quarta-feira, 5 de março de 2014

Graciliano Ramos (Infância) 3a. Parte, final

Mudança

Diante da enorme dificuldade financeira, o pai do narrador desiste de ser comerciante, abandona a vila e volta para Viçosa, tentar ser novamente agricultor.

Adelaide

Graciliano volta à escola, agora de D. Maria do O, personagem que, assim como sua família, servirá para o narrador descarregar um surpreendente racismo. É neste capítulo que se apresenta a prima Adelaide. Quase órfã, pois fora “abandonada” por sua família à instituição educacional, é humilhada pela professora e suas parentas, que jogam a menina em serviços domésticos, sem nem mesmo levarem em conta as amplas e fartas contribuições que os pais da garota dedicam ao colégio.

Um Enterro

Graciliano, na ocasião do enterro de um coleguinha, visita pela primeira vez um cemitério. Tudo para ele e seus companheiros é motivo de festa. Esquecem até que aquele ambiente povoava as histórias de assombração. Talvez isso se explique por essas narrativas passarem-se à noite, enquanto eles o adentravam durante o dia. No entanto, uma mudança drástica se processa. O narrador afasta-se do grupo e pára num lugar em que eram depositados ossos. É uma experiência terrível, pois acaba se tocando do futuro de todo ser humano. Desperta-se na personagem um pesado sentimento niilista.

Um Novo Professor

Graciliano muda de novo de escola. E mais uma vez derrama racismo, só que agora discreto. Seu novo professor é um mulato caracterizado como “pachola” e dotado de trejeitos afeminados. Gasta horas diante de um espelho, numa crise de vaidade terrível. Se está contente com seu cabelo, que temporariamente se mostra domado, tem um desempenho paciente como professor. Mas quando não está contente com as melenas ou com o tom da pele, torna-se extremamente rígido. No entanto, o elemento mais ácido está no irmão do professor, que um dia surgiu num desabafo, aparentemente para as paredes, de que tinha um lugar na sociedade. Provavelmente fora desrespeitado. Fica nas entrelinhas a ideia de que ele, o irmão, assim como Maria do O, eram personagens que lutavam por um espaço num meio preconceituoso, que empurrava os negros para a miséria e a marginalização.

Um Intervalo


Este capítulo é de fato um “intermezzo”. Graciliano realiza uma tentativa eclesiástica, servindo de coroinha. Mas seu desempenho é um desastre, o que o afasta dessas atividades. No entanto, ganha amizade com as mulheres ligadas a esse meio, o que gera um certo alívio a seu cotidiano tão massacrante.

Os Astrônomos

Num rasgo de bondade, o pai de Graciliano começou a acompanhá-lo na leitura de um livro. O menino fazia essa tarefa aos tropeços, mas tinha um apoio, algo de que acabou gostando. Mas a generosidade era apenas fase. De cabeça quente com os negócios, não mais se interessou no brinquedo do menino, deixando-o frustrado. Pede a ajuda, pouco depois, a sua parenta Emília, que questiona por que não fazia a tarefa sozinho. Incentiva-o, pois, nesse desafio, dizendo que a leitura era uma coisa maravilhosa. Usa até uma metáfora que o garoto acha exagerada: os astrônomos são capazes de ler maravilhas no céu. Mesmo discordando da imagem (a figura de linguagem estava muito acima da capacidade intelectual do protagonista), entrega-se à tarefa, que se vai revelando suadamente prazerosa. Mas, ao contrário dos astrônomos, vai-se dedicar a textos em que consiga se identificar, como atesta o final do capítulo: Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes.

Samuel Smiles

Mais um passo importantíssimo. Graciliano tem agora um novo professor, homem que demonstra autoridade por ter domínio de conhecimento. Tanto que corrige a leitura do protagonista quando lê a palavra “Smiles”. Apesar de “smailes” ir contra todo o conjunto de valores do menino, a segurança, a firmeza da retificação foi argumento eficiente. Tanto que quando lê essa palavra diante dos trabalhadores do seu pai, não se importa mais com as risadas deles. Antes o afetavam. Agora, tem a convicção do conhecimento, da sabedoria. Eles é que estavam errados, nas trevas da ignorância. Está protegido.

O Menino da Mata e o seu Cão Piloto


O menino supera as dificuldades e vê na leitura um prazer. Graciliano dedica-se à leitura de um livro, “O Menino da Mata e o seu Cão Piloto”, apesar da crítica depreciativa de Emília, que se baseou apenas no fato de o autor da obra ser protestante. Por um instante o narrador balança em seu desejo de conhecer a obra, mas no fundo sente não haver lógica em tal critério. Dedica-se ao volume, mas sai frustrado, pois as personagens morrem. Não houve compensação da dor da vida que levava. Pelo contrário, ocorreu aguçamento. Por isso chora.

A leitura do livro é impulsionada pela terrível proibição, relativa à brochura de capa amarela, o objeto proibido desperta curiosidade na criança que resolve decifrar os enigmas do livro amarelo com a ajuda dos dicionários. O narrador descreve a descoberta e o prazer que a leitura provoca: Arranjava-me lentamente, procurando as definições de quase todas as palavras, como quem decifra uma língua desconhecida. O trabalho era penoso, mas a história me prendia, talvez por tratar de uma criança abandonada. Sempre tive inclinação para as crianças abandonadas. A leitura, que se transformou em um exercício de prazer e de descoberta, é ameaçada pela culpa e pelas proibições da prima Emília, que apontava o folheto como obra de protestantes e sugestão do diabo.

Fernando

Este capítulo apresenta uma personagem protegida do coronelismo que existia na região: Fernando. Por causa disso, dedica-se a inúmeras maldades e crimes, até mesmo abusando sexualmente de várias mulheres. Um tipo que, já no aspecto físico, dava medo nas pessoas, com o "olho duro", a "voz áspera", grosseirão, "o ar de insuficiência e impostura", os modos, e tantas outras coisas negativas que deixaram uma das recordações mais desagradáveis em Graciliano. Sim, não sorria. Mas além do aspecto físico, Fernando era um homem mau. Valendo-se do parentesco com o manda-chuva do lugar, fazia as piores maldades, entre elas a de desvirginar moças humildes que depois se prostituíam. Na percepção do menino Graciliano, não havia mais ninguém tão mau no mundo. E quando leu em um "dicionário encarnado" que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidou: maior do que Fernando? Mas Nero nunca lhe havia feito mal, ao contrário de Fernando, que o atormentava. Torna-se, aos olhos do narrador, o monstro, o vilão. Mas é alguém que vai proporcionar ao garoto mais uma experiência sobre o caráter humano. Houve um momento em que haviam desmontado um caixote. O vilão acaba dando uma bronca nos trabalhadores, porque estes haviam deixado várias tábuas no chão e uma delas podia, com seus pregos expostos, ferir o pé de uma criança desavisada.

Jerônimo Barreto

Graciliano havia esgotado seu diminuto universo de leituras. Como aumentá-lo? É aconselhado a pedir ajuda a Jerônimo Barreto, dono de uma vasta biblioteca. É tocante a humildade com que, com estranha desenvoltura, o menino faz seu pedido. É tocante também o cuidado que tem com o livro (o primeiro volume fora O Guarani, de José de Alencar), embrulhando a capa em papel, tomando cuidado até para não amassar as páginas. E o resultado também é tocante: o universo cultural do garoto vai ser imensamente ampliado. Tanto que leva vantagem na escola. Sempre tinha notas mais baixas nas provas, pelas já conhecidas dificuldades em relação ao estudo, enquanto os outros alunos se destacavam. No entanto, esses decoravam informações que após a prova eram esquecidas. Um dia, o professor aplicou uma prova surpresa e o pouco que Graciliano conhecia tornou-se muito em relação aos outros alunos. Poderia ser um conhecimento que não se encaixava integralmente ao currículo, mas era algo que impunha respeito. O protagonista já estava, pois, derrubando seus obstáculos, graças à leitura.

Venta-Romba


Este capítulo é irmão de “Um Cinturão”. Nele, ficamos sabendo que o pai de Graciliano Ramos havia sido escolhido para juiz substituto. Torna-se, portanto, uma autoridade. Em certo dia, um mendigo, Venta-Romba, entra inadvertidamente na casa do protagonista, chega até a sala para pedir esmola. Causa tumulto. A mãe rispidamente pede para que ele se retire. O pobre fica atrapalhado, sem reação, estático. Foi pior, pois aquilo foi interpretado como uma afronta. Imediatamente chega o pai, com um soldado, determinando a prisão do invasor. A pífia figura apenas pergunta o porquê de o doutor estar fazendo aquilo, o porquê de estar sendo preso. Mal-estar. Mas não havia como voltar atrás. Tinha que se demonstrar autoridade. E o coitado foi levado para a prisão. A partir desse episódio, aumentou a desconfiança do protagonista nas autoridades e na justiça. E também foi a partir daí que se tornou um filho desafiador e desrespeitador.

Mário Venâncio


Outro passo importantíssimo para a libertação de Graciliano. Graças à influência de Mário Venâncio, entra para uma sociedade teatral. Cria-se uma escola dramática. Além disso, faz parte de um jornal literário, o Dilúculo. Esse termo, que significa “alvorada”, lembra as palavras-jóias do Parnasianismo. E de fato a linguagem dos demais redatores é por demais rebuscada, decepcionando o narrador. Era o que estava na moda na época, o que o fazia sentir vergonha de não gostar dela, muito menos dos textos e dos temas várias vezes abordados. Mas intui que está com a razão. Traz imbuídas as mudanças modernistas. Nasce, aqui, o escritor.

Seu Ramiro

Como juiz substituto, o pai de Graciliano sente-se na obrigação de hospedar constantemente pessoas. Uma delas, no seu raciocínio pragmático, poderia trazer-lhe dividendos políticos e econômicos. É por causa disso que acaba conhecendo Seu Ribeiro, homem que inspirava autoridade e que viera para implantar uma sede maçônica em Viçosa. Até o pai embarca nessa empreitada. Mas decepciona-se, muito provavelmente porque o sujeito desaparecera, devendo ao comerciante uma considerável soma em dinheiro.

A Criança Infeliz


Este capítulo conta a apresentação de uma personagem que consegue ser mais desgraçada que o narrador. Ninguém lhe tem respeito, nem mesmo sua família. Seu pai o espancava constantemente, sob a alegação de que não prestava. Na escola, era isolado e quem se aproximava dele era execrado. Até o professor se dirigia a ele de maneira claramente ofensiva. O motivo para tamanha aversão não fica claro. Apenas algo fica no ar, quando se diz que os garotos mais velhos é que se comunicavam com ele e por meio de um código secreto. E, como produto de todo esse meio massacrante, acaba por se tornar um bandido da pior espécie e dono da várias mulheres. É na casa de uma delas que termina por ser assassinado pelos seus inimigos.

Laura

Laura é o nome da famosíssima musa de Petrarca, o que cria toda a imagem da mulher como um ser puro e sublime. Coincidência ou não, esse é o nome da paixão que Graciliano vai ter na escola. E ela marca as mudanças que o próprio protagonista sente em seu corpo. Esta crescendo. O ponto mais interessante é sua iniciação sexual, meio atrapalhada, com Otília. Deixa de lado aquela idealização provocada pela figura de Laura. Tanto que o livro O Cortiço, que tinha escondido por detrás de sua prateleira, depois de conhecido os caminhos da carne, é retirado de sua reclusão e posto à frente. Já não está mais na infância.

Fonte:
Ilca Vieira de Oliveira, Doutora em Literatura Comparada (UFMG) e professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Montes Claros. Disponível em Passeiweb. http://www.passeiweb.com/estudos/livros/infancia.

terça-feira, 4 de março de 2014

Machado de Assis (O Dicionário)

ERA UMA VEZ um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.

— Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao
novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requisitada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as cousas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo.

Estrelada, porém resistia à sedução.

Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.

Concorreram ao certame, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.

Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.

Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e
enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil
cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:

— Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que
respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os
dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.

Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais
depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado, as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.

— Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.

Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa.

Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.

Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:

O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimitáveis
Não se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.

Fonte:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística   Universidade Federal de Santa Catarina

Rachel de Queiroz (Curumim é um ser livre)

Diz que índio não educa filho. Aliás, não é propriamente isso: o que se conta é que índio não disciplina as crianças, não as castiga. Curumim é um bicho livre, faz o quer, com muito poucas restrições. Os pais são os mais condescendentes do mundo e muito carinhosos. Apenas quando uma criança, por acaso, faz qualquer coisa que irrite ou incomode pai ou mãe, o pai encolerizado passa a mão no primeiro objeto contundente que tiver próximo e o atira contra o filho. Se não pegar, muito bem, se pegar, azar do menino.

Pode haver, num caso desses, um acidente grave - paciência. Não é raro ver-se um rapaz com uma grande cicatriz num braço, na face - foi a mãe quem lhe atirou um terçado quando, em garoto, ele atormentava um irmão menor. E não há ressentimentos, mesmo quando o rebolo maltrata muito. Paulada, pedrada ou coisa pior é recebida e dada mais ou menos como um ato da natureza. Nem o pai ou a mãe, ocasionalmente criminoso, responde perante qualquer autoridade da tribo pelo ato culposo. Parece que, pela jurisprudência bugre, explosões de cólera, por mais violentas, são consideradas atos legítimos. Ou, pelo menos, fruto de loucura temporária, durante a qual não se pode ser responsável.

Pois me aconteceu que, algum tempo atrás, visitando o equivalente americano de uma escola normal nos Estados Unidos, assisti a um pedaço de aula. E escutei da professora esta preleção: "Bater no seu filho num arrebatamento de cólera é errado, mas de qualquer forma se compreende - e a criança compreenderá. Mas, friamente, deliberadamente espancar o seu filho por suposto fim pedagógico é ato de crueldade premeditada, que não educa, só pode criar ressentimento - o qual provavelmente seu filho nunca esquecerá e talvez jamais perdoe."

Por aí se vê que os mais modernos e requintados atos pedagógicos e o primitivismo selvagem novamente se encontram. Depois de tantos séculos - de milênios, mesmo, de pedagogia, revertemos ao índio bravo...

Aliás, parece que nos Estados Unidos se sofre há anos uma reação contra os cânones duríssimos da feroz educação puritana e - queixam-se os saudosistas - cai-se em excesso oposto de indisciplina e liberdade. É um fato que crianças americanas, de acordo com os padrões antigos, são em geral pouco controlados, ou controláveis. Tratam pai e mãe com grande liberdade, "respondem", reclamam muito, exigem, quase não reconhecem autoridade.

Uma senhora brasileira me disse, lá, que "não há quem possa com eles" e o seu grande desgosto era não poder subtrair os netos à influência de colegas e amiguinhos. Mas via-se vencida, pois os pais dos garotos já aderiam à nova moda, incontestavelmente mais cômoda. O fato é que menino americano tem mesmo outra liberdade, preparatória da liberdade dos adolescentes que, segundo se diz, é total.

Mas o que é realmente louvável na educação das crianças americanas é o senso de responsabilidade que desde cedo lhes é incutido - o sentimento de pertencer a um grupo - a família - e ser responsável pelo bem-estar desse grupo. Não se conhecem lá os nossos odiosos pequenos príncipes, que vivem pela mão das mães e babás: não sabem calçar um sapato, abotoar a camisa, nem sequer lavar a cara. Lá, criança desde que aprende a andar, aprende a cuidar de si. A vestir-se; a tomar banho só; a arrumar a cama; a arranjar a roupa; a enxugar o banheiro depois de usá-lo.

Dada a dificuldade ou total ausência de empregadas domésticas, é a mãe quem tudo faz dentro de casa - mas com os filhos e marido ajudando. É muito bonito e cordial aquele sistema de cooperação doméstica. Tão diferente daqui do Brasil quando, na falta de empregadas (falta que já é permanente nas nossas grandes cidades), o jovem princês continua a exigir da mãe os seus hereditários privilégios e não se envergonha de sobrecarregá-la de trabalho - e tome roupa pelo chão, cama desmanchada, banheiro molhado e sujo de areia da praia, refeição a qualquer hora do dia. Não lhe ocorre que está sendo pesado e injusto - seja com a mãe ou com a empregada - e, o que é pior, faltando ao mais elementar cavalheirismo. Isso ele talvez nem saiba o que é.

Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 26 de outubro de 2002.

Pedro Du Bois (Ondas de Poemas)

ENCONTROS

O homem
sem nome
avança até a beira da estrada
faz o sinal de carona
aos carros que passam
desabalados

abalado o homem
volta a sentar sobre a pedra
sabe que não chegará no tempo
em que os encontros acontecem

retorna em passos
cabisbaixo
ciente do fracasso

o homem sem vida
retrocede.

LUZES

A luz predisposta
na porta entreaberta
o sono abafa o choro
de perdidas imagens
lembradas no início
raiva concentrada
em impropérios
caminho bifurcado
segue o destino
sobre a elevação
o vento silencia
a resposta
cobra do corpo
o escopo deposto
em anotações
verbaliza ordens
a desordem habita
sua vista
a luz ganha espaço
perdido na composta
vida: outro o preferido
em amor e vácuo
mortos sentimentos
retornam na estrada
única.

OBVIEDADE

Procuro a obviedade
do ato na insanidade do fato
recontado na versão amedrontada
da verdade. Minto a certeza
na repetição do gesto. Gasto a vida
em desafios estéreis e me debruço
ao acaso. Com medo entrego
a visão ao fito olho descoberto.
Meu início ciente da contenda
despreza ao largo o objeto
navegado em mares ressacados.
A obviedade se faz porto preso
em armadilhas. A complexidade
reduz os sentimentos ao sentido
do devoluto território aramado
em diversões e festas.

SAPIÊNCIA

Sabe o que aprende
através dos deuses
do conhecimento:

desconhecido ser
                 interior
na tentativa de entender
o começo no alvoroço
da passagem suave
no encanto da chegada
em torvelinho distinto
de estrelas
     e corpos suspensos

o que apreende
dos deuses no reconhecimento
sobre a ignorância
                   paira
                   no mundo
                   de diversos universos
                                em desconheceres.

TESES

Desafia o relativismo com que seus mestres
demonstram teses em humanas elaborações

de quesitos
     e questões
                     em levantamentos
                     na compilação
                                        na demonstração
                                        e finalização

(troca a roda do novo invento
  e o carro se move)

                 o planeta se move
                 e nossas vidas se movem
                                        na repetição da espécie.

INCIDENTAL

                    A mulher cruza a peça
                    em direção ao corredor interno.
                    Sua perna falseia a verdade
                    da caminhada. Os pés
                    desistem da cena. A mulher
                    desaparece no vão da escada.

Espada em punho o homem
acompanha a cena. A lâmina
trespassa seu braço. As mãos
tremem o aço oxidado. O sangue
inunda o vão da escada.

Outra mulher leva nas mãos o pano
de limpeza e o balde. Ajoelhada
passa o pano no vão da escada.
Espreme o pano dentro do balde.
O balde transborda na mulher
desaparecida e no braço
do homem oxidado
na temperada espada.

TEMPOS

Meros anos de conhecimentos

o permitido no indesvendável
caminho não percorrido

sombra projetada
nas luzes descoloridas
da vida relembrada em mitos

fantasmas de despossuídos seres

o planeta em seu curso
no esférico mundo se completa

poucos anos verdadeiros
nas letras toscas dos invernos.

LONGE

Lento caminhar
o corpo sente o desgaste
longo trajeto
o corpo sente o caminho
os olhos procuram
o zênite e o horizonte
rumo e destino

lentos passos
as pernas sentem o cansaço
longas esperas
o espírito consente aos dias
os olhos anunciam
o encontro e o horizonte
arrimo e desatino

lento desânimo
longo o beijo na partida.

CONVIVER

Convivo na desconfiança
de ser espionado
sem motivo aparente

ser vigiado diariamente
sem motivo aparente
ser preso diariamente
sem qualquer motivo

na ideia de ser denunciado
pronunciado
tipificado
sentenciado
(todos os dias)
sem aparentar motivos

convivo na prestação da pena
aparente em que desconfio
de cada dia atípico.

SOMOS

Nenhum sino badala verdades
nos secos tempos de fanfarras
em que nos escondemos
                      em ruas iluminadas
                      e atravancadas
                      de nossos iguais

o barulho nos acompanha
como garantia e vida.

Olhos se dirigem ao próximo
com quem cruzamos na calçada

admiramos o corpo
            repelimos o corpo

somos corpos enfeitiçados
em condições estéticas
de frias e congeladas ideias
onde não badalam sinos.

LUGARES

Em nenhum lugar estão
os avessos versos
                travessos
                em palavras
                atravessadas
                         na garganta

só a lâmina
e o barulho da motocicleta
são possíveis no silêncio
que rasga o tempo
no apagar das luzes

escuros sons são nuvens
de passageiros ícones
na resposta
         aos que me perguntam:

                o verso transfigurado
                traduz hiperpólica figura
                dos primeiros acasos

                                     ouro
                               incenso
                          mirra.

ÁGUAS

Busco o encontro das águas
em tórridas regiões desencontradas
na flutuação do espírito descontente
em flutuações e encontros

águas no entrechoque
de caminhos igualados
na sequência das margens
surpreendidas pelo leito
no transbordar dos espíritos

a música das águas no encontro
ensurdece corpos em desatino
de espíritos observados nos sons
das épocas em que ressecam

pequenas ondas encontram
e deslizam constantes formas
de encontros em terras cobertas
no passado tempo de chegarem
águas igualadas
                   em desiguais momentos.

MANHÃ

no seco barulho da pá do pedreiro
no pão com a camada de gordura

a roupa pertenceu ao pai morto
na pouca idade: cadáver atingido
pelas presas dos animais caçados

desfaz o encontro na lembrança
atingida no murmúrio das folhas
fosse o pai dizendo da manhã

REALIDADE

Na realidade escondo o dia
                                  cedo ou tarde
                          vejo quanto estou ausente
                          em mim mesmo

o sonho acoberta necessidades
e me utiliza tal máquina incendiária
                          dos momentos felizes

na realidade trago a utilidade
                   utilitário personagem
                   termino minhas tarefas
                                     em poucas luzes

cedo ou tarde tenho a verdade
e a realidade não está nela.

CORPO

Olhos
ouvidos
corpo e alma
memória

na oxidação do corpo
a inutilidade dos membros
atrofiados em tarefas

atração
paixão
amor
   indiferentes maneiras
   de desconhecimento

o convencimento despreza
avisos incorpóreos

olhos fechados
ao começo.

CONTATO

antenas
      ouvidos atentos rastreiam
      universos no conhecido
      espaço de quase nada

procuram seres
               que se comuniquem
                                  conosco

estamos aqui
e queremos entender vocês

não há resposta
           além das ondas
           regulares de rádio

estática
na pulsação das estrelas
e nas estradas estelares

a preocupação do humano egoísmo
preso em considerações terrenas
no esquecer o principal: sermos
merecedores da resposta
                e do contato

Fonte:
O Autor

Teófilo Braga (Maria Subtil)

Recolhido na Ilha de São Miguel, Açores

Havia um mercador, que morava perto do palácio real, e tinha três filhas. Maria era a mais moça e a mais formosa. O mercador era viúvo, e o rei mandou-o fazer uma viagem. Logo que o rei o mandou chamar foi, e voltou muito triste para casa, por deixar as filhas sós; mas deu-lhes três vasos de manjericão, e disse:

— Minhas queridas filhas! Eu parto por ordem do rei, e deixo um vaso a cada uma; os vasos hão de me dizer o que for sucedido.

— Nada há de suceder! Disseram as filhas.

Partiu o pai, e o rei no dia seguinte foi com dois amigos visitar as meninas de sentimento pela partida do pai; estavam as três irmãs ceando, quando sentiram bater à porta. A mais velha não se importando com os reparos de Maria abriu a porta ao rei. Maria ficou também zangada por a irmã do meio os mandar sentar à mesa, e disse:

— Vamos buscar uma gota de vinho à adega; eu levo a chave, minha mana mais velha a luz, e a do meio o canjirão.

Disse o rei:

— Não vão, que nós não queremos vinho.

As duas irmãs mais velhas também lhe responderam:

— Nós não podemos ir.

Maria lhes tornou:

— Não querem ir, pois irei eu.

E foi-se. Chegou ao saguão, apagou a luz, e pôs a chave e o canjirão na escada, e foi ter a casa de uma vizinha e bateu à porta. Ela veio e perguntou:

— Quem está aí a estas horas?

— Deixe-me entrar, que eu briguei com minha irmã mais velha, e para ela não brigar mais comigo, vim para cá dormir.

E lá dormiu aquela noite. Ficou o rei muito zangado da falsidade de Maria. Foi ela para casa no outro dia, e viu os vasos das irmãs murchos e ficou muito contente de ter o seu viçoso. Como o quarto da irmã mais velha dava para as quintas do rei, as duas irmãs desejaram de lá umas nêsperas. Maria desceu por uma corda; apanhou-as e tornou a subir para casa. A mais velha desejou limas; Maria foi e encontrou-se com o vinhateiro, que lhe disse:

— Que faz você por aqui, senhora marota?

E ela foi a ele e puxou-lhe pelas pernas, dizendo:

— Ainda me estás repreendendo! Espera aí.

E ele morreu afogado num espinho de limeira. Maria trepou pela corda, e chegou a casa muito aborrecida e disse:

— Olhem as meninas que esta é a última vez.

No dia seguinte a irmã do meio desejou bananas, e tanto pediu, que Maria foi lá, onde se encontrou com o rei, que lhe disse:

— Sempre cá vieste, Subtil? Tu agora o pagarás.

E começou a perguntar-lhe tudo; Maria nada negou, até que o rei lhe disse:

— Vem atrás de mim, que em casa tu as pagarás.
   

E cuidando que Maria vinha, foi andando; olhando de repente não viu nada, nem Maria, nem corda, nem por onde ela tinha saído. O rei ficou tão zangado, que adoeceu de paixão. As duas irmãs mais velhas casaram com dois amigos do rei e tiveram dois meninos. Maria pegou neles e meteu-os num açafate muito rico e enfeitou-o de flores muito finas de maneira que ninguém dizia levar duas crianças. Maria vestiu-se de rapaz e pôs o açafate à cabeça, e quando passou por casa do rei, apregoou assim:

Quem leva estas flores
Ao rei, que tem mal de amores?

O rei que estava de cama mandou comprar o açafate; ela levou o cestinho, e quando chegou lá disse:

— Ai, que me esqueceu o outro!

E foi-se, deixando o cesto ao rei; ele ouviu guinchos dentro do cestinho, vai ver, acha-se com duas crianças. Ficou muito raivoso, e prometeu vingar-se. Chegou o mercador, pai das meninas, e o rei mandou-lhe dizer por um pajem, que lhe fizesse uma casaca de pedra. O mercador chegou a casa muito triste, porque não podia fazer uma casaca de pedra, e porque as duas filhas mais velhas estavam casadas e porque dois vasos estavam murchos. Quando elas lhe perguntavam o que tinha, Maria saiu de trás das irmãs e disse:

— Se o rei lhe manda fazer uma casaca de pedra não se apoquente, meu pai; leve lá este giz para ele fazer as linhas.

Assim fez; O rei respondeu que era impossível, e o mercador respondeu também:

— Em vista disso é-me impossível fazer a casaca.

— Pois então hás de me entregar a tua filha Maria.

O mercador voltou ainda mais triste para casa:

— Minha querida filha, o rei quer que te vá levar ao palácio. É a nossa desgraça.

— Não se aflija, meu pai; mande fazer uma boneca igual a mim com um cordão para se puxar pela cabeça para dizer sim e não; e a boneca terá muito mel pelo pescoço.

O rei disse aos pajens:

— Quando vier aqui um senhor com uma menina, em dizendo que querem falar comigo, metam a ela na minha câmara, e deixem-no a ele ir-se embora.

Maria Subtil entrou e meteu-se debaixo da cama, com o cordão na mão, e pôs a boneca deitada. Quando entrou o rei, olhou para a boneca e disse:

— Senhora Maria Subtil, passe muito bem.

Maria puxou pelo cordão à boneca, e ela abaixou a cabeça. O rei lhe disse:

— Vamos ajustar contas.

E começou pelo princípio, desde quando foi à adega até chegar ao açafate de flores. E Maria Subtil sempre a puxar pelo cordão. O rei continuou:

— Quem me fez tanta falsidade merece a morte.

Pegou num espadim e degolou a boneca; o mel respingou, e foi-lhe tocar num beiço; e ele disse:

— Ai Maria Subtil! Tão doce na morte e tão amarga na vida. Quem tamanho crime fez merece já morrer.

E ia para se matar, quando Maria Subtil, a verdadeira, saiu de baixo da cama e se abraçou com ele. No dia seguinte casaram, e foram depois muito felizes.
====================
Notas

Na versão do Algarve encontrámos este conto com o título de Dona Vintes; e na versão de Ourilhe (Celorico de Basto) vem com o de Esvintola, (Contos populares portugueses, n.º XLII) trazendo o estribilho:

Ai Dona Esvintola,
Tão brava na vida
E tão doce na morte

Nos Contos populares brasileiros, de Sílvio Romero, n.º XII, Dona Pinta é uma variante do nosso.

Na tradição popular corrente ainda tem o título de Maria Sabida. Charles Perrault, nos seus Contos (1697), redigiu literariamente este tema tradicional na L'Adroite Princesse, ou, Aventures de Finette, no qual o príncipe de Bel-à-Voir fura com a espada uma boneca de palha que tem uma bexiga cheia de sangue. João Baptista Basile, no Pentamerone, deu redação literária à forma italiana no conto da Sapia Licciardia, que também mete na cama uma boneca cheia de mel e coisas doces, exatamente como na tradição portuguesa. Na Inglaterra este conto apresenta um aspecto exclusivamente maravilhoso no The Made Pranks and merry Jests of Robin Good Fellow, em que o amante é um gênio doméstico, Robin, que deixa na cama uma figura de lã (Brueyre, Contes populaires de la Grande Bretagne, p. 235).

Em uma versão ouvida em Airão (Minho) há um episódio com esta cantiga:

Quem leva, quem leva
Meninos e flores
Para quem 'sta doente
Por via de amores?

Na verdade, a autora é Marie-Jeanne L'Héritier de Villandon, sobrinha de Charles Perrault.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos) IV

GANGORRA LOUCA

Olha que gangorra louca
Nunca tem lados iguais
Quem na vida luta pouco
Pouco ou nada tem a mais

A minha vida
Tal qual aquela cordilheira
Cheia de altos e baixos
Como o rio e a cachoeira
Ela é como a tábua de maré
Que vai e volta que sobe e desce
Como quem quer e não quer

Ah! essa vida
Que no mundo nos fascina
Se compara a um avião
Ora em baixo, ora por cima
Um ioiô, sem uma definição
Lá e cá, sem ficar
Sempre na mesma posição

A nossa vida
Como as fases da lua
Que está no oriente
Ou cadente no ocidente
Brilhante, linda, pura, nua e crua
Sensual, quando está
No meio da rua

O RIO E EU

Rio que nasce riacho,
Encantado, eu acho
É coisa que vem de Deus
Os caminhos teus
Não pedem passagem
Na mesma viagem
Vai no mar desaguar
Vai no mar desaguar

Parece uma procissão
Vagaroso sobre o chão
E ainda agoniza
E se penaliza
Da sina que tem
E melhor que ninguém
Sabe aonde vai chegar
Sabe aonde vai chegar

Tua sinuosidade,
Tua lenta velocidade,
Teu remanso, tua vida
Lembram aquela partida
Em que ela me deixou
E nunca mais voltou
E meu coração, como tu
Em um corpo quase nu

Vai desfalecendo lento
Vai embora com o vento
Vai sofrendo lentamente
Vai morrendo lentamente

Fontes:
Clube Caiubi
Imagem = Alda Alves Barbosa

Graciliano Ramos (Infância) 2a. Parte

O Inferno

Aqui se revela o ingrediente que serviu de base para o capítulo “Inferno”, de Vidas Secas. Graciliano pergunta à mãe o que é o Inferno. Ao ouvir a explicação dela, faz questionamentos baseados na lógica e na curiosidade. Se os diabos aguentavam o fogo do Inferno e se as pessoas condenadas passavam a eternidade ardendo lá, então, no seu entender infantil, elas transformavam-se em demônios. Além disso, pergunta se a mãe já havia estado no Inferno. Diante da negativa, pergunta então como ela sabia as características do Profundo. Ela responde, então, que se baseava no que haviam dito os padres, homens de muito estudo. A mesma indagação: eles estiveram lá? Diante de mais uma negação, o garoto mostra-se incrédulo diante da existência do Inferno, o que lhe vale uma surra de chinelo. Apanha porque questiona, o que pode ser entendido por desrespeito. Apanha porque a força é o último argumento – falho, por sinal – quando todos os outros não funcionam.

O Moleque José

Descrição de um garoto que trabalhava para o pai do protagonista. Mais pobre, revela, no entanto, superioridade em relação ao narrador, pois tem mais experiência de vida e maior conhecimento de mundo. O capítulo encerra-se com o relato de um episódio em que o pai resolve descarregar sua raiva castigando José. Graciliano, num misto de burrice e sadismo, sentimentos disfarçados na vontade de ajudar na punição, resolve ferir o pé da vítima. O pai, diante de ato tão vergonhoso, pára de bater em José e transfere sua fúria para o filho.

Um Incêndio

Outro capítulo em que aparece o raciocínio lógico contra o religioso. Guiado pelo moleque José, Graciliano vai ver um incêndio que destruiu a moradia de gente pobre. É quando se depara com algo asqueroso: um cadáver carbonizado. Era de uma mulher que havia entrado em sua casa em chamas para salvar um quadro de Nossa Senhora. Não entende como a santa havia permitido que tal acontecesse. Não aceita nem mesmo a alegação de que deveriam ser os desígnios divinos, ou então que agora a vítima estava salva, no Paraíso. Termina a narrativa amaldiçoando a divindade e o moleque José por terem feito provocado tanto mal-estar nele diante de uma cena tão escabrosa.

José da Luz

Autoridade policial da vila, José da Luz proporciona uma excelente experiência para o protagonista. O medo que sente dele transforma-se em amizade, pois é alguém que tem tempo e disposição para conversar com Graciliano, sem intenção de massacre ou humilhação. É, pois, quem o aproxima da espécie humana.

Leitura


O pai de Graciliano convence-o (numa forma que o deixa desconfiado, pois usa um discurso manso) a se alfabetizar, alegando que isso iria permitir com que tomasse posse de uma arma poderosíssima. Num primeiro instante, o narrador mostra-se incrédulo. Mas a descrença é rapidamente substituída pela angústia, pois a aprendizagem é feita de forma dolorosa, violenta e sufocante, pois não respeita o ritmo e o universo cultural do menino. Mas é apenas o início de uma longa agonia. Encontramos aqui a representação da experiência vivida pelo menino que passa pelo processo da alfabetização de forma dolorosa. O menino narra com clareza o seguinte acontecimento:

Demorei a atenção nuns cadernos de capa enfeitada por três faixas verticais, borrões, nódoas cobertas de riscos semelhantes aos dos jornais e dos livros. Tive a idéia infeliz de abrir um desses folhetos, percorri as páginas amarelas, de papel ordinário. Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores, incrédulo.

Aí meu pai me perguntou se eu não desejava inteirar-me daquelas maravilhas, tornar-me um sujeito sabido como Padre João Inácio e o advogado Bento Américo. Respondi que não. Padre João Inácio me fazia medo, e o advogado Bento Américo, notável na opinião do júri, residia longe da vila e não me interessava. Meu pai insistiu em considerar esses dois homens como padrões e relacionou-os com as cartilhas da prateleira. Largou pela segunda vez a interrogação pérfida. Não me sentia propenso a adivinhar os sinais pretos do papel amarelo?

O pai, como mostra o episódio, tenta despertar a curiosidade do menino para “as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas”. O narrador não deixa de colocar em destaque que desconfiava da “liberdade” concedida pelo pai, principalmente por se tratar de uma pessoa “terrivelmente poderosa”, pois no ambiente familiar não existia o diálogo e liberdade para escolhas, prevalecendo sempre o autoritarismo patriarcal. O menino já sabia que coisa boa não viria daquilo.

Escola


A agonia de Graciliano aumenta na escola, onde continuará seu problemático processo de alfabetização. Há aqui, assim como nos capítulos seguintes, uma crítica moderníssima ao sistema educacional: como ensinar eficientemente, se o que é apresentado aos alunos está muito distante da realidade deles. Esse elemento fica claramente representado na forma “ter-te-ão”, pedra que aparece no caminho do protagonista. Fica pasmo diante de uma palavra que não tem noção do que seja. O mais absurdo é que nem sua professora sabe do que se trata.

O ensino da cartilha, através de várias punições, provoca na criança medo, deixa marcas profundas no indivíduo que, na maioria das vezes, não consegue superar os seus traumas. O sujeito adulto explicita, através da narrativa, a sua incapacidade de superar os traumas da infância ao admitir que sentia dificuldade em lidar com as duas letras: t, d e com qualquer tipo de atitude que denotasse violência.

D. Maria


Capítulo dedicado à descrição da primeira professora de Graciliano, mulher limitada em seus conhecimentos, mas que, com seu jeito meigo, atencioso e compreensivo, perdoando os erros dos alunos, acaba tornando-se um oásis no difícil processo de aprendizagem do protagonista.

O Barão de Macaúbas


Vencida, a muito custo, a primeira fase de alfabetização, Graciliano passa para um novo estágio, em que tem de mexer com um livro de leitura do Barão de Macaúbas. Este capítulo contém fortes críticas à ineficiência e inadequação dos métodos de ensino. Há também um saboroso ataque à literatura em voga, dotada de uma linguagem rebuscada, como um cipoal no qual o leitor-menino acabava se enroscando e sofrendo cada vez mais. É impagável o seguinte trecho, excelente resumo do que está sendo exposto: “e a mosca usava adjetivos colhidos no dicionário” (é sabido que o estilo de Graciliano Ramos é extremamente enxuto, seco, econômico. Dessa forma, o rebuscamento de linguagem de suas primeiras leituras é o extremo oposto do seu fazer literário. É também interessante lembrar que o estilo a que se dirige a crítica provavelmente deve ter sido influenciado pela escola literária que fazia sucesso na passagem dos séculos XIX para o XX, momento em que o autor estava no colégio: Parnasianismo).

Meu Avô


Este capítulo apresenta o avô da personagem dedicando-se a ajudar na alfabetização de Graciliano. No entanto, realiza seu trabalho de uma forma toda torta, pois sua rispidez traumatiza mais ainda a criança. Aliás, torta é a relação entre os dois, pois mistura elementos díspares. Sua rispidez é a maneira de ser afetivo. Seu incentivo à leitura vai por um processo desincentivador.

Cegueira

Momento doloroso na vida de Graciliano. Acometido por uma doença que inchava seus olhos, inflamando-os, ficava impossibilitado de enxergar. Cego, mergulhado em dores terríveis, acaba por ficar preso a seu quarto. Introspectivo, recorda o apelido com o qual era chamado até por sua própria mãe: cabra-cega. Não fica irritado com o nome em si, mas com o que essa palavra fazia lembra, pois era usada em uma trova infantil que terminava com obscenidade. E ao recordar essa alcunha, lembrava a outra que sua mãe usava (é incrível a sinceridade ríspida com que a mãe de Graciliano se dirigia a ele. Mas isso não se restringia aos apelidos. Não escondia a impaciência e, muitas vezes, asco com relação à doença do filho), bezerro-encourado, pois as roupas que o menino usavam não tinham caimento perfeito nele, ficando sempre folgadas. Mais uma vez, fica chateado com as conotações, pois tal bezerro era empurrado para a vaca. Estabelecia-se, pois, referência ao fato de Graciliano não ser aceito por sua mãe, de ser um enjeitado. Seu alívio surge quando, no clímax do desamparo em meio à escuridão da cegueira, desperta, graças às cantigas folclóricas que ouve de sua mãe durante as lidas domésticas, uma atenção e uma paixão pelas palavras. Começa a nascer o escritor.

Chico Brabo

Mais aprendizados o protagonista vai ter em relação ao caráter humano, dessa vez proporcionados por um seu vizinho, Chico Brabo. Socialmente, na rua, era uma pessoa de extrema amabilidade. No entanto, uma outra personalidade era revelada quando essa gentil personagem se fechava em sua casa. Na escuridão de sua cegueira, Graciliano de forma angustiada podia ouvir os gritos de Chico Brabo e, muitas vezes, a surra que dava no seu empregado, um garoto chamado João. Além disso, chama a atenção a estranha relação que se estabelecia entre opressor e oprimido, como se um fosse necessário ao outro. Havia o conflito, as pancadas surdas e depois tudo voltava ao normal, como se nada tivesse acontecido – Chico amável, João brincalhão.

José Leonardo


Descrição de uma personagem que se destoa da galeria apresentada até aqui. Basta lembrar que é comparada a um relógio, pois é justo, calmo, equilibrado, limpo. É um ser que até poderia ser considerado progressista em relação aos demais.

Minha Irmã Natural


Este capítulo serve para amesquinhar o caráter do pai de Graciliano. Em primeiro lugar, o velho sente-se diminuído por ter espalhado poucos filhos no mundo, limitado que era por sua condição econômica. Era como se o seu papel de macho fosse reduzido. E dentro desses poucos relacionamentos anteriores ao casamento havia nascido a irmã natural do autor, sempre tratada de forma distante e respeitosa pelos demais familiares. Até o momento em que a menina iniciou namoro. Ganha ferrenha oposição do pai, mas está apaixonada. Foge de casa para se unir ao seu amor. O narrador deixa subentendida a idéia de que fora a saída de que o pai mais tinha gostado, pois poupava-o das despesas matrimoniais.

Antônio Vale

Este capítulo tematiza as dificuldades que o pai do protagonista tem em relação ao comércio, pois algumas mercadorias não vendem muito, outras estão micadas, além de haver o problema dos clientes caloteiros. Destaque é dado a Antônio Vale, homem com fama de não pagar suas dívidas, mas com quem o pai do narrador estabelece negócio. Diante do atraso do pagamento, o comerciante mergulha na agonia, maldizendo o sujeito com quem estabeleceu transação. A situação piora quando tem conhecimento de que o homem está para partir. Mas ocorre um anticlímax humilhante: Antônio Vale surge apenas para cumprir a sua palavra e pagar seus débitos.

================
continua…

Fonte:
Ilca Vieira de Oliveira, Doutora em Literatura Comparada (UFMG) e professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Montes Claros. Disponível em Passeiweb. http://www.passeiweb.com/estudos/livros/infancia.

domingo, 2 de março de 2014

Vanda Alves (Aquarela de Trovas)


A leve pipa, enfunada,            
pela brisa zombeteira,
une toda a criançada
numa alegre brincadeira.

Amizade e lealdade,
sempre juntas, de mãos dadas:
correntes de identidade
entre almas entrelaçadas.

Amo o branco simplesmente, 
por ser a cor que nos traz
a sensação envolvente
de uma bandeira da paz.

Amor: dádiva divina            
que entrelaça corações;
sem prisão e na surdina,
nos faz viver emoções!

Ao lento passar das horas,            
aumentam as agonias...
Quanto mais tempo demoras,
mais sinto as noites vazias.

Ao vento não lances praga,
pensa, repensa e medita,
pois a boca sempre paga
pela frase que foi dita!      

A saudade, simplesmente,         
como vem logo se vai,
lembra bem o sol poente
no instante que a noite cai.

Assim como sonhos vão,
pelos trilhos do infinito…
outros mais devolverão
paz ao coração aflito…

A sua ausência, crescendo,     
faz aumentar os meus medos
e eu vejo a paz escorrendo,
lenta, por entre meus dedos.

A vida, em sua beleza,
deu-me tantas emoções,
que, mesmo ao sentir tristeza,
há doces recordações.

Bela legenda a se olhar,
que nos dá… esperança irmãos:
Ver os jovens a amparar
o mundo nas suas mãos.

Coloco azul no pincel,
pinto o céu, também o mar…
e deixo no alvo papel,
a luz da lua brilhar!

Cultivada no seu peito,              
desejo ser um jasmim.               
Sei não ser o amor perfeito,
mas me queira mesmo assim.

Depois que se aposentou,
seu pijama é só frangalho,
pois nunca mais o tirou
para não lhe dar trabalho.

Despindo folhas e flores,       
o inverno, o vento conduz,
e a árvore, sem pudores,
vai mostrando os galhos nus.

Deus nos dá sabedoria,            
para o bem que nos conduz     
ao amor que, com a alquimia,
nos torna um farol de luz!

Devemos andar na linha
e com prudência também:
“tino e caldo de galinha”
não fazem mal a ninguém!

Doce palavra vibrante,
lapidada na emoção…
É a trova um raro brilhante,
moldado na nossa mão.

Ela, num dia encantado,
o sonho vai realizar:
leva, mudo e acorrentado,
o seu noivo, para o altar.

Em meus tempos de criança,
pelas poças, num tropel,
lançava minha esperança,
em barquinhos de papel…

Em seu roçar, minha pá,       
peço que no seu vaivém
leve a saudade pra lá              
e traga pra cá o meu bem.

Flechado por um cupido      
vai se inspirando o poeta...
Faz versos de amor doído,
por uma paixão secreta!

Imprimo minhas pegadas,
sofridas pelo abandono,
nas folhas amareladas
pinceladas pelo outono…

Juraste-me ser fiel;
desse nosso amor, contudo,
hoje resta o velho anel
num estojo de veludo.

Lá em casa, quando anoitece,
dormir não há quem consiga:
gulosa, a sogra parece
ter alarme na barriga.     

Juraste-me ser fiel,                   
mas do nosso amor, contudo,
hoje resta o velho anel
num estojo de veludo.

Mas foi batida de frente?
Não, foi mesmo de limão,
que provocou o acidente
do bebum na contramão 

Meu relógio, de hora em hora,
badala a mesma canção:
aquela trilha sonora
que embalou nossa afeição.

Meu tempo tornou-se esparso…
Por mais que tente retê-lo,
nem com tintura disfarço
o cinza do meu cabelo.

Mulher, em sua contenda,
sempre tem o desafio
de tecer a linda renda,
desatando os nós do fio…

Na chama ardem fauna e flora,     
daí a tristeza grassa
e a natureza então chora
envolta em negra fumaça!

Na minha busca amorosa,
não invejo amor alheio,
pois mesmo a vida ditosa
tem seus espinhos no meio.

Não se ata  pelas algemas,
mazelas ao cidadão,
que enfrenta  tantos dilemas
doando vida à  nação.

Na sala da academia,
fonte da literatura,
jorra emoção em poesia,
para a sede da cultura.        

Na vida, eu prefiro o jogo,
não de azar, de sedução...
e, em vez de cartas, o fogo
que incendeia uma paixão.

Na vida vivo tentando,           
tornar meu mundo risonho,     
pois a tristeza vem quando,
existe ausência de um sonho.

No cinema… entre suspiros,
e ao pulsar dos corações,
o casal, dançando em giros,
nos inflama de emoções…

Noite tecida de espera     
e orvalhada pelo pranto:   
essa lembrança que gera,
a nudez do desencanto.

No movimento do mar,
bailando, ondas vêm e vão,
na rua, me encanta olhar:
o vaivém da multidão.

No mundo das ilusões,
havendo entrega total,
se entrelaçam corações
numa paixão virtual…

No refúgio do meu sonho,
em dias de maré cheia,
sigo driblando risonho,
medos… nas dunas de areia.

No regaço dos teus braços,
feliz, carregada ao léu,
sinto na escalada os passos,
nas nuvens… levar-me ao céu!

Numa linda cena antiga,
recordo…um amor na tela,
que se embala na cantiga,
num jantar à luz de vela…

Numa praia, é lindo amar,
contemplando o sol se pôr;
ondas balançando o mar,
e a rede embalando o amor!

Num dia de chuva e raio,
do chefe ninguém me aparta,
tropeço nele... e não saio,
pois não há raio que o parta. 

Nunca temer al futuro,
porque Dios quita la cruz,
me lleva al puerto seguro,
siendo mi rastro de luz!     

O barco, pede passagem
quando a terra descortina
e o farol troca mensagem
piscando a luz na surdina…

O bebum faz arruaça
se em toda blitz é parado,
de tanto tomar cachaça,
só sopra todo babado.  

O jardim, nos seus atalhos,   
unindo vários canteiros,
tece colcha de retalhos,
ungido com doces cheiros...

O mendigo solitário,
perambula pela rua.
Ao redor só o cenário
de uma imensa e fria lua.

O nosso amor em tormenta       
nos pede tempo a pensar...
Mas, nem mesmo em marcha lenta,
ele consegue engrenar.

O valor da roça encerra       
o beijo do sol ardente            
que, fertilizando a terra,
sacia a fome da gente.        

Pela emoção mais secreta,      
seja de alegria ou dor,
a lua inspira o poeta,
na trova que vai compor.

Pela seca, esmorecido,   
abandono o meu rincão.  
No meu rosto entristecido
há mais água que no chão.

Pelo caminho plantei,
as sementes de amizade,
e um patrimônio eu herdei
colhendo a felicidade.

Pelo muro da lembrança,
onde passo …. a caminhar,
vejo a sombra, por vingança,
minha imagem remoçar…

Pensando na tua imagem,         
em sonhos,sempre te vi...
Que importa se era miragem,
importa o amor que vivi!

Poder viver, quem me dera,
sentindo o vento a soprar,
sair da gaiola à espera
da liberdade… e voar !

Por ciúmes, no passado,                
o nosso amor foi desfeito...
Ficou o sonho tatuado
na penumbra do meu peito.

Príncipe da Trova! Honrosa,
nossa entidade acentua:
cada pétala da rosa
contém uma trova sua…

Professora viga mestra,
que sustenta a educação,
regendo afinada orquestra
do saber e da instrução…

Quando em seus braços me enlaça,
nessas chuvas tropicais,
nosso amor ganha mais graça…
enfrentando os temporais.

Quando faz soar o alarme,
lá no prédio da perua,
na sua ronda o gendarme
só vê peladão na rua...   

Quero ter a plenitude,               
de levantar o estandarte,           
com caridade e virtude,
de alguém que parte e reparte!

Recordo, ao passar das horas,           
do meu tempo de criança...
Alegre, contando auroras,
tecendo a doce lembrança.

Restam horas já passadas,
da história de uma paixão:
lembranças esfumaçadas,
nas sombras do carrilhão.

São Francisco nasceu nobre,    
mas despiu-se da riqueza,
cuidou da fauna e do pobre...
e cobriu-se de grandeza.

Se existe um amor sublime         
embalando o coração
um deslize se redime
num pedido de perdão.

Sempre e sempre se convença
de que há distância infinita
entre aquilo que se pensa
e aquilo que a vida dita...         

Só… sentada olhando o mar
sinto a triste solidão
e a onda põe-se a chorar,
em sua arrebentação.

Trovadores em repentes,
se unem num elo de luz...
e as trovas formam correntes:
de emoção... que nos seduz.

Tu ausência me despierta
la impresión de ser dejada...
como una playa desierta
cuando passa la temporada.

Vem Deus, na luz da harmonia, 
a família abençoar:
ofertando o pão do dia
comungado em cada lar.

Fonte:
A Autora

Rachel de Queiroz (A Vida em Pedaços)

Essas moças e moços - quase sempre muito jovens -, que de vez em quando aparecem para me entrevistar, perguntam sempre - quase sem exceção - como foi que comecei a escrever. Esperam que eu diga o momento exato em que me apareceu a vocação, se foi de dia ou de noite, se comecei a escrever o livro, direto, e fui até o ponto final, e por aí vai. Perguntam muito também sobre a minha vida, o que aconteceu, e depois, e depois, e depois... Tento explicar, na medida do possível, que a vida da gente não é uma sequência, como numa história em quadrinhos, em que um fato acontecido num quadro tem a sua lógica no quadro seguinte; e que a nossa memória também não é uma coisa contínua, uma lembrança sucedendo a outra. Eles ficam meio decepcionados, mas procuro satisfazê-los contando alguma coisa da minha vida. Pelo menos os pedaços de que me lembro.

Bem, quando adolescente resolvi ser atriz. É que passara por Fortaleza uma companhia de operetas e, é lógico, fiquei toda alvoroçada. Meu pai, do sertão, me comprou uma assinatura para duas pessoas e me mandou para a cidade. Acompanhada de uma velha amiga da família, fomos a todas as récitas (menos a Casta Susana, que era imprópria). Essa temporada me virou a cabeça.

Nunca mais perdi companhia teatral de passagem pela terra; e, na falta, ia aos espetáculos dos amadores locais. Estava decidida a minha vocação. Ia ser atriz. Lia toda peça de teatro em que punha a mão, me sonhava uma grande atriz, uma Duse, ou, no mínimo, uma Lucilia Peres. Mas nunca falei desses sonhos a ninguém: fracassando, ninguém poderia me fazer cobranças. Verdade que eu antes quisera ser violinista. Por causa de uma foto saída numa revista de uma violinista (ou pianista?) polonesa, por nome Luba; tinha cabelo ruivo, trajava veludo preto, com uma cauda longa que arrastava atrás de si, como uma onda. A dificuldade é que eu nunca tivera a mínima musicalidade, nunca chegara perto de um piano ou de um violino. Só a figura da artista me encantava; o instrumento era acessório. Guardei anos aquela página recortada, com a imagem colorida da Luba.

Muito cedo me meti a escrever, porque na nossa casa livro e leitura tinham lugar principal. Pessoa que não lesse (e que não escrevesse um pouco, nem que fosse às escondidas) não era propriamente um ser humano.

Mas eu era a única menina no meio de quatro irmãos: imagine-se as críticas deles todos gozando a "literata"! Assim, na moita, aos 12, 14 anos, é que fazia os meus contos; estava na fase romântica, - Victor Hugo, Dumas, Rostand - Ah, Cirano! (no colégio as freiras me obrigaram muito cedo a ler francês). E José de Alencar (Diva), e Júlio Diniz (Fidalgos da Casa Mourisca), e até Camilo (Amor de Perdição). Claro que nos meus contos pululavam as noites sombrias, os amores impossíveis, os pais ferozes, as traições e as juras. Contudo, mal dava o ponto final no dramalhão, eu tratava de rasgar tudo, com medo do patrulhamento dos meninos e - horror dos horrores - que minha mãe, ela sim, com o seu bom gosto literário, os descobrisse. Para não correr riscos e porque me parecia mais bonito, eu fazia uma fogueirinha no quintal com os meus escritos e os meninos começaram a dizer que eu andava fazendo bruxaria - ideia que, aliás, me agradou enormemente. E, então, inventei um ritual: consumida a fogueira, enterrava cuidadosamente as cinzas.

Tentei então fazer versos; mas em versos eu era ainda pior. Não esperava para os queimar nem que chegasse o dia seguinte, liquidava-os recém-nascidos.

Com 15 anos me diplomei em professora. O que não foi uma boa ideia: saindo do curso tão cedo, não tinha nenhuma base de estudo; precisei refazer sozinha tudo o que devera ter estudado numa faculdade. Por sorte, fomos então morar na fazenda, onde havia a grande livraria de minha mãe; nela iniciei o meu curso particular de literatura. A leitura me ficou como uma obsessão. Lia de dia, lia de noite. Como no sertão não havia luz elétrica, meu pai me arranjou um foto-mobile: é um castiçal oco onde se enfia uma vela; e à medida em que a vela se consome, é impulsionada para cima por uma mola que a mantém sempre à mesma altura; coroando tudo, uma pequena manga de vidro que protege a chama contra o vento. Noite havia em que eu consumia até três velas e das grossas!

Esqueci de contar que antes da fase romântica, atravessei a fase Júlio Verne. Eram uns volumes encadernados em pano, com figuras relativas às aventuras dos heróis, ilustrando a capa. Tradução de Portugal, letrinha miúda. Me encarnei nos filhos do Capitão Grant, dei a volta ao mundo em 80 dias, fiz sete semanas em um balão, fui num foguete à Lua. Mas, acima de todos, a grande paixão: Vinte Mil Léguas Submarinas. Acho que se puxasse pela memória, ainda seria capaz de repetir de cor algumas frases do Capitão Nemo!

Eu ia pelos 16 anos quando me meti a fazer uma "carta de leitor" para um jornal de Fortaleza, comentando com alguma irreverência a recente eleição da Rainha dos Estudantes. Prudentemente assinei a peça com um pseudônimo: Rita de Queluz (aproveitando minhas iniciais). A carta agradou; e na Fortaleza daquele tempo, puseram-se a procurar quem seria aquela Rita, acabaram descobrindo. E eu fui então ser jornalista. Fazia uma crônica por semana, tomava conta da página literária.

De lá pra cá não teve mais jeito. Já "veterana" aos 18 anos, deu-me um impulso de escrever um livro, um romance. Só o mostrei a meu pai e minha mãe quando estava pronto. Foi O Quinze, publicado em l930.

De lá até hoje não parei mais, quer em jornal, quer em livro. Mas não posso dizer que foi propriamente uma vocação. Nunca nos meus sonhos juvenis pensei em me tornar uma escritora. O que eu queria mesmo era ser atriz. Jamais o fui. Nunca pisei num palco, nem mesmo de amadores. Como nunca vesti um vestido longo, de veludo preto, segurando na mão, com elegância, a grande cauda suntuosa.

E é isso aí, meus queridos. A vida da gente é assim, sem nada planejado, feita aos pedaços como um quebra-cabeça onde sempre falta - ou se perdeu, alguma daquelas peças coloridas.

Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo . 07  de setembro de 2002

Teófilo Braga (O Príncipe que foi Correr sua Ventura)

Recolhido no Algarve

Havia numa terra um rei que tinha um filho, que não fazia senão pedir-lhe para ir correr o mundo; o rei por fim não pôde mais ter mão, e deu-lhe um grande saco de dinheiro para a partida. Depois de ter andado muito, foi dar a uma estalagem onde encontrou um outro viajante. Conversaram, mas o viajante perguntou ao príncipe se não gostava de jogar; daí a instante já estavam ferrados ao jogo. O viajante ganhou-lhe o saco de dinheiro, e não tendo mais que lhe ganhar, propôs-lhe que jogassem mais uma vez, e no caso de o príncipe ganhar tornava a dar-lhe o saco de dinheiro, e no caso de perder o príncipe ficaria preso por três anos naquela casa, e o serviria como criado por mais outros três. O príncipe aceitou a proposta, jogou e perdeu. O viajante tomou conta dele, prendeu-o em uma loja, e deu-lhe pão e água de um dia para três anos.

O príncipe chorava a sua má cabeça; ao fim de três anos vieram soltá-lo, e ele pôs-se a caminho para ir para casa do viajante, que era rei, servi-lo como criado. Depois de ter andado muito, encontrou uma mulher com uma criancinha ao colo a chorar com fome. O príncipe ainda levava o resto de um naco de pão e um pingo de água e deu tudo à mulher. Ela em agradecimento disse-lhe:

— Olhe, santinho, vá você sempre andando, e quando lhe vier um cheiro muito grande, é porque está perto de um jardim que está no caminho; entre para dentro, e vá-se esconder ao pé do tanque. Então hão de vir três pombas tomar banho, e à última que se despir tire-lhe o vestido de penas e não lho torne a dar senão em troca de três coisas que ela lhe der. Aconteceu tudo como a mulher lhe tinha dito; apanhou o vestido de penas da pombinha, e ela para o tornar a ter deu-lhe um anel, um colar e uma pena, dizendo-lhe:

— Quando te vires em alguma aflição e disseres: «Valha-me aqui a pomba», hei de te acudir; eu sou a filha do rei que vais servir, que tem uma grande raiva a teu pai, e que te ganhou tudo ao jogo para dar cabo de ti.

O príncipe apresentou-se em casa do rei, que lhe deu logo esta ordem:

— Toma este trigo, este milho e esta cevada para semeares, contanto que eu amanhã coma pão destas três qualidades.

O príncipe ficou espantado, mas o rei não quis saber de explicações; foi ele para o seu quarto todo atrapalhado da sua vida, e pega na pena dizendo:

— Valha-me aqui a pomba!

A pomba apareceu, e ficou sabendo tudo; e ao outro dia trouxe-lhe as três qualidades de pão para o príncipe ir entregar ao rei. Quando o rei viu cumpridas as suas ordens, disse-lhe:

— Pois bem; já que foste capaz disto, vai agora ao fundo do mar buscar o anel que a minha filha mais velha lá perdeu.

Voltou o príncipe para o quarto e tornou a chamar pela pombinha; ela acudiu:

— Olha, amanhã vai para a praia e leva uma bacia e uma faca e mete-te num barco.

Assim fez; a pomba meteu-se com ele no barco e foi por esses mares fora. Já tinham andado muito, quando ela disse que lhe cortasse a cabeça, de modo que não caísse uma gota de sangue no chão, e a atirasse para o mar. Seguiu tudo à risca. Passado pouco tempo saiu do mar uma pomba com um anel no bico, largou-o na mão do príncipe e foi lavar-se no sangue que estava na bacia; tornou-se na cabeça de uma bela donzela e depois tornou a desaparecer. O príncipe foi entregar o anel ao rei, que ficou mais desesperado, e lembrou-se de lhe dar um maior trabalho:

— Hoje de tarde hás de sair no meu poldro, para o ensinares.

O príncipe foi para o seu quarto e tornou a chamar pela pombinha, que lhe respondeu:

— Olha, o meu pai quer ver se te mata por algum feitio; porque o poldro é ele mesmo, o selim é minha mãe, minhas irmãs são os estribos, e eu sou o freio. Não te esqueças de levar um bom cacete porque podes consolar-te com uma carga de pau neles.

O príncipe montou no poldro, moeu-o com pancadas, e tais coisas fez que quando recolheu a casa e foi dar parte ao rei que o poldro estava manso, achou o rei de cama todo em panos de vinagre, a rainha feita numa salada, as filhas derreadas, menos a mais nova. Nessa noite foi ela ter com o príncipe e disse-lhe:

— Agora, que estão todos doentes é que é boa ocasião de fugirmos; vai à cavalariça e apronta o cavalo mais magro que lá achares.
   
O príncipe caiu na asneira de aprontar o mais gordo. Quando se puseram a caminho, e ela viu o cavalo gordo ficou muito contrariada, porque este cavalo andava como o vento, e o magro andava como o pensamento. Mas sempre fugiram. De noite o rei precisou da filha para o virar, e chamou por ela; nada. A rainha, que era refinada bruxa, pescou logo que a filha tinha fugido com o príncipe, e disse ao marido que saltasse já fora da cama e que os fosse apanhar. O rei levantou-se a gemer com dores, foi à cavalariça e quando viu o cavalo magro ficou seguro de pilhá-los. Montou e partiu. A filha, que ia sempre desconfiada que dessem pela falta dela, avistou de longe o pai, e de repente transformou o cavalo em uma ermida, a si em uma santa e o príncipe em um ermitão.

Chegou o rei ao pé da capelinha, e perguntou se não tinha visto passar por ali uma menina com um cavalheiro. O ermitão levantou os olhos do chão e disse que por ali não passara vivalma. O rei foi-se embora aborrecido, e foi dizer à mulher que só tinha encontrado uma ermida com uma santa e um ermitão.

— Pois eram eles, disse a velha desesperada; se me tivesses trazido um bocadinho do vestido da santa ou um bocadinho de caliça da parede, tinha-os agora aqui em meu poder.

E tornou a fazer partir o velho no cavalo mais ligeiro que o pensamento. O velho foi avistado ainda de longe pela filha, que fez do cavalo um terreno, de si uma roseira carregadinha de rosas, e do príncipe o hortelão. Repetiu-se a mesma coisa; o velho virou para trás, mas a velha bruxa avisava-o:

— Se me tivesses trazido uma rosa dessa roseira, ou um punhadinho de terra, já cá os tinha em meu poder. Mas deixa estar, que desta vez vou eu também.

Quando a menina avistou a mãe sentiu um grande medo, porque sabia o poder que tinha; apenas teve tempo de fazer do cavalo um poço fundo, de si fez uma eiró, e do príncipe um cágado. A velha chegou à borda do poço, e conheceu-os logo. Perguntou à filha se não estava arrependida, e se quisesse voltar para casa que lhe perdoava. A eiró dizia com o rabo que não. A velha disse ao marido que atirasse uma bota ao poço para trazer uma gota d’água, porque só com isso ficava com poder para agarrar a filha. Quando o rei tirava a bota cheia de água, o cágado saltou para dentro dela e entornou-a toda; com a outra bota deu-se o mesmo caso.

Então a rainha muito zangada rogou ao cágado a praga que ele se esquecesse da princesa. Continuaram o seu caminho, mas a menina sempre muito triste. E quando o príncipe lhe perguntava o motivo da sua tristeza, ela respondia:

— É porque tenho a certeza de que me hás de esquecer.

Chegaram por fim à terra donde o príncipe era natural; deixou a menina em uma estalagem, e foi pedir ao pai licença para lhe apresentar a sua noiva. Com a alegria que teve de ver a família esqueceu-se da menina. O pai tratou de lhe fazer o casamento; quando a menina soube disto teve uma grande aflição e gritou:

— Valham-me aqui minhas irmãs.

Apareceram-lhe. A mais velha disse:

— Não te aflijas; tudo se há de arranjar.

E deu ordem à estalajadeira que quando passasse algum criado do rei a comprar aves, que fosse ao quarto da irmã e vendesse três pombinhas que estariam lá. Assim foi; o criado do rei comprou as três pombinhas, e como eram muito lindas foi mostrá-las ao príncipe.

O príncipe estava admirado, e quando ia pegar nelas uma saltou para cima da janela, e disse:

— Quando nos ouvir falar, ainda mais admirado há de ficar.

Outra saltou para cima de uma mesa, e disse:

— Vai falando, vai falando, que ele se irá recordando.

A pombinha que lhe tinha ficado na mão saltou-lhe para cima do ombro e perguntou-lhe:

— Veja, príncipe, se este anel lhe serve.

O príncipe viu que sim. Depois deu-lhe um colar, e também servia. Por fim deu-lhe a pena, e só quando leu o nome da pomba é que se tornou a lembrar, e então casou com ela.
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Notas
 
Nos Contos populares portugueses, há uma variante de Coimbra com o título Branca-flor.

Nos Contos populares brasileiros, há uma variante com o título Cova da linda flor.

Este conto acha-se em quase todos os seus detalhes com o título As três pombas, nos Contos e tradições do Tirol italiano, de Schneller.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos) III

Vuldembergue é de Fortaleza/CE
 

SEGREDO

Na imensidão do teu sorriso me perco em vida,
Sentida, vadia,
Vazia de medo
Segredo que guardo em mim, assim brinquedo
São fortes emoções pra ternos corações
Quero revirar-te pelo avesso, amar-te
Na mais completa intensidade me render aos seus caprichos
Feito bichos, amar sem pressa ou depressa
Chegar ao seu final, afinal
O que fazemos, desfazemos, refazemos tudo
E começar de novo olhando estrelas
Como aquarelas
Tão perto assim
E quem que está no céu, oh lua, tão tua?

DELÍRIOS
 

Tua boca, tuas cores, teus sabores meu desejo
O teu cheiro, tuas curvas, quando turvas minha visão
Os prazeres são momentos bem felizes
Quando dizes coisas dentro dos lençóis
Como nós sempre ávidos do outro
Como loucos nos fartamos de amor

Tua boca, tuas cores, teus sabores meu desejo
O teu cheiro, tuas curvas, quando turvas minha visão
No ardor da entrega indecente
Na corrente do sangue audacioso
Nós vivemos um delírio inconsequente
Na volúpia do desejo impetuoso

APELO
 

Um amigo disse entre os senões
Essa vida já está muito feia
Para se falar de decepções
O que nos norteia
É o amor, a alegria e as emoções

Deixo de lado o crime, a maldade e o medo
Aqui eu faço um apelo
Vamos sentir o calor humano, a luz da lua
E o brilho do sol no meio da rua

Não se fala mais em romantismo
Mas somente no consumismo
Canto a vida, mar e amor
Na felicidade estou

Porque isso não é viagem,
Fora de moda ou bobagem
Utopia, infantilidade
Mas é pura autenticidade

CRENDICE POPULAR
 

A crendice vem da ignorância
Do medo e feitiço, do diabo
Aparece em toda circunstância
De temor, do inferno e pecado
Para conquistar os favores
Na esperança de não ter mais dores

São promessas também simpatias
Nas novenas, nos cultos, nos dias
Destinados aos santos protetores
Das famílias
Medo da perseguição, dos temores
Dos espíritos inferiores
Do vacilo aparece até a mais nórdica Valquíria

O Saci, Curupira, Yara
Mãe d’água, Caipora, Quebranto,
Negrinho, Boto, Besta-fera
Anhangá,
Lobisomem, Cuca e fantasma
Olho-gordo, bruxa, mau-olhado
Mula-sem-cabeça, Boitatá

Da crendice formou-se uma idéia
Progressão da cultura popular
O medo fez nascer a platéia
De crendeiros a acreditar

GIRASSOL

Como o girassol que acompanha
Por natureza o sol
Os meus olhos se derramam
Pelas ruas como um farol

Como o girassol na luz
Eu também te sigo os passos
E o meu olhar reluz
Quando perto de mim passas

Cada olhar é diferente
Mesmo o meu e o do girassol
Cada um olha pra frente
Em busca de um farol

Que ilumine o caminhar
Um quer ver o sol
O outro o teu olhar
Pois ninguém quer ficar só

VIVER BEM

Como disse Ortega Y Gasset, o espanhol
Somente o supérfluo é necessário
O mundo não é indiferente para o homem sob o sol
E não importa só viver, mas viver bem é o cenário

Ser feliz sem um olhar estressante
Sem muro e sem conduta extravagante
Eis a questão!
Em minha opinião
Viver bem nesse mundo
Não pode ser o eu sozinho
Pois até entre os espinhos
Nasce um amor profundo

PIRAGEM

Queria ser como um mestre de bateria brincando nas ruas
Queria ser como uma nave no mundo da lua
Queria ser com um passista no Maracanã do samba
Queria ser uma alegria no meio da rua

Entre tantos e quantos
Entre mundos e fundos
Poeiras e santos
Entre cores e assuntos

Na organização da escola
A flutuação no espaço
No compasso e no passo
A alegria do palhaço

Me encontro ansioso
Vou pro meio da praça
Canto um canto mentiroso
Chuto o pau da barraca

Me encontro ansioso
Vou pro meio da rua
Conto um conto mentiroso
Vou pro mundo da lua

QUE VIDA!

Mãos vazias, coração cheio de nada
Mente desocupada
Vida sem emoção
Obedecer é preciso
Não é o paraíso
Nem é felicidade
Não é amor
É nada, é mesmo nada

Vida, vida, vida
Até quando essa bendita
Vida de submissão?
Vida sem segredo

Sem aventura
Sem sentimento
Só amargura
E medo

AÇÃO E REAÇÃO

Nas voltas do mundo
Procura-se a paz
Muito mais que na guerra vã
Ou na insana mente
De quem nem tem talismã

Em cada humana
Ação reage a terra
Destruindo com furor
A natura não erra
É enchente, é frio e calor

De cada ação
Vem a reação
Como chapa de ferro quente
Que não perdoa
E queima intensamente

Fonte:
Clube Caiubi