sábado, 1 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Os Aprendizes)

Esse caso passou-se, faz tempo, pouco depois de nos mudarmos para o Leblon, que era ainda um bairro adorável e tranquilo, sem grades nos edifícios - aliás, poucos edifícios e ainda muitas casas com jardim e quintal. Hoje, não sei se foi o Leblon que mudou, mas quanto a mim, sei que mudei muito, quase não saio de casa e, em sã consciência, não posso dizer se é melhor agora ou era melhor então.

Mas voltemos à historinha que eu ia contar: A gente saiu à praia manhã cedinho, quase com escuro. O tal vendedor de mexilhão nos avisara que chegava às cinco horas, trazendo os mexilhões da Ilha das Cigarras, sem poluição, arrancados das pedras, e não de casco de barco, como vendem por aí. Nós chegamos às 5, as luzes do calçadão ainda acesas, mas do vendedor nem sinal. Sentamos na calçada, mas soprava um ventinho frio, resolvemos caminhar um pouco. Não se tinha andado quase nada, quando demos com um pequeno ajuntamento em torno de qualquer coisa que estava dentro de um desses valões cavados na praia pela ressaca.

Um monte oblongo de areia molhada interrompia o valão. E na borda desse monte de areia apareciam os dedos de um pé, com as unhas pintadas de vermelho vivo. E os dedos mexiam!

Um moço forte, corredor de cooper - ainda se diz assim? - ajoelhou junto e começou a afastar com as mãos a areia frouxa e úmida que cobria o outro pé, a perna, as coxas. Uma mulher ajoelhada perto de onde deveria estar a cabeça, cavava também e de repente gritou "Está mesmo viva!".

Nessa altura já uns dez pares de mãos desenterravam a moça que não estava nua como a princípio se pensara, mas trajava short e bustier. Então a mulher da cabeça gritou: "Não está respirando, não está respirando mais!"

O moço corredor mudou de posição; tomou o lugar da mulher, afastou do rosto da moça - morta ou desacordada? - o cabelo empapado de areia, olhou em torno e anunciou: "Vou fazer respiração boca a boca!"

As pessoas se aproximaram mais, avidamente, como se fossem assistir a uma cena de sexo explícito. O moço, que até se parecia um pouco com galã de televisão, enterrou a mão sob a nuca da vítima e tacou-lhe um beijo, no melhor estilo de novela. Os dedos dos pés mexeram de novo; o rapaz levantou a cabeça e disse, sóbrio: "Reparem, ela já está respirando."

Aí uma menina gorda, que a mãe levava pela mão, evidentemente para obrigar a exercício, comentou bem alto: "Também, com aquele tamanho chupão!"

A mãe deu um beliscão no braço grosso da filha, e ralhou: "Que palavra feia!

Onde você aprendeu isso?"

Agora já era visível para todos que a moça respirava. Foi puxada do buraco, meio sentada, apoiada ao peito do seu salvador.

A mãe da filha gorda perguntou de repente: "Terá sido estuprada?" E um idoso senhor de uniforme esportivo, tranquilizou: "Não, olhe o calçãozinho dela, está direito no lugar."

Aí alguém viu, no pescoço da moça, uns arranhões que ainda sangravam levemente, misturados com a areia. O senhor de roupa esportiva continuava observando: "São arranhões feitos por unhas."

"Quem sabe não foi um vampiro?" - falou a garota gorda.

Ninguém falou nada, mas alguns se entreolharam.

A mulher, ainda ajoelhada, pegou nas mãos largadas da vítima, olhou os dedos: "Roubaram também um anel. Está arranhado, olhem!"

Sempre encostada ao peito do rapaz, a moça afinal abriu os olhos e, vendo toda aquela gente aglomerada ao seu redor soltou um grito. Mas descobrindo apenas faces benévolas, perguntou ansiosa: "Cadê os pivetes?" Todo mundo rosnou: "Ah, foram os pivetes!" E a moça explicou entrecortado: "Me bateram na cabeça, eu caí." Daí, não se lembrava mais.

O senhor disse: "Bateram nela, desacordaram, arrastaram para o valão, cobriram de areia..." Outros completaram: "A sorte é que a areia foi pouca, não sufocou." Alguém de repente exclamou: "E a polícia? É bom chamar a polícia. Onde tem um telefone?"

Nos oferecemos, nossa casa era perto. Saímos correndo, para telefonar. E cruzamos com o homem dos mexilhões que parou, espantado, vendo que eu passava célere, lhe dizendo: "Só depois, só depois!"

 Fonte:
Jornal Estado de São Paulo . 14 de setembro de 2002

Helvécio Barros (Baú de Trovas)

Macau, Rio Grande do Norte 30 de abril de 1909.
Bauru 27 de setembro de 1995


A amizade não quer palmas
por ajudar seus irmãos.
Deus olha o fundo das almas
e nunca a palma das mãos.

Abro a janela bem cedo
e ouço músicas bizarras...
- São as vozes do arvoredo,
no coro de mil cigarras...

Ah! Quantos vão pelo mundo,
sem calor, de alma abatida,
fugindo a cada segundo
da própria sombra da vida!

Amigos só de lorota,
há na terra em profusão!
- Mas os bons a gente nota
num só aperto de mão...

Andei aos trancos na vida,
como humilde peregrino:
– Cheguei ao fim da subida,
sem chegar ao meu destino!

A própria infância também,
é do Passado uma voz:
- Saudade, às vezes, de alguém
que vive dentro de nós...

A trova simples, sonora
parece flor do sertão!
A gente fácil decora,
mas quem sente é o coração

Cabelos brancos ao vento,
- Saudade feita de neve!
Mil fibras de sentimento
dizendo a tudo até breve!...

Carro de bois do sertão,
acordando as madrugadas,
a ouvir-te a triste canção,
ouço o choro das estradas...

Carta de afeto relida,
de quem nos quis muito bem,
traz um pedaço de vida,
na saudade que contém.

Definir foi sempre em vão,
da saudade o seu por quê...
- Mas, se vem do coração,
saudade, enfim, é você...

Do Sonho sou vagabundo,
trilhando rumos diversos...
Não tendo nada do Mundo,
o Mundo abraço nos versos.

Duas almas bem unidas
ninguém separa jamais.
Às vezes, são duas vidas,
que a vida já fez iguais!

Em qualquer templo que seja,
sorri a noiva em seu véu...
- De flores, cobre-se a igreja!
- De sonhos, veste-se o Céu!

Há caprichos diferentes
em certas cartas lacradas:
são os gritos contundentes
das reticências caladas…

Há sempre um dia cinzento
vivendo dentro de nós...
- Reticências de um lamento...
- Tristeza que não tem voz!

Mesmo com truques velados,
tinha a mocinha de outrora
mais tolerantes pecados
e menos pernas de fora...

Muita lágrima sentida
em silêncio sei que enxugas...
- São reticências da vida
pelo caminho das rugas...

Não chores, criança pobre,
o teu casebre sem luz,
que há muita mansão de nobre,
onde há Natal sem Jesus.

Não choro, na solidão,
a vida que vai passando,
choro, apenas, com razão,
o que a vida vai matando!...

Não te julgues o primeiro,
nem que sejas um portento:
quanto mais alto o coqueiro,
mais fácil se verga ao vento!

Na vida o nosso papel
é tal qual o pirulito:
- Quando a língua chega ao mel,
o dente trinca o palito...

Nesta cabana esquecida
e sem você, quem sou eu?...
– Um resto, talvez, de vida
que a própria vida esqueceu!...

Ninguém altera jamais,
nossos caminhos terrenos:
- Alguns têm tudo demais!
- Outros têm tudo de menos!

Ninguém por certo é perfeito
numa total plenitude.
- Quem conhece o seu defeito
já tem alguma virtude.

O lar é viga, cimento,
a modelar gerações!
- Cartilha do sentimento,
feita de mil corações!

Pioneiro da bondade,
foi Jesus, sempre a servir!
– Ensinou a humildade,
de dar e nunca pedir!

Quando alguém foge à virtude
e pisa as rosas do Amor,
passa a ser espinho rude,
já que não soube ser flor!

Quem sonha é sempre criança,
na vida não tem idade...
- Vive tecendo Esperança!
- Vive juntando Saudade!

Ribeirão Preto, é sucesso,
é vida que se renova,
se canta a luz do progresso,
vibra na festa da Trova.

Sem ver distinção de raça,
dá a todos tua mão!
– Que eu sofra, meu Deus, mas faça,
de cada amigo um irmão!

Tal qual arisca serpente,
a mulata, quando passa,
mexe com tudo da gente,
belisca o sangue da raça...

Tributos e dissabores
a vida nos deu dobrados:
– tu choras por  minhas dores,
eu choro por teus pecados!

Um grande amor não se esquece!
Nada no mundo o destrói!...
Quanto mais longe, mais cresce!
Quanto mais perto, mais dói!

Velho mar, soturno e rude,
entre nós – que afinidade:
gemendo a mesma inquietude,
chorando a mesma saudade...

Teófilo Braga (A Paraboinha de Ouro)

Recolhido no Algarve

Era de uma vez três irmãs, que viviam juntas; a mais nova punha à janela uma bacia com água e ali vinha espanejar-se um passarinho, que era um príncipe encantado, que falava com ela.

As irmãs tomaram-lhe grande inveja, e procuraram jeito de acabar com as conversas; espreitaram e viram o príncipe, e meteram na bacia de água muitas navalhas de barba.

Quando ao outro dia veio o passarinho lavar-se, cortou-se e foi-se embora; a pequena veio à hora do costume, e o passarinho não aparecia; só quando olhou para a água e a achou cheia de sangue e com as navalhas de barba, é que compreendeu a traição das irmãs.

Foi por esse mundo além, perguntando se alguém sabia onde estava o príncipe encantado; até que chegou a casa da Lua. A mãe da Lua disse-lhe:

– Ai menina, que vem aqui fazer? Se o meu filho a acha cá… Olhe que ele tem uma cara muito zangada.

A menina sempre lhe contou o que queria, e a velha escondeu-a e disse-lhe que havia de perguntar ao filho, onde é que estava o príncipe. Por fim entra a Lua, muito zangada, dizendo:

– Cheira-me aqui a fôlego vivo.

A velha lá sossegou a Lua, e perguntou o que a menina queria; respondeu a Lua:

– Eu sei lá dele! Todos os que estão doentes me fecham as janelas assim que anoitece! O Vento é que há de saber.
   

A mãe da Lua deu à menina uma paraboinha de ouro, e ela foi ter à casa do Vento. A mãe do Vento também perguntou ao filho, e ele disse:

– O príncipe está muito longe e eu já lá cheguei, mas como está doente fecharam-me todas as janelas. O Sol é que sabe onde é que o príncipe está.

A menina foi-se embora, e a mãe do Vento deu-lhe uma roca de ouro cravejada de diamantes. Até que chegou à casa do Sol; a mãe tratou-a muito bem, e nisto entrou o Sol muito radiante e alegre, e disse onde é que estava o príncipe, e ensinou-lhe o caminho. A mãe do Sol deu-lhe um fuso de ouro.

A menina chegou defronte do palácio e sentou-se, mas estava tudo fechado. Puxou da sua paraboinha e pôs-se a enrolar. As criadas do palácio viram aquilo e foram-no dizer à rainha, que lhe mandou dizer que queria comprar aquela paraboinha. Ela respondeu:

– Só se me deixarem entrar no quarto do príncipe.

E pôs para o lado a paraboinha, e começou a fiar na roca de ouro cravejada de diamantes. Foram dizê-lo à rainha, e ela tornou a mandar-lhe pedir que lhe vendesse a roca e a paraboinha; a menina respondeu, que só se a deixassem entrar no quarto do príncipe.

A rainha quis, e a menina foi ter ao quarto aonde estava o príncipe doente e cheio de feridas. A menina chegou-se ao pé da cama, falou-lhe, e ele conheceu-a; contou-lhe então a traição que as irmãs lhe fizeram com inveja.

O príncipe ficou muito contente com a verdade e melhorou de repente, contou tudo à rainha e casou e viveram ambos muito felizes.
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Paraboinha =Aparelho em forma de carretel para enrolar fios.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n. 171 - março de 2014)



Felizes os trovadores,
romancistas de quadrinhas,
que fazem de seus amores
romances de quatro linhas.
Durval Mendonça
 

Minha mãe verteu mais pranto
que a mãe de Nosso Senhor.
A Virgem chorou um Santo;
minha mãe – um pecador!
José Maria M. de Araújo

Feiticeira de alma nua,
eu danço liberta, ao léu.
Sob o feitiço da lua,
não tem limite o meu céu!
Nádia Huguenin
 

Quando o poeta escrevia,
a rima era tão perfeita,
que a mão esquerda sentia
ciúmes da mão direita!
Newton Meyer
 

A mulher sempre é mais pura,
mais bonita e mais completa
quando a ponho na moldura
dos meus olhos de poeta!
Orlando Brito

Num processo singular,
em seu trabalho fecundo,
a mulher, dona do lar,
tornou-se dona do mundo!
Rodolpho Abbud

 



“Me apavora o fim do mundo",
diz ao amigo o Garcês.
"Pois eu já não vou tão fundo...
meu fantasma é o fim  do mês..."
Dorothy Jansson Moretti – SP

Roubar não tenho costume,
mas, quando fico sozinho,
roubo um olhar de ciúme
da mulher do meu vizinho.
Evandro Sarmento – RJ
 

Se o teu noivado vai mal,
é claro que isso me importa:
goteira no teu quintal
é "chuva na minha horta"!
José Ouverney – SP

Com Luiz Hélio ou como anônimo,
meu trovar não é bem sábio.
Necessito de um pseudônimo...
– Quem me dera "Luiz Otábio!"
Luiz Hélio Friedrich – PR

Separou-se... e com mais pique
justifica encabulada:
marido que dá chilique
não consegue dar mais nada...
Maria Nascimento – RJ
 

O garoto serelepe
matava as aulas... e, ausente,
de tanto gostar de "rap",
se tornou um "rap...etente"...
Pedro Mello – SP
 

Minha vizinha, coitada,
ao visitar sua prima,
tropeçou... caiu da escada...
e foi “para o andar de cima”...
Therezinha Brisolla – SP



 
Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a si mesmo governar!
A. A. de Assis – PR
 

A liberdade prospera
onde existe honestidade.
Muito mais que uma quimera,
ela é a expressão da verdade.
Agostinho Rodrigues – RJ

Tão forte nos abraçamos
confundidos no entrelaço,
que eu acho até que trocamos
os corações nesse abraço!
Almerinda Liporage – RJ

Namorei sonhos distantes,
que senti, mas não toquei;
e até dos sonhos errantes,
confesso: também gostei!
Antonio Manoel Abreu Sardenberg – RJ

O medo é perturbador
e afeta a nossa razão;
faz que coisas sem valor
pareçam mais do que são.
Amilton Monteiro – SP

Num mundo violento onde  
morre o peão pelo rei,
quanta injustiça se esconde  
sob a máscara da Lei!
Antonio Juraci Siqueira – PA

Vejo uma luz lá no céu,
por certo é o teu paraíso!...
– Minha vida foi-se ao léu;
acabou-se o meu sorriso.
Ari Santos de Campos – SC

Lavrador, ao fim do dia,
após a lida no chão,
tua enxada rodopia
celebrando a produção!
Arlene Lima – PR

Se fazer bem é o que vale,
faça o bem sem ver a quem,
pois não há bem que se iguale
ao bem de fazer o bem!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Saudade dos meus passeios
pelo teu corpo sensual:
a boca, as pernas, os seios,
o et cétera e tal...
Bruno Pedina Torres – RJ

Minha vida ganha impulso
e mais impulso ganho eu,
sempre que sinto o teu pulso
pulsando junto do meu!...
Carolina Ramos – SP

Olhando fotos antigas,
tenho saudade de mim.
– Hoje, maduras espigas;
ontem, um frágil jardim.
Clevane Pessoa – MG

No colo a filha do filho
pela avó é acalentada,
qual noite sem luz e brilho
embalando a madrugada.
Conceição Assis – MG

Quisera ter coisas novas
escritas, mas tudo em vão.
Só encontrei algumas trovas
no escrínio do coração.
Cônego Telles – PR
 

Nada soy pues nada tengo
yo llegué desnuda al mundo,
sin riqueza ni abolengo
por eso en el amor me hundo.
Cristina Olivera Chávez – EUA

Saia da cruz oh Jesus!
não fique pregado assim,
venha trazer tua luz,
estenda os braços pra mim!
Cyroba Ritzman – PR

Amor, senhor da utopia;
tempo, senhor da razão.
Mas, nessa eterna porfia,
sempre vence o coração,
Dáguima Verônica – MG

Não tens culpa, velha enxada,
desbeiçada, cabo torto,
por só colheres o nada
do ventre de um solo morto!...
Darly O. Barros – SP

Em vez do vício, a virtude
e... da revolta, a harmonia...
Quisera que a juventude
se drogasse de poesia!
Delcy Canalles– RS

Ah! mundo cão, mundo louco,
de guerras pelo poder...
Só necessito de um pouco
de sossego pra viver.
Djalma Mota – RN
 

Quando a lembrança me invade
no porto da vida – e quanto! –
brilha o farol da saudade
sob a neblina do pranto!
Domitilla Borges Beltrame – SP
 

Luiz Otávio, em teu reinado,
onde o plágio não se aprova,
que bom fosses plagiado
em teu amor pela trova!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Urge o tempo, faz-se escasso,
e, ao sofrer na despedida,
o nosso amor, sem espaço,
mostra a vida não vivida.
Eliana Jimenez – SC

Pouco importa que tu venhas
apressado, em teu fulgor,
pois trazes contigo as senhas
para os feitiços do amor!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Essa lágrima sentida
que nos teus olhos aflora
é uma prova enternecida
de que um homem também chora!
Ercy Maria Marques de Faria – SP

Sabendo a hora em que estás,
farás do tempo um espaço
para um cantinho de paz
e a imensidão de um abraço!
Flávio Stefani – RS

Em cada beijo roubado,
que roubo de ti, meu bem,
sinto o gosto do pecado
que o beijo roubado tem!
Francisco Garcia – RN

Sem disfarce, sem retoque,
vou vivendo a vida assim:
pedindo a Deus que coloque
beleza dentro de mim.
Francisco Pessoa – CE

Amor à primeira vista,
foi isso, mar, que eu senti.
Ninguém há que te resista,
quando está diante de ti!
Gislaine Canales – RS

Fiquei velho a contragosto,
mas não posso reclamar.
Se o tempo amassou meu rosto,
não doeu, foi devagar.
Humberto Del Maestro – ES

Não haverá sociedade
que possa ser construída
sem a fé na humanidade
e o respeito pela vida!
J.B.  Xavier – SP

Um desejo singular
me ocorre, claro e preciso:
devagarinho beijar
ternamente o seu sorriso.
Jeanette De Cnop – PR

Parecendo estar brincando
no céu, em formações várias,
as nuvens vão desenhando
figuras imaginárias...
Jesse Nascimento – RJ

Quantas pedras removidas
e quantas por remover.
Provações em nossas vidas
que só nos fazem crescer!
João B. Xavier Oliveira – SP

Os meus versos se calaram,
à saudade sucumbi,
minhas lágrimas secaram
de tanto chorar por ti...
João Costa – RJ

Largo sorriso é o recado
nascido do coração:
aquele abraço apertado
no reencontro com o irmão!
Jorge Fregadolli – PR

Como filme de cinema,
ao fitar a tua face,
te dediquei um poema
do amor que agora... renasce.
José Feldman – PR

A inspiração não me veio
trazer um verso feliz,
mas em teus olhos eu leio
a trova que não te fiz.
José Lucas de Barros – RN

Ao relento, no abandono,
dorme o menino de rua,
tendo por guarda do sono
os olhos tristes da lua.
José Valdez – SP

De volta, naquela viagem,
carregando o olhar tristonho,
via de perto a paisagem,
mas bem distante o meu sonho...
Lucília Decarli – PR

No teatro, hoje em ruínas,
tantos sonhos eu plantei,
que as lembranças peregrinas
nem percebem que parei...
Luiz Antônio Cardoso – SP

Do simples pó eu procedo,
sei que a ele hei de voltar;
a vida não tem segredo:
é um eterno retornar.
Luiz Carlos Abritta – MG

Na estrada das aventuras
vemos quedas sem guarida,
algumas tão prematuras,
outras no fim da corrida.
Luiz Damo – RS

Não busco da vida o intento
senão de ser, todo dia,
feliz a cada momento
no meu ninho de poesia!
Mara Mellini – RN
 

Aos bravos, lutar compensa,
mesmo se a luta é renhida.
Só os fracos pedem dispensa
ante os dilemas da vida!
Maria Lúcia Daloce – PR

Eu já fui um beija-flor
em outras vidas passadas:
era segredo em louvor
às flores desamparadas.
Maria Luíza Walendowsky – SC

Ponho meus olhos no espaço
e tropeço entre as estrelas.
Penso em ti: entre elas passo
e nem sequer chego a vê-las.
Maria Thereza Cavalheiro – SP

De uma única costela,
nosso Deus fez a mulher;
se há criatura mais bela?
– Desdiga-me quem puder!
Maurício Friedrich – PR

Há um mistério na neblina
que dá medo, mas seduz,
porque a sua eterna sina
é tirar, do dia, a luz.
Olga Agulhon – PR
 

Nada recebe quem nega
dar amor ou coisa assim:
só colhe flores quem rega
dia e noite o seu jardim.
Olympio Coutinho – MG

Tudo na vida tem preço
e prazo de validade...
Quando tu vais, não te esqueço:
pago teu preço em saudade!
Renato Alves – RJ

Ao abrir minha janela,
inundada de luar,
mais forte a lembrança dela
fez a saudade apertar.
Roberto Pinheiro Acruche – RJ

Mulher de rara beleza
não deve, jamais, pintar-se,
pois obra da natureza
não necessita disfarce.
Ruth Farah – RJ

Ó Senhor! Com teu poder
deixa na praia eu sonhar,
pois as ondas irão ver
que eu também pertenço ao mar.
Sarah Rodrigues – PA

Das estrelas não esperes
mais que palavras ao vento;
as estrelas são mulheres
que piscam sem sentimento.
Selma Patti Spinelli – SP
 

Em meu Deus tudo é perfeito,
dos céus aos vermes do chão.
Quem por Ele anda direito
traz em paz o coração.
Thalma Tavares – SP
 

Vais partir... Que diferença
fará se te vais, enfim,
pois mesmo em minha presença
vives distante de mim!
Thereza Costa Val – MG

Por ciúmes, no passado,
o nosso amor foi desfeito...
Ficou o sonho tatuado
na penumbra do meu peito.
Vanda Alves – PR

No seu espaço abrangente,
a vida é espaço comum:
mistura um pouco da gente
na vida de cada um.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Ao raiar de um novo dia,
quantas razões de viver!
A esperança se irradia
nas brumas do amanhecer!
Wagner Lopes – MG

Pode o “sim’ gerar bonança
e o “não” matá-la de vez.
Que seria da esperança
se não houvesse o “talvez”?
Wanda Mourthé – MG

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Machado de Assis (Iaiá Garcia)

Iaiá Garcia foi escrito em 1878 e a trama se desenrola entre os anos de 1866 e 1871. Casamentos arranjados, amores proibidos e jogos de interesse compõem este painel que retrata a sociedade contemporânea ao autor.

Uma história singela, ao gosto romântico e um tanto convencional, em Iaiá Garcia, Machado de Assis começa a revelar as qualidades que mais tarde farão dele um grande romancista: a finura de estilo, o senso de humor que já desponta aqui e ali, a recriação de ambientes, a exata caracterização de personagens, principais ou secundários, como Raimundo, o preto africano, escravo liberto e inteiramente dedicado a Luís Garcia. Mas está longe ainda dos seus grandes momentos de criação literária, que se iniciam a partir do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Iaiá Garcia antecipa a experimentação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, e portanto, este romance não se encaixa na primeira fase de Machado propriamente dita, mas deve ser considerado como uma obra de transição.

O último dos romances da primeira fase de Machado de Assis, Iaiá Garcia apresenta uma clara influência de José de Alencar; os personagens e a trama são tipicamente românticos, mas já pode se ver que algo não está totalmente romântico: personagens secundários mais realistas e nada de vilões; os amores de Jorge por Estela e de Procópio por Iaiá são honestos, mas efêmeros; Estela recusa o casamento não por não amá-lo, mas por diferenças de classe social (ela é mais pobre); e Estela e Luís não se casam por amor e sim por um misto de estima e conveniência.

A personagem mais atuante é Estela, que verdadeiramente conduz a ação promovendo a felicidade dos que a cercam, como Luiz Garcia, Iaiá e Jorge.

Enredo

O enredo se constitui de uma série de incidentes que giram sempre em torno do mesmo ponto, a realização ou a não-realização de um casamento. Todos os atos das personagens são conduzidos, de modo direto ou indireto, para a consecução ou para o impedimento desse objetivo. Assim, a ação do romance arma-se sobre a mesma sequência básica, repetida ao longo do relato com ligeiras variações, mas mantendo sistematicamente os elementos essenciais.

Como já citado, Iaiá Garcia trata do conflito social entre as classes, aproveitando como eixo o romance entre Jorge, um cavalheiro de alta sociedade e Estela, uma jovem pobre.

O romance se inicia com a apresentação de Luís Garcia, pai de Lina Garcia, chamada em seu círculo familiar de Iaiá. A personagem é convocada por Valéria para que a ajude a convencer o filho a alistar-se no exército brasileiro e participar da Guerra do Paraguai. Na descrição da personagem, ao iniciar o romance, Machado de Assis chama a atenção do leitor para certos aspectos de Luís Garcia:

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos. (...) Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassividade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de desdém.

Nessa primeira descrição, podemos notar que não há nada a se esconder: o narrador apresenta as principais peculiaridades da personagem. Não é um “observador atento” que é chamado à leitura, pois o próprio narrador dá ao leitor a chave para o entendimento das futuras decisões tomadas por Luís Garcia logo na primeira página do romance. A descrição, nesse caso, funciona como um objeto de desvelamento: mostra aos leitores a impossibilidade de imputar à personagem qualquer outro caráter que não seja o de um “coração desenganado”.

No romance não há nada de oculto no caráter de Luís Garcia. Tudo sobre o pai de Iaiá foi dito na primeira oportunidade pelo narrador, de modo que a atenção do leitor ficasse presa à camada mais imediata do texto: aquela dos fatos a serem narrados.

A partir daí, pode-se dizer que a narrativa de Machado de Assis em Iaiá Garcia encontra-se a meio caminho entre o romance de feição popular e o problemático. Se por um lado há descrições que reduzem as personagens psicologicamente, mantendo a atenção do leitor voltada para a superfície mais direta da trama, por outro lado há a presença de certas sutilezas psicológicas que produzem um nível de problematicidade maior a ser enfrentado pelo leitor.

Logo após a descrição do pai, o narrador passa rapidamente para a descrição da filha:

Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha. (...)
Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá.(...) A boca desabrochava facilmente um riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.

Logo após a apresentação de Iaiá, temos a descrição do ambiente doméstico de seu pai. Vemos, nessa parte da narrativa, que a filha de Luís Garcia apresenta sutilezas psicológicas importantes. Observemos com cuidado:

(...) Dessa comparação extraiu a ideia do sacrifício que o pai devia ter feito para condescender com ela; ideia que a pôs triste, ainda que não por muito tempo, como sucede às tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia também irrupção naquela alma até agora isenta da jurisdição da fortuna. (ASSIS, 1975, p. 79)

Machado, nesse momento, apresenta-nos um problema: Iaiá reconhece que o pai sacrificou-se ao lhe dar um piano de presente. Porém, como as tristezas pueris não duram, logo ela delicia-se com o presente. O que se mostra importante neste breve trecho é a presença de uma palavra-chave da narrativa de Iaiá Garcia. Palavra que constitui o verdadeiro palco da discussão nesta obra: a moral. Percebe-se que desde cedo (a personagem contava nessa época com onze anos de idade) Iaiá compreende a “dor moral” que o pai tem de sofrer, para que possa lhe dar educação e conforto. O romance trata, portanto, da aprendizagem de Iaiá em um novo mundo: o mundo da tensão entre o social e o natural, mediante o jogo imposto pelo narrado acerca da moral.

O primeiro momento de tensão da narrativa ocorre já no segundo capítulo do romance. Na verdade, trata-se de uma fórmula que se repetirá em toda a trama: a realização ou não de um casamento, como já vimos.

Temos a tríade Estela – Valéria – Jorge que representa a dinâmica entre o natural e o social por meio do casamento. A convocação de Luís Garcia para interagir nessa dinâmica, sendo esse o tema do segundo capítulo do romance, não afeta o trinômio, pois, como sabemos, ele não participará diretamente da tensão. Porém, caberá a essa personagem o papel de julgar, sendo complementado pelo narrador. O diálogo entre Valéria, Luís Garcia e Jorge é recheado de julgamentos morais que levam o leitor a uma dubiedade: ao separar seu filho de Estela, a verdadeira motivação de Valéria é egoísta, mas, por outro lado, existem grandes vantagens sociais para o jovem rapaz.

Sob esse aspecto, basta que observemos a descrição que Machado de Assis faz de Estela:

Simples agregada ou protegida, não se julgava no direito a sonhar posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque, a seus olhos seria um favor, e sua taça de gratidão estava cheia. (...)
Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessária para viver tranquila no centro mesmo do perigo.

A dissimulação, característica própria do universo feminino e romanesco, é resgatada no momento em que Estela descobre seu amor por Jorge:

No meio de semelhante situação, que sentia ou pensava Estela? Estela amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangulá-lo ou dissimular, — trancá-lo ao menos no mais escuro do coração, como se fora uma vergonha ou pecado. (ASSIS, 1975, p. 97)

Sendo assim, a primeira tensão do romance é a seguinte: Jorge ama uma mulher que não é compatível com sua condição social. A mãe do rapaz se mostra contrária a essa união, mas Estela descobre que também o ama. No entanto, Estela, dominada pelo orgulho, rechaça a possibilidade de uma união, pois, em seu entendimento, entregar-se a Jorge seria assumir seu papel de agregada. Assim, a mulher passa a dissimular seus sentimentos, tornando-se superior ao amado por meio da frieza para com ele.

Apesar de Estela esconder seus sentimentos, é Valéria que domina por ser mais experiente na arte da dissimulação. Ou seja, Valéria, desde o primeiro momento, percebe que há um perigo a ser vencido: Jorge não pode casar-se com Estela:

Valéria reparou na atitude dos dois; mas como possuía a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram. (ASSIS, 1975; p.102)

Sempre vigilante, e apesar de todos os percalços, Valéria despacha o filho para o Paraguai. Porém, antes de morrer, casa Estela com Luís Garcia, sendo este o segundo trinômio da trama: Estela – Valéria – Luís Garcia.

Aqui se configura uma pequena mudança: todos são a favor do casamento. Em primeiro lugar, Valéria vê nesta união a resposta para seus problemas; por isso, oferece o dote de casamento para Estela. Em vista desse fato, percebe-se claramente a maestria de Valéria:

Com essa ideia opressiva entrou ela na casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com uma carícia (...) dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas morais.

Ou seja, Estela acaba por reconhecer em Valéria alguém superior às suas forças. A orgulhosa agregada não conseguiu separar-se de sua protetora, pois, reconhecendo-lhe a superioridade na arte da dissimulação, não lhe sobra recursos a não ser retornar à esfera de proteção da viúva.

Logo após esse episódio, Estela e Luís Garcia discutem sobre o projeto de se unirem:

— Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casarmos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.
— Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil, confessou Luís Garcia; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora não pudesse inspirar, mas porque eu já não o poderia ter.
— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

Do diálogo entre as personagens não deriva, por certo, um julgamento amoroso, pois se trata de um julgamento moral, que fora impulsionado pela mãe de Jorge. A mesma senhora que, para recompensar esse matrimônio, entrega o dote de Estela. A união entre o indiferente Luís Garcia e a orgulhosa viúva é uma união de características que não se confundem, mas que podem vir equilibrar a economia doméstica da casa de Iaiá Garcia. O real motivo do casamento para Luís é Iaiá, que já reconhecera Estela como uma mãe possível, mas que em sua ingenuidade não participou dos planos de Valéria.

Jorge retorna da guerra para descobrir a amada em matrimônio com seu melhor amigo, e a mãe morta. Lembremos que os dois primeiros trinômios de tensão da narrativa tiveram como motivo inspirador as próprias resoluções de Valéria. Devemos lembrar ainda que uma personagem fora dos trinômios serve de catalisador dos acontecimentos – no primeiro trinômio, temos Luís Garcia; no segundo, Iaiá. O próximo trinômio apresentará Iaiá como uma de suas peças fundamentais.

Agora temos Luís Garcia – Iaiá Garcia – Jorge. É Iaiá, centro deste trinômio, que desenvolve a dinâmica da narrativa. Aqui trata-se do casamento como salvaguarda de uma situação: Iaiá pretende casar-se com Jorge pelo amor que tem ao pai. Vejamos como se configura o problema:

(...) Luís Garcia disse algumas palavras a respeito do filho de Valéria.
— Pode ser que eu me engane, concluiu o cético; mas persuado-me que é um bom rapaz.
Estela não respondeu nada; cravou os olhos numa nuvem negra, que manchava a brancura do luar. Mas Iaiá, que chegara alguns momentos antes, ergueu os ombros com um movimento nervoso.
— Pode ser, disse ela; mas eu acho-o insuportável.

E ainda:

A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava o pai sobre todas as coisas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuiu nada do seu quinhão de filha.
Iaiá viu, entretanto, a mudança nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente na família, abriria uma exceção em favor de Jorge (...)

A primeira motivação de Iaiá é separar Luís Garcia de Jorge por conta de um ciúme filial. Entretanto, o que acontece é o oposto: pouco a pouco, Jorge aproxima-se de Iaiá sem perder a admiração de Luís Garcia. Em realidade, essa admiração moral aumenta. E Iaiá ainda não tinha os planos de casamento. Até então, seu objetivo era afastar Jorge de seu pai.

No capítulo X, há a mudança na resolução de Iaiá. E, seguindo a ordem da narrativa, um fator externo desencadeia a mudança: a releitura de uma das cartas de Jorge nos tempos de guerra, releitura para o pai e leitura para Estela e Iaiá – que “lê” os olhos da madrasta.

Iaiá, mesmo com um pretendente certo, começa a aproximar-se de Jorge. Procópio Dias, o pretendente cuja moral é execrada tanto pelo narrador quanto por Jorge, precisa viajar para recuperar uma herança. O afastamento de Procópio, como anteriormente o afastamento de Jorge, configura a aproximação das personagens, que terminará no matrimônio de ambos. Procópio pede a Jorge para cuidar de Iaiá. E Iaiá inicia seu plano para conquistar o antigo amado de Estela. Como já vimos, o objetivo de Iaiá não é a disputa mas a salvaguarda de seu pai, pois ela sabia o perigo que representava Jorge em sua casa.

A filha de Luís Garcia, enfim, consegue seu objetivo. Jorge jura-lhe amor e os dois iniciam os preparativos para o casamento. Contudo, o pai de Iaiá encontra-se enfermo e acaba por falecer.

Regida pelo orgulho, Estela percebe logo que Iaiá deseja casar-se com Jorge por algum motivo além de seus próprios sentimentos. Vejamos a reação da personagem à situação em que é mera espectadora:

O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. (...)
 
(...) O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante anos de jugo e compressão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranqüilidade doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direto ao mal.

Vemos que os ciúmes de Estela continuam relacionados a uma situação em que o orgulho é o verdadeiro motivo, pois, mesmo reconhecendo o amor que Jorge, ela pretende provar que é moralmente superior. Com a morte de Luís Garcia, no capítulo XV, Estela poderia desobrigar-se dos impedimentos morais que a colocaram na situação acima mencionada. Todavia, devemos lembrar que Estela era também mãe de Iaiá. Esse fato, gerado pela convivência das duas em casa do pai de Lina, poderia ser exatamente o sucesso da nova empreitada da viúva: casar os até então noivos Jorge e Iaiá.

Porém, Iaiá não desejava mais casar com o filho de Valéria. Vejamos os motivos:

Mas duas circunstâncias a induziram ao desfecho; era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se umedecessem.

— Que se casem! disse a moça resolutamente.

Embora ainda ame Jorge, a menina decide desfazer a promessa porque sua madrasta o ama e não há impedimento moral algum para que se faça a união. É aqui que vemos como a “puberdade moral” de Iaiá torna-a superior aos procedimentos de Estela:

Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um gesto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação?

Sim, pois Iaiá sabia da paixão de Jorge e do amor que Estela tentava esconder. É claro que o orgulho de Estela passa a interpretar as atitudes de sua enteada como “um impulso desinteressado”. Porém, o leitor sabe que não se trata disso, mas de uma batalha, em todo o romance, de fingimentos para atingir determinados objetivos em torno do contrato social chamado casamento. Estela, perdida em meio à batalha das ilusões, ainda ama Jorge, que não mais a ama.

Entretanto, Estela não deseja casar com Jorge, pois seu orgulho a impede. Assim, após o noivo de Iaiá recorrer à futura sogra por meio de uma carta, Estela decide intervir. Vai ao encontro da jovem e inicia o mais longo diálogo do texto, resultando em um casamento por amor e o afastamento de alguém, neste caso, Estela, que deixa o Rio de Janeiro e, ao fazer isso, demonstra que a única coisa a escapar ao naufrágio das ilusões é a moral, respondendo assim a indeterminação dada pela palavra “coisa” na frase final do romance: “Era sincera a piedade da viúva. Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/iaia_garcia. Publicado em  06/06/2013.

Olivaldo Junior (Carnaval em Trovas)

Colombina e Pierrô,
no salão das ilusões,
são vovó e seu vovô,
dois eternos foliões.

A melhor das fantasias,
a que nunca se desmancha,
não esconde as alegrias
de um Quixote de la Mancha.

Madrugada, noite alta,
baile logo chega ao fim:
namorado sente falta
da “Camélia” no jardim.

Nos confetes pelo chão,
tenho as pétalas da vida:
um azul, e o outro não,
são pisados na avenida.

O palhaço mais bonito,
o Arrelia mais presente,
faz nascer, eu acredito,
toda lágrima contente.

A menina é bailarina,
o menino é superman:
matinê jamais termina
se você pular também.

Mascarado e mascarada
fazem pose para a “glória”:
ele jura que ela é “fada”,
mas a musa é pura história.

A marchinha mais saudosa
não se ouve sem chorar:
mais parece um pé de rosa
que Cartola ouviu falar.

Em Veneza e no Brasil,
não importa, meu irmão:
todo mundo é lá do Rio
quando samba de montão.

Cavaquinho, meu amigo,
chora logo ao batucar,
que teu pranto faz abrigo
neste peito a soluçar.

Miguel Reale (Cultura e linguagem)

O problema da linguagem, desde Saussure, adquiriu um papel singular na história das ciências até culminar na afirmação de que cada ciência tem a sua linguagem e, mais ainda, que, no fundo, ela se confunde com a sua própria linguagem.

Conhecer dada ciência implica, efetivamente, tornar-se dono das palavras que compõem o seu objeto, coincidindo o seu vocabulário com o campo de sua específica atividade. Não há, em suma, senão ciência de um determinado ramo do conhecimento, não havendo quem possa abranger a totalidade dos sempre crescentes domínios do saber positivo. Donde a impossibilidade de reduzir a ciência a uma "enciclopédia", ou seja, a um conjunto único abrangente de todos os tipos de conhecimento e atividades existentes.

Mas o fato de a linguagem se distribuir entre múltiplas e distintas formas de saber não significa que ela não tenha algo em comum, ou, por outras palavras, que ela não seja o elemento fundamental distintivo do ser humano.

A bem ver, o Homo sapiens não surgiu, no mais remoto tempo, por ter assumido uma posição ereta, combinando o poder criador da mente com a liberdade de servir-se dos braços e da mão, mas também por ter-se tornado senhor da arte de comunicar-se com os demais indivíduos, substituindo o grito animalesco pela palavra aliciadora.

Têm razão, por conseguinte, Heidegger e Gadamer quando proclamam que a linguagem é o solo da cultura, entendida esta não apenas como a capacidade de participar de um número cada vez maior de valores intelectuais ou artísticos, mas antropologicamente, como acervo de tudo aquilo que a espécie humana veio acumulando ao longo de sua experiência histórica. Daí poder-se dizer que o ser do homem é o seu dever ser consubstanciado na linguagem que o tornou capaz de realizar-se como pode e deve fazê-lo. Parece-me essencial essa dupla compreensão do ser humano em seu dever ser através da linguagem.

Ora, assim como a linguagem da ciência corresponde aos diversos campos do saber e da ação, por outro lado, esses campos não ficam isolados, mas se intercomunicam uns com os outros, motivo pelo qual a cultura é sempre mais interdisciplinar, até o ponto de já se ter concebido a Filosofia como a teoria do discurso comunicativo, ou, como prefiro dizer, da "perene permuta de significados", pois é tão importante nos comunicarmos como termos ciência daquilo que se comunica.

Por tais razões não concordo com aqueles que reduzem a Filosofia à teoria da linguagem, concebida esta tão-somente segundo seus valores morfológicos e lógicos, quando a Semiótica é cada vez mais entendida como teoria da significação e o significado das palavras através do tempo se confunde com a própria existência humana. Isto posto, parece-me que não nos podemos limitar à análise da linguagem sem indagar da fonte de que ela emana, que é o espírito, a consciência, a mente - ou que melhor nome tenha - dotada do poder de criação ou instauração de coisas novas, que Kant qualificou como "poder nomotético" ou regulador. É o espírito que procura estabelecer as leis que presidem ao surgimento e ao desenvolvimento dos fenômenos, constituindo as ciências da natureza e humanas.

Delas é inseparável a linguagem, sem a qual não seria possível determinar e expressar os respectivos objetos de indagação, assim como comunicá-los, tornando-os um bem comum da coletividade, para que esta deles faça uso e possa prosseguir, com a certeza e a segurança possíveis, no seu empenho de tudo explicar e compreender. A linguagem é, como se vê, um produto primordial do espírito. Como tal deve ser considerada, mas não como algo válido em si e por si, abstração feita de seu criador, isto é, da pessoa humana que dá nome a tudo o que existe, compondo o mundo da cultura. É o motivo pelo qual apresento a pessoa humana como valor - fonte de todos os valores.

A cultura, por conseguinte, é o complexo e sempre inconcluso mundo dos objetos do conhecimento, sendo a linguagem a sua expressão comunicativa, pois dar nome às coisas significa criá-las e dar-lhes significado, razão pela qual acertadamente afirma Gadamer que toda criação, tanto nas ciências como nas artes, no fundo, constitui um ato de interpretação ou de hermenêutica. Esta, com efeito, não fica restrita ao valor das palavras isoladas, mas procura captar o sentido global que elas têm em dado campo da pesquisa ou da atividade.

Para dar um exemplo do conhecimento como uma visão unitária e integral, pense-se num contrato, cujo significado só se apreende com acerto mediante o estudo correlacionado de todas as suas cláusulas. O mesmo acontece em qualquer campo de cognição, que pressupõe sempre a integração progressiva de signos e significados, até se atingir a visão global do que se tem em vista conhecer.

Donde a importância de cada vez mais apurado estudo da linguagem, quer de maneira geral, quer atendendo especificamente às peculiaridades de cada ramo da pesquisa. O progresso da cultura depende de sua correlação primordial com a linguagem, o que induz alguns pensadores ao exagero de tudo reduzir a esta, vendo a ciência como um puro problema linguístico.

A visão necessária de integralidade tem como consequência a universalização da cultura, o que leva à previsão de uma língua universal, pelo menos de caráter subsidiário, como já está acontecendo com o inglês, considerado "a fala do computador". Eis aí um dos problemas mais difíceis e complexos de nosso tempo, que é o da sobrevivência das culturas nacionais e dos respectivos idiomas.

A meu ver, não há dúvida que as ciências naturais tendem à unificação, de tal modo que elas serão cada vez mais transnacionais, universalizando-se as formas de comunicação dos cientistas que operam em todos os países. Há nestes, porém, situações ou formas de vida que lhes são peculiares, notadamente no plano das ciências humanas, das religiões e das artes, cujo desaparecimento, por força de uma total globalização, longe de representar progresso cultural, constituiria um regresso, com a perda de valores humanísticos essenciais. Nada me parece justificar esse desmoronamento de distintas e diversificadas unidades culturais, inclusive do ponto de vista da linguagem, uma vez que há uma pluralidade de idiomas representativos de patrimônios existenciais de substancial relevância para o destino da civilização contemporânea.

 Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo . 14  de setembro de 2002

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Teófilo Braga (A Noiva do Corvo)

Recolhido no Algarve

Havia numa terra uma mulher, que tinha em sua companhia um corvo. Defronte dela moravam três raparigas muito lindas. Como o corvo queria casar, mandou falar à mais velha; respondeu-lhe que não, e o corvo raivoso arrancou-lhe os olhos. Sucedeu o mesmo com a segunda, até que a terceira sempre se sujeitou a casar com o corvo.

Tempos depois de já viverem na sua casa, a rapariga falou a uma vizinha no seu desgosto de estar casada com um corvo; a vizinha aconselhou-lhe que lhe chamuscasse as penas, porque podia ser obra de encantamento, e assim se quebraria. Quando à noite se foram os dois deitar, a rapariga chegou a candeia às penas do corvo; ele acordou logo, dando um grande berro:

– Ai, que me dobraste o meu encantamento! Se me queres salvar, vai pôr-te àquela janela, e todos os pássaros que vires, chama-os e pede-lhes assim: «Venham, passarinhos, venham despir-se para vestir el-rei que está nu». De fato os passarinhos começaram a vir pousar na janela, e cada um deixava cair uma pena com que o corvo se foi cobrindo. Depois que ficou outra vez emplumado, o corvo bateu as asas, e desapareceu, dizendo para a mulher:

– Agora se me quiseres tornar a ver

Sapatos de ferro hás de romper.
   
A pobre rapariga ficou sozinha toda aquela noite, e logo que amanheceu foi comprar uns sapatos de ferro e meteu-se a correr o mundo. Tinha os sapatos quase estragados de andar, quando encontrou um velho e lhe perguntou se não tinha visto um pássaro. O velho respondeu:

– Eu venho da fonte da madrepérola, onde estavam bastantes.

Ela continuou o seu caminho, e antes de chegar à fonte ali encontrou um corvo, que lhe disse:

– Olha, se quiseres salvar o rei, vai à fonte, onde estará uma lavadeira a lavar um vestido de penas, tira-lho e lava-o tu. Ao pé da fonte está uma casa, e um velho que a guarda; entra aí, mata o velho para poderes quebrar todas as gaiolas e dar a liberdade aos pássaros que ele tem lá presos.

A rapariga chegou à fonte, e fez como o corvo lhe tinha dito; lavou o vestido de penas, e depois entrou na casa onde estava o velho, fingiu que via vir pelo mar uma linda embarcação; o velho chegou-se à janela e a rapariga pegou-lhe pelas pernas e deitou-o ao mar. Depois quebrou todas as gaiolas e os pássaros em liberdade tornaram-se príncipes que estavam encantados, e entre eles estava o seu marido, que era rei e lhes pôs obrigação de a servirem toda a vida.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Juvenal Galeno (Poesias)

A MODA

O que eu desejo, senhoras,
É que se cumpra o rifão:
— Cada terra com seu uso,
Cada roca com seu fuso: —
Eis a minha opinião!

Mas, vestir-se o brasileiro
Como lhe ordena o francês...
Não acho isso direito!
Viver o povo sujeito
Aos figurinos do mês!

É mesmo falta de brio,
É fazer-se manequim;
Dizem que somos macacos...
Pois antes trajarmos sacos,
Do que servir de saguim!

Devemos ter nossa moda,
Tenha a sua o japonês;
Vista o prusso à prussiana,
Ande o russo a russiana,
Ninguém roube a do chinês.

Cada qual conforme o clima
De sua terra natal;
Que se o Norte tem calores,
No sul existem rigores
Da viração glacial.

Mas ornar-se quem tirita
Como quem sopra... é de mais!
Se trajamos nos estios
Como a França nos seus frios,
Não somos racionais!

E que roupagem ridícula
Nos impõe o tal Paris!
Que não levem... rabos tais!
Às damas puseram rabo! —
Pois não é um menoscabo
A esta terra infeliz? —
(...)

Batinas e polonaise,
Hoje, bico — amanhã, não;
Muitas trouxas, muitos regos,
Babados e repolegos,
Arregaços... confusão!

E franjas, fitas e penas!
No meio dessa babel,
A mulher desaparece...
Nem o marido a conhece
Nequele horendo pastel!
(...)

E é tamanha a tirania,
Que aqui não sabe ninguém
Como andará pela rua,
Ou consorte ou filha sua,
Em dias do mês que vem!

Já disse o suficiente...
Às damas peço perdão!
Apenas bato o abuso...
Cada terra com seu uso...
Esta é minha opinião!

OS BARÕES

I

Eu não canto os barões assinalados
Por atos de virtude ou de heroismo...
Mas espertos e torpes titulados,
Egrégios na baixeza e no cinismo!
Que os primeiros são tão raros
Nesta terra em que nasci,
Ao passo que dos segundos
Mais de um cento conheci!
E deles cada qual o mais tratante,
Mais néscio e mais servil...
Em fidalgos ruins já ninguém vence
Por certo o meu Brasil!
E se alguém duvidar ponha a luneta
E o passado examine dos barões...
Empurre no presente uma lanceta
E verá o que sai... que podridões!
Ou procure, que tenho na gaveta,
Alguns apontamentos ou borrões...
Mas trabalho é demais... ninguém se meta,
Antes leia estes traços a crayons.

(...)

III

Que ativo contrabandista
Foi outrora, — e ainda o é —
Aquele esperto Fulgêncio,
O barão do Gereré!...

Quem mais ligeiro no ofício?...
Sagaz!
Por entre as trevas da noite...
Trás... zás!

As cousas vinham dos barcos,
Sem o fisco examinar...
Pelas artes de berliques,
Passavam todas no ar;

E por artes de berloques,
Nunca as poderam pegar!
E as que vinham pelo fisco
Mudavam de condição...
Popelinas despachadas
Por fazenda de algodão!

E desse modo Fulgêncio
Depressa se f'licitou...
Passando mil contrabandos
Em pouco tempo enricou,
E para não ser Fulgêncio,
Um baronato arranjou!

Hoje é fidalgo...
Dos nobres é:
Barão exímio
Do Gereré!...

(...)

ALFACE

A alface das nossas hortas
É do ópio sucedâneo:
Acalma dores e tosses,
Seu efeito é instantâneo.

Serve o chá das suas folhas
Para curar os nervosos,
E para banhar os olhos
Inflamados, dolorosos.

Quem o tomar, ao deitar-se,
Logo o sono concilia:
Galeno ceava alfaces,
Pois de insônia padecia.

As urinas facilitam,
E servem de laxativo;
Finalmente, em muitos males
Não há melhor lenitivo.

O CAIPORA

— No meio da mata, menino, não corras,
Que o vil caipora
Agora,
Nesta hora
Passeia montado no seu caititu;
E arteiro e malino
Se encontra o menino...
Ai dele! que o leva no seu grande uru!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Seus olhos pequenos são negros, e feros,
Quais d'onça, luzentes,
Ardentes...
E os dentes
São como os do mero, ferinos, cruéis;
E o duro cabelo,
Assim, como o pêlo
Dos bravos queixadas, que são-lhe fiéis.

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Qu'ousado e valente o tal caboclinho,
De penas coberto,
Esperto...
Decerto
Se vê-te quer fumo, pedir-t'o lá vem;
Se acaso lh'o negas,
Se não lh'o entregas,
Quem é que te salva? Lá vais ao moquém!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Se acaso te encontra... lá vais para a grota
Debalde lutando,
Gritando,
Chorando,
Na embira amarrado do seu grande uru!
Não corras menino,
Que o índio malino
Na mata passeia no seu caititu!

E o louco menino
Não quis escutar;
Fugindo de casa
Não pôde voltar.

Fontes:
GALENO, Juvenal. Lendas e canções populares. 4.ed. Fortaleza: Casa de Juvenal Galeno, 1859/1865.
GALENO, Juvenal. Medicina caseira. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno, 1969.
GALENO, Juvenal. Folhetins de Silvanus. A machadada. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno, 1969.
GALENO, Juvenal. Folhetins de Silvanus. A machadada. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno.

Juvenal Galeno (1836-1931)

Neto de Albano da Costa dos Anjos e do português Manuel José Theóphilo, Juvenal Galeno da Costa e Silva nasceu em Fortaleza, a 27 de setembro de 1836, em uma residência na Rua Formosa, nº 66 (hoje Barão do Rio Branco). Filho de José Antônio da Costa e Silva e Maria do Carmo Teófilo e Silva, abastados agricultores cafeeiros na encosta da Serra de Aratanha em Pacatuba. Primo pelo lado paterno de Capistrano de Abreu e Clóvis Beviláqua e pelo lado materno de Rodolfo Teófilo.

Ainda pequeno se mudou com a família para o Sítio Boa Vista, recanto aconchegante que lhe embalou os sonhos de criança. O tempo foi passando e o menino Juvenal trazia a seiva da imensurável ramificação cultural.

Seus estudos primários ele os fez numa escola de Pacatuba. Aos treze anos de idade, já com noções de latim ministradas pelo padre Nogueira Braveza, mal ainda havendo despertado para a adolescência, fundou e fez circular o primeiro jornal puramente literário no Ceará, o “SEMPRE VIVA”, destinado ao sexo feminino. O jornal teve efêmera existência, porque vivia ainda sob a tutela dos pais, não tinha condições de dar continuidade a esse empreendimento.

Ainda na infância, acompanhou o tio, Dr. Marcos Theóphilo, médico, pai de Rodolfo Theóphilo, à cidade de Aracati, onde frequentou uma escola pública ministrada por Porfírio Sabóia. Voltando de Aracati em 1851, matriculou-se no Liceu do Ceará onde cursou Humanidades até 1855.

Em 1853, fundou e fez circular o primeiro jornal da imprensa estudantil no Ceará, o jornal “Mocidade Cearense”, também de efêmera existência, em virtude, da transferência de seu sócio e colega Joaquim Catunda para o Rio de Janeiro.

Após o Curso, foi para o Sitio Boa Vista ajudar o pai na administração das atividades agrícolas, principalmente na cultura cafeeira, numa época em que o café assumia expressiva importância na economia cearense.

Com o intuito de aperfeiçoá-lo em assuntos agrícolas, seu pai mandou-o para o Rio de Janeiro em busca de adquirir maior conhecimento nas técnicas do plantio do café. Levava consigo uma carta de recomendação de Rufino José de Almeida apresentando-o a Francisco Paula Brito, proprietário da Marmota Fluminense. Ali Juvenal Galeno travou relações de amizade com Machado de Assis, Saldanha Marinho, Joaquim Manoel de Macêdo, Quintino Bocaiúva e outros.

Seduzido pelo convívio das letras, passou, a partir de então, a escrever poesias e a publicá-las na Marmota Fluminense ao lado de Machado de Assis e outros escritores. Demorou no Rio pouco mais de um ano, mas antes de seu regresso ao Ceará reuniu tais produções, editando-as em 1856, sob o título de Prelúdios Poéticos.

De volta ao Ceará, Juvenal Galeno trouxe dois exemplares de “PRELÚDIOS POÉTICOS”, ricamente encadernados com sua fotografia, que ofereceu a seus pais.

“PRELÚDIOS POÉTICOS” livro de estreia de Juvenal Galeno, editado em 1856, foi o primeiro livro da literatura cearense, tornando-se o marco inicial do Romantismo no Ceará, como afirmaram Mario Linhares, na sua “Historia da Literatura”, Antônio Sales e outros.

A partir de então sua existência passou a transcorrer entre o Sítio Boa Vista, na Serra de Aratanha, e a cidade de Fortaleza. Ainda por esse tempo ingressou como alferes nos quadros da Guarda Nacional, como também no Partido Liberal , em cujo jornal passou a colaborar. Em 1858 foi eleito Suplente de Deputado Provincial pelo círculo de Icó, onde defendeu um projeto para criação de uma escola prática de agricultura.

Em 1859, desembarcava em Fortaleza, trazida a bordo do Tocantins, a célebre Comissão Cientifica de Exploração, dirigida por Freire Alemão, composta por doze pessoas, entre as quais se destacavam Raja Gabaglia, Capanema e o poeta Gonçalves Dias, que chefiava a Seção Etnográfica e Narrativa da Missão.

De Fortaleza rumaram para Pacatuba ficando hospedados na casa dos pais de Juvenal Galeno. Ali na serra e na capital cearense, Juvenal teve como amigo e conselheiro, Gonçalves Dias, que lhe estimulou os pendores literários, aliás, já manifestados nas poesias “A Noite de São João”, “A Canção do Jangadeiro”, “Cantiga do Violeiro” e outras mais do livro “Prelúdios Poéticos”.

Gonçalves Dias, estabelecendo conversação com o poeta Juvenal Galeno, convidou-o para participar de um banquete com todos os membros da Comissão Cientifica de Exploração, do Senador Tomás Pompeu e de Silva Coutinho em Fortaleza. Juvenal Galeno atendeu de pronto ao convite do amigo, e em função do evento, deixou de comparecer à uma revista do Batalhão da Reserva do Exército a que pertencia. Isto irritou o Comandante da Guarda Nacional de Fortaleza, João Antônio Machado, que em seguida determinou o recolhimento do subalterno à prisão.

A penalidade lançada a Juvenal Galeno trouxe como resultado a confecção de um livro severíssimo e duro contra o tal Machado e, esse trabalho ele publicou num volume, o qual deu o título de “A MACHADADA”, aproveitando o simbolismo do sobrenome de João Antônio Machado. Esse livro foi a primeira obra literária impressa no Ceará.

Em 1861, Juvenal Galeno aparece em público como teatrólogo. É levada à cena, pela primeira vez, no Teatro Taliense, 3 de novembro de 1861, a comédia de sua autoria intitulada “ QUEM COM FERRO FERE COM FERRO SERÁ FERIDO”. Esse drama sociológico foi a primeira peça teatral produzida e encenada no Ceará. Nesse mesmo ano presenteou o público com o poemeto indianista denominado “A PORANGABA” (descrição em versos de uma lenda que Juvenal Galeno disse ter ouvido de um velho caboclo que escutara dos seus pais, e estes a seus maiores).

A poesia de Juvenal Galeno reflete toda a psicologia da alma da gente humilde, digo da alma da população do nordeste em todas as modalidades do seu sentir, nos seus lances heroicos, infelizes ou gloriosos.

Os sentimentos, os anseios dessa gente toda, da serra, praias e sertões, ele os gravou indelevelmente em seus versos.

Em 1865, no prólogo de “LENDAS E CANÇÕES POPULARES” ( obra-prima de Juvenal Galeno que foi saudado por Machado de Assis e outros renomados escritores, o que atesta o valor nacional do vate montanhês), ele declarou: “ Escrevi este livro acompanhando o povo no trabalho, no lar, na política, na vida particular e pública, na praia, na montanha e no sertão, onde ouvi os seus cantos e os reproduzi, ampliei sem desprezar a frase singela, a palavra de seu dialeto, a sua metrificação e até o seu próprio verso”.

Franklin Távora considerou-o não só como uma obra de arte em que se revelou o gênio do poeta, mas como documentário precioso devendo ser detidamente estudado, podendo se constituir um guieiro para a indagação e pesquisa dos usos, costumes e tradições populares.

O amor e a dedicação de Juvenal às Letras eram tais, que só aceitava empregos no setor intelectual. Desempenhou as funções de Inspetor Escolar, numa época em que os transportes eram difíceis,  penosos. Só havia acesso a certos lugares por meio de animais, fazendo-se o percurso de léguas, debaixo de uma soalheira causticante de uma escola para outra, tal a distância em que ficavam localizadas. Estradas inteiramente desertas. Contudo ele trabalhava com prazer e não sentia fadigas, gostava do convívio das crianças, orientava as professoras e tanto se fez a esse meio que chegou a compor singelas e tocantes “CANÇÕES DA ESCOLA”, que foram impressas e distribuídas nas escolas para serem cantadas. Esse livro que se esgotou em poucos dias, consagrou-o, também, como Poeta da Juventude. Essa obra foi adotada pelo Conselho de Instrução Pública do Ceará para uso das aulas primárias.

Nessa sua tarefa de Inspetor da Instrução Pública, ele se hospedava sempre em casa do velho pescador João Gomes, homem humilde, casado e com vários filhos, residia em Freixeiras. Numa destas ocasiões, Juvenal ouviu a narração dos sofrimentos que assaltaram inopinadamente o pescador e sua mulher, devidos à perseguição cruel de um potentado que, por vingança, aprisionara para o recrutamento militar o seu genro querido, deixando ao desamparo e na maior dor a esposa e o filho recém-nascido. Indignado, Juvenal tomou a si, com o entusiasmo que sentia na defesa das causas justas, retirar Vicente do recrutamento. Jurou que o conseguiria, afirmou destemido ao velho pescador que livraria seu genro e retornou logo a Fortaleza para não perder tempo. Escreveu então a seu cunhado e amigo Dr. José Gonçalves da Justa, que ocupava importante cargo no Rio de Janeiro, pedindo-lhe a liberdade de Vicente como o maior favor que lhe poderia prestar. O poeta era queridíssimo de toda família e seu cunhado conseguiu satisfazer-lhe o pedido.

Inspirado nessa verdadeira e altamente comovedora cena da vida real, escreveu ele o conto intitulado “AMOR DO CÉU” enfeixado no seu livro “CENAS POPULARES “ editado em 1891.

Sobre “Cenas Populares” disse José de Alencar: “ livro tão original ainda não se escreveu entre nós”. Ao invés do verso, o autor preferiu a prosa em que descreve lugares, pessoas, costumes típicos de sumo interesse para o folclore em alguns contos singelos: “Os pescadores”, “Dia de feira”, “Folhas secas”, “Noite de núpcias”, etc. Esse livro foi o primeiro livro de conto publicado no Ceará.

Juvenal Galeno montou uma tipografia expressamente para impressão de “LIRA CEARENSE”, livro impresso em fascículos e distribuídos aos domingos em formato de jornal, com o mesmo título, Lira Cearense, com seu primeiro número circulando a 7 de janeiro de 1872. Fascículos depois reunidos em um volume, dividido em três partes: Lira Popular, Lira Americana e Lira Íntima.

Foi nomeado em 19 de maio de 1876 terceiro suplente do Juiz Municipal de Pacatuba. Naquele ano casou-se com sua vizinha Dona Maria do Carmo Cabral , filha do Comendador Cabral de Melo. Depois de alguns anos, Juvenal e sua esposa querendo proporcionar uma melhor educação para os três filhos: José, Antônio e Maria do Carmo, deixam o sítio e vão morar num sobrado da Vila de Pacatuba. Até 1886, o seu domicílio seria a Vila de Pacatuba, em cujas ruas mantinha um estabelecimento de lojista.

Em 1887 fixa residência em Fortaleza, na Rua General Sampaio 1128, ali nascendo João, Henriqueta e Julinha.

Em 1887 quando da fundação a 4 de março do Instituto do Ceará, foi considerado Sócio Fundador daquela entidade. Dois anos depois, em 1889 foi nomeado pelo presidente da Província de Fortaleza, Caio Prado, para a função de Diretor da Biblioteca Pública, então localizada na Rua Sena Madureira, cargo que ocupou por longos dezenove anos. Nesta função divertia-se em policiar a leitura dos estudantes tirando-lhes das mãos as obras de Júlio Verne substituindo-as pela História de um Bocadinho de Pão. Juvenal Galeno costumava dizer, amava aquela repartição como se fosse um de seus próprios filhos.

O Conde D”Eu quando por aqui passou antes da inauguração do regime republicano, comparecendo à recepção que lhe foi oferecida, em palácio, pelo presidente da Província, foi apresentado ao nosso poeta. E para espanto da altas figuras ali presentes, o genro do imperador em voz alta, recitou, naturalmente querendo dar provas de que já conhecia muitas de suas poesias, algumas estrofes de “O Filho do Vaqueiro”.

Juvenal por algum tempo escreveu no Jornal “A CONSTITUIÇÃO”, um dos mais lidos no século XIX, em Fortaleza. Suas crônicas eram verdadeiras caricaturas dos costumes então em uso, e assim, ora em versos tersos e vibrantes, ora em prosa causticante, ele combatia a torto e direito os vícios e abusos daquela época.

Acastelhava-se por identificar o autor, e “A CONSTITUIÇÃO” aumentava a tiragem, esgotando-se, tal era a procura.

O poeta mostrou-se, nesse gênero, de uma verve admirável, e ora enérgico e destemido, ora trocista e brincalhão, ia fazendo cócegas e irritando aqueles em cuja cabeça a carapuça tão bem se ajustava. SILVANUS, com sua verve inesgotável, marcou um acontecimento no mundo social, e ele soube se haver com tal inteligência e habilidade, que não feriu diretamente a este ou aquele. E o sucesso foi tamanho que, quando o poeta deu por finda a sua publicidade, recebeu pedidos insistentes para enfeixar em livros aquelas produções. A princípio não quis fazê-lo, mas acabou cedendo, e eis, ereto e altivo o “FOLHETINS DE SILVANUS”, editado e descoberto em 1891 para gáudio de seus numerosos leitores. “Folhetins de Silvanus” é uma fina sátira dos costumes, hábitos, fielmente observados e descritos com um humorismo encantador.

A maior parte do livro foi escrita em verso, em que estigmatizava o luxo, o pedantismo provinciano, a falsa ciência dos diletantes, em plena Fortaleza do século XIX.

Aos setenta e três anos de idade, atacado de glaucoma, acaba por se aposentar do serviço público, já irremediavelmente cego, isso em 1908, passando a viver da aposentadoria, dos rendimentos próprios
auferidos não só da produção de seu sítio como dos aluguéis de suas vinte casas.

Em 1897, Juvenal Galeno dita à sua filha Henriqueta os seus versos de “Medicina Caseira”, livro somente impresso em 1969, no cinquentenário de fundação da Casa de Juvenal Galeno.

Continuou a produzir ditando poemas para sua filha, Henriqueta Galeno, que o assistiu, juntamente com sua esposa, até o fim da vida. Uma de suas imagens mais conhecidas retratou esse momento: no salão de sua residência, sentado em uma rede de varandas bordadas, as barbas alvas e longas, o olhar perdido, e a filha ao lado, sentada em uma cadeira, a tomar nota dos últimos versos ditados pelo grande bardo.

Desde 1916, a residência do poeta era frequentada por intelectuais como Alfredo Castro, Cruz Filho,
Leonardo Mota, Mário Linhares, Antônio Furtado, Irineu Filho, Antônio Sales, José Albano, Beni Carvalho, Papi Júnior, Sales Campos, José Sombra, entre outros.

Atribui-se às irmãs Júlia e Henriqueta Galeno a ideia de reunir o escol das letras cearenses, nos moldes dos salões literários franceses. Por iniciativa delas, a Casa se constituiu um palco de recitais, palestras, conferências, números de canto, audições ao piano, concertos de violões e danças. Tais eventos se realizavam a propósito de qualquer ocasião: despedidas, homenagens, aniversário de membros do círculo, lançamento de livros e recepção a visitantes ou intelectuais que tornavam à capital cearense, depois de longa ausência. Tudo era motivo para as sessões literárias que se realizavam na Casa de Juvenal Galeno, em presença do velho poeta, que não tomava parte nas apresentações, mas, segundo apontavam, fazia questão de ouvi-las.

Juvenal Galeno faleceu de uremia em 7 de março de 1931, aos noventa e cinco anos de idade, deixando uma volumosa produção literária e a Casa que se tornara referência e ponto de encontro preferido de intelectuais.

Dia 28 de setembro de 2013, na casa de Cultura Juvenal Galeno houve a solenidade de fundação da Academia de Letras Juvenal Galeno. Projeto da escritora Eliane Arruda, Patrono JUVENAL GALENO DA COSTA E SILVA. Presidente: Eliane Maria Arruda Silva – Cadeira 01.

Casa de Juvenal Galeno
Rua General Sampaio, 1128 - Centro
Fortaleza – Ceará
CEP: 60020030
Fone: (0xx85) 3252-3561
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Alfredo Mendes (Caderno de Poemas) I

A LIBERDADE 

Que se eliminem todas as grilhetas.
Que sejam retiradas as mordaças
Que seja o mundo livre de arruaças,
dos ditadores tipo, proxenetas.

Que se ouçam de novo as trombetas,
Anunciando ao povo novas graças.
Já bastam tantos ódios e desgraças,
Retirem as promessas das gavetas.
  
As promessas de paz anunciadas
E por conveniência propaladas.
Se querem dividendos receber.

Ao teatro da guerra digam não!
A Terra é um planeta em convulsão...
Não ponham tantos povos a sofrer!

AMAR O PRÓXIMO

Amar sem condição, amar somente!
Abrir o coração ao semelhante.
Fazer do nosso amor, uma constante,
E nas horas amargas, ‘star presente!

Amar sem condição, devotamente.
Amar só por amar, ser tolerante.
Com o próximo, não ser arrogante,
P’ra com seus impropérios, indulgente!

Tratemos toda a gente tal e qual.
Com a mesma ternura, e modo igual,
Como gostamos nós de ser tratados!

Se estendermos a todos nossas mãos!
E fizermos vivência como irmãos!
Por certo nós seremos mais amados!

A MINHA GUITARRA
(Sextilhas)

Dedilhei a guitarra em tom dolente.
Foi saindo um acorde confrangente,
Como um soluço preso na garganta!
O seu tanger é fado, mal fadado…
É fífia em coração atraiçoado,
Ciúme que no peito se agiganta!

A adaga que lançaste me acertou.
Teu beijo de mentira envenenou,
O ar que recebi da tua boca!
Que triste fado foi o nosso amor,
Uma letra sem rima, sem primor,
Cantada por fadista de voz rouca!

O ventre da guitarra soluçou.
A melodia, em ais se transformou…
Emitindo o tinir de alguém gemendo.
É a minha guitarra se finando…
As suas cordas frouxas se soltando,
Enquanto nossos fados vão morrendo!

 CALENDÁRIO

Arranquei uma folha ao calendário.
Foram mais trinta dias que passaram.
Tentei imaginar quantos ficaram,
privados deste gesto tão primário!

E a quantos foi mostrado o itinerário,
que as leis do passamento decretaram!
E o sono mais que eterno iniciaram...
Com suas mãos envoltas num rosário!
  
E tento equacionar o tempo ido.
Analisar o tempo decorrido...
E quantas folhas posso ‘inda mudar!

Fito o meu calendário e o seu mês!
E penso que chegada a minha vez...
A folhinha não mais vou arrancar!

CONTRADIÇÃO
 

Tenho meu coração amordaçado,
as asas lhe cortei p’ra não voar.
Não vá fugir de mim e te contar,
quanto anseio que estejas a meu lado!

Quero que faças parte do passado.
Não quero mais de ti me recordar.
Quero rasgar lembranças, apagar...
O sabor do teu beijo apaixonado!

A luz do teu olhar quero esquecer.
Teus lábios de carmim, não quero ver,
desejando o calor dos lábios meus!

Eu não quero teu corpo desejar...
Mas quanto mais eu quero me afastar,
mais desejo cair nos braços teus!

CORTAR O PASSADO

Rasguei as lembranças do tempo passado.
Os sonhos guardados, desfiz em pedaços.
Da caixa com fotos atada com laços,
Eu fiz um braseiro; foi tudo queimado!

Tristeza, amargura, tirei do meu lado.
Mandei-as embora para outros espaços.
Fugi da mentira, dos falsos abraços…
Que às vezes sentia, ao ser abraçado!

Do zero farei, outra forma de vida.
Será mais concreta, serena, sentida,
Apenas cercado p’los grandes amigos.

Amigos que sabem, o que é amizade.
Que no peito ostentam a fraternidade,
Que é arma letal para os seus inimigos!

DIA DA MULHER

Hoje se cantam odes à mulher.
Dizem ser o seu dia especial.
Hoje a mulher é símbolo nacional,
é superior a tudo e a qualquer!
  
Chegado o amanhã não é sequer,
lembrado o seu carinho maternal!
Tudo volta à rotina natural...
Outro ano virá, se Deus quiser!

Sendo por este, ou por aquele motivo.
Se foi criando um dia mais festivo,
ao sabor do que mais se lhe aprouver...
  
Os homens podem dias inventar...
Mas por mais voltas que lhes possam dar...
Sempre os dias serão: de ti, mulher!

ERRANTE

Caminhei pela noite sem destino.
Errando como um pobre peregrino
Que busca avidamente a fé de Deus.
A luz que iluminava meu caminho.
‘scondia tanto cravo, tanto espinho...
que foi rasgando a carne aos braços meus!

Indiferente à dor, ao sofrimento.
Ao frio gelado, à chuva, ao forte vento
Que me sulcava a face cruelmente.
Segui o meu caminho sem traçado,
Ao acaso, sem ter rumo acertado...
Seguia por seguir, seguia em frente!

Sentia-me empurrado por alguém...
Seria alguma força do além
Dando impulso à inércia dos meus passos?
Que forças me empurravam desse jeito?
Apertei minhas mãos juntas ao peito,
E tive a sensação de mil abraços!

Mil abraços de amor e de ternura,
Que eram bálsamo p’ra tanta tortura,
Que germinava dentro do meu ser!
Era farol intenso a me indicar
O caminho melhor p’ra te encontrar,
Que eu sabendo, fingia não saber!

Cheguei por fim a Ti, meu Bom Jesus!
À minha escuridão Tu deste luz,
E foste iluminando os passos meus.
A paz reencontrei no teu caminho.
Já não ando perdido, tão sozinho...
Obrigado por tudo Meu Bom Deus!

(2º Prémio Literário - Paul Harris 2001)

FANTASIA

Queria ser o Sol que te bronzeia.
O gel que no teu corpo vais usar.
O colar que teu colo vai beijar...
E ser para o teu mal, a panaceia!

Ser a seda que fez a tua meia.
O perfume que tens p’ra te aromar.
O lencinho que tens para limpar,
A lágrima teimosa que te enleia!

O lençol que te aquece em noite fria.
Do sonho, ser a tua fantasia.
De corpos se fundindo ternamente.

Ser o copo que toca em tua boca.
E ser o tal, da tua noite louca...
E te ficar beijando loucamente!

Alfredo Mendes (1933)

Alfredo dos Santos Mendes nasceu na cidade de Lisboa/Portugal, em 1933. Desde cedo, e talvez devido a seus hábitos de leitura, onde predominava a poesia, treinou a composição das suas primeiras quadras, com as quais enfeitava os vasos de manjericos, que tradicionalmente, e quase como que por obrigação, tinha de estar presente no meio da minúscula folhagem verde, do célebre manjerico. O tema das quadras era e continua a ser, o namorico e as fogueiras. Essa tradição ainda hoje se mantém, por ocasião das festas dos Santos Populares. Santo António, São Pedro e São João.

Teve uma infância muito ligada à leitura. Começou a ler toda a coleção de Júlio Dinis. O seu modo de escrever, inserindo nos diálogos o modo de falar de cada região, fascinou-o. Recorda também, que era raro Júlio Dinis não incluir nos seus livros, um pouco de poesia. Júlio Dinis, serviu de trampolim para outros voos. Camilo Castelo Branco, ensinou-o a gostar ainda mais da leitura. Na poesia, o seu soneto (AMIGOS), marcou-o de tal modo, que até hoje hoje não esqueceu. Fernando Pessoa, Florbela Espanca, assim como o poeta popular António Aleixo, foram os grandes responsáveis pela iniciação em poemas.

O primeiro soneto, foi escrito em 1952, dedicado à irmã, no dia do seu casamento.

Em 1995, fixou-se na cidade de Lagos Algarve.

Em 1998, começou a colaborar com alguns jornais locais, que regularmente editavam os seu poemas, e posteriormente começou a concorrer a Jogos Florais.

Em 1999, conseguiu três menções honrosas.

Em janeiro de 2012, possui: 6 Primeiras colocações. 4 Segundas colocações. 1 Menção Especial. 28 Menções Honrosas, nas modalidades: Soneto, Glosa, Poesia Lírica, e Quadra.

Nunca editou nenhum livro.

Rachel de Queiroz (Tragédia no mar)

Parece título de filme B - mas anda mesmo morrendo muita gente. São os recentes conflitos no Balcãs, são os judeus e palestinos se matando uns aos outros, são as bombas dos terroristas bascos, ou irlandeses, ou muçulmanos, e agora essa tragédia com a plataforma de petróleo, na bacia de Campos.

As pessoas se chocam com as perdas de vida, em massa; paira nos ares da mídia um clima de catástrofe - clima, aliás, criado pela própria mídia, que consegue cada vez mais eliminar distâncias, transmitindo as cenas de terremoto ao vivo, enquanto ele ocorre; ou pegando a queda livre dos pedaços do avião em chamas.

Antigamente valia aquela observação do Eça de Queiroz, segundo a qual a nossa reação de horror e pena diante de um desastre está na razão direta da nossa proximidade. E assim a gente se impressiona muito mais com a perna quebrada da vizinha do que com a morte de milheiros de pessoas na China. Mas foi-se esse tempo. Agora a gente vê ao vivo e em cores a cara das criancinhas sendo desenterradas dos escombros, e escuta os gemidos dos que ainda estão sob o entulho. Aquela espécie de privacidade que nos era facultada pelo fato de estarmos longe acabou. Hoje ninguém está longe. É uma das características da atual psicologia. De massa, e a reação dessa dita massa ante a notícia das mortes ocorridas uma a uma. Quero dizer; numa grande cidade como o Rio morre diariamente uma meia centena dos seus milhões de habitantes - como seria fácil de verificar nos obituários dos jornais, se eles dessem realmente a conta exata dos que morrem dentro da área urbana. (Parece que a publicação se faz por amostragem, já que não confere nunca sequer com os convites para enterro publicados na mesma página, ou com o número dos presuntos desovados por aí além, em praias e matagais.)

De qualquer forma, como todos, sem exceção, estamos à espera da morte, em qualquer esquina e em qualquer momento, deveríamos receber com naturalidade a notícia de que morreram alguns tantos de nós num acidente. Não é esse o destino de toda carne? Mas não. A gente se assombra, se apavora, se revolta. Como se Deus estivesse extrapolando dos seus privilégios, tirando-nos a vida de forma injusta e exagerada. Vá lá que venha a morte, mas que ela vá pinçando de uma em uma as suas vítimas, no meio da multidão. Pois até os massacres de presos dentro dos presídios chocaram muito, contrastando mesmo com a crença pouco cristã da maioria da população de que “bandido tem mesmo é que morrer”. Pois até morte de bandido, vindo em massa, assusta. O nosso acordo com Deus Nosso Senhor é que Ele nos mate de modo salteado, disfarçando. Filosofias à parte, foi horrível mesmo esse caso da plataforma da Petrobrás - a P-36. Primeiro, a grande dor pelos que se foram de repente, no acidente inesperado. Depois, a morte afogada, que só tem pior a do fogo. Afogados naquelas águas profundas e traiçoeiras.

Mas parece que a dor pior é a dos que sobreviveram. Deixando os seus no fundo do mar. Aquele sentimento de culpa: “eles foram e eu fiquei. Por que:” Ai, a vida é assim - ou antes, a morte é assim. Além da dor da perda, o misterioso sentimento de culpa - por que eles e não eu? Verdade que há também, em muitos casos, um sentimento oposto ( que ocorre especialmente entre os mais velhos): “Eles se vão, mas eu - eu estou ficando!” Espécie de triunfo do sobrevivente.

Fonte:
Correio Brasiliense. Brasília/DF, 09 de abril de 2001