segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Laurindo Ribeiro (Poemas Escolhidos)

O QUE SÃO MEUS VERSOS

Se é vate quem acesa a fantasia
Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento
C’o movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces da querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da glória recebe sobre a arena
As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;

Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido,
Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’alma
Envenenadas fontes d’agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado,
Só entregue a meu mal, quase em delírio,
Ator no palco estreito da desgraça,
Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos,
Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel, que o coração verte em golfadas
Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem
Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia, qu’arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo,
Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludíbrio do vento, as secas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada.

NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;

Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,

Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado

Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,

Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede

Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;

Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!

O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

A SAUDADE BRANCA
Composta por ocasião da morte de sua irmã e oferecida ao amigo Antônio Augusto de Mendonça Júnior.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!...

Ah!... já sei: n’um peito vário
Emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto,
E tu mudaste de cor.

Mas não; só peito animado
Por constância e lealdade,
Unida pode trazer-te
Consigo, minha saudade.

Demais tu não mudas; seja
Qual for o destino teu,
Conservas sempre o aspecto
Que a natureza te deu.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!

Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura
Amor nas pedras penetra
Por milagre da ternura.

Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
A alma de minha irmã?!

“Minha alma é toda saudades;
“De saudades morrerei” —
Disse-me, quando a minh’alma
Em saudades lhe deixei:

E agora esta saudade
Tão triste e pálida... assim
Como a saudade que geme
Por ela dentro de mim!...

A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela
Falar-me no coração!

Exulta, minh’alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!

Outro beijo, que estes beijos
Não te proíbe o pudor;
Sou teu irmão, não te mancham
Os beijos de meu amor.

Fala um pouco. Se almas podem
Em flores se transformar,
Sendo almas encantadas,
As flores podem falar.

Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...

Minha irmã!... minha ventura,
Esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!

Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!

Vem! Ao menos um momento
Quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te,
Fique cego toda a vida.

Mas não vens? Deus te não deixa
Vir ao mundo, meu amor?
Só devo encontrar no pranto
Lenitivo à minha dor?

Ah! minh’alma desfalece...
E o coração, que apressado
Com tanta força batia,
Mal palpita... está cansado.

Muda, sem termos, nem vozes
Me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias,
Mudou-se em melancolia.

Que é isto?! Como tão negro
Ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!

Ah! meu Deus! graças! aos olhos
O pranto sinto chegar;
Se a boca não fala, ao menos
Os olhos podem chorar.

Nós temos duas saudades;
Uma de sangue ensopada
Pela mão do desespero
No seio d’alma plantada;

Outra da melancolia
Toma o gesto, e veste a cor,
Exangue, pálida e fria,
Mas calada em sua dor.

Parece que a natureza
Quis provar esta verdade,
Quando diversa da roxa
Te criou, branca saudade.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura

Irmãos Grimm (Rapunzel)

Era uma vez um homem e uma mulher que há muito tempo desejavam em vão ter um filho. Os anos iam passando e a mulher esperava que Deus fosse atender o desejo dela. Eles tinham uma pequena janela no fundo da casa de onde se podia ver um esplêndido jardim, cheio das mais belas flores e verduras. No entanto, ele era cercado por um muro alto, e ninguém se atrevia a escalá-lo, porque ele pertencia a uma feiticeira, que possuía grandes poderes e era temida por todo o mundo.

Um dia, a mulher estava de pé ao lado da janela e olhava para o jardim, quando ela viu um canteiro onde haviam plantado o mais lindo rapôncio (ou rapunzel) que ela jamais vira, e a planta era tão verde e fresca que ela queria pegar algumas, e desejava muito comê-las. Este desejo aumentava a cada dia que passava, e como ela sabia que não havia jeito de conseguir nem um pouquinho delas, ela começou a definhar, e foi ficando triste e abatida.

Até que um dia o marido dela ficou assustado, e perguntou:

— O que você tem, minha querida esposa?

— Ah, respondeu ela, se eu não puder pegar um pouco de rapôncio, que fica no jardim atrás de nossa casa, para comer, eu vou morrer. O marido, que a amava, pensou:

— Antes que a minha esposa morra, preciso trazer para ela um pouco de rapôncio, custe o que custar. Ao cair da noite, ele pulou o muro que dava para o jardim da feiticeira, pegou apressadamente um punhado de rapôncios, e levou para a sua esposa.

Imediatamente ela fez uma salada, e a comeu com grande satisfação. Ela, no entanto, gostou tanto, mas tanto mesmo do rapôncio que no dia seguinte por três vezes ela sentiu a mesma vontade de antes. Se ele quisesse ter um pouco de sossego, o seu marido deveria descer mais uma vez ao jardim. Quando começou a escurecer, portanto, ele decidiu ir lá novamente, mas assim que ele pulou o muro, ele ficou terrivelmente assustado, porque ele viu a feiticeira de pé diante dele.

— Como te atreves, disse ela com ódio nos olhos, descer ao meu jardim e roubar os meus rapôncios como se fosses um ladrão? Deves sofrer por isso!

— Ah, respondeu ele, permita que a misericórdia tome o lugar da justiça, eu só decidi fazer isso por motivo de necessidade. A minha esposa viu o seu rapôncio da janela, e sentiu uma vontade muito grande de comê-lo que ela teria morrido se não conseguisse alguns para comer. Então, a feiticeira deixou que o ódio diminuísse, e disse a ele,

— Se é assim como dizes, eu permitirei que leves contigo tanto rapôncio quanto desejares, mas, exijo porém, uma condição, tu darás a mim o filho que a tua esposa trará ao mundo; ele será bem tratado, e eu cuidarei dele como se fosse uma mãe.

O homem estava tão apavorado que concordou com tudo, e quando a mulher ficou de cama, a feiticeira apareceu de repente, deu à criança o nome de Rapunzel, e a levou embora consigo.

Rapunzel cresceu como a mais linda criança abaixo do sol. Quando ela completou doze anos de idade, a feiticeira a prendeu em uma torre, que ficava no meio de uma floresta, e não possuía nem escadas nem porta, porém, bem no alto havia uma pequena janela. Quando a feiticeira queria entrar, ela se colocava debaixo da janela, e gritava:
   
— Rapunzel, Rapunzel
Joga as tuas tranças para mim.

Rapunzel tinha um cabelo esplendoroso, finos como os fios de ouro, e quando ela ouviu a voz da feiticeira, ela soltava seu emaranhado de tranças, enrolava-os em torno dos ganchos da janela acima dela, e então os cabelos caiam o comprimento de vinte varas para baixo, e a feiticeira subia por ele.

Depois de um ano ou dois, aconteceu que o filho do rei cavalgava pela floresta e passava perto da torre. Então ele ouviu uma canção, que era tão linda que ele parou para ouvir. Esta era Rapunzel, que em sua solidão, passava o tempo deixando que a sua linda e doce voz ressoasse. O filho do rei quis subir até onde ela estava, e procurou a porta da torre, mas não encontrou nada. Foi para casa, mas a voz dela havia tocado tão profundamente o seu coração, que todos os dias, ele saía pela floresta para ouvi-la. Uma vez, quando ele estava assim de pé atrás de uma árvore, ele viu que uma feiticeira havia chegado, e ele ouvia quando ela gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Então Rapunzel descia as tranças de seus cabelos, e a feiticeira subia até lá em cima. Se essa é a escada por onde se sobe até o alto da torre, eu vou tentar a minha sorte uma vez,disse ele, e no dia seguinte, quando começou a escurecer, ele foi até a torre e gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Imediatamente os cabelos caíram e o filho do rei subiu.

A princípio Rapunzel ficou muito assustada quando tal homem, que seus olhos jamais haviam contemplado, se aproximou dela, mas o filho do rei começou a conversar com ela como um amigo, e disse-lhe que o seu coração havia sido tocado tão fortemente que isso não lhe permitia que ele tivesse sossego, e ele se sentiu obrigado a procurá-la. Então, Rapunzel perdeu o medo e quando ele lhe perguntou se ela o aceitaria como seu marido, e vendo ela que ele era jovem e belo, ela pensou:

— Ele me amará mais do que me ama a velha Senhora Gothel, e ela disse sim, colocando suas mãos sobre as dele.

Ela disse:

— Faço questão de ir-me embora contigo, mas eu não sei como descer. Sempre que vieres, traze contigo uma meada de seda, que eu vou tecer uma escada com ela, e quando ela estiver pronta eu descerei, e tu me levarás em teu cavalo. Eles combinaram que até que esse momento chegasse ele viria vê-la todas as noites, porque a velhinha somente vinha de dia. A feiticeira não desconfiou de nada, até que uma vez Rapunzel disse a ela:

— Diga-me, Senhora Gothel, porque será que a senhora é muito mais pesada para eu puxar do que o jovem filho do rei — ele sobe num instantinho.

— Ah, criatura perversa, gritou a feiticeira. — O que te ouço dizer! Pensei que a tivesse separado do mundo, e ainda assim me enganas!

Cheia de ódio, ela agarrou as lindas tranças de Rapunzel, deu duas voltas em sua mão esquerda, pegou uma tesoura com a direita, e snip, snap, cortou os cabelos dela, e as belas tranças foram jogadas no chão.
   
E a velha era tão impiedosa que levou a pobre Rapunzel para o deserto onde ela foi obrigada a viver triste e abandonada.

No mesmo dia, contudo, depois de ter expulsado Rapunzel, a feiticeira amarrou as tranças de cabelo que ela tinha cortado ao gancho da janela, e quando o filho do rei veio e gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Ela descia os cabelos. O filho do rei subiu, mas ele não encontrou sua bela Rapunzel lá em cima, mas, a feiticeira, que olhou para ele com olhos perversos e venenosos. Ahá, gritou ela, zombeteiramente.

— Viestes buscar a tua amada, mas o lindo pássaro não está mais cantando em seu ninho, o gato o comeu, e irá arranhar os teus olhos também. Rapunzel não existe mais para ti, não a verás mais.

O filho do rei sentiu um pesar muito grande, e desesperado, pulou para fora da torre.

Ele salvou a sua vida, mas os espinhos sobre os quais ele caiu, perfuraram os seus olhos. Então ele caminhou completamente cego pela floresta, não comia nada além de raízes e de frutas, e não fazia nada além de lamentar e chorar a perda de sua querida esposa. Desesperado, o príncipe caminhava qual um desesperado durante alguns anos, e, depois de muito tempo, chegou ao deserto onde Rapunzel, vivendo com os gêmeos a quem dera a luz, um menino e uma menina, vivia muito infeliz.

O príncipe ouviu uma voz, que lhe parecia muito familiar, e caminhou em direção a ela, e quando ele se aproximou, Rapunzel o conheceu, e abraçou o seu pescoço e chorou. Duas lágrimas suas molharam os olhos dele e eles ficaram claros novamente, e ele conseguiu ver como antes. Ele a levou para o seu palácio onde foi recebido com alegria, e eles viveram durante muito tempo depois, felizes e satisfeitos.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 48 – 24 de fevereiro de 1888

Juro-lhe, meu caro amigo
Leitor, pelo que há sagrado,
Que eu, que a triste regra sigo
De viver apoquentado;

Que suporto as sanguessugas
Humanas e desumanas,
Que não ganhei estas rugas
Em redes e tranquitanas;

Que aturo todo o importuno,
Que me refere a maneira
Por que o demo de um gatuno
Lhe foi levando a carteira;

Ou me conta tudo, tudo
(Mas tudo!) o que há padecido,
Para que, após longo estudo,
Ver que foi indeferido;

Que com ânimo quieto,
Leio, depois de almoçado,
Tudo o que sobre o arquiteto
Magalhães se há publicado;

Juro-lhe, leitor, repito,
Que cometer não quisera
O mais pequeno delito
Que este mundo haver pudera.

Furtar um par de galinhas,
Dizer algum nome feio,
Chegar mesmo às facadinhas,
Dar dois cachações e meio.

Não porque a moral condene
Tais atos; condena, é certo,
De um modo grave e solene,
Determinativo e aberto;

Nem também porque, somadas
As contas, mais ganha a gente
Passando as horas caladas
No belo sono inocente.

Não, senhor; outra é a causa,
É outra, uma certa lista,
Que é preciso ler com pausa,
Mente clara e clara vista.

Do rol dos processos digo
Que ao tribunal dos jurados
Foram, para seu castigo,
Inda agora apresentados.

Que traz esse rol? Descubro
Entre outros muitos nomes
Que em oitenta e seis, outubro,
Foi preso um Antônio Gomes.

Pronunciado em janeiro
De oitenta e sete, entra agora
No julgamento primeiro
Do que fez em tão má hora!

Mais três, um Afonso Rosa,
Um Coelho, uma tal Francisca
Xavier, trempe graciosa,
Ao parecer, pouco arisca.

Visto que foi agarrada
Logo em março, dezessete,
Em março pronunciada,
Em março de oitenta e sete!

Há também na lista um certo
Francisco Peres Soares,
Já em abril descoberto
E mandado a tomar ares;

O qual logo em maio teve
Pronúncia do seu delito;
Fez um ferimento leve,
Foi preso ao som de um apito.

Ora, com franqueza, vale,
Ser criminoso em tal era?
Uma peça de percale
Paga tão comprida espera?

Um tabefe, uma rasteira,
Mesmo uma canivetada,
Pagou de alguma maneira
A espera desesperada;

Portanto, e vistos os autos,
Dou de conselho prudência,
E digo aos homens incautos
Que inda o melhor é a inocência.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Teófilo Braga (O Figuinho da Figueira)

Recolhido no Algarve

Era uma vez um homem que tornou a casar, e tinha uma filha do primeiro casamento que era tratada pela madrasta mal a mais não poder. Tinham uma figueira lampa no quintal, para onde a madrasta mandava a enteada guardar os figos por causa da passarada.

Quando a pequena ia para o campo, a madrasta seguia-a também para contar os figos, dizendo-lhe que a matava se lhe faltasse algum.

Um dia veio o milhano e comeu três figos, por mais que a pequena o enxotasse. Quando estava já a anoitecer a madrasta veio revistar a figueira, e deu pela falta de três figos. Logo ali matou a enteada e a enterrou debaixo da figueira, e veio para casa dizendo que a rapariga tinha fugido.

O pai pensou que ela teria ido servir para alguma casa longe. Um dia que o pai passava por debaixo da figueira, ficou pasmado de ver debaixo dela muitas flores, e entre elas um lindo botão de rosa. Foi para as colher, mas sentiu uma voz, a dizer-lhe:

Não me arranquem os meus cabelos,
Que minha mãe os criou,
Minha madrasta os enterrou
Pelo figo da figueira
Que o milhano levou.
   
A princípio o homem ficou sem saber o que havia de fazer; mas por fim resolveu-se a fazer uma cova naquele lugar, para ver que coisa era.

Depois de estar já bem funda a cova, descobriu uma laje, levantou-a, e deu com uma escadaria por onde desceu. Quando chegou lá abaixo encarou com a filha, que estava muito linda e muito bem vestida:

– Filha, como é que vieste ter aqui?

– Quando a minha madrasta me enterrou, apareceu-me aqui esta casa, e todos os dias vem aqui uma senhora dar-me de comer.

O pai ficou vivendo com a filha, e não quis mais saber da mulher.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Alves Redol (Gaibéus)

Gaibéus é comumente aceito como o romance que marca o aparecimento do neo-realismo em Portugal.  Romance que retrata as modestas condições de vida dos camponeses da região do Ribatejo. Esse escritor do neo-realismo português revela-se, através de Gaibéus, um perfeito organizador de sensações e impressões, criando imagens de variados tipos, a partir do discurso poético. Sua linguagem expressa elevado grau de visualismo nas descrições das paisagens ribatejanas e nos gestos e expressões de suas personagens. Através da correspondência entre o discurso verbal e o discurso pictórico, Alves Redol consegue criar no leitor, a ilusão de ser um espectador que assiste a um espetáculo ou a sensação de estar diante de um quadro. 

Gaibéus é o primeiro romance de Alves Redol e foi publicado em 1939. É o ponto de partida da obra romanesca do autor. Mas é também o ponto de chegada de uma longa reflexão de Alves Redol sobre o significado e o papel da arte, o primeiro edifício do programa de uma literatura nova. Fiel ao seu ideário, antes de escrever Gaibéus, o autor realizou um amplo trabalho de campo - deslocou-se repetidas vezes à lezíria, chegou mesmo a instalar-se no campo para recolher dados sobre o trabalho nos arrozais. Os seus blocos de apontamentos contêm numerosas indicações técnicas sobre o cultivo do arroz.

Como viria a confirmar-se em obras posteriores, este primeiro trabalho do autor é uma das suas incursões ao país real, rural, de um povo trabalhador e explorado. Conta a vida desses jornaleiros que trabalhavam na monda do arroz numa das lezírias do Ribatejo. Homens e mulheres que vinham de outras terras, como alugados para um trabalho duro, de sol a sol, e de fraca paga. Alves Redol, com uma escrita nascida na oralidade do povo (e por isso o leitor tem de contar com algumas palavras e expressões menos comuns), retrata com um realismo cruel o modo de vida dos gaibéus (jornaleiro da província portuguesa do Ribatejo ou da Beira Baixa que vai trabalhar nas lezírias durante as mondas) que ganhavam o seu sustento na época das mondas do arroz. Os maus-tratos, as más condições de trabalho, a exploração nua e crua, o abismo social entre o proprietário e o assalariado, a resignação e passividade de uns e a consciência e angústia de outros, são o tema deste grande livro desse grande escritor tão pouco lembrado.

História simbólica do embate de duas diferentes mentalidades, a desunião entre gaibéus e rabezanos é triste e profético paradigma das oposições, ainda hoje bem marcadas, entre os camponeses dos minifúndios e os dos latifúndios. Redol acreditava que seria possível o casamento entre uns e outros quando descobrissem que a mesma fome os une.

As personagens são uma e todas ao mesmo tempo. Um povo resignado que luta com afinco durante o tempo quente, antes da chegada do inverno, em condições extremas para fazer render os poucos cobres que lhes pagam por tamanha dureza. Por um lado o trabalho árduo de sol a sol, as doenças (malária), a fadiga e a teimosia em cada vez se fazer o trabalho mais rápido para mais rendimento obter, a sede, a fome, a pobreza extrema. Por outro lado, o modo como preenchiam as escassas horas de lazer, os sonhos de uma vida melhor, os projetos sem logro, o vinho para alegrar os espíritos. As mulheres ainda sofrem de outro tipo de exploração, sendo sujeitas aos caprichos do senhor das terras que as escolhe para os seus prazeres carnais.

E o futuro espelhado numa velha que acaba por enlouquecer, fraca e doente, mas com o mesmo anseio de pegar na foice para acabar o trabalho, iludindo-se, febrilmente delirante, no gabar-se de ainda ser o exemplo para os outros de como é uma verdadeira mondadeira.

Há também a personagem que remói as palavras duras dos capatazes e cerra de raiva os dentes na presença do patrão. Uma consciência da exploração de que é vítima, mas de que não tem fuga possível, a não ser, talvez, tentar a sorte em terras distantes como Brasil e África de onde alguns retornavam abastados.

E quando enfim o Inverno chega e a monda se acaba, os jornaleiros regressam com esse sabor amargo às suas terras de origem, preparando-se, no ano seguinte, para procurar trabalho no mesmo rancho, em outras lezírias…

Narrativa muito bem construída que, exceto por algumas palavras e expressões que requerem o uso do dicionário e um pouco de experiência junto das gentes rurais, se lê muito bem e com grande satisfação e curiosidade, uma vez que se trata do retrato fiel do homem português explorado até aos limites na década de trinta; portanto, que faz parte da nossa memória.

Alves Redol revela-se, através de Gaibéus, um perfeito organizador de sensações e impressões, criando imagens de variados tipos, a partir do discurso poético. Sua linguagem expressa elevado grau de visualismo nas descrições das paisagens ribatejanas e nos gestos e expressões de suas personagens. Através da correspondência entre o discurso verbal e o discurso pictórico, Alves Redol consegue criar no leitor, a ilusão de ser um espectador que assiste a um espetáculo ou a sensação de estar diante de um quadro.

Fonte:
Passeiweb

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ariano Suassuna (Poemas Escolhidos)

O MUNDO DO SERTÃO

(com tema do nosso armorial)

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.

AQUI MORAVA UM REI

"Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.”

O AMOR E A MORTE

Com tema de Augusto dos Anjos

Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.

O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.

Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.

E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.

A MOÇA CAETANA A MORTE SERTANEJA

Com tema de Deborah Brennand
Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo.
Vi o inocente olhar, puro e perverso,
e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel,
os peitos fascinantes e esquisitos.
Na mão direita, a Cobra cascavel,
e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião.
Nas espáduas, as Asas deslumbrantes
que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes,
caules de prata, espinhos estrelados
e os cachos do meu Sangue iluminado.

A MORTE — O SOL DO TERRÍVEL

Com tema de Renato Carneiro Campos

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.

Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.

LÁPIDE
Com tema de Virgílio, o Latino, e de Lino Pedra-Azul, o Sertanejo

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.

Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.

Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido

que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!

DÉCIMAS ANTE UM RETRATO DE CAMÕES

Se, na noite de chuva, a Tempestade
em solitários galhos acoitados,
revivesse os Navios naufragados
e o travoso gemer da Soledade;
se, da grave assonância da Vontade
entrevesse se pudesse o sacrifício
nesse claro e cansado Frontispício
quem, mais do que teus Olhos, cantaria
da vida o Caso cego e a galhardia,
a Luz flamante e o sacro Desperdício?

Teus olhos! Mas quem pode apaziguá-los?
Se, num, a flecha agónica demora,
noutro há bruma, salgueiro e Harpa sonora,
entre os passos do Rei com seus vassalos.
O pó e o sangue,as patas dos Cavalos
repousam nesse sulco fatigado.
E, se o bravo Queixume informulado
evoca os destroços areais,
o ressonar dos Bosques provençais
doura na Morte a mágoa do pecado.

Pensar que foste criança e que aspiraste
o cheiro da Madeira mal queimada;
que, ao perseguir, insone, a Madrugada,
a chama do Desterro desejaste.
O Sal marinho, as folhas que esmagaste,
e vida e nome, pássaro e Memória.
Pois, se Fortuna e treva derisória
urdiram tua Sorte alada e escura,
foi que o porvir tecera, na Espessura,
da Cadência já morta o Canto e a glória.

Pureza e dolo. A Sombra se amontoa
- destroço ressurrecto e trespassado -
na prisão a quem a um tempo foste atado,
no Barco que te chama e te enevoa.
Debalde! A Fonte é cortadora Proa,
barba barroca é Quilha e madeirame.
E o Cedro, a Infanta, a coifa de beirame,
tudo isso e tudo mais que não se exprime
- que não se diz - e é o que talvez redime
o atravessar das águas e o Velame.

Assim, não mais o som desse Acalanto,
não mais o Apelo, só, do já passado:
que teu Anjo o receba, dissipado,
numa Páscoa de fogo e tenso Canto.
Pois se o Eco de sono e louro acanto
não te pôde levar o que pressente,
num sussurro fraterno e Sopro ardente
chegue a ti meu Duende extraviado
e o Sonho, anseio extinto e renovado,
que é Pena e mudez de meu presente.

NOTURNO
 

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mão...

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

Ariano Suassuna (1927)

Ariano Vilar Suassuna nasceu na cidade de João Pessoa, Paraíba, no dia 16 de junho de 1927, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar.

Fez o curso primário no município de Taperoá/PB.

Em 1942, a família Suassuna se transfere para o Recife onde Ariano complementa seus estudos .

Em 1946, entrou para a Faculdade de Direito do Recife, onde conheceu um grupo de escritores, atores, poetas, romancistas e pessoas interessadas em arte e literatura, entre os quais, Hermilo Borba Filho, com o qual fundou o Teatro de Estudantes de Pernambuco.

Em 1947, escreveu sua primeira peça de teatro: “Uma mulher vestida de sol”, baseada no romanceiro popular do Nordeste brasileiro e com ela ganhou o prêmio Nicolau Carlos Magno, em 1948.

Concluiu o curso de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais em 1950.

Entre 1951 e 1952, volta a Sousa, para curar-se de uma doença pulmonar. Lá escreveu e montou Torturas de um coração. Em seguida, retorna a Recife, onde, até 1956, dedica-se à advocacia e ao teatro.

No dia 19 de janeiro de 1957, casa-se com Zélia de Andrade Lima, com a qual teve seis filhos: Joaquim, Maria, Manoel, Isabel, Mariana e Ana.

Em 1959, em companhia de Hermilo Borba Filho, fundou o Teatro Popular do Nordeste, que montou em seguida a Farsa da Boa Preguiça (1960) e A Caseira e a Catarina (1962).

No início dos anos 60, interrompeu sua bem-sucedida carreira de dramaturgo para dedicar-se às aulas de Estética na UFPE.

Foi membro fundador do Conselho Federal de Cultura, do qual fez parte de 1967 a 1973 e do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, no período de 1968 a 1972.

Foi nomeado, em 1969, Diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, ficando no cargo até 1974.

Ligado diretamente à cultura, iniciou em 1970, em Recife, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. Convocou nomes expressivos da música para procurarem uma música erudita nordestina que viesse juntar-se ao movimento, lançado em Recife, em 18 de outubro de 1970, com o concerto “Três Séculos de Música Nordestina – do Barroco ao Armorial”, na Igreja de São Pedro dos Clérigos e uma exposição de gravura, pintura e escultura.

Doutorou-se em História pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1976.

Foi professor da UFPE por 32 anos, onde ensinou Estética e Teoria do Teatro, Literatura Brasileira e História da Cultura Brasileira.

Entre 1958-79, dedicou-se também à prosa de ficção, publicando o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1976), classificados por ele de “romance armorial-popular brasileiro”.

Ariano Suassuna construiu em São José do Belmonte, onde ocorre a cavalgada inspirada no Romance d’A Pedra do Reino, um santuário ao ar livre, constituído de 16 esculturas de pedra, com 3,50 m de altura cada, dispostas em círculo, representando o sagrado e o profano. As três primeiras são imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora e São José, o padroeiro do município.

Membro da Academia Paraibana de Letras e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2000).

Em 2004, com o apoio da ABL, a Trinca Filmes produziu um documentário intitulado O Sertão: Mundo de Ariano Suassuna, dirigido por Douglas Machado e que foi exibido na Sala José de Alencar.

Em 2002, Ariano Suassuna foi tema de enredo no carnaval carioca na escola de samba Império Serrano; em 2008, foi novamente tema de enredo, desta vez da escola de samba Mancha Verde no carnaval paulista. Em 2013 sua mais famosa obra, o Auto da Compadecida será o tema da escola de samba Pérola Negra em São Paulo.

Em 2006, foi concedido título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Ceará, mas que veio a ser entregue apenas em 10 de junho de 2010, às vésperas de completar 83 anos. "Podia até parecer que não queria receber a honraria, mas era problemas de agenda", afirmou Ariano, referindo-se ao tempo entre a concessão e o recebimento do título.

Dramaturgo, romancista, poeta, ensaísta, defensor incansável da cultura popular, das raízes brasileiras e, especialmente nordestina, é autor de várias obras:

    Uma mulher vestida de Sol, (1947);
    Cantam as harpas de Sião ou O desertor de Princesa, (1948);
    Os homens de barro, (1949);
    Auto de João da Cruz, (1950);
    Torturas de um coração, (1951);
    O arco desolado, (1952);
    O castigo da soberba, (1953);
    O Rico Avarento, (1954);
    Auto da Compadecida, (1955);
    O casamento suspeitoso, (1957);
    O santo e a porca, (1957);
    O homem da vaca e o poder da fortuna, (1958);
    A pena e a lei, (1959);
    Farsa da boa preguiça, (1960);
    A Caseira e a Catarina, (1962);
    As conchambranças de Quaderna, (1987);
    Fernando e Isaura, (1956)"inédito até 1994".

Romance

    A História de amor de Fernando e Isaura, (1956);
    O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, (1971);
    História d'O Rei Degolado nas caatingas do sertão /Ao sol da Onça Caetana, (1976)

Poesia


    O pasto incendiado, (1945-1970);
    Ode, (1955);
    Sonetos com mote alheio, (1980);
    Sonetos de Albano Cervonegro, (1985);
    Poemas (antologia), (1999).

Fontes:
MEMORIAL do imperador d `A pedra do reino. Jornal do Commercio, Recife, 15 jun. 1997. Especial, p.2.
SOUTO MAIOR, Mário. Dicionário de folcloristas brasileiros. Recife: 10-10 Comunicação e Editora, 1999. p.31.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

Rachel de Queiroz (A Fábula do Homem e seu Garrafão)

Pelo interior do Brasil é comum a presença de um cara que é chamado de "propagandista". Aqui pelo estado do Rio, antes da camelotagem desenfreada, ele era chamado também de "camelô".

Usava roupa vistosa, por exemplo: paletó xadrez vermelho e verde, calças bois de rose, gravata azul-bebê. Em geral fazia propaganda de remédios que curam tudo, todos os males do mundo e até maus pensamentos.

Ouvi que vendia xarope contra sífilis e, referindo-se às doenças "sexualmente transmissíveis", falava poeticamente em "mal de amores".

E foi a propósito de propagandistas que recordávamos ontem, minha irmã e eu, um caso que nosso pai nos contava garantindo que era verdadeiro.

Sucedeu numa cidade cujo nome ele não dava, para "evitar constrangimentos".

O sujeito já desceu do trem vestido a caráter: terno de listras colorido, sapato pampa, camisa roxo-batata, gravata amarela.

Na pensão registrou-se, levou a mala à sua vaga no quarto e, portando um grande rolo de papel debaixo do braço, pediu permissão à dona da casa para expor à sua porta um cartaz, que dizia o seguinte: "Hoje, às 16 horas, venham ver o homem que entra no garrafão!"

Dali, foi à igreja à procura do vigário, solicitando a sua reverência licença para dar uma demonstração estupefata, tendo como palco a escadaria da matriz. O padre ficou meio espantado quando leu o cartaz, mas acedeu. Também queria ver aquilo. Os outros cartazes foram espalhados pelas ruas, saturando todo o lugarejo.

Claro que a curiosidade foi enorme. Fizeram-se apostas, teve gente que rasgava nota de cem em duas, que é a maneira mais popular de registrar apostas sem papel escrito. Quem vai ganhar vai receber do outro a sua metade da nota.

Logo depois do almoço, o nosso homem foi à farmácia, onde negociou o aluguel de um garrafão de vidro, desses que transportam água destilada. Da pensão conseguiu ainda uma mesinha, e assim, pontualmente às quatro da tarde, lá estava ele com seus trajes multicores e os seus apetrechos, pronto para a "demonstração".

A praça pululava de gente. Faziam-se as mais ousadas conjecturas: "O garrafão é de borracha transparente. No que o homem for entrando, ele estica, até caber". Outros acreditavam em hipnotismo. "Ele hipnotiza todo mundo e aí a gente acredita que ele entrou em qualquer coisa." Outros achavam que era só um truque: "Não sei como é, mas tem que ser um truque".

E assim, ele começou a falar sob aplausos e assobios. Delicadamente pediu silêncio à multidão: ia começar o espetáculo.

Tirou o casaco, tirou a gravata, pôs no chão o chapéu de palhinha, mostrou as mãos vazias. Então, lentamente, lentamente, tentou enfiar a mão direita pelo gargalo do garrafão. Não cabia, claro. Estirou o polegar, introduziu o dedo no gargalo - entrou! Mas parou na junta. Ele suspirava, mas, com a mão esquerda, tentou de novo: não entrou. Descalçou os sapatos, experimentou o pé - qual! Não entrou mesmo - era ainda maior que a mão. Tentou o nariz, até que ralou e minou sangue. Não entrou também.

E, diante do silêncio atônito da multidão, o homem abriu os braços de pura impotência e constatou desolado:

- Realmente, foi impossível. Mas vocês bem que viram: eu tentei!

(Correio Braziliense em 07/01/2002)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

João Ubaldo Ribeiro (Viajar, viajar)

Estou em Paris e sou um fenômeno. Pagaram minha passagem, deram-me ajuda de custos e aqui estou eu. Dirão vós: que há de tão fenomenal nisso? Afinal, alguns brasileiros, talvez em número bem maior do que estimamos, já estiveram ou estarão em Paris. Verdade, verdade, mas meu caso é raro, pois que sou o único que se queixa de viajar a uma cidade sem rival e, com perdão da má palavra, imperdível, ainda por cima sem gastar praticamente nada do parco dinheirinho que ganho escrevendo coisas sem as quais o mundo permaneceria tal e qual. Verdade, verdade, mas encaro minhas viagens como uma sina, porque detesto viajar e cada vez detesto mais. Conto-vos por quê, na esperança de encontrar alguma compreensão.

Viajar dá trabalho, em primeiro lugar. Não sei, e não por falta de empenho, Deus é testemunha, fazer malas. Por alguma razão que escapa a meu entendimento, tudo o que já foi posto com folga na mala, por minha heróica consorte, sobra na hora de voltar. Diriam vós: “Ah, o safardana passa o tempo nas lojas, se entope de compras e aí não vê jeito de encontrar lugar na mala para botar tudo”. Ledo engano, eu não compro nada, fujo de lojas e, atentai para o que vos chamo a atenção, sou do tempo em que Nova York era uma viagem na qual as senhoras elegantes usavam chapéu, não era coisa para qualquer um. Hoje, Nova York talvez seja mais fácil de alcançar do que a Barra da Tijuca, nos horários de pique. E pensando bem, quem vai à Barra não precisa de Nova York: está tudo lá, inclusive em inglês, língua hoje pouco falada na Nova York propriamente dita.

Mas o que acontece comigo e as malas é um mistério. Rotineiramente, as roupas se duplicam, os bagulhos e remédios que todo coroa e paranóico, categorias em que me encaixo belamente, carrega consigo se transformam num mar de caixas e embalagens, camisas e afins assumem proporções extraordinárias e vários problemas correlatos me afligem. Enfim, para vos confessar a mais pura verdade, eu levo uma sacola extra em qualquer viagem ao exterior. Ela vai vazia dentro da mala principal e, empanturrada, se torna indispensável na volta. Devo reconhecer que, em meu favor, depõe o fato de sempre me darem livros, com dedicatórias, que não tenho coragem de jogar na cesta e até me deram, numa vez em que estive na feira de Arles, na Provence, dois salames - não sei se estavam querendo me dizer alguma coisa não tão sutil.

E tem o problema da viagem de avião, agora sem poder fumar e com uma comida que provocaria tumultos e apedrejamentos em qualquer bandejão do planeta. Classe econômica, turística, ou outro eufemismo para o que as equipes de bordo chamam de “galpão”, é um horror que Dante não pôde incluir em seu inferno (se já houvesse aviões naquele tempo, ele botaria algum desafeto nela), notadamente quando um grupo em excursão começa a tocar violões e pandeiros, geralmente, não sei bem por quê, cantando o “Trem das onze”. Para não falar no fato de que as poltronas, nome artístico aplicado a cadeiras claustrofobilizantes, não deixam espaço nem para um anão (“verticalmente prejudicado”, perdão; de vez em quando esqueço de ser politicamente correto, perdão, perdão) sentar. Imagino que alguns nórdicos altões já se submeteram a amputações voluntárias, no aeroporto mesmo, antes de embarcarem em certas classes econômicas.

E tem o problema da cara errada. Minha cara é sempre errada. Os únicos lugares em que eu não tenho, acho eu, a cara errada são Itaparica, Aracaju, uns dois bairros ou favelas de São Paulo e aqui o Leblon mesmo. Nos Estados Unidos, tenho cara de cucaracha. Na Alemanha, tenho cara de turco. Na França, tenho cara de árabe. Em Milão, tenho cara de calabrês. Em Buenos Aires, tenho cara de brasileiro. E, no meu passaporte, tenho cara de contrabandista de maconha paraguaio. Acresça-se a isto o fato de que, mesmo vestido com um terno caro, transformo-o imediatamente em andrajos, tal a minha elegância inata. Quem não passou pelo que eu já passei, por problemas de cara errada, não faz idéia do doloroso transe que isso constitui. E, pior ainda, consigo me dar bem em inglês, língua desconhecida em Miami e Manhattan, mas meu francês seria considerado de baixo nível numa escola para débeis mentais até os oito anos de idade (depois eu seria internado, francês não dá moleza para ninguém), ainda mais alguém com a minha cara.

Mas, assim mesmo, viajo. É sina, carma, já me conformei. Conheci Nova York, na época via Belém, Trinidad e Porto Rico, antes de conhecer Rio e São Paulo. Estou aqui em Paris, caros amigos. Vou dar uma rezadinha na Notre Dame, vou passear no Quartier Latin e vou até entrar, pela terceira vez, na fila do Museu do Louvre. Isso se conseguir sobreviver ao trauma de carregar o laptop, que fica dez quilos mais pesado a cada quilômetro - estimativa modesta para o que nos obrigam a caminhar por minuto em aeroportos, inclusive o Tom Jobim. Sim, e desta vez a Alfândega não me pegou, o que, aliás, não me surpreendeu muito, porque a Alfândega só costuma me pegar feio em Portugal, de cujos aeroportos já quis até dar uma escapulidazinha para ver se conseguia comprar um baseado e assim fazer a felicidade do fiscal que não acreditava em minha condição de escritor e, com a cara muito sabida (foi no Porto, não em Lisboa, manda a honestidade que eu faça a ressalva), contestou-a, dizendo que na minha mala não havia livros.

- Mas eu não sou livreiro - disse eu. - Sou somente escritor.

- Pois sim - respondeu ele, enquanto apalpava, com cara de quem gostaria de usar uma gilete, o único paletó em minha mala, e até hoje deve estar convicto de que foi vítima de alguma astúcia brasileira desconhecida. Enfim, eis-me em Paris. Prometo que, na minha rezadinha em Notre Dame, dou carona a todos vós. Mal não há de trazer-vos.

O GLOBO em 24/03/2002

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Laurindo Ribeiro (Poesias Avulsas)

A LINGUAGEM DOS TRISTES

Se houver um ente, que sorvido tenha
Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança
Veja raiar-lhe um dia de ventura;

Se houver um ente, que, dos homens certo,
Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores,
Uma traição nos mimos da amizade;

Se houver um ente, que, votado às dores,
Todo com a tristeza desposado,
De cruéis desenganos só nutrido,
Somente males a esperar do fado;

Que venha, acompanhar-me na agonia,
Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro
Quem sinta, como eu, tanta desgraça

Venha, sim, que talvez por nosso trato
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Por lei inexorável do destino,
Quem gemer à desgraça condenado,
Inda lidando no lidar do mundo,
Há de viver do mundo desterrado.

E em que desterro! Os outros só nos tiram
Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro
Desterra o coração e o pensamento.

Ao menos a linguagem deste exílio
Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça
Uma linguagem propriamente sua.

E quem tê-la melhor? Por mais que fale
O sedutor prazer em frase ardente,
Por mais que se perfume e se floreie,
Nunca é, como a dor, tão eloqüente.

Nos fenômenos d’alma o corpo sempre
Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza
A força esp’ritual se multiplica.

Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta,
Da Eternidade demandando o norte,
Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!

Quando o gás do prazer dilata o seio,
A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta,
A força do sentir se expande n’alma.

Assim novas palavras, novas frases,
Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas
P’ra vôos duplos colhe o pensamento:

Não, não pode em seus termos quase inertes,
Esse falar comum de cada dia,
Deste duplo sentir, d’idéias duplas,
Exprimir fielmente a valentia.

Enganai-vos, ditosos! Vossas falas,
Anos que falem, nunca dizem tanto,
Quanto num só momento dizer pode
Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.

Eia, pois, tristes! eia!... desde agora
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Veja o mundo, de gozos egoísta,
Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita,
Nem dos ditosos querem as palavras.

BEIJO DE AMOR

Se me queres ver ainda,
Recobra da vida a flor;
Deixa remoçar-me a vida
Um beijo de teu amor.

 De minha vida a ventura
Teus lábios guardam consigo,
Dá-me um só beijo e verás
Se é mentira o que eu te digo.

Como a flor, do sol a um beijo,
Se quiseres, podes ver,
A minh’alma, semimorta,
Num teu beijo reviver.

De minha vida a ventura,
Teus lábios guardam consigo,
Dá-me um só beijo e verás
Se é mentira o que eu te digo.

Só esperá-lo me alenta,
Me conforta o fado meu;
Imagina só por isso
Quanto pode um beijo teu.

De minha vida a ventura,
Teus lábios guardam consigo,
Dá-me um só beijo e verás
Se é mentira o que eu te digo.

A ROMÃ (lundu)

Entre as frutas que há no mundo
Não há uma fruta irmã
Na beleza e na doçura
Da que se chama romã.

Tem coroa de rainha,
Roxa cor na casca tem,
Quando racha, me retrata
A boquinha de meu bem.

Nos meus lábios sequiosos
Dum néctar sinto a doçura
Quando sedento lhe ponho
A boca na rachadura.

Pela primeira vez vi
Num jardim pela manhã,
O meu bem que em vez de flores
Só trazia uma romã.

DE TI FIQUEI TÃO ESCRAVO

De ti fiquei tão escravo
Depois que teus olhos vi,
Que só vivo por teus olhos,
Não posso viver sem ti.

Contemplando o teu semblante
Sinto a vida me escapar.
Num teu olhar perco a vida,
Ressuscito noutro olhar.

 Mas é tão doce
Morrer assim.
Lília, não deixes
De olhar p’ra mim.

Num raio de teus olhares
Minh’alma inteira perdi.
Se tens minh’alma nos olhos,
Não posso viver sem ti.

A qualquer parte que os volvas,
Minh’alma sinto voar,
Inda que livre nas asas,
Presa só no teu olhar.

Mas é tão doce
Prisão assim.
Lília, não deixes
De olhar p’ra mim.

Que era meu fado ser teu
Ao ver-te reconheci,
Não se muda a lei do fado,
Não posso viver sem ti.

Por não ver inda completa
Minha doce escravidão,
Se me ferem teus olhares,
Choro sobre meu grilhão.

Mas é tão doce
Prisão assim.
Lília, não deixes
De olhar p’ra mim.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional

Teófilo Braga (O Peixinho Encantado)

Recolhido no Algarve

Era uma pobre mulher, que tinha um único filho, e esse era parvo, e não queria trabalhar. Coitadinha, não lhe servia senão para comer.

Um dia que ia para o mato buscar lenha um rapazinho da vizinhança, ela pediu-lhe para que levasse consigo o tolinho, e lhe ensinasse a fazer um feixinho. Quando chegaram ao monte, o rapaz foi cortar dois molhos de lenha, e o parvo pôs-se a brincar ao pé de uma ribeira. Ali esteve sem pensar em nada, a ver os peixinhos na água; eis senão quando salta um peixinho mesmo às abas do parvo, que lhe botou logo as unhas. O peixinho assim que se viu nas mãos do parvo, disse-lhe:

– Não me mates, que em paga, quando quiseres alguma coisa, basta dizeres: «Peço a Deus e ao meu peixinho que me dê tal e tal, que tudo há de sair como pedires».

O parvo, assustado deixou o peixinho cair-lhe da mão, o qual desapareceu na ribeira. O outro rapaz bem chamava por ele para vir erguer o seu molho; ele foi, e quando viu que o molho era pesado, disse:

– Peço a Deus e ao meu peixinho que me ponha a cavalo neste feixe de lenha.

Saltou para cima do molho, que o levou a galope pelo mato fora e por toda a cidade até chegar a casa da mãe. O rei estava à janela do palácio, e ficou admirado; chamou a filha:

– Vem ver o parvo a cavalo num feixe de lenha.
   
A princesa desatou a rir, quando o viu; mas o parvo disse baixinho:

– Peço a Deus e ao meu peixinho, que a princesa tinha um menino meu.

Tempo depois começou a princesa a padecer; todos os médicos foram de opinião, que a princesa andava ocupada. O rei ficou desesperado e pediu-lhe por todos os santos que a filha lhe dissesse quem tinha sido o causante de uma tal vergonha. A princesa jurava por tudo que não sabia explicar aquilo; o rei mandou botar um pregão, de que quem viesse confessar que era pai do menino casaria com a princesa.

Depois de tempo, veio o parvo ao palácio para falar ao rei:

– Venho dizer a vossa real majestade, que eu é que sou o pai do menino da princesa.

O rei ficou espantado, a princesa não sabia o que estava ouvindo. O parvo contou então tudo o acontecido. O rei para se confirmar disse-lhe:

– Pois pede ao teu peixinho que te faça aparecer agora aqui muito dinheiro.

O dinheiro caiu-lhe de todos os lados.

– Pede ao teu peixinho que te faça um moço muito perfeito e muito esperto.

O parvo ficou logo mais formoso que todos os príncipes, casou com a filha do rei, e pela sua grande esperteza ficou governando.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 47 – 16 de fevereiro de 1888

Talvez o leitor não visse,
Entre editais publicados,
Uma boa gulodice?
Abra esses beiços amados.

Vamos, não tenha vergonha,
Estenda agora a linguinha,
Para que esta mão lhe ponha
Sobre ela esta cocadinha.

Disse nesse documento
A câmara que é vedado
Usar o divertimento
Entrudo, como é chamado.

Impôs as palavras duras
Do parágrafo e artigo
Do código de posturas,
Código já meio antigo.

A mim disse que a pessoa
Que outras pessoas molhasse,
Fosse a água má ou boa
Que das seringas jorrasse,

Incorreria na multa
De uns tantos mil-réis taxados,
E não ficaria inulta,
Se os não desse ali contados.

Porque iria nesse caso
Pagar suas tropelias
Na cadeia, por um prazo
De (no mínimo) dois dias.

E as laranjas, que se achassem
Na rua ou na estrada à venda,
Mandava que se quebrassem,
Como execrável fazenda.

Laranja, bem entendido,
Laranja, própria de entrudo,
Um globo de cera, enchido
Com água... às vezes, com tudo.

Ora, se o leitor compara
A exemplar compostura
Do povo (exemplar e rara)
Com o dizer da postura;

Se adverte que uma só pinga
De água não caiu na gente,
Que não houve uma seringa
Para acudir a um doente;

Que o belo colo das damas
Não viu o gesto brejeiro
De apagar-lhe internas chamas
Quebrando um limão de cheiro;

Conclui logo que a cidade
Obedece, antes de tudo,
A si (porque a edilidade
É ela) e deixou o entrudo.

Porém eu, que vi, em todos
Os anos, isto na imprensa,
Já desde o tempo dos godos
(João, com tua licença!);

E que, apesar de postura,
Vi seringas respeitáveis
De água cheirosa e água pura,
Terríveis e inopináveis;

Crioulas e molequinhos
Carregando em tabuleiros
Prontinhos e arrumadinhos
Infindos limões de cheiro;

Eu diversamente opino,
E digo que a lei se engana,
Se cuida ter no destino
Alguma ação soberana.

Recorda a mosca pousada
Na carroça, diz a fama,
Que, ao vê-la desatolada,
Cuidou tirá-la da lama.

Não, amiga lei. O entrudo
Desapareceu um dia
Entre calções de veludo,
Carnavalesca folia.

Reapareceu mais tarde;
Vingou por bastantes anos,
Com estrondo, com alarde,
Triunfos grandes e ufanos.

Chega a polícia de novo
E desterra o velho entrudo;
Troca de brinquedo o povo,
Fica somente veludo.

Mas quando houverem passado
O tempo e a policia, a ponta
Da orelha do desterrado
Entre bisnagas aponta.

E porque legem habemus,
Seja branda ou seja dura,
Anualmente veremos
A mesma inútil postura.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Machado de Assis (Fuga do Hospício e outras crônicas) Parte III, final

análise por Édson Carlos (UFRN), especialista em Linguística (UnP)

PARTE III - PALAVRAS E PENSAMENTOS

Nesta terceira e última parte do livro, encontram-se as crônicas de Machado de Assis que versam sobre o poder das palavras, do discurso, da escrita e, sobretudo, suas influências na sociedade. Existem também em algumas crônicas certas incursões metalingüísticas feitas pelo autor acerca do ofício do cronista e todos os fatores que compõem esse gênero textual.

Pergunta e resposta

Publicada em 5 de novembro de 1883. Sempre que sai na rua, algum curioso se acerca do autor e lhe indaga: “o que há de novo?”. Cansado de responder a tais perguntas, decide pôr um plano em prática; sempre que alguém lhe perguntar as novidades, ele conta um fato passado, como o terremoto de Lisboa e a morte de Gonçalves Dias. Os curiosos, como queriam saber de fatos novos e não passados, param de fazer tais perguntas ao autor. O texto é uma crítica explícita aos curiosos e mexeriqueiros da sociedade daquela época, pessoas curiosas que viam no autor – por ser um homem da imprensa – a oportunidade de se inteirarem nas últimas novidades e acontecimentos de seus dias. É também uma crítica ao descaso para com o passado, como se o que um dia aconteceu pouco valor tivesse hoje quando comparado com os mexericos da corte. Não se pode ignorar também o destaque que o autor dar às palavras, à influência que exercem no comportamento das pessoas.

Impostos

Publicada em 16 de maio de 1885. O autor encontra-se com os impostos inconstitucionais de Pernambuco. Os impostos estavam no Rio de Janeiro há quatro ou cinco meses e, tristes por terem sido expulsos da Câmara de Deputados, o autor os consola dizendo que o que os define como anticonstitucionais é apenas um adjetivo e se ele fosse escolhido o líder da nação aboliria o uso dos adjetivos e eles seriam apenas “impostos”. O poder das palavras é explorado pelo autor, afinal, sem adjetivos para qualificar as coisas, a linha que define se são boas ou más é apagada. Ele usa o caso dos impostos inconstitucionais para metaforicamente provar que, caso seja da vontade dos donos do poder, algo negativo pode ser visto com bons olhos por todos, através apenas, do uso de uma palavra adequada, que não pejorative o objeto.

O cronista e a semana

Publicada em 16 de setembro de 1894. O autor é visitado por uma semana pobre e esta vem lhe dizer que, enquanto ela durou, seu único ocorrido foi o escorregão de um homem numa casca de banana. O autor põe-se a lembrar da visita que teve anteriormente de uma semana rica. Ela (a semana rica), sempre ruidosa e enfeitada, contou que enquanto ela durou, ocorreram tragédias da pior espécie. Depois ela se despede e sai de seu escritório, o autor pede ao seu criado que, se a semana rica voltar, diga-lhe que ele não se encontra. No começo do texto o autor afirma preferir as semanas pobres às ricas, afinal, o que marca o caráter de pobreza da primeira é exatamente a ausência de assuntos trágicos,quando na segunda,o que a torna rica é exatamente a ocorrência de tais fatos. Há, na abordagem de tal temática em uma crônica,um velado exercício de metalinguagem, já que o cronista necessita de fatos para construir seus textos, e geralmente os melhores fatos dessa espécie ocorrem nas “semanas ricas”. A posição de Machado é uma auto-ironia, pois, mesmo preferindo as semanas pobres, elas pouco material lhes dão para suas crônicas.

O nascimento da crônica

Publicada em 1 de novembro de 1877. O autor fala sobre a crônica e conjectura suas origens, depois narra sua ida ao cemitério num dia quente.Participa de um sepultamento e,entrando em seu carro e indo para casa,repara em alguns coveiros que cavam uma sepultura sob um sol a pino e indaga-se:

Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres diabos,durante todas as horas quentes do dia?

Há, como no texto anterior, outro exercício metalinguístico, afinal,ele começa seu texto discorrendo sobre como fazer uma crônica,o que dizer a princípio e que a direção seguir e,por fim,infere onde surgiu a crônica. No decorrer do texto fala sobre se queixar da situação em que se vive e afirma que, por mais que seja penoso afirmar, sempre existirão pessoas em situação pior que a nossa, como comprova ao narrar sua ida ao cemitério.

Conto-do-Vigário

Publicada em 31 de março de 1895. O autor fala sobre um homem que passa a perna em outro e cogita onde terá surgido o famoso conto-do-vigário. Faz uma relação entre o conto literário e o conto-do-vigário e afirma que não é o tamanho do segundo que faz a sua obra,e sim de que maneira ele é feito. Uma vez mais
o autor explora o poder das palavras,poder que faz esse um homem arrancar dinheiro de outro sem que esse perceba.

Reflexões de um burro


Publicada em 8 de abril de 1894. O autor vê um burro à beira da morte, deitado sobre os trilhos dos bondes, ao seu lado foi colocada água e capim, mas o animal ignora isso, pondo-se a pensar em sua condição de burro, sua vida, suas tristezas e alegrias e falar sobre sua vida, sobre tudo aquilo que fez ou sobre o que deixou de fazer. A contragosto – tamanha era a sabedoria daquele animal – o autor se afasta, indo trabalhar. No outro dia, ao passar pelo mesmo lugar, encontra o animal morto e já estado de decomposição. O enfoque principal de tal crônica é ressaltar o poder das palavras, da oralidade, do discurso e a beleza que se encerra na comunicação oral, quando o orador domina a palavra a tal ponto que chega a enternecer seu público. Ao mesmo tempo, o autor volta ao mesmo tema de comparar veladamente o animal (neste caso, o burro) ao ser humano, suplantado pelo poder do tempo, da vida que transcorre e o faz envelhecer, definhar e morrer.

Touradas

Publicada em 15 de março de 1877. Machado ironiza a decisão de se fazer uma tourada em caridade aos necessitados, afinal, para prestar uma boa ação ao povo, fazem uma má ação aos animais. Desse modo, critica uma vez mais aqueles que, através de causas nobres (neste caso ajuda aos pobres) buscam angariar a simpatia do povo e galgar, assim, os degraus da vida política. Mais uma vez o autor exercita a metalinguagem ao definir o cronista, ou seja, como “um historiador da quinzena”, alguém que vive de contar – sob o prisma que seja – os eventos ocorridos que marcaram a sociedade neste intervalo de tempo.

Analfabetismo

Publicada em 15 de agosto de 1876. O autor trata das diferenças existentes entre as palavras e os números, afirmando que enquanto as primeiras são mais maleáveis, suscetíveis à interpretações diferentes e a mal-entendidos, os segundos são mais práticos, diretos, impossíveis de ser interpretados de outra maneira que não seja a da lógica e do bom-senso.

Grito do Ipiranga

Publicada em 15 de setembro de 1876. Um amigo do autor lhe fala que o grito do Ipiranga, que marcou a independência do Brasil, como conhecemos não ocorreu do mesmo modo que se disse, foi, na verdade, um apanhado de fatos dispersos que o povo achou melhor resumir miticamente no famoso “grito”. O autor posiciona-se justificando ironicamente:

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autentica. A lenda todo o fato da in dependência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima.
Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

Mais uma vez, o cronista fala sobre as palavras e seu poder, no entanto, partindo agora sobre um enfoque entre a escrita e a oralidade, entre história transcrita em todas as suas minúcias para o papel e a versão oral que resume e, de modo generalizador, dá seus tons épicos ao ocorrido.

Neologismos

Publicada em 7 de março de 1889. Critica a tentativa do senhor Castro Lopes, famoso latinista brasileiro de sua época, em criar uma série de neologismos para substituir as palavras e as frases oriundas do idioma francês – tão comuns no vocabulário dos brasileiros letrados da época. Ironiza o uso de determinadas palavras e, por fim, encerra seu texto defendendo sarcasticamente que, por mais que não se queira aceitar, muitos destes termos e expressões francesas já foram assimilados pelo nosso vocabulário, como é o caso de palavras como “reclame” ou “croquete”.

A última crônica versa sobre o poder universalizante de algumas palavras, que rompem as fronteiras de sua nação de origem e adentram em outras nações, as quais possuem seu próprio idioma. Uma das críticas mais presentes em todo o texto é o fato de que o senhor Castro Lopes repudiava o uso apenas das expressões francesas, fazendo pouco caso sobre o uso de palavras como “xale”, de origem persa.
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Fonte:
Passeiweb

Hugo Ramos (Mágoa de vaqueiro)

A Eduardo Tourinho

Como os galos viessem amiudando e fora andasse a garoa fria de inverno que precede as primeiras horas do amanhecer, o Zeca Menino, largando num tamborete o par com quem dera a última volta da catira, esgueirou-se pelo corredor, atravessou sorrateiramente a varanda de terra batida, onde a mesa posta ostentava ainda os sobejos da ceia – frascos de licor e o doce de buriti esparramando-se na toalha besuntada – e saiu pelos fundos da casa.

No terreiro, encolhido ao aconchego da fogueira, gemia ainda àquela hora o tio Ambrosino, viola ao peito, respontando na prima:

 A florzinha do pau-d'arco
É da cor do entardecer,
Traz tristeza, traz quebranto,
Tu, que não hás de trazer...

 Em pontas de pé, dissimulando o tilintar das rosetas no cachorro das esporas, Zeca Menino alcançou o alpendre à banda, desamarrou a mula estradeira e voltou montado ao oitão da casa, raspando-se no peitoril duma janela, que arranhou suavemente com o cabo da açoiteira. Os tampos descerraram-se sem rumor; um vulto esquivo deixou-se escorregar para a garupa roliça da besta, e o estrépito abafado do animal, que ganhara a porteira e se afastava na cerração, misturou-se perdido aos zangarreios da sanfona, reavivando dentro a animação dos comparsas.

Junto ao fogo semi-extinto, cabeceando de sono, farto da queimada engolida aos gorgolões, o tio Ambrosino interrompera o curso de suas divagações e cachimbava distraído:

– Homem, a modo que já vão andando... Ah, meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol com a mão!...

E caducou em solilóquio, levado de novo pelo curso da borracheira:

 Lá na serra dos Angicos
Quanta flor anda a brotar!
Assim também são teus olhos
Quando pões-me a namorar...

 Despertado, um galo cacarejou no poleiro ao pé, num grande grito de alarma.

– Carijó que assim canta, é que fugiu moça de casa.

Mas o frio apertava, a lua ia a perder-se por detrás das serranias; e tio Ambrosino recolheu-se tropeçando ao abrigo da varanda, a espertar o corpo perrengue num último gargarejo da queimada.

E só quando as barras vinham quebrando e era manhã feita nas morrarias do nascente e o último convidado, que morava mais chegado, se despedia do festeiro – num salamaleque derreado onde havia ainda bifadas de cachaça e licor de jenipapo – que este deu pela ausência da filha, chamando-a para a bênção do padrinho.

Houve um rebuliço. O vaqueiro gritava para dentro, supondo-a recolhida; e o Ambrosino, escarranchado na pileca manca, atalhou com voz pachorrenta:

– Ora, não se afobe, compadre, a afilhada já dorme, moída da festança; também, requebrou-se a noite toda com o manhoso do Zeca Menino, agora dorme...

E partiu, no passo ronceiro da mula cambeta, pendependendo no arção, as pálpebras inchadas, num sono invencível de sapo borracho.

O outro, porém, mal o viu desaparecer no cotovelo do atalho, embarafustou pelo rancho, andou lá por dentro remexendo, repondo os trastes em seus lugares; e, num pressentimento, chamou junto ao quarto da filha:

– Ó Maria!...

Mas um silêncio angustioso pairou após o brado do velho; e ele, resoluto, meteu ombros à porta, cuja tranca cedeu sem dificuldade.

A cama estava como na véspera a vira, quando lá entrara para apanhar a bandeira do santo; a colcha de chita bem esticada, fronhas dos travesseiros intactas, sem vinco ou ruga duma cabeça que ali repousasse alguns instantes; e o rosário das orações como sempre, dependurado na cabeceira. Da Mariazinha, porém, nem vestígio.

Ele olhava apatetado, sem compreender; foi à cozinha, na esperança de encontrá-la dobrada sobre o jirau de mantimentos, quando lá fora talvez buscar a candeia de azeite e se deixara ficar, vencida do sono; foi, e apenas o bichano, mui gordo e ronronento, abriu para ele da trempe do borralho onde se aboletara, uns grandes olhos deslavados de espanto e ronronando ficara de novo a dormitar, no calor brando das cinzas.

O velho Tonico percorreu todas as dependências daquele pobre rancho de vaqueiro, a sala, a varanda e sua própria divisão; saiu, foi ao alpendre e até o chiqueiro e o fundo do quintal inquiriu ansiosa, inutilmente.

Veio ao terreiro da frente, o sol já nado; e só então a dor expluiu, numa crise de lágrimas e recriminações.

Fugira, a malvada! E com quem, Santa Maria, com o Zeca Menino certamente, um perdido de pagodeiras e do truque, brigão vezeiro nas redondezas, sujeito que além da garrucha e da besta de sela, só tinha por si essa estampa escorreita de mestiço madraço e preguiçoso! E por que, Virgem Maria, se ele nunca se intrometera no namoro, até satisfaria a vontade de ambos, dando o consentimento; ele que, mal da idade, com tão pouco se contentava – vê-la sempre de sorriso à boca ao batente da porta, quando viesse das malhadas, e a tigelinha de café bem requentada, quando partisse pela manhã para as labutas do campo! Ele que, bom Deus dos fracos, só tinha aquele mimo na sua velhice desamparada e solitária de viúvo, à beira dum atalho sempre deserto e cujo vizinho mais próximo, o Ambrosino, ficava a duas léguas de distância!

E arrepelava a grenha, num pasmo mudo agora, como se nem pensar naquilo valesse mais a pena, tão absurda parecia a desgraça que se lhe abatera sobre o casebre.

Ah! não ter dez anos para menos, não virasse já os sessenta bem puxados, tivesse o pulso a rijeza de outrora e partiria sem detença, no rosilho troncho, pronto a tirar a desforra merecida da afronta!

Mas o corpo já não dava de si e ele bem sabia quão boa estradeira era a mula ruana em que haviam partido. Àquela hora, já transpunham a mata funda, rumo do Paranaíba e talvez das terras mineiras do Triângulo, bem longe da sanha e da ojeriza impotente de seu amor paterno ludibriado.

E num dasalento, amparou-se ao cupinzeiro que erguia o seu cone crivado à frente da palhoça, a olhar emudecido, em desespero.

O sertão abria-se naquela manhã de junho festivo, na glória fecunda das ondulações verdes, sombreado aqui pelas restingas das matas, escalonado mais além pelas colinas aprumadas, a varar o céu azul com suas aguilhadas de ouro; batuíras e xenxéns chalravam nas embaúbas digitadas dos grotões; e um sorvo longo de vida e contentamento errava derredor, no catingueiro roxo dos serrotes, emperolado da orvalhada, a recender acre, e nas abas dos montes e encruzilhadas, onde preás minúsculos e calangos esverdinhados retouçavam familiares, ao esplendor crescente do dia.

Ele ficara mudo, olhos apalermados, virado o rosto para a volta da estrada, de cuja orla subia um nevoeiro luminoso, que o mormaço solar irisava.

Ali permaneceu horas a fio, o sol já dardejando a prumo, indiferente à canícula, mãos túrgidas engalfinhadas na barba intonsa, boca contorcida numa visagem estranha de mágoa, a
olhar longe, muito longe, para além das colinas longínquas e do céu anilado.

À tarde, o eco dum aboiado rolou pelo fundo da várzea, ondulando dolentemente de quebrada em quebrada, num despertar intenso de saudade...

Eram boiadeiros que lá passavam, na estrada batida.

O vaqueiro velho não saiu então como de costume, ferrão em punho, perneiras e guardapeito, escorreito e desempenado, no rosilho campeador, a dar a mão de ajuda àqueles forasteiros que lá iam, demanda das terras distantes e das feiras ruidosas dos sertões mineiros d'além-Paranaíba.

Continuava recostado no cômoro dos cupins, mão no queixo, olhando extático; somente, agora, a cabeça bronzeada pendia mais flacidamente sobre o peito de vaqueano, e o olhar com que via, era inexpressivo e desvidrado, desmedidamente aberto, estampando na retina empanada a visão pungente do sertão em festa, todo verde, e a orelha à escuta, longe, das notas derradeiras da canção nativa.

Morrera, ouvindo os ecos que lá iam do aboiado, a rolar, magoadamente, de quebrada em quebrada...

Ao pé, na roupeta singela de algodão em que se enfatiotara, nas axilas, nos braços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das térmitas em rasgar, picar, cortar e estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera desde cedo por cima da casa...

Fonte:
Tropas e Boiadas (contos). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1917

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Trova 262 - Olympio Coutinho (MG)

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Carlos Leite Ribeiro (Achado Arqueológico)

Num dia de sol ardente, estava o José Pinoca a fazer umas escavações numa terra em Riba d` Aves, para a construção de uma casa...

(Riba d` Aves, para aqueles que não sabem, fica a cerca de 10 Km da cidade de Leiria)

... A certa altura das escavações, o Pinoca começou a encontrar uns ossos " olha que engraçado encontrei uns ossos... Mas eles têm formas esquisitas...". Voltando-se para os trabalhadores que o estavam a ajudar nas escavações, disse-lhes: " Podem ir para as vossas casas descansar!".

Muito intrigado com o achado, o Pinoca dirigiu-se rapidamente a casa para ir contar a sua mulher, a D. Piquita, a boa nova, pois, se fosse aquilo que ele julgava ser, ia-lhe dar uns tostões na sua exploração.

“Piquita, Piquita ... Oh mulher, estás aí ?” A mulher quando o ouviu assim tão aflito, começou logo a descer as escadas e por fim respondeu-lhe: " Sim homem, estou aqui. Aonde é que querias que eu estivesse?!"

“Oh mulher, tu nem calculas o que é que eu encontrei nas escavações que estou a fazer !" tentando dizer alguma coisa com graça, a Piquita respondeu-lhe: " Pela tua cara... deixa cá ver, deixa cá ver: já sei, encontraste uma cobra !" - disse-lhe a mulher em tom de gozo.

“Qual cobra qual carapuça ! encontrei uns ossos que não sei de quem poderão ser. Percebeste mulher ?!"

“Óh homem, eu não sou estúpida de todo e já compreendi há muito tempo o que tu encontraste. Mas diz-me uma coisa: já foste falar com o coveiro ?...".

José Pinoca, antes de responder à mulher, sentou-se num banco e só depois lhe respondeu: "Minha esposa esperta, é lógico que não fui falar com o coveiro, pois vim logo para casa e além disso, estou muito cansado. Talvez amanhã vá. Entretanto, estava a esquecer-me de algo muito importante. Peço à minha querida "comandante" que não vá contar isto a ninguém."

A D. Piquita tirou o avental, compôs o cabelo a pôs-se em posição de sentido, respondendo ao marido: " muito bem, meu comandante ! O meu excelentíssimo e digníssimo comandante quer que eu guarde mais alguma coisa, ou esta chega!...". O Pinoca sorriu.

No outro dia logo pela manhã, o José Pinoca foi ter com o seu compadre Malaquias, que ao avistá-lo, logo o saudou: " Olha o compadre José Pinoca! então o que o trás por cá ?...".

Compadre, nem sei como hei-de começar...". O Malaquias começou a ficar muito curioso e desconfiado com aquela visita do Pinoca e, em determinada altura disse-lhe:

"Não sei o que me quer, mas desde já peço-lhe que esteja à vontade comigo. Vá lá, diga-me lá o que me quer...".

" Então aqui vai... Sabe, eu tenho andado a fazer uns alicerces para uma casa e, qual o meu espanto quando em determinada altura encontrei uns ossos. Ora, como você é perito nesta matéria de ossos, gostava de saber se aqueles ossos são ou não humanos...".

Embora algo admirado, o Malaquias não "desarmou" e com uma certa vaidade, respondeu ao Tinoca: " Fez muito bem em vir Ter comigo, pois como diz (e muito bem) eu sou um grande especialista em ossos ! vamos então lá ver esse seu achado ...".

E lá foram os dois compadres a caminho das fundações. Ao chegar ao local, logo o Malaquias se meteu na vala para melhor examinar os ossos. Depois de um demorado exame, saltou da vala, encarou o compadre, tossiu, piscou os olhos e com ar de pessoa "muito entendida" expressou-lhe a sua avalizada opinião: " Compadre... São ossadas de dinossauro!".

“Oh compadre, estou tão nervoso que nem sei se choro, se me ria! ... Olhe lá, e se fossemos contar o sucedido à D. Fúfia ?...".

“Sou da sua opinião, Pinoca! ".

E os dois compadres dirigiram-se a casa da D.Fúfia, uma senhora de certa idade, que não era nada bonita, mas que há muito tinha aprendido a comer com faca e garfo.

Chegaram e logo bateram à porta. Do outro lado respondeu-lhes uma voz muito rouca e autoritária: "Quem é ?!...". Depois dos compadres se terem identificado, a D.Fúfia veio abrir-lhes a porta com o seu ar quase marcial, olhando-os por cima dos seus óculos encarapitados no seu quase adunco nariz.

“Olá! Entrem, entrem e ponham-se à vontade. Querem um chazinho?... Pelas vossas caras estou mesmo a ver o que vocês queriam era aquilo que eu, para o conseguir beber, tenho sempre que fechar os olhos, ou seja, vinho! Mas infelizmente bebi ainda à pouco a última pinguinha que tinha cá em casa...".

" D.Fúfia, por favor não se incomode "cá com a gente" - disse-lhe o Malaquias, e logo o Pinoca concluiu: "Para não maçar muito a senhora, podemos ir já à questão que cá nos trouxe?".

A senhora mais uma vez os convidou a sentarem-se, sentando-se em seguida, tirando antes de um cesto a sua enorme jibóia de estimação que a pôs ao pescoço.

"Digam-me lá então que questão é essa... será dinheiro ...?".

Os compadres sorriram e o Pinoca adiantou-se:

" A questão desta vez não é de dinheiro. É o seguinte, eu estava a fazer um buraco numa construção que ando a fazer perto da Lameira, e qual o meu espanto que em determinada altura encontrei umas ossadas, que aqui o nosso distinto coveiro diz que são ossos de dinossauro".

Ao ouvir isto, a D.Fúfia quase que deu um pulo na cadeira e, agarrando a jibóia com a mão esquerda e espetando o dedo indicador em direção dos compadres, logo deu a sua opinião:

"Oh gentes!... Vocês tomem muito cuidado, pois o que encontraram pode ser uma manobra política/desportiva. Tomem muito cuidado!...".

O Pinoca ficou um tanto ou quanto atrapalhado e foi o seu compadre Malaquias que ousou perguntar à D.Fúfia:

"Então o que é que podemos fazer com as ossadas?!...".

"Pois é ... deixem-me cá ver, deixem-me cá ver ... Ah já sei! Vocês vão já falar com o diretor do Museu de Arte Natural de Riba d` Aves, e apresentem este caso.".

Em princípio, o Pinoca não estava nada, mas mesmo nada disposto a ir falar com o diretor do Museu, pois chegou a pensar que aquelas ossadas de dinossauro lhe podiam dar-lhe umas boas coroas (notas ...). Mas por fim e aproveitando a sugestão da D.Fúfia, lá foram os compadres falar com o diretor.

Algum tempo depois vieram uns técnicos de Lisboa e, ao fim de alguns meses o enorme esqueleto já se encontrava montado.

No dia da exposição para a apresentação ao público das ossadas do dinossauro, a D.Fúfia, embrulhada na sua enorme echarpe bolorenta e já com alguns buracos de traça, orgulhosamente dizia a toda a gente que tinha sido dela a iniciativa para que as ossadas fossem entregues ao Museu.

Nisto aproximou-se mais do esqueleto para o melhor poder admirar, quando perante a estupefação geral deu um enorme grito e exclamou:

“Mas... Mas estas ossadas são do meu querido e único namorado que morreu há mais de 60 anos!!!".

E dizendo isto, caiu redondamente no chão.

Fonte:

Clevane Pessoa (Poemas Avulsos)


SERIAL KISSER

Formal, beija-lhe as costas da mão direita
ao despedir-se, numa festa.
Lembra o antigo gesto:
beijava-lhe o côncavo da mão esquerda
a pedir que guardasse o precioso segredo

Até que uma noite, o vê passar de carro,
outra em seu lugar,
a beijar a outra mão
– o mesmo gesto, que julgava seu,
noutra epiderme.
Agora, ato sem perdão,
Modelagem, por certo, em série
Na pedra sabão
Que não mais quer ganhar.

CHUVA ALHEIA

No mundo há os que dizem,
os que dizem e fazem,
os que apenas dizem e nada fazem
e aqueles que pouco falam,
mas realizam, no casulo do segredo,
o que é preciso fazer.

Há os que fingem ser,
na lógica do parecer
e do fechamento de gestalts, protótipos
estratégias e insinuações.
Mas não são, não fazem,
não doam,
apenas simulam,
revolvendo-se em ninho
feito pelos outros,
cantando suas canções.

Se fossem chuva, choveriam com água alheia
à noite, para não serem descobertos
e de dia, para acharem que seriam nuvens férteis.

FUNÇÃO

Lençóis d'água
Subterrâneos frescores
A amenizar
Os fogachos da menopáusica
Mãe Terra...

Jasmins d'água
Em touceiras.
O olor pungente
Bordeja o rio
que borda a Terra...
De longe, querubins
Em miniatura
Adejando brancas asas...
De perto, parecem
Borboletas que não voam,
Presas ao verde...
De quando em vez,
Caem pétalas
Sem ruído perceptível
E cada qual beija a água
Respingando ternura
Flutuando, leves plumas,
Por certo merecem
Que meu olhar
De brasas acesas
Perscrute o ondulado
E frio caminho...

Até onde irão? Aonde
Deságua a água
Cantando,
Ao mar se entregando?
Ou... Fenecerão antes
Que o Tempo e a poluição as insulte
Roubando-lhes a beleza?…

MISTÉRIO

Para onde se vão
os escritos perdidos
nesse universo cibernético?
Será que há um batalhão de
anjinhos
garis de palavras perdidas,
a recolhê-las?
Será que caçadores de
antiguidades
(saiu do hoje, já é passado,
saiu do agora,
já é antigo...)
as recolhem no limbo
de outras dimensões
e por elas cobram fortunas
de gotas d'água ao sol,
para que os arco-íris
não se acabem jamais?
Será que os escribas
já em outra dimensão
lêem, corrigem
aprovam, declamam,
repassam,
fazem pastas de nuvens
e arquivam?
Quem souber,
conte aos poetas,
conte-me que lhes repasso...
Mas... para onde foi o poema
feito ainda agora
e que fugiu para o espaço?
Será que vai chover Poesia?

CHOVENDO

Tempo no gerúndio, coisa de poetas:
A natureza continua
chorando em cima das últimas pétalas...
vestígios de lágrimas
nas calçadas da rua.

TERMÔMETRO

O beijo, essência do real
promove sensações
no soma, na anima, no animus
toca espaços antes ignotos.
- mesmo se dado na boca
atinge mil points de prazer.
O beijo é mediado  pela impossibilidade
de não acontecer.
Em simbiose de quereres,
faz-se medida do desejo.
Se frio, bom desistir
de investir num futuro pobre
ao lado de quem ser parceiro
arqueiro mais que certeiro
ao alvo a atingir
mas não acende o devido aceiro:
não acende chamas
quando beija o beijo
que não logrou aquecer

INÚTIL NÃO
 

Lamenta pela vida inteira
o beijo que não deixou acontecer,
Qual saber da brasa sob cinzas
e não soprá-la para reacender...
E o frio se instalou no centro
de sua frustração.
Agora, ouve a sinfonia repetitiva do Não
qual antigo disco quebrado…