quarta-feira, 12 de março de 2014

Machado de Assis (Médico é remédio)

Em que diabo conversam estas duas moças metidas na alcova? Conversam do Miranda, um rapaz engenheiro, que vai casar com uma amiga delas. Este Miranda é um noivo como qualquer outro, e não inventou o quadrado da hipotenusa; é bonito, mas não é um Apolo. Também não é rico. Tem mocidade, alguma instrução e um bom emprego. São vantagens, mas não explicam que as duas moças se fechem na alcova para falar dele, e muito menos que uma delas, a Julieta, chore às bandeiras despregadas.

Para compreender ambas as coisas, e principalmente a segunda, é preciso saber que o nosso Miranda e Julieta amaram-se algum tempo. Pode ser mesmo que ele não a amasse; ela é que com certeza morria por ele. Trocaram muitas cartas, as dele um pouco secas como um problema, as dela enfeitadas de todos os retalhos de frases que lhe lembravam dos romances. Creio mesmo que juraram entre si um amor eterno, não limitado à existência do sol, no máximo, mas eterno, eterno como o próprio amor. Vai então o miserável, aproveita-se da intimidade de Julieta com Malvina, namora a Malvina e pede-a em casamento. O que ainda agrava este fato é que Malvina não tinha melhor amiga que Julieta; andaram no colégio, eram da mesma idade e trocavam as suas mais íntimas confidências. Um dia Julieta notou certa frieza na outra, escassez de visitas, poucas cartas; e tão pouco advertiu na causa que, achando também alguma diferença no Miranda, confiou à amiga as suas tristezas amorosas. Não tardou, porém, que a verdade aparecesse. Julieta disse à amiga coisas duras, nomes feios, que a outra ouviu com a placidez que dá a vitória, e perdoou com magnanimidade. Não é Otávio o demente, é Augusto.

Casam na quarta-feira próxima. O pai da noiva, amigo do pai de Julieta, mandou-lhe um convite. O ponto especial da consulta de Julieta a esta outra amiga Maria Leocádia, é se ela deve confessar tudo à mãe para que não a leve ao casamento. Maria Leocádia reflete.

— Não, respondeu ela finalmente: acho que você não deve dizer nada. Estas coisas não se dizem; e, demais, sua mãe não fará caso, e você tem sempre de ir...

— Não vou, não vou... Só amarrada!

— Ora, Julieta; deixa disso. Você não indo, dá um gosto a ela. Eu, no caso de você, ia; assistia a tudo, muito quietinha, como se não fosse nada.

— Velhaca! falsa! interrompia-se Julieta, dirigindo-se mentalmente à outra.

Maria Leocádia confessou que era uma perfídia, e, para ajudar a consolação, disse que o noivo não valia nada, ou muito pouco. Mas a ferida era recente, o amor subsistia e Julieta desatou a chorar. A amiga abraçou-a muito, beijou-a, murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais cordiais; falou-lhe ao brio. Julieta enxugou as lágrimas; daí a pouco saía de carro, ao lado da mãe, com quem viera visitar a família da amiga.

O que aí fica passa-se no Rio de Janeiro, onde residem todas as pessoas que figuram no episódio. Há mesmo uma circunstância curiosa: — o pai de Julieta é um oficial de marinha, o de Malvina outro, e o de Maria Leocádia outro. Este último sucumbiu na guerra do Paraguai.

A indiscrição era o pecado venial de Maria Leocádia. Tão depressa falou com o namorado dela, o bacharel José Augusto, como lhe referiu tudo o que se passara. Estava indignada; mas o José Augusto, filósofo e pacato, achou que não era caso de indignação.

Concordava que a outra chorasse; mas tudo passa, e eles ainda teriam de assistir ao casamento de Julieta.

— Também o que faltava era ela ficar solteira toda a vida, replicou Maria Leocádia.

— Logo...

Cinco minutos depois, metiam o assunto na algibeira, e falavam de si mesmos. Ninguém ignora que os assuntos mais interessantes derrubam os que o são menos; foi o que aconteceu aos dois namorados.

Na rua, porém, José Augusto tornou a pensar na amiga da namorada, e achou que era naturalmente triste a situação. Considerou que Julieta não era bonita, nem rica; tinha uma certa graça e algumas prendas; mas os noivos não andavam a rodo, e a pobrezinha ia entrar em nova campanha. Neste ponto da reflexão, sentiu que estava com fome. Tomara apenas uma xícara de chá, e foi comer. Mal se sentou aparece-lhe um colega de academia, formado dois anos, que esperava por dias uma nomeação de juiz municipal para o interior. José Augusto fê-lo sentar; depois, olhou para ele, e, como ferido de uma ideia súbita, desfechou-lhe esta pergunta:

— Marcos, tu queres uma noiva?

Marcos respondeu que preferia um bife sangrento. Estava com fome... Veio o bife, veio pão, vinho, chá, anedotas, pilhérias, até que o José Augusto perguntou-lhe se conhecia Julieta ou a família.

— Nem uma nem outra.

— Hás de gostar dela; é interessantíssima.

— Mas que interesse...?

— Sou amigo da família.

— Pois casa-te.

— Não posso, retorquiu José Augusto rindo; tenho outras ideias, atirei o lenço a outra odalisca... Mas, sério; lembrei-me hoje de ti a propósito dela. Crê que era um bom casamento.

— Tem alguma coisa?

— Não, não tem; mas é só o que lhe falta. Simpática, bem-educada, inteligente, muito meiga; uma excelente criatura... Não te peço que te obrigues a nada; se não gostares ou tiveres outras ideias, acabou-se. Para começar vai sábado a um casamento.

— Não posso, tenho outro.

— De quem?

— Do Miranda.

— Mas é o mesmo casamento. Conheces a noiva?

— Não; só conheço o Miranda.

— Pois muito bem; lá verás a tua.

Chegou o sábado. O céu trouxe duas cores: uma azul para Malvina, outra feia e horrenda para Julieta. Imagine-se com que dor se vestiu esta, que lágrimas lhe não arrancou a obrigação de ir assistir à felicidade da outra. Duas ou três vezes, esteve para dizer que não ia, ou simplesmente adoecer. Afinal, resolveu ir e mostrar-se forte. O conselho de Maria Leocádia era o mais sensato.

Ao mesmo tempo, o bacharel Marcos dizia consigo, atando a gravata ao espelho:

— Que interesse tem o José Augusto de me fazer casar, e logo com a tal moça que não conheço? Esquisito, realmente... Se, ao menos, fosse alguma coisa que merecesse e pudesse...

Enfiou o colete, e continuou:

— Enfim, veremos. Às vezes estas coisas nascem assim, quando menos se espera... Está feito; não me custa dizer-lhe algumas palavrinhas amáveis... Terá o nariz torto?

Na véspera, o José Augusto dizia a Maria Leocádia:

— Queria guardar o segredo, mas já agora digo tudo. Ando vendo se arranjo um noivo
para Julieta.

— Sim?

— É verdade; já dei uns toques. Creio que a coisa pode fazer-se.

— Quem é?

— Segredo.

— Segredo comigo?

— Está bom, mas não passe daqui; é um amigo, o bacharel Marcos, um bonito rapaz. Não diga nada a Julieta; é muito orgulhosa, pode recusar, se entender que lhe estamos
fazendo algum favor.

Maria Leocádia prometeu que seria muda como um peixe; mas, sem dúvida, há peixes que falam, porque tão depressa entrou no salão e viu Julieta, perguntou-lhe se conhecia um bacharel Marcos, assim e assim...Julieta respondeu que não, e a amiga sorriu. Por que é que sorria? Por um motivo singular, explicou ela, porque alguma coisa lhe dizia que ele podia e viria a ser a consolação e a desforra.

Julieta estava linda e triste, e a tristeza era o que mais lhe realçava as graças naturais. Ela tratava de dominá-la, e conseguia-o às vezes; mas nem disfarçava tanto, que se não conhecesse por baixo da crosta alegre uma camada de melancolia, nem por tanto tempo que não caísse de espaço a espaço no mais profundo abatimento.

Isto mesmo, por outra forma, e com algumas precauções oratórias, lhe foi dito por José
Augusto, ao pedir-lhe uma quadrilha, durante a quadrilha e depois da quadrilha. Começou por lhe declarar francamente que estava linda, lindíssima. Julieta sorriu; o elogio fez-lhe bem. José Augusto, sempre filósofo e pacato, foi além e confessou-lhe em segredo que achava a noiva ridícula.

— Não é verdade? disse vivamente Julieta.

E depois, emendando a mão:

— Está acanhada.

— Não, não; ridícula é que ela está! Todas as noivas ficam bem. Olhe a cintura do vestido: está mais levantada de um lado que de outro...

— O senhor é muito reparador, disse Julieta sorrindo.

Evidentemente, estava gloriosa. Ouvia proclamar-se bela, e a noiva ridícula. Duas vitórias enormes. E o José Augusto não disse aquilo para cumprimentá-la. Pode ser que carregasse a mão no juízo que fez da noiva; mas em relação a Julieta disse a verdade, tal qual a sentia, e continuava a sentir fitando os lindos olhos da abandonada. Daí a pouco apresentou-lhe o Marcos, que lhe pediu uma valsa.

Julieta lembrou-se do que lhe dissera Maria Leocádia a respeito deste Marcos, e, posto não o achasse mau, não o achou tão especialmente belo que merecesse o papel que a amiga lhe atribuiu. Marcos, ao contrário, achou-a divina. Acabada a valsa, foi ter com José Augusto, entusiasmado.

— Realmente, disse ele, a tua recomendada é uma sílfide.

— Ainda bem. Bonita, não?

— Lindíssima, graciosa, elegante, e conversando muito bem.

— Já vês que te não enganei.

— Não; e, realmente, é pena.

— O quê?

— É pena que eu não ouse.

— Que não ouses? Mas, ousa, peralta. O que é que te impede de ousar?

— Ajudas-me?

— Se eu mesmo te propus!

José Augusto ainda nessa noite falou a Julieta acerca do amigo, louvou-lhe as qualidades sólidas e brilhantes, disse-lhe que tinha um grande futuro. Também falou a Maria Leocádia; contou-lhe o entusiasmo do Marcos, e a possibilidade de fazê-lo aceitar pela outra; pediu-lhe o auxílio. Que ela trabalhasse e ele, e tudo se arranjaria. Conseguiu ainda dançar uma vez com Julieta, e falou-lhe da conveniência de casar. Há de haver algum coração nesta sala, reflexionou ele, que sangre muito de amor.

— Por que não diz isso com mais simplicidade? redarguiu ela sorrindo.

A verdade é que Julieta estava irritada com o trabalho empregado em fazê-la aceitar um noivo, naquela ocasião, principalmente, em que era obrigada a fazer cortejo à felicidade da outra. Não falei desta nem do noivo; para quê? Valem como antecedentes da ação.

Mas que sejam bonitos ou feios, que estejam ou não felizes, é o que não importa. O que importa unicamente é o que vai suceder com a rival vencida. Esta retirou-se para casa aborrecida, abatida, dizendo mentalmente as coisas mais duras à outra; até a madrugada não pôde dormir. Afinal, passou por uma breve madorna, acordou nervosa e com sono.

— Que mulherzinha! pensava o José Augusto indo para casa. Embatucou-me com as  tais palavras: — Por que não diz isso com mais simplicidade? Foi um epigrama fino, e inesperado. E o ladrão estava bonita! Realmente, quem é que deixa a Julieta para escolher a Malvina! A Malvina é uma massa de carne, sem feitio...

Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também. Julieta não dava esperanças; e, coisa singular, era menos expressiva com a amiga do que o namorado desta. Tinha vergonha de falar com a outra em tais matérias. Por outro lado, a linguagem de José Augusto era mais própria a fazer-lhe nascer o amor, que ela sinceramente desejava sentir pelo Marcos. Não queria casar sem amor. José Augusto, posto que filósofo e pacato, adoçava as suas reflexões de uma certa cor íntima; além  disso, dava-lhes o prestígio do sexo. Julieta chegou a pedir-lhe perdão da resposta que lhe dera no dia das bodas de Malvina.

— Confesso, disse ela, que o amor não pode falar com simplicidade.

José Augusto concordou com esse parecer; e ambos entraram por uma tal floresta de estilo, que se perderam inteiramente. Ao cabo de muitos dias, foram achar-se à porta de uma caverna, de onde saiu um dragão azul, que os tomou e voou com eles pelos ares fora até à porta da matriz do Sacramento. Ninguém ignora o que estes dragões vão fazer às igrejas. Maria Leocádia teve de repetir contra Julieta tudo o que esta disse de Malvina.

Plagiária!

Publicado originalmente em A Estação 1883

Fonte:
Portal Domínio Público

Débora Novaes de Castro (Livro de Poemas)

MARIAS
 

Ó Maria,
cheia de graça,
não a divina, mas
Maria, da praça.

De tardezinha,
faces rosadas,
Marias na praça.

Maria, Maria,
não Santa Maria,
mas a doce Maria
tão rica de encantos,
nos volteios
da praça!

FRUTA-PÃO

Fruta, cipó,
índio, tacape,
pajé, pajelança,
oca, maloca,
milho... biju...
mandioca...

fogo, tição,
verde da folha,
tanga sem canga,
ponta de flecha,
indio que pesca
peixes com
lança...

caça, cocar
tupi-guarani,
mata, machado,
serra que mata,
menino acuado,
água... cipó...
fruta-pão?

MENINA DE TRANÇAS...
(Hom. ao Dia da Mulher)

Menina formosa,
dize teu nome:
Maria, Rosa, Isabela,
Ana, Rosani, Mariana...
mas dize-o agora,
menina feitiço
dos laços e fitas,
Dináura, Soraya,
Daniella?

Menina de tranças,
menina dengosa,
dize teu nome:
Delma, Ana Paula,
Neusa, Taís, Manuela,
 dize-o depressa
que o tempo tem pressa
e enreda teus sonhos,
sonhos de amor.

Menina de agora,
amanhã flor donzela,
se por capricho
ou mimos de flor
não dizes teu nome
de flor batizada,
na natureza,
teu nome é
M u l h e r!

SETEMBRO...

Quando Setembro vier,
em sua nave colorida
e perfumada,

serei mais espanto que luz,
mais esperança que o verde,
mais doce que o mel,
mais feliz que o rosal,

verei, deslumbrada,
os vitrais da catedral

e, de asas quebradas,
verei a Primavera partir
para recompor, noutros ares,
nova orquestração
de amores!

PREÇO DO SONHO

Se sonho
fosse mercadoria,
talvez se procedesse
assim:

Hei, você.
Quanto custa o sonho?

Não custa nada.
Pode sonhar.
mas não esqueça
a conta...

sonhos,
não custam nada.
O que se paga
é consultar.

SIGNO DO SOL

Enquanto
houver estrelas
nos olhos das crianças

o chão embrutecido
florescerá sob o signo
do sol, e haverá
esperança!

MORRE UM POEMA

A febre de escrever,
escalda-me a face...

ardo no silêncio,
crucificada no tempo,
de que nem sempre disponho
naquele justo momento...

e mais um poema se perde
na pedra sacrificial
da lágrima não
derramada!

RELÓGIO DE AREIAS

Pela janela aberta
vejo passar os sonhos.
São belos frutos maduros
polpudos...suculentos
tentando do lado de fora.

São lépidos, trigueiros,
brejeiros sonhos-romãs.
São alvas mãos pequeninas
tecendo coroas de virgens
pra festa de casamento.

Pela janela aberta
vejo passar os anos.
Eles fluem tão depressa
como um relógio de areias,
como um final de oração.

Fecho então a janela.
O sono é minha unção.

ANDARILHA

Caminho
dentro de mim...

Palmilho
o labirinto usual
de todos os momentos
possíveis e impossíveis
na descoberta da pedra
sofismal da vida.

Ao pensar
tê-la encontrado,
fantasmagórica miragem.
Desvencilho-me do espanto
retomo a caminhada.

Fonte:
Recanto das Letras

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) II

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado ! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o capelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco – e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu capelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. - Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direito de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigiava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag moleou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás! - cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado! Malvado Darzee! - exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas é tão minúscula que ninguém lhe presta atenção - o que a faz ainda mais perigosa.

Os olhos de Rikki-tikki tornaram-se novamente rubros e, erguendo-se, ela dirigiu-se para Karait, com o bamboleio de corpo herdado de sua raça. Parecia cômico aquele andar, mas era sábio, porque lhe punha o corpo num tal equilíbrio que num dado momento podia, veloz como o relâmpago, mudar de direção para onde conviesse, o que constitui grande vantagem para quem vive em luta com as serpentes. Rikki-tikki, ignorando isso, estava a fazer coisa muito mais perigosa do que combater Nag; Karait era tão pequenina e movia-se com tanta agilidade que, a não ser que fosse agarrada rente à cabeça, poderia, num contragolpe, atingir a mangusta no olho ou no focinho. Rikki não sabia disso e, com os olhos em fogo, bamboleava-se naquele balanço de equilíbrio, procurando o momento de dar o golpe. Karait avançou. Rikki saltou de lado e fugiu com o corpo, a tempo de livrar-se, por um fio de cabelo, do pequenino bote da cabecinha empoeirada.

Teddy gritou para dentro:

- Venham ver uma coisa! A mangustinha está caçando uma cobra!...

Rikki ouviu a mãe do menino dar um grito, enquanto o pai se precipitava para o jardim, de bengala na mão. Nesse entremeio Karait desferiu novo bote, que também falhou e Rikki-tikki caiu sobre ela, ferrando-a no ponto próprio, bem junto à cabeça. A mordedura paralisou-a, e Rikki ia devorá-la, a começar pela cauda, quando se lembrou que tais refeições deixam o corpo pesado. Ora, ela tinha necessidade de dispor, dum momento para outro, de toda a sua força e ligeireza para o recontro com as cobras grandes. Ficou, pois, em jejum e foi espojar-se no pó, sob uma touça de mamoeiros, enquanto o pai de Teddy dava umas últimas bengaladas no cadáver de Karait.

- Para que isso? - pensou Rikki-tikki. Eu já a matei.

A mãe de Teddy desceu ao jardim ainda aflita e tomando nos braços a mangusta apertou-a ao peito, dizendo entre lágrimas que ela havia salvo seu filho da morte; o pai do menino concordou que aquela mangustinha era providencial. Teddy olhava para os dois com os olhos muito arregalados.

E no íntimo Rikki-tikki divertiu-se com a cena, embora a não compreendesse. Ao jantar, passeando dum extremo a outro sobre a mesa, por entre pratos e copos, poderia ter-se regalado de tudo quanto quisesse; mas a lembrança de Nag e Nagaína a fazia manter-se em jejum. E conquanto lhe fosse agradável ser amimada pela mãe de Teddy, para cujo ombro saltou, seus olhos de quando em vez tornavam-se rubros e de sua garganta saía o grito de guerra: Rikk-tikk-tikki-tikki-tchek!
================
continua

A Natureza em Versos II

Fonte: Libreria Fogola Pisa
CARLOS EDUARDO POMPEU
O Tapete da Vida


 Que a morte venha ternamente
e a vida se esvaia lentamente,
para que eu possa, em placidez,
assistir aos meus últimos momentos.

Que sejam como os das flores
e das folhas do outono,
que ao soçobrarem,
quando dos galhos se desgarrem,
flutuem bailando no ar,
até pousarem num tapete,
casual e úmido,
de flores murchas,
 folhas mortas
e húmus.

NEWTON NAZARETH
Tarde de Verão


 Ebulição infernal, asfalto ferve,
Emana um insuportável vapor,
Vindo do meio dia com sol a pino,
Irradiando seus raios de calor.

 Nas áreas urbanas os arranha-céus,
Parecem unir-se quase no espaço,
E conspirando contra o oxigênio,
Cada vez bem mais difícil e escasso.

 Pessoas andam se esbarrando e trôpegas,
Às pressas e sequiosas por um bar,
Elas parecem suplicar por socorro,
Resfolegando e ansiando o ar.

 Temperatura alta, insuportável,
Face úmida, axilas molhadas,
Gotas de suor escorrem pelas têmporas,
Paletó nas mãos, camisas encharcadas.

 Nas praias superlotadas é a antítese,
Banhistas seminus expostos ao sol,
Distantes de tudo, longes, distraídos,
Mergulhando, ou praticando o “frescobol”.

 É a tranquilidade, é um oásis.
Nos bares da orla, chope e cerveja,
Alegria contagiante com risos,
Euforia, atmosfera benfazeja.

 Surge aos poucos uma pequena aragem,
Que vai se apresentando discretamente,
Mostrando velocidade que aumenta,
Cuja intensidade cresce fortemente.

 É o afamado vento sudoeste,
Respeitado por sua ferocidade.
Mais conhecido como um destruidor,
E o grande formador de tempestade.

 Agora já se nota uma ventania,
Com intensidade avassaladora,
Que vai derrubando tudo à sua frente,
Destruindo com fúria assustadora.

Faíscas de relâmpagos rasgam céu,
É vista uma escuridão vesperal,
Os roncos das trovoadas amedrontam,
É o prenúncio de um forte vendaval.

Vários pingos espessos se precipitam,
Aumentam a cada fração de segundo,
Chove exageradamente, sem parar.
Horrível, até parece o fim do mundo.

Ruas alagadas, trânsito infernal,
Todo sistema de sinais apagado,
Soam sirenes, pedidos de socorro.
Desastre total é o caos instalado.

Todos correm a esmo sem direção,
Desconhecendo riscos e o perigo,
Tropeçando, esbarrando-se, caindo,
A procura de proteção num abrigo.

Gradativamente a chuva diminui,
Silenciosa e serena sem alarde.
Por do sol já aparece no seu ocaso,
E se vislumbra os sinais do fim de tarde.

A noite chega imponente e majestosa,
O céu está sem nuvens todo estrelado,
No fundo a lua cheia resplandecente,
Irradia seu brilho prá todo lado.

Agora com toda calma e sem transtornos,
As pessoas caminham no calçadão,
O calor aos poucos volta como antes,
De uma noite típica de verão.

A cara da cidade volta ao normal,
Toda iluminada e sempre graciosa,
Esbanjando amor e hospitalidade,
Naquela que é linda e maravilhosa.

SUZANA MARIA CRUZ PEIXOTO
Poema em Aldravipéia


 paisagens
  formosas
  encantos
  da
  natureza
  Deus

a
  terra
  nosso
  berço
  nosso
  chão

o sertanejo
  escuta
  o
  capim
  crescer

chuvisco delicioso
  frescura
  de
  capim
  molhado

buquês
  de
  ipê
  florada
  da
  beleza

flores
  no
  jardim
  harmonia
  da
  vida

gotas
  de
  orvalho
  ornamento
  das
  flores

vento
  faz
  voar
  grãos
  de
poeira


o
  vento
  uivando
  açoita
  os
  arvoredos

pássaros
  na
  tempestade
  revoada
  sem
  rumo

outono
  chega,
  folha
  cai,
  árvore
  desnuda

límpidas
  águas
  nascentes:
  lágrimas
  da
  terra
   
chuá...
  chuá...
águas murmurantes
  da
  cascata


cascata
cristalina
sua
sina
sempre
cantar

chuê...
  chuê...
  o
rio
que
  canta

cursos
  dos
  rios
  caminhos
  sem
  volta
   
praia
  beira-mar
  delicada
brisa
que
  alisa

carinhosa
  brisa
  acaricia
  chega
  de
  mansinho

ondas:
  do
  mar

borbulhas
  lambendo
  praias

poderosa natureza
inesgotável
fonte
de
beleza

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Lygia Fagundes Telles (Verde lagarto amarelo)

Este conto está inserido na obra Antes do baile verde, de Lygia Fagundes Telles.

Em Verde Lagarto Amarelo, escrito em 1969 e inédito até a publicação de Antes do baile verde, o tema desenvolvido no conto está relacionado à importância da infância e às consequências dos dramas infantis na vida de duas personagens adultas.

O espaço empregado para o desenvolvimento da história é tipicamente urbano, com o predomínio de cenas transcorridas no interior das residências das personagens.

Em Verde Lagarto Amarelo o tempo da história abrange um período de algumas horas.

O título do conto não fornece pistas ao leitor sobre o tema que será desenvolvido na narrativa. É transmitida apenas uma breve sensação de ambiguidade, pela citação de duas cores, verde e amarelo. Afinal, de que cor é o lagarto? O título talvez tenha sido escolhido com a intenção de despertar a curiosidade do leitor: apenas por seu intermédio não é possível a formação de um projeto virtual sobre o conto.

A narrativa é subjetiva, pois existe no discurso a presença de um “eu”, Rodolfo, o narrador autodiegético. O texto tem início com a utilização de discurso avaliativo, pelo narrador, para caracterizar a outra personagem, Eduardo. Os adjetivos empregados para se referir à maneira do rapaz andar são positivos, o passo é “macio”, o andar é “discreto”, “polido” (p. 8). E completa: “não chegava a ser felino” (p. 8). Esse esclarecimento feito pelo narrador parece servir para reforçar a impressão positiva sobre Eduardo. Assim, se ele anda sem fazer ruído, é com a intenção de não incomodar, e não para surpreender Rodolfo sorrateiramente, como faz um felino ao caçar uma presa.

Na sexta linha do conto, observa-se o emprego do discurso objetivo, “Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho” (p. 8). A opção do narrador pelo verbo “saber”, é significativa, pois o saber é inquestionável, faz parte de um discurso de autoridade. Na mesma frase verifica-se o advérbio “sempre”, que caracteriza o discurso iterativo, demonstrando para o leitor que a situação de Rodolfo não se altera com o passar do tempo, a solidão da personagem é permanente.

A narrativa tem focalização interna, o que quer dizer que o grau de informações do narrador é igual ao da personagem, ou seja, será narrado aquilo que a personagem sabe. A focalização é fixa – o leitor tem acesso aos pensamentos e sentimentos de Rodolfo. A outra personagem é focalizada, externamente, pelo narrador. É por meio do monólogo interior de Rodolfo que o leitor recebe informações sobre Eduardo. Assim, percebe-se que Eduardo é perspicaz, “Nada lhe escapava” (p. 8), bondoso, “Acabava sempre por me oferecer seu tesouro” (p. 9), preocupado com o bem-estar de Rodolfo, “Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar” (p. 9). Pode-se, ainda, observar o emprego do advérbio, novamente a utilização do discurso iterativo, reforçando para o leitor que o comportamento de Eduardo em relação a Rodolfo é constante, previsível, conhecido.

Com o sorriso de Eduardo (pág. 9), têm início as recordações da infância, para Rodolfo. E o leitor recebe a informação que Eduardo é irmão de Rodolfo. A partir desse momento, o conto passa a ser construído com a intercalação de trechos que representam o passado das personagens, com outros que se situam no momento presente da narrativa, na cena que se desenvolve no apartamento de Rodolfo. O passado é composto por recordações da infância, nas quais Rodolfo faz conjeturas sobre o próprio comportamento e o dos outros membros da família, especialmente o do irmão e o da mãe. O presente é construído por meio dos diálogos entre as duas personagens, estratégia que proporciona ao leitor a sensação de contemporaneidade.

O diálogo entre os irmãos transcorre normalmente, com a evocação das qualidades de Eduardo por parte do narrador. A começar pela aparência. O leitor recebe a informação de que Eduardo é um homem bonito – tem “o cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua” (p. 9); “olhos cor de violeta” (p. 9); “os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados” (p. 10). Além disso, preocupa-se com o irmão, é sincero e generoso. Pela forma como Eduardo é apresentado, percebe-se que existe um engajamento afetivo do narrador em relação a essa personagem e que, aparentemente, o narrador procura fazer com que o leitor sinta simpatia por Eduardo.

Entretanto, a partir do trecho citado a seguir, o drama de Rodolfo passa a ser apresentado para o leitor:

Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!... E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada!... (Telles, 1982, p. 10)

A ambiguidade presente no título do conto volta, agora, a aparecer. A surpresa e a curiosidade do leitor são desencadeadas pelo desabafo do narrador-personagem, feito por meio do emprego do monólogo interior. O que terá acontecido na infância para deixá-lo assim, sufocado, pela presença de um irmão que ele mesmo apresentou ao leitor como uma pessoa boa e sensível? As indagações presentes no discurso do narrador-personagem estão dirigidas a si próprio ou ao narratário? Essas perguntas podem servir como lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Entretanto, até o momento em que aparecem na narrativa, o leitor não possui elementos suficientes para responder aos questionamentos lançados pelo narrador.

O leitor acompanha o drama de Rodolfo, que desde criança esconde-se da vida como “um lagarto no vão do muro” (p. 14), daí o título do conto. Parecendo-se com um jacaré em miniatura e tendo a cabeça semelhante à das serpentes, o lagarto possui aspecto assustador, o que faz com que grande parte das pessoas mantenha distância desse animal.

Entretanto, é inofensivo. Rodolfo identifica-se com o réptil. Possui aspecto desagradável e uma sudorese excessiva, que mancha “a camisa de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão” (p. 11). A camisa, molhada e manchada, “era uma pele enrugada aderindo à minha com meu cheiro, com a minha cor” (p. 11), o suor em excesso provocava a metamorfose metafórica de Rodolfo em lagarto.

Rodolfo afirma ser “um tipo meio esquisito”, “meio louco” (p. 12) o que parece ser uma máscara que utiliza para esconder a tristeza que sente, a amargura que traz dentro de si. Eduardo é diametralmente oposto ao irmão. A começar pela aparência. É um homem bonito, tem “o cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua” (p. 9); “olhos cor de violeta” (p. 9); “os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados” (p. 10). Eduardo preocupa-se com o irmão, é sincero e generoso.

Além de Rodolfo ser o narrador, é também seu o ponto de vista que orienta a perspectiva narrativa. Assim, as informações que o leitor recebe correspondem à imagem que ele tem de si mesmo e das outras personagens. A cada detalhe fornecido, percebe-se que Eduardo só possui qualidades, enquanto Rodolfo só tem defeitos. Parece que o narrador deseja, dessa maneira, promover a simpatia e a aversão do leitor pelas personagens citadas, respectivamente.

Ao visitar o irmão, Eduardo traz um pacote de uvas e uma outra “coisa”, uma “surpresa”, que ele só quer mostrar “depois” (p. 9). Esse é um índice de antecipação de desfecho, uma prolepse implícita.

Ao experimentar a uva, Rodolfo faz uma digressão, em discurso indireto livre. Nesse trecho, reproduzido a seguir, a metalinguagem é utilizada, o escritor reflete a respeito do processo de criação literária:

(...) Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto. (Telles, 1982, p. 9)

Durante a visita de Eduardo a Rodolfo, os dois conversam sobre trivialidades e relembram o passado, o que, para Rodolfo, é uma verdadeira tortura. A presença do irmão incomoda Rodolfo, principalmente por trazer de volta as lembranças dolorosas da infância, “será que ele não vê que para mim foi só sofrimento?” (p. 10). Eduardo era perfeito e a convivência com ele fez de Rodolfo um perdedor. Tudo o que Rodolfo quis na vida, Eduardo conquistou, foi assim com o amor da mãe, foi assim com Ofélia. Aparentemente, os acontecimentos se deram de modo natural, sem maldade por parte de Eduardo, o que não diminui a frustração de Rodolfo.

Aos poucos, a relação dos irmãos vai sendo exposta para o leitor. Ser obrigado a conviver com Eduardo é o pior castigo para Rodolfo. Ter que encarar o que poderia ser, mas que nunca alcançará. É um lagarto que observa com inveja um pássaro de plumagem colorida. As escamas nunca se transformarão em penas. O bicho está condenado a rastejar até o fim dos dias, nunca conseguirá voar. Não será olhado com admiração pelos outros, não será desejado, não será amado.

Eduardo machuca o irmão sem perceber. Convida-o para ser o padrinho de seu filho, que nascerá em breve, mas ao invés de Rodolfo ficar feliz, esse gesto só serve para aumentar o desespero. “Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de vomitar” (p. 13). Depois da angústia, a ironia: “Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era ser amável? Um casal amabilíssimo” (p. 13). Rodolfo não queria um prêmio de consolação. Queria estar no lugar de Eduardo. Queria ser Eduardo.

A competição desigual que Rodolfo enfrenta desde o nascimento de Eduardo torna-se ainda pior porque o irmão o ama. “Desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor” (p. 14), lamenta Rodolfo. O que deseja é que o irmão desapareça de sua vida: “Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava me ignorar, se ao menos me ignorasse” (p. 13). Eduardo tem a função de espelho para Rodolfo, é a partir da imagem do irmão que Rodolfo toma consciência da própria identidade. Olhando para as plumas do pássaro é que o lagarto percebe que as escamas que possui não são belas; tocando-as, perceberá que a pele é áspera. Conviver com os próprios defeitos e deficiências não é fácil. Mas, torna-se insuportável se, além disso, é necessário aguentar o sucesso do outro, assim tão próximo.

A consciência da diferença sufoca Rodolfo. Para resolver o problema, pensa em morrer, “Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais” (p. 11). Posteriormente, acredita que a solução seria a morte de Eduardo. Mas não tem a coragem de Caim. Apenas consegue torcer para que Júlio, um menino que desafia Eduardo para uma briga, o atinja mortalmente com o canivete, durante uma briga. Entretanto, arrepende-se: “E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete não!” (p. 15). Talvez Rodolfo tenha percebido que a morte de Eduardo não seria a solução para o seu problema. A ausência do irmão não faria com que ele, Rodolfo, ganhasse o amor e a admiração dos outros, instantaneamente. Depois da briga, Rodolfo carrega o irmão machucado nas costas, de volta para casa. Eduardo era um peso imenso para Rodolfo. Mas, se a situação era ruim com a presença dele, talvez só piorasse com a sua morte. Afinal, pelo menos Eduardo amava Rodolfo.

A convivência sufocante com Eduardo faz com que Rodolfo se torne cada vez mais introspectivo. Rejeitado pela mãe, acumulando anos de raiva e frustração, conscientizando-se de sua aparência repugnante, o que resta a Rodolfo é esconder-se, isolar-se do convívio social, transformar-se num eremita urbano. E adotar a função solitária de escritor – “Era o que me restara: escrever” (p. 16). Rodolfo é um escritor bem-sucedido. Seus livros vendem muito mas, apesar disso, não se sente completamente satisfeito. “Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado, abrindo com as mãos em garra o seu caminho” (p. 14).

Chega-se ao clímax do conto. Rodolfo adivinha o motivo da visita do irmão. O impacto da descoberta faz com que ele sinta uma dor “quase física” (p. 16). A única coisa que era verdadeiramente sua, o único talento que sobrara para Rodolfo, seu único canal para se expressar e conseguir um pouco de admiração, era o ato de escrever, agora também “roubado” por Eduardo. A surpresa e a decepção são grandes demais. “Senti meu coração se fechar como uma concha” (p. 16). Eduardo tornar-se escritor, o que é sugerido pelo conto, cujo final permanece em aberto, sem a confirmação de Eduardo – é o golpe de misericórdia na tentativa de Rodolfo de manter a compostura.

A intertextualidade está presente no conto em pelo menos dois momentos distintos. Primeiramente, como já mencionada, com o drama entre os irmãos Abel e Caim, descrito na Bíblia. Caim sente inveja do outro, que é o predileto do Senhor, e a ira cresce a tal ponto que o leva a assassinar Abel. A intertextualidade é bastante explícita, podendo ser confirmada, inclusive, pela comparação do trecho bíblico no qual Deus pergunta a Caim: “Onde está teu irmão Abel? E ele respondeu: Não sei. Porventura sou eu o guarda de meu irmão?” (Dalbosco, 1980, p. 29), com a parte do conto em que a mãe interroga Rodolfo, “‘(...) onde está seu irmão?’ Encolhi os ombros, não sei, não sou pajem dele.” (p. 15).

A segunda intertextualidade, também bastante explícita, está presente na fala do pai dos rapazes: “Laura é como o rei daquela história (...) Só que, ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza” (p. 14). A comparação é com o rei Midas, figura da mitologia greco-romana, que transformava em ouro tudo o que tocava. Nesse momento do conto, Rodolfo aproxima-se da mãe, ficando ao alcance das mãos; quer ser tocado pela mulher “com um pouco de amor” (p. 14), possivelmente acredite que esse toque terá o poder de transformá-lo.

Além do relacionamento de amor e ódio existente entre os dois irmãos, outro aspecto importante de Verde Lagarto Amarelo é a relação entre a mãe e os filhos. Laura não consegue disfarçar a predileção que sente pelo caçula, o que se torna a principal causa do sofrimento de Rodolfo. A mãe não se conforma com o fato de Rodolfo transpirar tanto, critica-o por estar sempre comendo. Não consegue ter um gesto de amor para com o primogênito. O comportamento de Laura, aliado à sua morte, ainda na infância dos meninos, tem reflexos negativos em toda a vida de Rodolfo.

Fonte:
Biblioteca Digital da UNESP

terça-feira, 11 de março de 2014

Machado de Assis (Metafísica das rosas)

Pour la rose, le jardinier est immortel, car de mémoire de rose, on n’a pas vu mourir un jardinier.
Fontenelle.


LIVRO PRIMEIRO

No princípio era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores grandes para que amparassem o toldo azul que cobre o jardim e a chácara, e ele não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.

Grande é o Jardineiro! Suas longas pernas são feitas de tronco eterno. Os braços são galhos que nunca morrem; a espádua é como um forte muro por onde a erva trepa. As mãos, largas, espalham benefícios às Rosas.

Vede agora mesmo. A noite voou, amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas e os passarinhos, há uma chuva de pipilos e trinados no ar. Mas a terra estremece. É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos o regador que borrifa sobre as Rosas e água fresca e pura, e assim também sobre as outras plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no dia em que, tendo criado o sol, que dá vida às Rosas, este começou a arder sobre a terra. Ele o enche de água todas as manhãs, uma, duas, cinco, dez vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira orvalho; e quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das chuvas que alagam a terra de água e de vida.

LIVRO II

Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:

— Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?

Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.

O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:

— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e ame.

E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.

E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:

— Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras.

LIVRO III

O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:

— O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres.

Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos da Rosas. E quando queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.

Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um lugar de delícias que vos indicarei.

Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.

Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.

Publicado originalmente em Gazeta Literária 1883

Fonte:
Portal Domínio Público

A Natureza em Versos I

Fonte: Libreria Fogola Pisa
AGLAÉ TORRES
São Paulo/SP

Fragmentos de Sol e Lua

 

Plantadas na noite
as raízes da aurora
aprofundam-se no céu
asfixiando as estrelas
   Debruçando-se sobre o mundo
a gigantesca árvore-dia
emite claridade da copa
   voltada para a terra incendiada
Seus - os maduros frutos –
         Raios de Sol
iluminando a  Natureza
sonolenta.

 Entardecer
Fragmentos de dia encaixam-se
no quebra-cabeça colorido
de emoções em  arco-íris
tons fortes e fracos formando
um quadro de vida
captado na mente em vãos.

Incêndio no Céu...
O Sol descendo
pelo escorregador de nuvens
mergulha no horizonte
sem volta
abrasando o céu.

A lua branca emocionada
ocupa o lugar deixado pelo sol
e colhe saudades no dia vagaroso
do amor impossível de fusão.
Sem luz nem brilho,
desmaiada
em busca do calor do sol
desocupado.

A Lua no céu azul de noite clara
debruçada
refletindo o brilho e forma na piscina,
transformada
em lua cheia atrás das grades de galhos
 retratando a lua prisioneira.

Abriram-se no céu as venezianas de nuvens
 e a Lua espiou.
Lua Cheia.    

Deslizando pelo tule de nuvens
escondeu-se em escuro
e nesse entra-e-sai
ocultando-se e brilhando
fazendo-se desejada pelas ausências.
De repente
a Lua aparece plena, vitoriosa.
Venceu a batalha!

LUZARTE DE MEDEIROS BRITO
(São João do Sabugi/RN)

No Rancho

 

Aqui, sim, a vida é bela
na sombra deste ranchinho,
sentado à beira do mato,
meu mais doce e casto ninho,
como se, na vida, eu fosse
um liberto passarinho.

Contemplo campos e serras
azuladas, muito além...
No panorama do sul
vejo a cidade também,
mas ali, como nos campos,
belezas tantas não tem,

Lá existem belas praças
que os namorados desejam,
mas as flores mais viçosas
que os beija-flores beijam
não têm o mesmo perfume
das flores que aqui vicejam

Há festas e diversões,
parece um mar de orgia,
porém ali na cidade,
palco de tanta alegria
não tem a sombra do rancho
onde eu escrevo poesia.

Lá não tem a melodia
da passarada que canta,
nem cheiro virgem da terra
que a chuva do chão levanta,
por isso que do matuto
a felicidade é tanta.

O povo ali da cidade
se do caboclo faz troça,
é porque aquela gente
nunca veio aqui na roça
para também ser feliz
na sombra duma palhoça.

VERA MARIA DA PENHA

Rio Marinho

 

O rio Marinho,
Muito limpinho,
Todo alegrinho,
Corria faceiro
Pro lado do mar.

Levava  canoas
Pra lá e pra cá.
Vestia  as cores do mar
No empurrão da maré,
Que o forçava  subir
Em vez de correr
Pro lado do mar.
Era só travessura
No seu movimento
De ir e voltar.

Quando vinha a enchente
Usava veste barrenta,
E saltava sobre  as margens,
Só mesmo para  assustar
A gente ribeira
Que espiava com medo
Dele tudo levar.

O rio Marinho seguia limpinho,
Levando canoas pra lá e pra cá.
Tinha  águas salobras pro lado do mar.
Mas quem tinha pés sujos
Podia nelas lavar.
Por ele  passavam barcos,
Canoeiros destemidos,
Sem medo de afrontar.

Havia peixes a nadar.
Uma tarrafa bem lançada
Garantia o jantar.

O rio Marinho
Era rio e era mar.

Hoje, o rio Marinho
Tão pobrezinho
Perdeu sua glória
De barcos levar
Para  lá e pra cá.
Como um velho vencido,
desfila  pesado,
 vestido de preto.
Carrega em seu leito
dejetos humanos,
Sapatos, chinelos
Vestidos rasgados,
Sofás destruídos,
Animais falecidos...
A tudo ele arrasta,
Com muita penúria
Pro lado do mar.

Cheira tão mal
Que ninguém se atreve
Nele pisar.

E quando a enxurrada
Lhe dá  novo  banho
O que leva vomita
Com boca enojada
Nas águas do mar.

O rio Marinho
Era rio e era mar.

JURACI DA SILVA MARTINS

Aracuri

 

Teu canto é guerra,
Defende a terra,
Que é ventre e é seio,
Que é berço e é pão.
É o canto da fauna
Em serestas vigias,
Para a ecologia
A pedir proteção.
Deixai que nas matas,
Cantem os pássaros,
E os peixes nas águas
Possam viver.
Deixem nos campos
Andarem as emas,
E entre os serrados
A vida nascer.
Que as gralhas azuis
E os patos –arminhos,
Teçam seus ninhos
Sem nada temer.
Que as aves cativas,
cortem os ares,
Sobre os jaguares
Andantes da paz.
Que o canto de todos
No meio ambiente,
Impeçam na terra
A vida morrer.
Que os passarinhos
Cantem a beleza
Da natureza
Em doação.

VICÊNCIA JAGUARIBE
Fortaleza/CE

O Vento e a Lua


Lá fora o vento assovia
Uma canção ao luar.
À lua reverencia.
Ela não quer escutar.

Olhando através do frio
Pela janela se vê
Vê-se a lua num navio.
Delírio, só pode ser.

Em meio às nuvens navega
Em águas muito serenas.
Pobre vento: ora sossega
Ora expõe as suas penas.

Mas a lua, indiferente,
Continua a navegar.
O barco vai sempre em frente
Até o abismo encontrar.

Escura nuvem o apaga
Nenhum olho o pode ver.
Do vento o assovio vaga
Vai saudar o alvorecer.

Nós também vemos fugir
Em um navio fantasma,
Sem sequer se despedir,
O amor que nos cegava.

Somos ventos que assoviam
Para a pessoa que amamos
Que nem sempre desconfia
Do quanto a idealizamos.

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Guimarães Rosa (Famigerado)

Narrado em primeira pessoa, Famigerado, conto que faz parte da obra Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, constitui-se num episódio cômico.

Nesse conto, podemos opor o poder da força, Damásio, ao poder da instrução, do conhecimento médico. Caso o médico tivesse revelado o sentido dicionarizado do termo “famigerado”, estaria, por certo, infligindo uma sentença de morte ao moço.

Em Famigerado, Guimarães Rosa tematiza a importância da linguagem. Seu conhecimento ou não determina as posições sociais.

Enredo

Um médico do interior [narrador da história] recebe a visita de quatro cavaleiros rudes do sertão. Seu líder, Damásio, conhecido assassino da região, quer que o doutor, pessoa letrada do lugar, o esclareça a respeito do significado da palavra “famigerado”, pois ouviu esta palavra de um moço do governo.

A pergunta é feita por Damásio, da seguinte maneira:

-Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... famílias-gerado? O conto encaminha-se para um anticlímax: o médico (narrador) depara-se com uma situação de tensão: um bandido feroz, Damásio Siqueiras, visita-o com a intenção de saber o significado da palavra “famigerado”. O facínora queria saber, portanto, se aquela palavra seria motivo para a desgraça ou para a paz. Temeroso de revelar a verdadeira intenção do homem do governo, o médico mente, pois teme a violência de Damásio contra o “moço do Governo” que assim o havia chamado.

O médico, ineficientemente (ou por insegurança), informa que o termo significa “inóxio”, “douto”. A verdade não fica clara. Damásio pede para que seja usada “fala de pobre”, de “em dia de semana”. Um pedido humilde. O narrador, pois, já detém poder da situação. Expõe-lhe toda a verdade. Informa que não é nome de ofensa. Ele explica então que “famigerado” quer dizer “célebre”, “notório”, “notável”.

O assassino, depois de tranquilizado com a resposta do médico, agradece e vai embora. Antes, porém, considera que: Não há como as grandezas machas de uma pessoa instruída.

O interessante é notar que há uma constante preocupação em descobrir o que existe por trás das palavras. Damásio quer ter posse desse conhecimento, pois suas ações dependem disso. O narrador quer saber por que essa curiosidade, com medo de que tenham feito intriga contra ele.

Uma leitura desatenta indicaria que o narrador censurou a verdade. De fato, “famigerado” quer dizer “famoso, importante, que merece respeito”. Mas boa parte das pessoas usa esse termo com o sentido de “maldito, desgraçado”. Há uma forte possibilidade de que essa tinha sido a intenção do moço do governo. E a fala final do narrador deixou nas entrelinhas, como uma parábola, uma estória, este último significado. Quando Damásio lhe pede para confirmar se não se constituiu ofensa, o interlocutor diz: Olhe: eu, com o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!... De fato, mesmo proprietário, estabelecido, culto, formado, naquela hora em que se sentia encurralado pelo medo de perder a vida, o que mais queria era ser tão desgraçado, tão maldito quanto Damásio.

Mas o bandido não estava preparado para essa verdade. Estava diante dele, mas não a enxergou. Estava ainda mergulhado nas trevas. Não pôde perceber o brilho do vaga-lume. É por isso que sai desmanchando-se de felicidade e alívio.

Fonte:
Passeiweb

segunda-feira, 10 de março de 2014

Cida Micossi (Mar de Versos)


CHUVA NO ASFALTO

Se há algo que me fascina
Que ainda tenho na retina
É a chuva caindo ao chão
Naquele asfalto molhado
Lá na Avenida São João.

Ah, eu me lembro ainda
Era muito pequenina
Mas o amor que recebi
Deixou marcas indeléveis
Felizmente positivas
Belas lembranças infindas.

Lembro-me: era carnaval
E o compadre de meu pai
Apinhou-nos em seu auto
Um pequeno caminhão...
... e voltam as recordações
refletidas no asfalto:

Sentíamos muito orgulho
Por residir na capital
E o passeio na cidade
Trazia felicidade
A quem muito pouco tinha

Mas isso hoje são lembranças
De um feliz tempo de criança.

ALMAS GÊMEAS

Alma gêmea, quem disse
Que tem de ser namorado,
Ou se deve ser casado
Pra acontecer tal feitiço?

Almas gêmeas somos nós
Que ao nos sentimos tão sós
Juntamos as solidões
Compartilhando emoções.

E que então ao percebermos
Não só dois, mas um trio sermos
Trigêmeas almas em harmonia:
Amigos, saúde e alegria!

O HINO NACIONAL
 

Canta a flâmula, que ondeia
Nos mastros de norte a sul,
Colorindo o nosso azul
Do céu desta grande aldeia.

Canta as matas, canta a vida,
A beleza e a grandeza
Desta pátria altaneira,
Deste povo hospitaleiro.

Representa a identidade,
O símbolo da civilidade
Que deve ser respeitado
E sempre comemorado.

Ouvi-lo longe da Pátria
É motivo de emoção,
De auto-estima e de saudade
De nosso imenso rincão.

A esta terra abençoada
Pacífica e gloriosa
Foi feito o mais belo hino
Do qual somos orgulhosos!

LOUCO?

Louco? Não!
Apenas bebi um pouco
Das águas da cachoeira,
Do orvalho sobre a flor.
Do veneno dos teus lábios
Sonhei morrer de amor

 Sobrevivo entre a fronteira
Da sanidade e da loucura
Faço versos – na procura
De ser feliz a vida inteira

ONZE HORAS
(Saudação à entrada da primavera)

 Pra quem conhece as onze horas
Não é difícil explicar
Seus caprichos, suas manhas
Nas manhãs a vicejar
Preguiçosas, sonolentas
Hora certa pra acordar
Nos darão a recompensa
Logo que o sol as beijar

 Pequeninas, tão singelas
De variado colorido
Elas se abrem em tapete
Multicor em meio ao verde
Espalhando-se viçosas
Do amarelo à cor de rosa

 Mas desde que o sol se põe
Até que amanheça o dia
As britânicas florzinhas
Privam-nos de sua companhia
E sempre no mesmo horário
Nossos olhos vão sorrir
Presenteados pela beleza
Das onze horas a se abrir.

SETEMBRO

 Quando setembro chegar
Em Descalvado quero estar
Lembrar dos tempos felizes
Da infância inocente e livre

 Jabuticabas no pé apanhar
Ao desfile cívico assistir
Na festa da padroeira divertir
Velhos amigos encontrar

 E assim matando saudades
De um tempo bom, sem maldade
Em Descalvado quero estar
Quando setembro chegar.

MÃE TERRA

Compacto planeta
De mais denso corpo
No espaço sideral
Grande parte coberta
Por um lençol d’água.
É o único local
No imenso Universo
Onde a Vida existe.

Este “Pálido Ponto Azul”*
Do espaço foi visto
Desde o Norte até o Sul

Deusa da fertilidade
Mãe que dá e tira,
Sustenta e possibilita
A ordem no mundo.

Nutre, mas devora
Os seus próprios filhos
Quando eles perecem.

Filhos esses hoje
Que sem consciência
Dela tudo tiram
Sujam-na e aviltam
Perfuram, alteram
Toda a sua essência

Suas placas tectônicas
Remexem-se atônitas
Mandando o recado
Através de sinais
Por muitos ignorados.

Mas ao seu poder
Nada se compara
Quando a ira irrompe:

Pela força d’água...
Por febris tremores...
Por lágrimas de fogo...
Bradando por Amor!

A MUITAS MÃOS

Na casa da farinha
O branco ouro
Não brota só da terra;
Brota do suor
Da dura lida.
As mãos não param:
Descascam, ralam...
A moenda abafa
Os sonhos, os desejos...
O doce embalo...

Não há tempo.
Calejada a alma
Que só se acalma
Quando se entrega ao sono.

Não mais o ouro
Do branco leite
Jorrado das negras mãos.

Ao senhor os louros!

Às mãos escravas
A dura certeza
Que a lida é dura
Ao romper do dia.

Fonte:
http://cidasonhosefantasias.zip.net/arch2010-04-25_2010-05-01.html

Cida Micossi

Aparecida de Lourdes Micossi Perez é natural de São Paulo, cresceu em Descalvado/SP e mora em Santos/SP. Casada e mãe de dois filhos, desde criança se dedicou à leitura e se encantou com a poesia.

Na adolescência arriscou alguns poemas, mas foi somente na maturidade que se propos a escrever textos simples, sem maiores pretensões, a não ser expressar as sensações.

Também desenvolveu o gosto pela fotografia e, sem conhecimento técnico, saiu com sua máquina a clicar situações que mexem com suas emoções. Juntou textos e fotos.

Professora de Português e Inglês, pós-graduada em Direito Educacional.

Participação com fotografias e poemas na Mostra dos Funcionários da Prefeitura Municipal de Cubatão - outubro/2007.

Coordenação e aplicação de Oficina de Poesia culminando com a publicação do livro de poemas produzidos pelos alunos da escola onde trabalha:

2008 Premiação – 3ª colocação no Concurso de Poesia do Grêmio Literário Castro Alves de Porto alegre/RS em abril 2009 com o poema “Sensações de Minas”.

Participação em Cirandas Poéticas na internet.

Participação em entidades culturais:
Confreira Fundadora, Presidente Seccional Santos/SP e 
Presidente Regional CAPPAZ (Confraria de Poetas e Artistas pela Paz) no estado de São Paulo.
Membro da Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande – SP.

Publicações:
1º Calendário Poético – 2009,
2º Calendário Poético – julho/2009 a junho/2010.
Realidade, sonhos e delírios. 

Participação na Antologia da Casa do Poeta em junho/2009.

Coordenadora e aplicadora - oficina de poesia no XVI Congresso Brasileiro de Poesia em Bento Gonçalves/RS para alunos das escolas públicas em outubro 2008.

Nilto Maciel (Minhas Leituras)

Sou apenas um leitor de poemas, contos e romances. Desde cedo, desde menino. O principal livro escolar, para mim, era o de português. Não a gramática, os exercícios, a História da Literatura, mas os poemas, contos e capítulos de romances. Eu os lia todos durante os primeiros dias do ano letivo. Um dos contos que mais me impressionaram, pela beleza rítmica das frases, pela poesia, foi “O suave milagre”, de Eça. Cheguei a decorá-lo. Eu tinha 13 anos, cursava a 1º série ginasial, correspondente hoje ao 5º ano do ensino fundamental. O conto assim começa: “Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades: – mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganin, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar”. Nesse tempo eu ainda não me afastara da Igreja Católica e das doces e luminosas margens da lagoa de Porangabussu. A descrença viria dois ou três anos depois. Quando troquei Eça por Engels. Não sei se o livro apresentava o conto na sua integralidade. Pois lembro muito mais da parte final: “A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos”.

Adolescente, cioso de ser também rebelde, descuidei-me dos estudos. Porém, lia tudo: as antologias, não somente aquelas de minha série escolar, jornais, revistas, almanaques. Lia poemas, contos, trechos de romances. Portugueses quase todos; alguns brasileiros. Nada dos modernistas ainda. Lia antes do dia da lição, com muita antecedência, por curiosidade e prazer. Enquanto ria da cara do professor de geografia, lia, com sisudez, trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos. Mais tarde, li os livros da pequena biblioteca de meu imrão Amadeu, que se dizia poeta e escrevia e copiava, diariamente, sonetos de poetas brasileiros. Todos falavam de amores não correspondidos. Num caderno grande, desses para comércio, de anotações mercantis. Um desses poemas se iniciava assim: “Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...” Muito mais tarde, encontrei-o em Juca Mulato, de Menotti Del Picchia.

            Fui me encantando mais e mais, a cada livro lido. Vieram outros lusitanos: Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano. Minha primeira leitura de livro parece ter sido Três Figuras: o Frade Poeta, o Padre Voador e o Frade Preceptor. Li-o durante um retiro no colégio dos salesianos, em setembro de 61. Convidado a conhecer a biblioteca do colégio e a retirar um livro para leitura, depois de alguns minutos de pesquisa, interessei-me pelas três figuras. Talvez por se tratar de um dos poucos livros mais ou menos profanos da pequena biblioteca.

            Em casa havia alguns livros. Um deles, Pussanga, contos de Peregrino Júnior. Lido este, folheei um romance obsceno, A Mulher do Caixeiro-Viajante, de autor desconhecido, certo Alcides Vaz. Livro recomendado para maiores de 18 anos. Puro erotismo. Deste período é também a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que me pareceu obscuro, sobretudo a primeira parte. Mesmo assim, não tive, em nenhum momento, vontade de desistir da leitura. A pequena biblioteca doméstica eu a devorei nos anos seguintes, até 1963.

            Em 1962 li, pela primeira vez, um romance, um grande romance: Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz. Contava 17 anos de idade e acabava de chegar a Fortaleza, pela segunda vez.

            Já preparado para leituras mais agudas, logo me aproximei de A Besta Humana, de Émile Zola. Durante e logo após a leitura, senti profunda repugnância pela nossa espécie. Então éramos aquilo? Causou-me verdadeira comoção. Pois eu me tinha acostumado aos românticos e me defrontava com um naturalista. Por muitos dias, o céu me pareceu mais escuro, sombrio, baixo, como se fosse chover muito, desabar tempestades duradouras. As ruas, de uma tristeza inexplicável; nas casas escondiam-se assassinos em potencial; as pessoas tramavam, em silêncio, bestialidades inomináveis. Permaneci doente por longo período. No entanto, outros livros me dariam um pouco de alegria, como Agulha em Palheiro e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

            Lida a pequena biblioteca doméstica, onde encontrar outros livros? Nas livrarias nem pensar, porque não dispunha de dinheiro. Eu deixava de merendar ou assistir a filmes para comprar livros. E, sem nenhuma orientação, comprava quase sempre bons livros. Adquiri, então, o gosto pelo livro velho, usado. Eu tinha sede de conhecimento, de leitura. Lia tudo o que via. Pedia livros por empréstimo. Mas não me bastavam.  Restavam-me as calçadas das ruas Guilherme Rocha e Liberato Barroso, onde camelôs vendiam livros usados, velhos, antigos, cheios de mofo, roídos de traças, sujos, páginas amarelecidas, rasgadas, anotadas. Alguns nem capas tinham mais. Havia livros de todos os gêneros, dos mais variados autores. Nenhum deles, porém, eu conhecia. Passava horas a folheá-los. Nada daqueles nomes das antologias escolares. Nada de Camões, Machado de Assis, Herculano, Alencar, Bilac e outros citados e analisados em sala de aula. Então quem seriam aqueles dos livros das calçadas? Seriam bons escritores? Valeria a pena ler aqueles livros tão antigos? Os nomes não me eram familiares, todos ingleses, franceses, alemães. Folheava um volume, lia um trecho, apanhava outro, espirrava, tanto era o pó acumulado em suas páginas ao longo dos anos. Depois de algum tempo, perguntava o preço de um volume grosso, capa vermelha, título curioso. E ia comprando e lendo romances góticos, novelas de cavalaria, contos fantásticos, misteriosos. Enquanto isso, me metia em lutas e leituras políticas. Vindo o golpe de 1964, dediquei-me em tempo integral à literatura. Entre outubro de 65 e setembro de 67, li dezenas de livros: O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; Joias do Conto Ídiche; Quem Perde Ganha, de Graham Greene; A Tragédia de Zilda, de Menotti Del Picchia; A Volta ao Mundo em 80 Dias; A Brasileira de Prazins; Sete Palmos de Terra; Iracema; Ubirajara; O Gaúcho; Senhora. Cinco ou seis anos depois, reli Iracema. Passaram-se mais dez anos para reler os dois primeiros de Alencar nesta relação e pela primeira vez conhecer O Guarani e O Sertanejo. Li também O Moço Loiro; Eurico, o Presbítero; O Vinagre e a Sede, de Sinval Sá, meu professor de português; Clara dos Anjos; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Memorial de Aires; Quincas Borba; As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos; A Mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo; Poemas, de Verlaine; Pensamentos, de Pascal; umas novelas do Marquês de Sade; Os Vegetarianos do Amor, de Pitigrilli; Contos Escolhidos, de Machado; Ascânio, de Alexandre Dumas; e outros. Lembro-me também de dois romances, em edições antigas, que mantive comigo durante muito tempo: A Última Encarnação de Vautrin, de Balzac, e A Fossa, de Alexandre Kuprin. Li também Cleo e Daniel, de Roberto Freire.

            Da biblioteca do colégio retirei, por empréstimo, grossos volumes de contos e romances, como a série “Maravilhas do conto moderno”: norte-americano, italiano, russo, brasileiro, fantástico, etc. Fascinou-me nesses livros a oportunidade de conhecer o melhor da literatura universal. Ora, em pouco tempo conheci Guimarães Rosa, D’Annunzio, Trilussa, Pitigrilli, Moravia, os russos, todos os pilares da ficção curta.

            Muitos e muitos livros lidos naqueles anos eu não lembro nem sequer os títulos. Não sei precisar quantos. Recordo, no entanto, de ter vendido mais de quinhentos volumes, todos lidos, a um comprador de livros velhos, talvez um daqueles camelôs da Rua Guilherme Rocha. Não gostava dos ficcionistas brasileiros, especialmen­te dos nordestinos. Nem de Machado e Alencar. Outros nunca consegui ler. Como Érico Veríssimo e Jorge Amado. De ambos devo ter li­do um ou dois livros apenas.

            Quando descobri Graciliano, li-o de uma vez. Mas já depois de 77. Estava em Brasília e queria “conhecer” o Nordeste. Nostalgia, talvez. Antes disso, devo ter lido apenas trechos dessa literatura em antologias. Sentia ojeriza por tudo quanto cheirasse a sertão, mato, interior. José Américo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego não passavam de contadores de histórias sertanejas. E eu queria escrever como Machado de Assis, uma prosa de ficção sem cheiro de mato, urbana, nacional, universal. Eu não conhecia a lição da aldeia e do universal ou não a compreendia. Queria personagens universais, atemporais, criaturas sem nenhuma semelhança comigo mesmo. Nada de românticos, naturalistas e realistas.

            A fase de leituras dos clássicos estrangeiros e brasileiros acabou cedo, talvez em 1980, embora desde os anos 1970 eu viesse lendo escritores contemporâneos. Julgando-me escritor feito, pouco escrevi depois de 1990. Passei a ler a pedido dos amigos ou escritores novos. Recebia livros quase que diariamente. E foram ficando para trás muitas e muitas obras fundamentais da literatura universal.


Fonte:
Nilto Maciel

Isabel Dias Neves (Fardo Florido)

Primeiro livro de poesia de Isabel Dias Neves, a Belinha, Fardo Florido, foi publicado em 1995.

O que faz a grandeza deste livro de poemas e torna muito especial o fazer poético de Belinha, é a sua ligação com a terra, o fio condutor do livro, tornando-a a mais autêntica representante dos cantores do Cerrado e uma das poucas (senão a primeira) poetisa do Tocantins, o Norte tão amado de onde veio, trazendo no coração essa bússola que aponta ininterruptamente para as suas raízes mais profundas.

Belinha já recebeu alguns importantes prêmios literários, o que garante a qualidade do seu trabalho de poeta exemplar que exercita a palavra com esmero. Demonstrando habilidade técnica, a poeta tira seus versos das moendas, dos moinhos loucos, amassando com os pés o barro das estrofes e enchendo nossas vidas dessas coisas principais e primeiras, paisagens tão esquecidas, como as madrugadas, as luas, rios, matas, as mangueiras, os pomares, os frutos, o plantio, o plantação, pássaros, gaivotas, ninhos: é “a mulher que planta” o encanto do seu canto de poesia.

Há, em Fardo florido, importantes registros históricos e sociológicos sobre as festas populares, o folclore, os usos e costumes dos povos do interior do Brasil, mais especialmente de Goiás e do Tocantins, “um povo que se abraça/ e só vive de promessa”, um povo cujo “suor de mãos calejadas/ dá comida pros romeiros”. Nossa poeta é corajosa quando propõe a beleza do verso ousado e profundamente verdadeiro: “Sentindo o cheiro de bosta de vaca”, que companheiro, igual, tem a mesma significação simbólica do “ouvindo o canto da fogo-apagou”- são os sentidos, o olfato, o ouvido, interpretando o mundo onírico das terras interioranas. A grande verdade é que a arte em Goiás é uma resistência cercada de bois e vacas por todos os lados. Obviamente, há muito estrume (aqui, sem conotação, por favor).

Nesse canto, quase que épico, na lírica de Belinha, não passaram despercebidas as diferenças sociais que desfilam com as crianças carregando enxadas e semeando o milho; a fome do pobre que morre roçando a terra e, fundamentalmente, “o suor do roceiro que se reparte entre aqueles que não roçam”. O poeta é o porta-voz do seu momento histórico e, mesmo não pretendendo realizar uma poesia engajada, a poeta nos mostra, de forma diluída pelos poemas, toda a problemática social que é profundamente dolorosa.

Fardo florido não é um grão que nasce, é um que renasce no coração da poeta que fez o seu plantio de sol e promete uma colheita farta. Isabel Dias Neves, a cantora da Gesta, a Terra, está colhendo o fruto sazonado da maturidade, “no reencontro (di)gesto/ da mulher com o seu chão”. Assim, este fardo que é florido torna-se leve e torna-se, principalmente, um livro que deve ser lido e dever ser amado.

Textos escolhidos

P(OMAR) DE NÓSPara Marcelina Dias Neves, minha mãe

É doce e vão esse pomar;
sombra feita,
flores fartas,
frutos gerados
sensualizam a boca.

Pomar que se almeja e conta
é o que se planta.

Sombra firme - reduzida,
flores novas - raras,
frutos fartos - racionados.
Tudo à mão - sem suor
nem invenção.

Pomar que se almeja e planta
é o que conta.

o trabalho com a terra
é um gesto de promessa:
molha a raiz com pranto e riso,
canta o plantio e a colheita,
sonha e arde a todo canto.

Pomar que se planta e conta
é o que se canta.

NOS PASSOS DE EVA

Rasgada a grossa veste,
brinca branco o algodão
nos dedos silenciosos
que lhe deliciam o âmago.

Batido, vira nuvem
e se deita no balaio,
ciente do novo corte
- o seu destino rodando.

Roda na roda ou no fuso;
faz-se infinito em fios.
O algodão que se fia
faz a maciez das redes.

Trançando rendas e rodas,
Eva semeia os sumos
e cria novos rostos.

Muda o mundo em silêncio
com o suor dos seus restos.

CHAMA

A chama que alimenta o passo
cassa o vôo na direção do eterno.

É inútil traçar o mundo
que não vai fundo na vida-morte
do amor. Todos dançam. Uns se entortam
na (di)gestão do doce e do acre - na aorta.

EXATO MISTÉRIO

A rachadura exorta
o canto e a aliança
que se deixam

e dilacera o manto
desse elo desvelado.

A racha é dura
e esmaece o gosto
desse laço
que foi denso
e misteriosamente ex(ato).


Fonte:
Cleber Toledo e Antônio Miranda. Disponível em Passeiweb

Eliana Jimenez (Participe do Blog Poesia em Trovas)

 
O blog "Poesia em trovas", onde publico a Trova-legenda, completou 100 mil acessos nesta semana. Para comemorar, vou incrementar a postagem com uma enquete, desta forma:

1) A publicação será feita da maneira costumeira, por ordem alfabética.

2) Somente os trovadores participantes terão direito a voto e podem mandar um e-mail, em até 2 dias após a publicação, informando qual foi a trova que mais agradou na postagem;

3) A trova que for mais votada figurará logo abaixo da imagem e as outras, por ordem alfabética, logo em seguida;

4) Se houver empate ou votação muito dividida, até três trovas poderão figurar abaixo da imagem.

5) A enquete já vai valer a partir da imagem atual (veja no blog) para envio da trova até 15/03/2014.

Aproveito para agradecer a todos os amigos trovadores pela participação, incentivo e principalmente pelo carinho que esse trabalho recebeu desde o início.

abraços

Eliana
 http://poesiaemtrovas.blogspot.com.br/

sábado, 8 de março de 2014

A Mulher em Versos


Deus, demonstrando poder,
quando a mulher engravida,
transforma a dor em prazer
na celebração da vida!
ADEMAR MACEDO
 

Da criação, a mulher,
deveras é obra prima.
Melhor é aquiescer
sem ela, a vida não rima…
ANA MARIA GAZZANEO

Terá, mulher, se quiseres,
o mundo todo a teus pés.
Porque o mundo é das mulheres,
que forem como tu és!
ANIS MURAD

Uma trova… um belo tema,
Pra dizer o que se quer;
Quando o poeta é bom, da gema,
Inspira-se…na mulher!
APOLLO TABORDA FRANÇA

Mulher é sonho, harmonia,
mistério, contradição,
sol e sombra, amor, poesia...
Tudo... e apenas, coração!
CAROLINA RAMOS
 

Mulher… Visão colorida
que no mundo a gente tem…
Só perfuma sua vida
se floresce para alguém.
DANIELA ESTANISLAU

Mãe, mulher, sempre presente
no cuidado e educação;
fértil terra onde a semente
frutifica em cidadão.
ELIANA RUIZ JIMENEZ

A família é sinfonia
e a mulher, sua regente,
que com amor e harmonia
orquestra a vida da gente.
ELIANA RUIZ JIMENEZ
 

Ficou pronta a criação,
sem um defeito sequer,
e atingiu a perfeição
quando Deus fez a mulher.
EVA REIS

A mulher – pura beleza –,
de tez alva, igual à lua,
no universo é a riqueza
da minha alma que flutua.
FÁBIO SIQUEIRA DO AMARAL

A mulher que a gente ama,
para nós sempre é a mais bela,
pois o coração conclama
não ver os defeitos dela!…
HARLEY CLÓVIS STOCCHERO

Ser guia da Humanidade,
que busca os rumos da paz,
do amor, da felicidade;
só a Mulher será capaz.
HÉLICA CRUZ DE O. SOUZA

À mulher foi concedido
o dom da maternidade,
e no filho concebido,
recria a humanidade.
HENRIETTE EFFENBERGER

Minha saudade é defeito
que outra saudade requer,
pois, sempre que abro o meu peito,
encontro a mesma mulher…
HÉRON PATRÍCIO

Mulher empreendedora,
mulher que não desanima,
é mulher batalhadora.
Bem merece nossa estima!
JOAREZ DE OLIVEIRA PRETO

Mulher é sempre um mistério,
não se sabe o seu segredo;
brincando ela fala sério,
falando sério, dá medo.
JOSÉ BARROS VASCONCELOS

Sabendo que o homem criado
teria, aqui, muito espinho,
Deus por tanto preocupado,
pôs-lhe a Mulher no caminho!
JOSÉ DE VASCONCELOS PADRÃO

Minha mulher reza tanto
aos pés de Nosso Senhor,
que eu vou precisar ser santo
pra merecer seu amor.
JOSÉ LUCAS DE BARROS

Mulher-Mãe, mais bela trova
que o mundo pôde compor!
Nela, o Senhor nos comprova
como é grande o seu Amor!
JOSÉ JACINTO M. GODOY

Diz-se que em uma mulher
não se bate nem com flor.
Mate-a porém, se puder,
com muitos beijos de amor….
JOSÉ SOLHA

Eu queria em tua vida,
não ser “bom” ou “mal-me-quer”
ser somente a flor querida
que me faz sentir Mulher.
JOSEFA MORAES RODRIGUES

Ninguém por certo imagina,
por um momento sequer,
a beleza que há na sina
da arte de ser Mulher!
JOSEFA MORAES RODRIGUES

Ser Mulher é ser divina,
é ter perfume de flor ;
ser adulta e ser menina,
é ser mãe e ser amor.
JOSEFA MORAES RODRIGUES

Alma o mundo não teria
nem teria amor sequer ;
mas Deus criou a poesia
e concebeu a Mulher.
JUDITH COELHO MACIEL

Para a mulher, só um dia?
Àquela que traz no ventre,
sempre com tanta alegria,
dando ao futuro, a semente?
LEDA MONTANARI LEME

- Formem coroa de glória,
estrelas do Pavilhão,
sobre a Mulher que, na História,
aboliu a escravidão!
LÚCIA VITÓRIA AVELAR

Mulher, “Imagem de Deus”,
graças e dons aplicando,
para os Céus e para os seus,
o Mundo está elevando!
LÚCIA VITÓRIA AVELAR

Ao teu prazer eu me entrego
- seja lá o que quiseres –
pois te escolhi, eu não nego,
entre todas as mulheres.
LUIZ CARLOS ABRITTA

- Uma mulher de verdade,
Traduz sentido profundo:
- No coração tem bondade,
- Nas mãos, as rédeas do mundo!
LYRA FERNANDINO

Papel da Mulher no mundo,
é ser forte, verdadeira! …
Amar com amor profundo,
ser do homem companheira!
LYRA FERNANDINO

Entre os sexos, igualdade
não existe, pensem bem.
O dom da maternidade
somente as mulheres têm.
LYRSS CABRAL BUOSO

A mulher traduz ternura,
doação, vida e amor;
colabora com doçura
com a obra do Criador.
MARINA VALENTE

Ele mudou a estrutura
no amor que o Mundo requer;
sendo Deus, se fez criatura,
no ventre de uma Mulher!
MARIZA DA C. PEREIRA

A mulher apaixonada,
quando recebe uma flor,
fica logo deslumbrada,
achando que é amor.
MYRTHES NEUSALI SPINA DE MORAES

No Céu, a monotonia
de um Adão sem “bem-me-quer”
era preciso alegria…
e assim surgiu a Mulher!
NANCI R. ZURMELY

Da fêmea o maior tributo,
sublime e grande mister,
é gerar em si o fruto
que a torna Mãe e Mulher.
NANCI R. ZURMELY

Como se faz a Mulher?
- Muita pimenta com mel
e tudo de bem que houver,
mais um pedaço do Céu!
NANCI R. ZURMELY

Ó Mulher, celebridade
- filha, mãe, mulher, madrinha -
já nasceste Majestade
para ser nossa Rainha!
NEI GARCEZ

A mulher é um ser sublime,
a fonte de inspiração,
sopro de luz que exprime
o auge da criação.
NORBERTO DE MORAES ALVES

Sobre mulher não discutam,
seus impulsos não se medem:
- As mais fracas também lutam…
- As mais fortes também cedem…!
NYDIA YAGGI MARTINS

Mulher de recursos fartos!
Como é que está impenitente,
tendo no corpo dois quartos,
dá pousada a tanta gente?
OLAVO BILAC

Rosa em broto, rosa rubra,
flor de todo o meu jardim,
não há cravo que descubra
donde vem mulher assim.
OLIVALDO JUNIOR

Numa estrela matutina,
num brilhante malmequer,
vejo os raios da menina
desfolharem-se em mulher.
OLIVALDO JUNIOR

Minha mãe, mulher de Minas,
tem nas minas do viver
todo o encanto das meninas
que se fazem renascer.
OLIVALDO JUNIOR

Se não sou mulher rendeira,
sou eleita mulher forte,
sempre chamada guerreira
que luta para ter sorte.
SÍLVIA DE ARAÚJO MOTTA
 

Quando Deus fez a mulher,
de “presente” ao homem deu.
Acredite quem quiser:
o homem não mereceu!
VOLPONE DE SOUZA
 

Englobando a criação
do que Deus aqui deixou,
é a mulher confirmação
de quanto ele caprichou.
WADAD NAIEF KATTAR

Noite alta, Lua cheia
vencendo sombra qualquer -
onde o bom senso se alteia
há presença da mulher!
WAGNER MARQUES LOPES