diluem-me
no grande rio, em terrenos alagadiços
embriões de luzes
fertilizo cores irredutíveis
semente e fruto corpos em transmutação
ferruginoso - avermelhado
congrego as energias
em minhas vísceras
atraio o apetite, o desejo voraz
de cutias, onças, macacos.
No hálito quente das águas tropicais
em meus ramos, milhares
de penas e plumas, arco-íris de pássaros
cantam seus sonhos de sedução

Fontes:
Antonio Miranda 
– Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades. Unigranrio. Volume II, Número VIII - Jan-Mar 2004
– http://www.marciatheophilo.it/index.php/category/poesie/?lang=pt

Márcia Theóphilo (1940)

artigo por Cláudio Willer

Márcia Theóphilo, poeta nascida em Fortaleza, CE, vem publicando poesia na Itália há mais de três décadas; mais precisamente, desde 1972. Além disso, desenvolve uma atuação importante, através de apresentações públicas e outras modalidades de intervenção, abrangendo não só aquele país, mas toda a Europa. Nesse percurso, também tem promovido a boa divulgação da literatura brasileira, reconhecendo como suas fontes o nosso romantismo, em sua temática indianista, e o nosso modernismo, especialmente em sua vertente primitivista, de Raul Bopp ou do Mário de Andrade de Macunaíma, além de evidenciar seu diálogo com a poesia contemporânea do Brasil.

Imediatamente após sua chegada a Roma, impelida pela diáspora provocada pelo regime militar, seu talento já foi reconhecido por figuras da estatura do extraordinário poeta brasileiro Murilo Mendes, do ensaísta e diretor teatral italiano Ruggero Jacobbi (participante da criação do TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, na década de 1950 em São Paulo, Jacobbi, ao retornar à Itália, contribuiu enormemente para a difusão da literatura brasileira, chegando até mesmo a traduzir Invenção de Orfeu de Jorge de Lima – por motivos como esse, precisaria ser mais lembrado), e do expoente da geração espanhola de 1927, Rafael Alberti.

Personalidades literárias de primeiro plano continuam a prestigiá-la, a exemplo do notável poeta italiano Mario Luzi e do importante crítico brasileiro Fábio Lucas. O reconhecimento por esses e muitos outros leitores qualificados foi corroborado através de inserções da poesia de Márcia Theóphilo em boas antologias poéticas, de inúmeros convites para apresentações públicas, e pela outorga de prêmios importantes.

A poesia de Márcia Theóphilo é, evidentemente, de temática brasileira; mais especificamente, amazônica, como declara através de alguns dos seus títulos, a exemplo da recente coletânea Amazônia Canta (Abooks Editora, São Paulo, 2004) ou em Io canto l’Amazzonia (Edizioni dell’Elefante, Roma, 2002). Sua Amazônia é, evidentemente, aquela das matas a serem salvas, dos povos indígenas ameaçados de extinção, dos rios que, por suas dimensões, resistem aos avanços de uma civilização destruidora, e de um patrimônio simbólico, de usos, costumes, lendas e falas dos habitantes originários do Brasil, indissociável da riqueza natural.

Mas sua obra não se restringe ao tratamento da Amazônia e das culturas indígenas, como pode ser visto pelo exame de sua lírica, editada em antologias, e da série de poemas sobre a Sardenha. Contudo, Márcia Theóphilo se qualifica e se faz ouvir como “privilegiada intérprete”, como diz Fábio Lucas; e, por isso, como porta-voz da defesa do meio-ambiente, não apenas na condição de brasileira, porém como descendente de índios, e antropóloga. Portanto, sabe do que fala, tem um duplo conhecimento do assunto, por suas próprias raízes, sua origem familiar (seu pai veio do Acre), e por tê-lo estudado de modo sistemático, dispondo de uma sólida base factual, suporte da intuição poética e da expressão da sensibilidade.

Entre outros traços em sua poesia, que a caracterizam como individual, com estilo próprio, temos a enumeração dos termos indígenas, a exemplo da dramática enunciação dos nomes das tribos exterminadas em Mães e Pais da América (publicado, assim como as citações a seguir, em Amazônia Canta). Revela a disposição, conforme diz em Floresta meu Dicionário, de cantar o som das palavras/ Açana, Yana, Nacaira/ Cajá, Pacaba, Maçaranduba. Para ela, ; e, por isso, palavras que escrevo são aquelas de um ar cheio de palavras, pois a floresta é meu dicionário. Assim, o poeta não é apenas o narrador: é aquele que entende a linguagem da floresta, os signos da natureza, e que lhes confere sentido, por ser capaz de traduzi-los, em uma função semelhante à dos sacerdotes tribais, emissores e intérpretes dos mitos.

A marca distintiva dos poemas publicados em Amazônia Canta, até agora sua coletânea de maior vulto editada no Brasil, é mesmo a exuberância. Mimetiza e reproduz a vitalidade amazônica e seu mundo mágico, em textos que buscam relações de equivalência com o mundo neles apresentado, tornado-o presente, mais que representado ou meramente descrito. Por isso, apresenta-se como intérprete, narradora, e ao mesmo tempo como avatar, encarnação da vida selvagem. Usa a primeira pessoa, confunde o próprio “eu” com a natureza, como em Munguba, onde fala do …meu esplendoroso corpo/ mas eu, Munguba frondosa/ sou mais ampla. Em O Vento, também procede ao animismo, a confusão entre a esfera do sujeito e do mundo dos objetos: Eu danço, e tu?/ soa, baila, assobia, canta. Daí resulta a imagem poética, como em E o vento continua/ devorando a noite; dentro dele, há uma música dos ramos. A Kupahúba ou Copaíba, uma de suas plantas totêmicas, também é antropomorfizada, apresentada como pessoa, encarnação do arquétipo feminino, no poema do mesmo título.

De todas as metáforas de um confronto entre o mundo mítico, tribal, e a civilização moderna, a mais expressiva talvez seja aquela em Da Amazônia a Nova York, seu poema de 2001. Aponta para uma síntese, uma saída para os impasses e conflitos da sociedade em que vivemos, sugerindo que seja ocupada pela selva. A mesma já antevista em Última Orgia, equivalente à ruptura do limites do humano, confundindo-o de vez com o natural: Um rio caudaloso são nossas vozes/ que cantando arrastam tudo: as máscaras, os carros, a serpente sinuosa dos corpos. Essa fusão do pessoal e do natural, do mundo das coisas e da subjetividade, mostra as razões pelas quais Márcia Theóphilo se qualifica como poeta, e vem recebendo reconhecimento como tal, e não apenas como antropóloga ou jornalista. Como ela diz em Pitanga, O amor nasce como raízes. Por isso, o mundo mítico, natural, é o espaço verdadeiramente humano.

Fonte:
http://www.marciatheophilo.it/index.php/articolo-di-claudio-willer/?lang=pt

Irmãos Grimm (Fundevogel)

Era uma vez um guarda florestal que foi à floresta para caçar, e assim que entrou na floresta ele ouviu o som de alguém gritando como se uma criança estivesse por ali. Ele seguiu os ecos do som, até que chegou perto de uma árvore muito alta, e no topo da árvore havia uma criança sentada, pois a mãe havia adormecido debaixo da árvore com a criança, e uma ave de rapina, tendo visto a criança em seus braços, desceu voando, e a levou embora, pousando no topo da árvore.

O guarda florestal subiu até o topo, desceu a criança, e pensou consigo mesmo:

“Você irá levar esta criança para casa, e vai educá-la junto com a sua pequena Lina.”

Ele a levou para casa, portanto, e as duas crianças cresceram juntas. E a pequenina, que ele encontrou em cima da árvore ele deu o nome de Fundevogel[*], porque um pássaro a havia levado embora.

Fundevogel e Lina amavam-se com tanto carinho que quando um não via o outro eles ficavam tristes.

E aconteceu que o guarda florestal tinha uma velha cozinheira, que uma noite pegou dois baldes e foi buscar água, e não foi buscar somente uma vez, mas várias vezes, foi até a fonte.

Lina viu isto e disse, “Ouça, minha velha Sanna, porque você está buscando tanta água?”

“Se você nunca contar isto para ninguém, eu lhe direi porque.”

Então, Lina disse, “não, eu jamais contaria isto para ninguém”,

E então, a cozinheira falou: – “Amanhã de manhã bem cedo, quando o guarda florestal tiver saído para caçar, eu vou aquecer bastante água, e quando ela estiver fervendo dentro da chaleira, eu vou jogá-la sobre Fundevogel, e vou cozinhá-la na água fervendo.”

Na manhã seguinte, bem cedinho, o guarda florestal se levantou e saiu para caçar, e quando ele tinha saído as crianças ainda estavam na cama.

Então, Lina disse para o Fundevogel: “Se você nunca me deixar, eu nunca te deixarei também.”

Fundevogel falou: “Nem agora, nem nunca eu te deixarei.”

Então, Lina disse: “Então, preciso lhe contar uma coisa. Na noite passada, a velha Sanna carregou tantos baldes de água para casa que eu perguntei a ela porque estava fazendo aquilo, e ela me pediu para que eu prometesse não contar nada para ninguém, e ela disse que no dia seguinte, bem cedo de manhã, quando o nosso pai tivesse saído para caçar, ela iria pegar um balde cheio de água, jogaria você dentro dele e cozinharia você; mas nós vamos nos levantar rapidamente, vamos nos vestir, e fugiremos juntos.”

Então, as duas crianças se levantaram, se vestiram rapidamente, e foram embora. Quando a água estava fervendo dentro da chaleira, a cozinheira entrou no quarto para buscar Fundevogel e jogá-lo dentro dela. Mas quando ela entrou no quarto, e foi até as camas, as duas crianças já não estavam mais lá. Então, ela ficou muito preocupada, e falou consigo mesma: – “O que é que eu vou dizer agora quando o guarda florestal chegar em casa e ver que as crianças sumiram? Preciso procurá-las imediatamente para trazê-las de volta para casa.”

Então, a cozinheira mandou que três criadas fossem atrás delas, as quais deviam se apressar e trazer as crianças. As crianças, contudo, ficaram sentadas fora da floresta, e quando elas viram de longe as três criadas correndo, Lina disse para Fundevogel: – “Jamais me abandone, e eu jamais te abandonarei.”

Fundevogel falou: – “Nem agora, nem nunca.”
Então, Lina disse: “– Você se transforma numa roseira, e eu serei a rosa da roseira.”

Quando as três criadas chegaram à floresta, não havia nada ali com exceção de uma roseira e de uma rosa em cima da roseira, mas as crianças não estavam em lugar algum.

Então, elas disseram: “Não temos mais nada a fazer aqui,” e elas voltaram para casa e disseram para a cozinheira que elas não tinham visto nada na floresta, apenas uma pequena roseira com uma rosa em cima dela.

Então, a velha cozinheira as repreendeu e disse: “Suas tolas, vocês deveriam ter cortado a roseira em duas partes, deviam ter arrancado a rosa e trazido ela para casa com vocês; vão, e façam isso imediatamente.”

Então, elas tiveram que sair e procurar pela segunda vez. As crianças, no entanto, viram quando elas estavam chegando à distância. Então, Lina falou: “Fundevogel, nunca me abandone, e eu nunca te abandonarei.” Fundevogel falou: “Nem agora, nem nunca.”

Disse Lina: – “Então, transforme-se numa igreja, e eu serei o candelabro da igreja.”

Então, quando as três criadas chegaram, não havia nada ali, além de uma igreja com um candelabro. Então, as criadas disseram uma para a outra: “Não há nada para fazer aqui, vamos voltar para casa.”

Quando elas chegaram em casa, a cozinheira perguntou se elas haviam encontrado as crianças; então, elas disseram que não, elas não tinham visto nada, apenas uma igreja, e havia um candelabro dentro da igreja.

A cozinheira então as repreendeu e disse: “Suas tolas! porque vocês não reduziram a igreja a destroços, e trouxeram o candelabro com vocês para casa?”

Então, a velha cozinheira saiu ela mesma, e foi com as três criadas a procura das crianças. As crianças, todavia, viram de longe que as três criadas estavam chegando, e a cozinheira vinha correndo atrás delas.

Então, disse Lina: “Fundevogel, nunca me abandone, e eu nunca te abandonarei.” Então, Fundevogel falou: “Nem agora e nem nunca.”

Disse Lina: “Transforme-se numa lagoa de peixes, e eu serei um patinho brincando ao redor da lagoa.”

A cozinheira, entretanto, chegou perto deles, e quando ela viu a lagoa, ela se curvou diante da lagoa, e ia beber um pouco de água. Mas o pato nadou rapidamente até ela, pegou a cabeça dela com o bico e a empurrou para dentro da água, e lá a velha bruxa morreu afogada.

Então, as crianças foram juntas para casa, e elas estavam muito felizes, porque elas não morreram, e ainda estavam vivas.
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Nota

[*] Fundevogel: em alemão, significa aquele ou aquela que foi encontrado(a) pela ave.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 45 – 4 de fevereiro de 1888.

Não, senhor, por mais que possa
Achar censura, confesso
Que não tenho medo à troça,
Referindo este sucesso.

Há muito que me pejava
Da botoeira que tenho,
Cava, inteiramente cava;
Sem qualquer sinal de engenho.

De serviço ou caridade,
Cousa que haja merecido
A particularidade
De me fazer distinguido.

Não é que imitar quisesse
O José Telha, que corre
Por fita que não merece,
E se lh'a não derem, morre.

Não quis hábito da Rosa,
Cristo nem Pedro Primeiro,
Avis ou mesmo a famosa
Fita do grave Cruzeiro.

São moedas da coroa,
E eu, democrata, não devo
Expor a minha pessoa
A ser contrária ao que escrevo.

Mas então, de que maneira
Preencheria o vazio
Desta minha botoeira
Sem diminuir o brio?

O que desde logo acode
É por uma flor bonita,
Ou Rosa ou cravo, que pode
Suprir muito bem a fita.

Porém, dês que a alma nossa
Tem casaca e bem talhada,
Preciso é fita que possa
Encher-lhe a casa sem nada.

Mas que fita? em que armarinho
Recente podia havê-la?
Encontrei logo o caminho:
Corri a Venezuela.

Venezuela tem uma
Ordem muito bem disposta,
Com que premiar costuma,
Costuma, procura e gosta.

Tem grã-cruzes, tem comenda,
Tem dignitárias e o resto.
Há para todas as prendas
Um sinal brilhante e honesto.

Ordem é mui bem fundada
Sobre a liberdade amiga,
Grave como a Anunciada,
Como o Banho, como a Liga.

Simão Bolívar se chama,
Grande nome e livre nome;
Coroou-o eterna fama
Do louro que se não some.

A venera é justamente
Como são outras veneras,
Usa-se ao colo pendente,
Ao peito, em forma de esferas.

A fita é de chamalote,
Como são as outras fitas,
Não é certo que desbote
E tem as cores bonitas.

Quanto ao efeito no rosto
Da multidão é perfeito;
Dá o mesmo grande gosto
E o mesmíssimo despeito.

Corri a Venezuela,
Venezuela escutou-me,
Pude logo convencê-la,
Ouviu-me, condecorou-me.

Não é só a monarquia
Que tem plantas reverendas;
Vento da democracia
Também faz brotar comendas.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.