quarta-feira, 19 de março de 2014

Pedro Du Bois (Ondas de Poemas) II

CONTATO

antenas
      ouvidos atentos rastreiam
      universos no conhecido
      espaço de quase nada

procuram seres
               que se comuniquem
                                  conosco

estamos aqui
e queremos entender vocês

não há resposta
           além das ondas
           regulares de rádio

estática
na pulsação das estrelas
e nas estradas estelares

a preocupação do humano egoísmo
preso em considerações terrenas
no esquecer o principal: sermos
merecedores da resposta
                e do contato

FERRO
 

no trabalho os homens
       usam suas forças
                        habilidades
malham o ferro
cortam o ferro
fazem com o ferro armações
do esqueleto posto em pé
entre tábuas e pregos

concretada sustentação

                      o prédio
                   o vento e a luz
                o sombreamento

o ferro estaqueado pelo homem
introduz futuras paisagens
fosse nova a área oferecida
pela tragédia descortinada

vista e cansaço na prisão
                        reconfortante dos anos

homens trabalham rápidos
com suas máquinas de cortar o ferro
                                   entortar o ferro
                                   dar forma à disforme
            montanha de onde o ferro é retirado.

CAPAZ

Capaz de irradiar
o fato no sacrilégio
do acontecimento em lance
rápido de ataque. A sistematização
da defesa no entorno da praça. O contorno
do pássaro em ares enjaulado. Imprimir
no verso o movimento lento das parábolas.
Imprimir no selo a marca da passagem.

Ter na capacidade adjetivada
do referendo o dogma não acontecido.

ANO NOVO
 

Fosse o bem-vindo ano da fartura
dos deuses acomodados em abóbadas
silenciosas e calmas. Tempos de calmaria
e sossego sem doenças e telúricos cantos
dos que sofrem os momentos

o vento forçando a janela
a vidraça impedindo a vista: olhos
descansados do trabalho. O início
no recomeço da solidez repetida
dos sapatos sobre o piso. O ano
esperado nas bodas entre o bem
e o sacrifício exigido na ressurreição
das ideias atordoadas em estrondos

fosse chegado o tempo do reencontro
na descontinuada forma de não irmos
                                               embora.

TRADUZIR-ME

a tradução no ouvido atento
dos gestos e das falas
                      cala a palavra
mal dita
       - seja a minha -

outra a sequência
em que as mãos revelam a tese
da solidão sofrida

     não esqueço a leitura
                           amena
das flores em açucenas
          o olhar moreno dos fogos
e das pedras o estilhaço
sobre a vidraça

          repito a noite
de prazeres na linguagem
que acalma o palavrão nas lutas
em dias de raivas
              e amores

traduzido no espírito de conta-gotas
nas frias manhãs de calendários
incompreendidos - sem o tempo
                                    permaneço
na plenitude da palavra significante
das horas cheias em que alego
a confidência e me sufoco.

NASCER

Conhece do mar a correnteza
a força a cor e as ondas
restabelece com o ar relação de força
ao planar o objeto e contar o espaço
em velocidade no desfazer a terra
em pedaços loteados nos alicerces
das casas altas: reanima o corpo
sob o estupor da música
e se deixa ficar: a vida é a mesma
                    desde quando gerado.

ETERNO
 

O corpo desaparece
na imaterialidade
que conhecemos
como o todo

tolo espírito
não freado
na saudade
do diariamente
consumido

sem o corpo
          - posto abaixo -
na lembrança e impossibilidade
do futuro: não há futuro
                na eternidade.

VIDAS

Descendente da geração
perdida em experimentos
de foscas luzes
                prisões primeiras
em esgarçados tecidos libertários
de ouvidos atentos aos chamados
na concretização dos gritos
de descoberta: a igualdade
se faz ao largo
e águas cobrem a face
no naufrágio provocado
em defesa. O rito permanece
no toque sutil do locutor
esportivo: jogo apresentado
ao transeunte distraído
em regras que resgatam o barco
na liberdade tardia e inconsequente
do preço cobrado na passagem.

IMENSIDÃO

as dúvidas dos antepassados
complexas em desdobramentos
e no aprofundamento da ignorância
com que nos deparamos pelo tempo

ao longe a vista alcança calores
em que a imagem é traduzida
e se faz bela e conhecida
com a imaginamos

não é a resposta e a aposta
continua aberta ao desígnio
da imaginação abstrata
retratada em idiossincrasias

a vontade retorna ao tema
e o teorema se faz na imensidão
espacial que nos seduz

Fonte:
O Autor

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) V, final

Fazia escuro lá dentro. Rikki não sabia se o buraco se alargava adiante, de modo a permitir que Nagaína pudesse voltar-se e desferir novo bote. Não se preocupou com isso. Manteve-se firme na mordida, com as pernas afastadas para melhor frear-se naquele declive escuro e úmido. Quando lá do seu galho Darzee viu que os capins a boca da toca haviam cessado de agitar-se, murmurou:

- Foi-se Rikki-tikki! Temos que lhe cantar um canto fúnebre... A valente mangustinha morreu!... Nagaína já a matou, lá no fundo da terra.

E pôs-se a cantar a mais triste das canções, improvisada com as notas mais sentidas da sua comoção. Súbito, quando estava justamente no trecho mais tocante, os capins estremeceram de novo e Rikk-tikki foi reaparecendo suja de terra, primeiro a cauda, depois uma perna e outra, finalmente o corpo inteiro. Parou e lambeu os bigodes. Darzee deu um pio de surpresa, enquanto Rikki-tikki sacudia-se e espirrava.

- Está tudo acabado, disse a mangusta. A viúva não nos incomodará mais.

As formigas ruivas que moram nos caules das plantinhas ouviram essas palavras e trataram de descer em longas filas para verificar se era certo.

Rikki-tikki encolheu-se sobre a relva onde se achava e dormiu - dormiu até bem tarde, porque se sentia cansadinha do duro trabalho realizado.

- Agora, murmurou ela ao despertar, vou para casa. Darzee, conte o caso ao Caldeireiro, que ele espalhará por todo o jardim a notícia da morte de Nagaína.

O Caldeireiro é um pássaro que dá gritinhos absolutamente semelhantes a pancada do martelo numa vasilha de cobre; e faz isso porque é o arauto dos jardins indianos e o espalhador oficial de notícias.

Quando Rikki-tikki ia voltando para casa, ouviu o aviso de "atenção" do Caldeireiro, composto de notas semelhantes a pancadinhas num gongo – "Ding-dong-tock! Nag já não existe! Ding-dong-tock! Nagaína já não existe! Ding-dong-tock!".

A esse sinal todos os pássaros do jardim puseram-se a cantar, e os sapos fizeram coro, porque Nag e Nagaína viviam de comer sapos e passarinhos.

Ao aproximar-se da casa, Rikki-tikki viu saírem ao seu encontro Teddy, a mãe de Teddy (muito pálida ainda, pois havia desmaiado), e logo atrás o pai de Teddy, todos muito comovidos de ternura e gratidão. Choravam. Nessa noite a mangustinha comeu tudo quanto lhe ofereceram, comeu até não poder mais, e foi para a cama sobre o ombro do menino. Quando a mamãe apareceu no quarto para dar ao filho uma última vista d'olhos, viu a mangustinha quietinha, já livre das inquietações da véspera. Dormia.

- Parece incrível, disse a boa senhora ao marido, mas ela nos salvou a vida a todos!...

Rikki despertou de sobressalto, porque as mangustas têm o sono levíssimo.

- Oh, é a mãe de Teddy!  - exclamou reconhecendo-a. Não se inquiete mais, mulher. Todas as cobras foram mortas e, se aparecer mais alguma, aqui estou eu de atalaia.

Rikki-tikki tinha motivos para ficar cheia de si; mas não se encheu de si, não. Limitou-se a guardar o jardim, qual uma verdadeira mangusta – mangusta da ponta do focinho a ponta da cauda - e nunca mais nenhuma cobra ousou enfiar a cabeça para dentro do muro.

Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

Machado de Assis (A Melhor das Noivas)

O sorriso dos velhos é porventura uma das coisas mais adoráveis do mundo. Não o era porém o de João Barbosa no último dia de setembro de 1868, riso alvar e grotesco, riso sem pureza nem dignidade; riso de homem de setenta e três anos que pensa em contrair segundas núpcias. Nisso pensava aquele velho, aliás honesto e bom; disso vivia desde algumas horas antes. Eram oito da noite: ele entrara em casa com o mencionado riso nos lábios.

— Muito alegre vem hoje o senhor! — Sim? — Viu passarinho verde? — Verde não, D. Joana, mas branco, um branco de leite, puro e de encher o olho, como os quitutes que você me manda preparar às vezes.

— Querem ver que é...

— Isso mesmo, D. Joana.

— Isso quê? João Barbosa não respondeu; lambeu os beiços, piscou os olhos, e deixou-se cair no canapé. A luz do candelabro bateu-lhe em cheio no rosto, que parecia uma mistura de Saturno e sátiro. João Barbosa desabotoou a sobrecasaca e deu saída a um suspiro, aparentemente o último que lhe ficara de outros tempos. Era triste vê-lo; era cruel adivinhá-lo. D. Joana não o adivinhou.

Esta D. Joana era uma senhora de quarenta e oito anos, rija e maciça, que durante dez anos dava ao mundo o espetáculo de um grande desprezo da opinião. Contratada para tomar conta da casa de João Barbosa, logo depois de enviuvar, entrou ali em luta com os parentes do velho, que eram dois, os quais fizeram tudo para excluí-la sem conseguirem nada. Os dois parentes, os vizinhos, finalmente os conhecidos criam firmemente que D.

Joana aceitara de João Barbosa uma posição equívoca, embora lucrativa. Era calúnia; D.

Joana sabia o que diziam dela, e não arredava pé. A razão era que, posto não transpusesse uma linha das fronteiras estabelecidas no contrato verbal que precedeu a sua entrada ali, contudo ela esperava ser contemplada nas últimas disposições de João Barbosa; e valia a pena, em seu entender, afrontar os ditos do mundo para receber no fim de alguns anos uma dúzia de apólices ou uma casa ou alguma coisa equivalente.

Verdade é que o legado, se fosse de certa consistência, podia confirmar as suspeitas da sociedade; D. Joana, entretanto, professava a máxima extremamente salutar de que o essencial é andar-se quente, embora os outros se riam.

Riam-se os outros, mas de cólera, e alguns de inveja. João Barbosa, antigo magistrado, herdara de seu pai e de um tio quatro ou cinco fazendas, que transferiu a outros, convertendo seus cabedais em títulos do governo e vários prédios. Fê-lo logo depois de viúvo, e passou a residir na corte definitivamente. Perdendo um filho que tinha, achou-se quase só; quase, porque ainda lhe restavam dois sobrinhos, que o rodeavam de muitas e variadas atenções; João Barbosa suspeitava que os dois sobrinhos estimavam ainda mais as apólices do que a ele e recusou todas as ofertas que lhe faziam para aceitar-lhes casa.

Um dia lembrou-se de inserir nos jornais um anúncio declarando precisar de uma senhora de certa idade, morigerada, que quisesse tomar conta da casa de um homem viúvo. D.

Joana tinha apenas trinta e oito anos; confessou-lhe quarenta e quatro, e tomou posse do cargo. Os sobrinhos, quando souberam disto, apresentaram a João Barbosa toda a sorte de considerações que podem nascer no cérebro de herdeiros em ocasião de perigo. O velho ouviu cerca de oito a dez tomos de tais considerações, mas ateve-se à primeira ideia, e os sobrinhos não tiveram outro remédio mais que aceitar a situação.

D. Joana nunca se atrevera a desejar outra coisa mais que ser contemplada no testamento de João Barbosa; mas isso desejava-o ardentemente. A melhor das mães não tem no coração mais soma de ternura do que ela mostrava ter para servir e cuidar do opulento septuagenário. Ela cuidava do café matinal, escolhia as diversões, lia-lhe os jornais, contava-lhe as anedotas do quarteirão, tomava-lhe ponto às meias, inventava guisados que melhor pudessem ajudá-lo a carregar a cruz da vida. Conscienciosa e leal, não lhe dava alimentação debilitante; pelo contrário punha especial empenho em que lhe não faltasse nunca o filé sanguento e o bom cálice de Porto. Um casal não viveria mais unido.

Quando João Barbosa adoecia, D. Joana era tudo; mãe, esposa, irmã, enfermeira; às vezes era médico. Deus me perdoe! Parece que chegaria a ser padre, se ele viesse repentinamente a carecer do ministério espiritual. O que ela fazia nessas ocasiões pediria um volume, e eu disponho de poucas páginas. Pode-se dizer por honra da humanidade que o benefício não caía em terreno estéril. João Barbosa agradeceu-lhe os cuidados não só com boas palavras, mas também bons vestidos ou boas jóias. D. Joana, quando ele lhe apresentava esses agradecimentos palpáveis, ficava envergonhada e recusava, mas o velho insistia tanto, que era falta de polidez recusar.

Para torná-la mais completa e necessária à casa, D. Joana não adoecia nunca; não padecia de nervos, nem de enxaqueca, nem de coisa nenhuma; era uma mulher de ferro.

Acordava com a aurora e punha logo os escravos a pé; inspecionava tudo, ordenava tudo, dirigia tudo. João Barbosa não tinha outro cuidado mais que viver. Os dois sobrinhos tentaram alguma vez separar da casa uma mulher que eles temiam pela influência que já tinha e pelo desenlace possível de semelhante situação. Iam levar os boatos da rua aos ouvidos do tio.

— Dizem isso? perguntava este.

— Sim, senhor, dizem isso, e não parece bonito, na sua idade, estar exposto a...

— A coisa nenhuma, interrompia.

— Nenhuma! — Ou a pouca coisa. Dizem que eu nutro certa ordem de afetos por aquela santa mulher! Não é verdade, mas não seria impossível, e sobretudo não era feio.

Esta era a resposta de João Barbosa. Um dos sobrinhos, vendo que nada alcançava, resolvera desligar seus interesses dos do outro, e adotou o plano de aprovar o procedimento do velho, louvando-lhe as virtudes de D. Joana e rodeando-a de seu respeito, que a princípio arrastou a própria caseira. O plano teve algum efeito, porque João Barbosa francamente lhe declarou que ele não era tão ingrato como o outro.

— Ingrato, eu? seria um monstro, respondeu o sobrinho José com um gesto de indignação mal contida.

Tal era a situação respectiva entre João Barbosa e D. Joana, quando na referida noite de setembro entrou aquele em casa, com cara de quem tinha visto passarinho verde. D.

Joana tinha dito, por brinco: — Querem ver que é...

Ao que ele respondeu: — Isso mesmo.

— Isso mesmo, quê? repetiu D. Joana daí a alguns minutos.

— Isso que a senhora pensou.

— Mas eu não pensei nada — Pois fez mal, D. Joana.

— Mas então...

— D. Joana, dê suas ordens para o chá D. Joana obedeceu um pouco magoada. Era a primeira vez que João Barbosa lhe negava uma confidência. Ao mesmo tempo que isso a magoava, fazia-a suspeitosa; tratava-se talvez de alguma que viria prejudicá-la.

Servindo o chá, depois que João Barbosa se despira, apressou-se a caseira, na forma de costume, a encher-lhe a xícara, a escolher-lhe as fatias mais tenras, a abrir-lhe o guardanapo, com a mesma solicitude de dez anos. Haveria porém uma sombra de acanhamento entre ambos, e a palestra foi menos seguida e menos alegre que nas outras noites.

Durante os primeiros dias de outubro, João Barbosa trazia o mesmo ar singular, que tanto impressionara a caseira. Ele ria a miúdo, ria para si, ia duas vezes à rua, acordava mais cedo, falava de várias alterações em casa. D. Joana começara a suspeitar a causa verdadeira daquela mudança. Gelou-se-lhe o sangue e o terror se apoderou de seu espírito. Duas vezes procurou encaminhar a conversa ao ponto essencial, mas João Barbosa andava tão fora de si que não ouvia sequer o que ela dizia. Ao cabo de quinze dias, concluído o almoço, João Barbosa disse-lhe que a acompanhasse ao gabinete.

— É agora! pensou ela; vou saber de que se trata.

Passou ao gabinete.

Ali chegando, sentou-se João Barbosa e disse a D. Joana que fizesse o mesmo. Era conveniente; as pernas da boa mulher tremiam como varas.

— Vou dar-lhe a maior prova de estima, disse o septuagenário.

D. Joana curvou-se.

— Está aqui em casa há dez anos...

— Que me parecem dez meses.

— Obrigado, D. Joana! Há dez anos que eu tive a boa ideia de procurar uma pessoa que me tratasse da casa, e a boa fortuna de encontrar na senhora a mais consumada...

— Falemos de outra coisa! — Sou justo; devo ser justo.

— Adiante.

— Louvo-lhe a modéstia; é o belo realce de suas nobres virtudes.

— Vou-me embora.

— Não, não vá; ouça o resto. Está contente comigo? — Se estou contente! Onde poderia achar-me melhor? O senhor tem sido para mim um pai...

— Um pai?... interrompeu João Barbosa fazendo uma careta; falemos de outra coisa.

Saiba D. Joana que não a quero mais deixar.

— Quem pensa nisso? — Ninguém; mas eu devia dizê-lo. Não a quero deixar, estará a senhora disposta a fazer o mesmo? D. Joana teve uma vertigem, um sonho, um relance do Paraíso; ela viu ao longe um padre, um altar, dois noivos, uma escritura, um testamento, uma infinidade de coisas agradáveis e quase sublimes.

— Se estou disposta! exclamou ela. Quem se lembraria de dizer o contrário? Estou disposta a acabar aqui os meus dias; mas devo dizer que a ideia de uma aliança... sim...

este casamento...

— O casamento há de fazer-se! interrompeu João Barbosa batendo uma palmada no joelho. Parece-lhe mau? — Oh! não... mas, seus sobrinhos...

— Meus sobrinhos são dois capadócios, de quem não faço caso.

D. Joana não contestou essa opinião de João Barbosa, e este, serenado o ânimo, readquiriu o sorriso de bem-aventurança que, durante as duas últimas semanas, o distinguia do resto dos mortais. D. Joana não se atrevia a olhar para ele e brincava com as pontas do mantelete que trazia. Correram assim dois ou três minutos.

— Pois é o que lhe digo, continuou João Barbosa, o casamento há de fazer-se. Sou maior, não devo satisfação a ninguém.

— Lá isso é verdade.

— Mas, ainda que as devesse, poderia eu hesitar à vista... oh! à vista da incomparável graça daquela... vá lá.. de D. Lucinda? Se um condor, segurando D. Joana em suas garras possantes, subisse com ela até perto do sol, de lá a despenhasse à terra, menor seria a queda do que a que lhe produziu a última palavra de João Barbosa. A razão da queda não era, na verdade, aceitável, porquanto nem ela até então sonhara para si a honra de desposar o amo, nem este, nas poucas palavras que lhe dissera antes, lhe fizera crer claramente tal coisa. Mas o demônio da cobiça produz maravilhas dessas, e a imaginação da caseira via as coisas mais longe de que elas podiam ir. Creu um instante que o opulento septuagenário a destinava para sua esposa, e forjou logo um mundo de esperanças e realidades que o sopro de uma só palavra dissolveu e dispersou no ar.

— Lucinda! repetiu ela quando pôde haver de novo o uso da voz. Quem é essa D.

Lucinda? — Um dos anjos do céu enviado pelo Senhor, a fim de fazer a minha felicidade na terra.

— Está caçoando! disse D. Joana atando-se a um fragmento de esperança.

— Quem dera que fosse caçoada! replicou João Barbosa. Se tal fosse, continuaria eu a viver tranqüilo, sem conhecer a suprema ventura, é certo, mas também sem padecer abalos de coração...

— Então é certo... — Certíssimo.

D. Joana estava pálida.

João Barbosa continuou: — Não pense que é alguma menina de quinze anos; é uma senhora feita; tem seus trinta e dois feitos; é viúva; boa família...

O panegírico da noiva continuou, mas D. Joana já não ouvia nada. posto nunca meditasse em fazer-se mulher de João Barbosa via claramente que a resolução deste viria prejudicá-la: nada disse e ficou triste. O septuagenário, quando expandiu toda a alma em elogios à pessoa que escolhera para ocupar o lugar da esposa morta há tão longos anos, reparou na tristeza de D. Joana e apressou-se a animá-la.

— Que tristeza é essa, D. Joana? disse ele. Isto não altera nada a sua posição. Eu já agora não a deixo; há de ter aqui a sua casa até que Deus a leve para si.

— Quem sabe? suspirou ela.

João Barbosa fez-lhe os seus mais vivos protestos, e tratou de vestir-se para sair. Saiu, e dirigiu-se da Rua da Ajuda, onde morava, para a dos Arcos, onde morava a dama de seus pensamentos, futura esposa e dona de sua casa.

D. Lucinda G... tinha trinta e quatro anos para trinta e seis, mas parecia ter mais, tão severo era o rosto, e tão de matrona os modos. Mas a gravidade ocultava um grande trabalho interior, uma luta dos meios que eram escassos, com os desejos, que eram infinitos.

Viúva desde os vinte e oito anos, de um oficial de marinha, com quem se casara aos dezessete para fazer a vontade aos pais, D. Lucinda não vivera nunca segundo as ambições secretas de seu espírito. Ela amava a vida suntuosa, e apenas tinha com que passar modestamente; cobiçava as grandezas sociais e teve de contentar-se com uma posição medíocre. Tinha alguns parentes, cuja posição e meios eram iguais aos seus, e não podiam portanto dar-lhe quanto ela desejava. Vivia sem esperança nem consolação.

Um dia, porém, surgiu no horizonte a vela salvadora de João Barbosa. Apresentado à viúva do oficial de marinha, em uma loja da Rua do Ouvidor, ficou tão cativo de suas maneiras e das graças que lhe sobreviviam, tão cativo que pediu a honra de travar relações mais estreitas. D. Lucinda era mulher, isto é, adivinhou o que se passara no coração do septuagenário, antes mesmo que este desse acordo de si. Uma esperança iluminou o coração da viúva; aceitou-a como um presente do céu.

Tal foi a origem do amor de João Barbosa.

Rápido foi o namoro, se namoro podia haver entre os dois viúvos. João Barbosa, apesar de seus cabedais, que o faziam noivo singularmente aceitável, não se atrevia a dizer à dama de seus pensamentos tudo o que lhe tumultuava no coração.

Ela ajudou-o.

Um dia, achando-se ele embebido a olhar para ela, D. Lucinda perguntou-lhe graciosamente se nunca a tinha visto.

— Vi-a há muito.

— Como assim? — Não sei... balbuciou João Barbosa.

D. Lucinda suspirou.

João Barbosa suspirou também.

No dia seguinte, a viúva disse a João Barbosa que dentro de pouco tempo se despediria dele. João Barbosa pensou cair da cadeira abaixo.

— Retira-se da corte? — Vou para o Norte.

— Tem lá parentes? — Um.

João Barbosa refletiu alguns instantes. Ela espreitou a reflexão com uma curiosidade de cão rafeiro.

— Não há de ir! exclamou o velho daí a pouco.

— Não? — Não.

— Como assim? João Barbosa abafou uma pontada reumática, ergueu-se, curvou-se diante de D. Lucinda e pediu-lhe a mão. A viúva não corou; mas, posto esperasse aquilo mesmo, estremeceu de júbilo.

— Que me responde? perguntou ele.

— Recuso.

— Recusa! — Oh! com muita dor do meu coração, mas recuso! João Barbosa tornou a sentar-se; estava pálido.

— Não é possível! disse ele.

— Mas por quê? — Por que... por que, infelizmente, o senhor é rico.

— Que tem? — Seus parentes dirão que eu lhe armei uma cilada para enriquecer...

— Meus parentes! Dois biltres, que não valem a mínima atenção! Que tem que digam isso? — Tem tudo. Além disso...

— Que mais? — Tenho parentes meus, que não hão de levar a bem este casamento; dirão a mesma coisa, e eu ficarei... Não falemos em semelhante coisa! João Barbosa estava aflito e ao mesmo tempo dominado pela elevação de sentimentos da interessante viúva. O que ele então esperdiçou em eloquência e raciocínio encheria meia biblioteca; lembrou-lhe tudo: a superioridade de ambos, sua independência, o desprezo que mereciam as opiniões do mundo, sobretudo as opiniões dos interessados; finalmente, pintou-lhe o estado de seu coração. Este último argumento pareceu enternecer a viúva.

— Não sou moço, dizia ele, mas a mocidade...

— A mocidade não está na certidão de batismo, acudiu filosoficamente D. Lucinda, está no sentimento, que é tudo; há moços decrépitos, e homens maduros eternamente jovens.

— Isso, isso...

— Mas...

— Mas, há de ceder! Eu lho peço; unamo-nos e deixemos falar os invejosos! D. Lucinda resistiu pouco mais. O casamento foi tratado entre os dois, convencionando-se que se verificaria o mais cedo possível.

João Barbosa era homem digno de apreço; não fazia as coisas por metade. Quis arranjar as coisas de modo que os dois sobrinhos nada tivessem do que ele deixasse quando viesse a morrer, se tal desastre tinha de acontecer — coisa de que o velho não estava muito convencido.

Tal era a situação.

João Barbosa fez a visita costumada à interessante noiva. Era matinal demais; D.

Lucinda, porém, não podia dizer nada que viesse a desagradar a um homem que tão galhardamente se mostrava com ela.

A visita nunca ia além de duas horas; era passada em coisas insignificantes, entremeada de suspiros do noivo, e muita faceirice dela.

— O que me estava reservado nestas alturas! dizia João Barbosa ao sair de lá.

Naquele dia, logo que ele saiu de casa, D. Joana tratou de examinar friamente a situação.

Não podia haver pior para ela. Era claro que, embora João Barbosa não a despedisse logo, seria compelido a fazê-lo pela mulher nos primeiros dias do casamento, ou talvez antes. Por outro lado, desde que ele devesse carinhos a alguém mais que não a ela somente, sua gratidão viria a diminuir muito, e com a gratidão o legado provável.

Era preciso achar um remédio.

Qual? Nisso gastou D. Joana toda a manhã sem achar solução nenhuma, ao menos solução que prestasse. Pensou em várias coisas, todas impraticáveis ou arriscadas e terríveis para ela.

Quando João Barbosa voltou para casa, às três horas da tarde, achou-a triste e calada.

Indagou o que era; ela respondeu com algumas palavras soltas, mas sem clareza, de maneira que ele ficaria na mesma, se não tivesse havido a cena da manhã.

— Já lhe disse, D. Joana, que a senhora não perde nada com a minha nova situação. O lugar pertence-lhe.

O olhar de dignidade ofendida que ela lhe lançou foi tal que ele não achou nenhuma réplica. Entre si fez um elogio à caseira.

— Tem-me afeição, coitada! é uma alma dotada de muita elevação.

D. Joana não o serviu com menos carinho nesse e no dia seguinte; era a mesma pontualidade e solicitude. A tristeza porém era também a mesma e isto desconsolava sobremodo o noivo de D. Lucinda, cujo principal desejo era fazê-las felizes ambas.

O sobrinho José, que tivera o bom gosto de cortar os laços que o prendiam ao outro, desde que viu serem inúteis os esforços para separar D. Joana de casa, não deixava de ali ir a miúdo tomar a bênção ao tio e receber alguma coisa de quando em quando.

Acertou de ir alguns dias depois da revelação de João Barbosa. Não o achou em casa, mas D. Joana estava, e ele em tais circunstâncias não deixava de se demorar a louvar o tio, na esperança de que alguma coisa chegasse aos ouvidos deste. Naquele dia notou que D. Joana não tinha a alegria do costume.

Interrogada por ele, D. Joana respondeu: — Não é nada...

— Alguma coisa há de ser, dar-se-á caso que...

— Que?...

— Que meu tio esteja doente? — Antes fosse isso! — Que ouço? D. Joana mostrou-se arrependida do que dissera e metade do arrependimento era sincero, metade fingido. Não tinha grande certeza da discrição do rapaz; mas via bem para que lado iam seus interesses. José tanto insistiu em saber do que se tratava que ela não hesitou em dizer-lhe tudo, debaixo de palavra de honra e no mais inviolável segredo.

— Ora veja, concluiu ela, se ao saber que essa senhora trata de enganar o nosso bom amigo para haver-lhe a fortuna...

— Não diga mais, D. Joana! interrompeu José fulo de cólera.

— Que vai fazer? — Verei, verei...

— Oh! não me comprometa! — Já lhe disse que não; saberei desfazer a trama da viúva. Ela veio aqui alguma vez? — Não, mas consta-me que há de vir domingo jantar.

— Virei também.

— Pelo amor de Deus...

— Descanse! José via o perigo tanto como D. Joana; só não viu que ela lhe contara tudo, para havê-lo de seu lado e fazê-lo trabalhar por desfazer um laço quase feito. O medo dá às vezes coragem, e um dos maiores medos do mundo é o de perder uma herança. José sentiu-se resoluto a empregar todos os esforços para obstar o casamento do tio.

D. Lucinda foi efetivamente jantar em casa de João Barbosa. Este não cabia em si de contente desde que se levantou. Quando D. Joana foi levar-lhe o café do costume, ele desfez-se em elogios à noiva.

— A senhora vai vê-la, D. Joana, vai ver o que é uma pessoa digna de todos os respeitos e merecedora de uma afeição nobre e profunda.

— Quer mais açúcar? — Não. Que graça! que maneiras, que coração! Não imagina que tesouro é aquela mulher! Confesso que estava longe de suspeitar tão raro conjunto de dotes morais.

Imagine...

— Olhe que o café esfria...

— Não faz mal. Imagine...

— Creio que há gente de fora. Vou ver.

D. Joana saiu; João Barbosa ficou pensativo.

— Coitada! A ideia de que vai perder a minha estima não a deixa um só instante. In petto não aprova talvez este casamento, mas não se atreveria nunca a dizê-lo. É uma alma extremamente elevada! D. Lucinda apareceu perto das quatro horas. Ia luxuosamente vestida, graças a algumas dívidas feitas à conta dos futuros cabedais. A vantagem daquilo era não parecer que João Barbosa a tirava do nada.

Passou-se o jantar sem incidente nenhum; pouco depois de oito horas, D. Lucinda retirou-se deixando encantado o noivo. D. Joana, se não fossem as circunstâncias apontadas, devia ficar igualmente namorada da viúva, que a tratou com uma bondade, uma distinção verdadeiramente adoráveis. Era talvez cálculo; D. Lucinda queria ter por si todos os votos, e sabia que o da boa velha tinha alguma consideração.

Entretanto, o sobrinho de João Barbosa, que também ali jantara, apenas a noiva do tio se retirou para casa foi ter com ele.

— Meu tio, disse José, reparei hoje uma coisa.

— Que foi? — Reparei que se o senhor não tiver conta em si é capaz de ser embaçado.

— Embaçado? — Nada menos.

— Explica-te.

— Dou-lhe notícia de que a senhora que hoje aqui esteve tem ideias a seu respeito.

— Ideias? Explica-te mais claramente.

— Pretende desposá-lo.

— E então? — Então, é que o senhor é o quinto ricaço, a quem ela lança, a rede. Os primeiros quatro perceberam a tempo o sentimento de especulação pura, e não caíram. Eu previno-o disso, para que não se deixar levar pelo conto da sereia, e se ela lhe falar em alguma coisa...

João Barbosa que já estava vermelho de cólera, não se pôde conter; cortou-lhe a palavra intimando-o a que saísse. O rapaz disse que obedecia, mas não interrompeu as reflexões: inventou o que pôde, deitou cores sombrias ao quadro, de maneira que saiu deixando o veneno no coração do pobre velho.

Era difícil que algumas palavras tivessem o condão de desviar o namorado do plano que assentara; mas é certo que foi esse o ponto de partida de uma longa hesitação. João Barbosa vociferou contra o sobrinho, mas, passado o primeiro acesso, refletiu um pouco no que lhe acabava de ouvir e concluiu que seria realmente triste, se ele tivesse razão.

— Felizmente, é um caluniador! concluiu ele.

D. Joana soube da conversa havida entre João Barbosa e o sobrinho, e aprovou a ideia deste; era necessário voltar à carga; e José não se descuidou disso.

João Barbosa confiou à caseira as perplexidades que o sobrinho buscava lançar em seu coração, — Acho que ele tem razão, disse ela.

— Também tu? — Também eu, e se o digo é porque o posso dizer, visto que desde hoje estou desligada desta casa.

D. Joana disse isto levando o lenço aos olhos, o que partiu o coração de João Barbosa em mil pedaços; tratou de a consolar e inquiriu a causa de semelhante resolução. D. Joana recusou explicar; afinal estas palavras saíram de sua boca trêmula e comovida: — É que... também eu tenho coração! Dizer isto e fugir foi a mesma coisa. João Barbosa ficou a olhar para o ar, depois dirigiu os olhos a um espelho, perguntando-lhe se efetivamente não era explicável aquela declaração.

Era.

João Barbosa mandou-a chamar. Veio D. Joana e arrependida de ter ido tão longe, tratou de explicar o que acabava de dizer. A explicação era fácil; repetiu que tinha coração, como o sobrinho de João Barbosa, e não podia, como o outro, vê-lo entregar-se a uma aventureira.

— Era isso? — É duro de o dizer, mas cumpri o que devia; compreendo porém que não posso continuar nesta casa.

João Barbosa procurou apaziguar-lhe os escrúpulos; e D. Joana deixou-se vencer, ficando.

Entretanto, o noivo sentia-se um tanto perplexo e triste. Cogitou, murmurou, vestiu-se e saiu.

Na primeira ocasião em que se encontrou com D. Lucinda, esta, vendo-o triste, perguntou-lhe se eram incômodos domésticos.

— Talvez, resmungou ele.

— Adivinho.

— Sim? — Alguma que lhe fez a caseira que o senhor lá tem? — Por que supõe isso? D. Lucinda não respondeu logo; João Barbosa insistiu.

— Não simpatizo com aquela cara.

— Pois não é má mulher.

— De aparência, talvez.

— Parece-lhe então...

— Nada; digo que bem pode ser alguma intrigante...

— Oh! — Mera suposição.

— Se a conhecesse havia de lhe fazer justiça.

João Barbosa não recebeu impunemente esta alfinetada. Se efetivamente D. Joana não passasse de uma intrigante? Era difícil supô-lo ao ver a cara com que ela o recebeu na volta. Não a podia haver mais afetuosa. Contudo, João Barbosa pôs-se em guarda; convém dizer, em honra de seus afetos domésticos, que não o fez sem tristeza e amargura.

— Que tem o senhor que está tão macambúzio? perguntou D. Joana com a mais doce voz que possuía.

— Nada, D. Joana.

E daí a pouco: — Diga-me; seja franca. Alguém a incumbiu de me dizer aquilo a respeito da senhora que...

D. Joana tremeu de indignação.

— Pois imagina que eu seria capaz de fazer-me instrumento... Oh! é demais! O lenço correu aos olhos e provavelmente encheu-se de lágrimas. João Barbosa não podia ver chorar uma mulher que o servia tão bem há tanto tempo. Consolou-a como pôde, mas o golpe (dizia ela) fora profundo. Isto foi dito tão de dentro, e com tão amarga voz, que João Barbosa não pôde esquivar-se a esta reflexão.

— Esta mulher ama-me! Desde que, pela segunda vez, se lhe metia esta suspeita pelos olhos, seus sentimentos em relação a D. Joana eram de compaixão e simpatia. Ninguém pode odiar a pessoa que o ama silenciosamente e sem esperança. O bom velho sentia-se lisonjeado da vegetação amorosa que seus olhos faziam brotar dos corações.

Daí em diante começou uma luta entre as duas mulheres de que eram campo e objeto o coração de João Barbosa. Uma tratava de demolir a influência da outra; os dois interesses esgrimiam com todas as armas que tinham à mão.

João Barbosa era um joguete entre ambas — uma espécie de bola de borracha que uma atirava às mãos da outra, e que esta de novo lançava às da primeira. Quando estava com Lucinda suspeitava de Joana; quando com Joana suspeitava de Lucinda. Seu espírito, debilitado pelos anos, não tinha consistência nem direção; uma palavra o dirigia ao sul, outra o encaminhava ao norte.

A esta situação, já de si complicada, vieram juntar-se algumas circunstâncias desfavoráveis a D. Lucinda. O sobrinho José não cessava as suas insinuações; ao mesmo tempo os parentes da interessante viúva entraram a rodear o velho, com tal sofreguidão, que, apesar de sua boa vontade, este desconfiou seriamente das intenções da noiva. Nisto sobreveio um ataque de reumatismo. Obrigado a não sair de casa, era a D. Joana que cabia desta vez exclusivamente a direção do espírito de João Barbosa. D.

Lucinda foi visitá-lo algumas vezes; mas o papel principal não era seu.

A caseira não se poupou a esforços para readquirir a antiga influência; o velho ricaço saboreou de novo as delícias da dedicação de outro tempo. Ela o tratava, amimava e conversava; lia-lhe os jornais, contava-lhe a vida dos vizinhos entremeada de velhas anedotas adequadas à narração. A distância e a ausência eram dois dissolventes poderosos do amor decrépito de João Barbosa.

Logo que ele melhorou um pouco foi à casa de D. Lucinda. A viúva o recebeu com polidez, mas sem a solicitude a que o acostumara. Sucedendo a mesma coisa outra vez, João Barbosa sentiu que, pela sua parte, também o primitivo afeto esfriara um pouco.

D. Lucinda contava aguçar-lhe o afeto e o desejo mostrando-se fria e reservada; sucedeu o contrário. Quando quis resgatar o que perdera, era um pouco tarde; contudo não desanimou.

Entretanto, João Barbosa voltara à casa, onde a figura de D. Joana lhe pareceu a mais ideal de todas as esposas.

— Como é que não me lembrei há mais tempo de casar com esta mulher? pensou ele.

Não fez a pergunta em voz alta; mas D. Joana pressentiu num olhar de João Barbosa que aquela ideia alvorecia em seu generoso espírito.

João Barbosa voltou a concentrar-se em casa. D. Lucinda, após os primeiros dias, derramou o coração em longas cartas que eram pontualmente entregues em casa de João Barbosa, e que este lia em presença de D. Joana, posto fosse em voz baixa. João Barbosa, logo à segunda, quis ir reatar o vínculo roto; mas o outro vínculo que o prendia à caseira era já forte e a ideia foi posta de lado. D. Joana achou enfim meio de subtrair as cartas.

Um dia, João Barbosa chamou D. Joana a uma conferência particular.

— D. Joana, chamei-a para lhe dizer uma coisa grave.

— Diga.

— Quero fazer a sua felicidade.

— Já não a faz há tanto tempo? — Quero fazê-la de modo mais positivo e duradouro.

— Como? — A sociedade não crê, talvez, na pureza de nossa afeição; confirmemos a suspeita da sociedade.

— Senhor! exclamou D. Joana com um gesto de indignação tão nobre quão simulado.

— Não me entendeu, D. Joana, ofereço-lhe a minha mão...

Um acesso de asma, porque ele também padecia de asma, veio interromper a conversa no ponto mais interessante. João Barbosa gastou alguns minutos sem falar nem ouvir.

Quando o acesso passou, sua felicidade, ou antes a de ambos, estava prometida de parte a parte. Ficava assentado um novo casamento.

D. Joana não contava com semelhante desenlace, e abençoou a viúva que, pretendendo casar com o velho, sugeriu-lhe a ideia de fazer o mesmo e a encaminhou àquele resultado. O sobrinho José é que estava longe de crer que havia trabalhado simplesmente para a caseira; tentou ainda impedir a realização do plano do tio, mas este às primeiras palavras fê-lo desanimar.

— Desta vez, não cedo! respondeu ele; conheço as virtudes de D. Joana, e sei que pratico um ato digno de louvor.

— Mas...

— Se continuas, pagas-me! José recuou e não teve outro remédio mais que aceitar os fato consumados. O pobre septuagenário treslia evidentemente.

D. Joana tratou de apressar o casamento, receosa de que, ou algumas das várias moléstias de João Barbosa, ou a própria velhice desse cabo dele, antes de arranjadas as coisas. Um tabelião foi chamado, e tratou, por ordem do noivo, de preparar o futuro de D.

Joana.

Dizia o noivo: — Se eu não tiver filhos, desejo...

— Descanse, descanse, respondeu o tabelião.

A notícia desta resolução e dos atos subsequentes chegou aos ouvidos de D. Lucinda, que mal pôde crer neles.

— Compreendo que me fugisse; eram intrigas daquela... daquela criada! exclamou ela.

Depois ficou desesperada; interpelou o destino, deu ao diabo todos os seus infortúnios.

— Tudo perdido! tudo perdido! dizia ela com uma voz arrancada às entranhas.

Nem D. Joana nem João Barbosa a podiam ouvir. Eles viviam como dois namorados jovens, embebidos no futuro. João Barbosa planeava mandar construir uma casa monumental em algum dos arrabaldes onde passaria o resto de seus dias. Conversavam das divisões que a casa devia ter, da mobília que lhe convinha, da chácara, e do jantar com que deviam inaugurar a residência nova.

— Quero também um baile! dizia João Barbosa.

— Para quê? Um jantar basta.

— Nada! Há de haver grande jantar e grande baile; é mais estrondoso. Demais, quero apresentar-te à sociedade como minha mulher, e fazer-te dançar com algum adido de legação. Sabes dançar? — Sei.

— Pois então! Jantar e baile.

Marcou-se o dia de ano bom para celebração do casamento.

— Começaremos um ano feliz, disseram ambos.

Faltavam ainda dez dias, e D. Joana estava impaciente. O sobrinho José, alguns dias arrufado, fez as pazes com a futura tia. O outro aproveitou o ensejo de vir pedir o perdão do tio; deu-lhe os parabéns e recebeu a bênção. Já agora não havia remédio senão aceitar de boa cara o mal inevitável.

Os dias aproximaram-se com uma lentidão mortal; nunca D. Joana os vira mais compridos. Os ponteiros do relógio pareciam padecer de reumatismo; o sol devia ter por força as pernas inchadas. As noites pareciam-se com as da eternidade.

Durante a última semana João Barbosa não saiu de casa; todo ele era pouco para contemplar a próxima companheira de seus destinos. Enfim raiou a aurora cobiçada.

D. Joana não dormia um minuto sequer, tanto lhe trabalhava o espírito.

O casamento devia ser feito sem estrondo, e foi uma das vitórias de D. Joana, porque o noivo falava em um grande jantar e meio mundo de convidados. A noiva teve prudência; não queria expor-se e expô-lo a comentários. Conseguira mais; o casamento devia ser celebrado em casa, num oratório preparado de propósito. Pessoas de fora, além dos sobrinhos, havia duas senhoras (uma das quais era madrinha) e três cavalheiros, todos eles e elas maiores de cinquenta.

D. Joana fez sua aparição na sala alguns minutos antes da hora marcada para celebração do matrimônio. Vestia com severidade e simplicidade.

Tardando o noivo, ela mesma o foi buscar.

João Barbosa estava no gabinete já pronto, sentado ao pé de uma mesa, com uma das mãos calçadas.

Quando D. Joana entrou deu com os olhos no grande espelho que ficava defronte e que reproduzia a figura de João Barbosa; este estava de costas para ela. João Barbosa fitavaa rindo, um riso de bem-aventurança.

— Então! disse D. Joana.

Ele continuava a sorrir e a fitá-la; ela aproximou-se, rodeou a mesa, olhou-o de frente.

— Vamos ou não? João Barbosa continuava a sorrir e a fitá-la. Ela aproximou-se e recuou espavorida.

A morte o tomara; era a melhor das noivas.

Fonte: 
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 15 de março de 2014

Fernando Bevilacqua (Árvores)

Árvores são como pessoas – quase sempre melhores.

Alguns, que afirmam se comunicar com elas, garantem que, embora não falem, entendem e respondem aos tratos carinhosos. Outros asseguram (coincidência ou não) que outras são fulminadas por olhares impregnados de ódio, inveja e frustração (isto vale mais para plantinhas frágeis).

Não fossem as camadas atmosféricas que envolvem o planeta, a Terra teria coloração verde e não azul, tal a presença massiva das árvores.

As árvores são vaidosas, não fossem elas do sexo feminino. Quantas são vistas com seus corpos retorcidos, em poses sensuais, até mesmo as que demonstram indisfarçável e assumida obesidade. E as que se enfeitam de flores, em flagrante exibição, aguardando, sem falsa modéstia, olhares extasiados e perplexos? Vaidosas sim, vulgares quase nunca. Expõem seus adereços sazonalmente, provocando a ansiedade da próxima vez. O que dizer do Ipê, a produzir “orgasmos visuais” e não mais do que durante parcos sete dias de exposição? Embora vaidosas e sensuais, nunca se apresentam despidas de suas roupagens, modestas que sejam. Os corpos lisos, “depilados”, culminam com cabeças coroadas por “cabeleiras” de várias tonalidades, tipos e volumes pilosos. Não abrem mão de suas vaidades: à medida que envelhecem, perdem suas melenas, veem seus “membros” fraturados por pequenos traumas (como se tivessem osteoporose, à semelhança dos humanos), e como não suportam se mostrar feias, com corpos esquálidos e sem viço, secam; preferem a morte e assim serem lembradas por suas exuberâncias da juventude. Quanta sabedoria, quanto desprendimento!

As árvores são temperamentais – mulheres como nunca! Plantadas em locais onde não poderão expandir suas raízes ou seus galhos ( no sonho de alcançar o firmamento), destroem calçadas, derrubam muros, danificam telhados, entopem bueiros e calhas, em avisos contra aqueles que pretendem domá-las. Respondem às amputações de seus membros (as podas) enchendo-se de novas energias, robustecendo-se, numa advertência de como resistem às agressões. Bem tratadas, acariciadas, adubadas com amor, fornecem de tudo o que se lhes pedir: a sombra para momentos de descanso e reflexão, ramos emplumados para proteger os viajantes dos mistérios da noite, palha para forrar o solo e acolher corpos apaixonados em delírios silvestres, casca e raízes para alívio e tratamento de dores e doenças, troncos para fabricação de sua jangada que o levará de volta ao lar, aquele mesmo construído com a madeira por elas fornecida. E mais: um galho bem apontado pode servir de arma de defesa ou de caça, a salvar sua vida ou matar sua fome.

As árvores são imprevisíveis. Vão ser femininas no inferno! Vistas de longe, há sempre a expectativa de momentos alvissareiros. Nem todas, contudo, irão participar de boas lembranças. Espinhos deixam arranhões dolorosos, folhas aveludadas escondem ardências, pruridos e inchações inesquecíveis, frutos atraentes e de aparência hipnótica e ingênua intoxicam, quando não matam. Fica aqui um alerta: árvores são fantásticas, mas nem sempre confiáveis. Com quem parecem esses seres, filhas de Deus, como nós?

Árvores são necessárias, indispensáveis, da mesma forma que pensam os homens (só os mais sábios) sobre as mulheres; sendo assim, precisam ser preservadas – árvores e mulheres. Deixem que as árvores morram espontaneamente. Não as matem. Elas têm a sabedoria do adeus.

Oh! mundo insensível, oh! pessoas insanas! No encontro de uma “árvore – mulher”, proteja-a, adube-a e regue-a sem cessar.

Eis a possível salvação!

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Lacy José Raymundi (Baú de Trovas)


À franga, com voz de plumas,
diz a mãe, cheia de pena:
- Aos ovos tu te acostumas,
logo após uma centena...

Alguém me disse, na esquina,
e de repetir não cesso:
"A educação é uma usina
que nos conduz ao progresso!...”

Ali moram quatro viúvas
outrora cheias de graças,
mas, daquelas quatro “uvas”
hoje restam quatro “passas...”

A noite estende seu manto
de silêncio nos caminhos,
e a aurora quebra esse encanto,
pela algazarra dos ninhos…

Ao ver um homem baixinho,
entendo porque não presto,
pois penso do coitadinho:
- "Aonde ficou o resto?..."

A visão que me produz
um vagalume na altura,
me lembra um pingo de luz
brilhando na noite escura...

Cada níquel que se gasta
em armas de fazer guerra
é mais um passo que afasta
a Paz da face da Terra!

Cai a noite. O escuro lacra
a luz dos olhos tranquilos,
e eu ouço a música sacra
da serenata dos grilos.

Da dura lida da roça,
que bem cedo principia,
os estultos fazem troça,
os sábios fazem poesia!

Deixo claro nesta pauta:
sigo tão só, no caminho,
como segue um astronauta
posto no espaço, sozinho.

Deus, para ter um modelo
de um ser que transmite amor,
tomou de um homem e fê-lo
o Primeiro Trovador.

Diz o frango, só de tanga,
dando no pai, longo amplexo:
"Galo velho! Por que a zanga
se sou do terceiro sexo?!

Dos teus lábios purpurinos
o beijo que me estás dando
lembra um licor dos mais finos
que se degusta sonhando!…

É mentira ou é verdade?
É verdade ou é mentira?
Se a mulher disser a idade
não acredite: confira!...

É na comunhão singela
da cuia do chimarrão,
que nosso pago nivela
o campeiro e seu patrão!

Esta questão se renova
sem solução, lhe asseguro:
por que razões, franga nova
se amarra em galo maduro?!…

Eu fico pasmo, por certo,
vendo Deus, perfeito assim,
esquecer o cofre aberto
do perfume do jasmim...

Felicidade, entrevejo
na comunhão que componho
entre o vinho do teu beijo
e o champanha do meu sonho.

Há, doutor, um repelente,
que me livre, volta e meia,
deste perigo iminente
do assédio de mulher feia???

Há muito tempo eu suspeito
da devoção aparente:
nem sempre uma cruz no peito
põe Cristo dentro da gente!

Num gesto brusco e banal,
de verdadeira loucura,
pinguei um ponto final
numa história de ternura...

O cravo que foi cravado
em cada chaga de Cristo,
lamentou ser fabricado
e obrigado a fazer isto!...

O licor que me apetece
e não me deixa ressábios,
não vem da vinha ou da messe,
vem do rubor dos teus lábios…

O pinguço diz, sem graça,
ante às águas da cachoeira:
- Se tudo fosse cachaça,
ah! que baita bebedeira!

Para aplacar meus cansaços,
eu, que buscava repouso,
no aeroporto dos teus braços
achei meu campo-de-pouso...

Problema, me diz um trouxa,
pensando com parcimônia,
é ter a bexiga frouxa
em festa de cerimônia...

Quando os vejo, todo o dia,
sempre me espanta, não nego,
perceber no olhar do guia
a luz dos olhos do cego!

Se a luz dos teus olhos tenho
como um farol que me guia,
não temo, por onde venho,
percalços da travessia!...

Se examino meu extrato
sinto arrepios na espinha,
que o juro não é barato
e a conta está ‘vermelhinha”!

Se o teu portão dorme aberto
me assanha um louco palpite
de que chegando bem perto
vais sussurrar-me um convite...

Sobre o veludo da mesa
deslizam sonhos fugazes
ante a total incerteza
dos coringas e dos ases. . .

Taças, champanhas, licores,
pelo chão roupas revoltas,
por certo o deus dos amores
por aqui andou às soltas…

Tanto fumo tem passado
pelos seus pulmões que até
o Raio-X tem mostrado
fuligem de chaminé…

Teu amor tem tal formato,
estás a mim tão ligada,
como um chicle no sapato
que não desgruda por nada…

Toda mulher que suspeita
que tem um marido esperto,
adormece, quando deita,
mas mantém um olho aberto...

Tu me pedes que eu aponte
o que é distância, em verdade?
- Distância é apenas a ponte
entre o amor e a saudade!...

Machado de Assis (A Mágoa do Infeliz Cosme)

I

Imensa e profunda foi a mágoa do infeliz Cosme. Depois de três anos de não interrompida ventura, faleceu-lhe a mulher, ainda na flor da idade, e no esplendor das graças com que a dotara a natureza. Uma rápida moléstia a arrebatou aos carinhos do esposo e à admiração de quantos tiveram a honra e o prazer de praticar com ela. Quinze dias apenas esteve de cama; mas foram quinze séculos para o infeliz Cosme. Por cúmulo de desgraças, expirou longe dos olhos dele; Cosme saíra para ir buscar a solução de um negócio; quando chegou à casa achou um cadáver.

Dizer a aflição em que este acontecimento lançou o infeliz Cosme pediria outra pena que não a minha. Cosme chorou logo no primeiro dia todas as suas lágrimas; no dia seguinte tinha os olhos exaustos e secos. Os seus numerosos amigos contemplavam com tristeza o rosto do infeliz e ao lançar a pá de terra sobre o caixão já depositado no fundo da cova, mais de um recordou os dias que passara ao pé dos dois esposos, tão queridos um do outro, tão venerados e amados dos seus íntimos.

Cosme não se limitou ao encerramento usual dos sete dias. A dor não é costume, dizia ele aos que o iam visitar; sairei daqui quando puder arrastar o resto dos meus dias. Ali ficou durante seis semanas, sem ver a rua nem o céu. Os seus empregados iam prestar-lhe contas, a que ele, com incrível esforço, prestava religiosa atenção. Cortava o coração ver aquele homem ferido no que havia de mais caro para ele, discutir às vezes um erro de soma, uma troca de algarismos. Uma lágrima às vezes vinha interromper a operação. O viúvo lutava com o homem do dever.

Ao cabo de seis semanas resolveu sair à rua o infeliz Cosme.

- Não estou curado, dizia ele a um compadre; mas é preciso obedecer às necessidades da vida.

- Infeliz! exclamou o compadre apertando-o nos braços.
 
II

Na véspera de sair foi visitá-lo um moço de vinte e oito anos, que podia ser seu filho, porque o infeliz Cosme contava quarenta e oito. Cosme conhecera o pai de Oliveira e fora seu companheiro nos bons tempos da mocidade. Oliveira afeiçoou-se ao amigo de seu pai, e frequentava-lhe a casa ainda antes do casamento.

- Sabe que vou casar? disse um dia Cosme a Oliveira.

- Sim? Com quem? - Adivinhe.

- Não posso.

- Com D. Carlota.

- Aquela moça a quem me apresentou ontem no teatro? - Justo.

- Dou-lhe meus parabéns.

Cosme arregalou os olhos de contente.

- Não lhe parece que faço boa escolha? - Uma excelente moça: formosa, rica...

- Um anjo! Oliveira puxou duas fumaças do charuto e observou: - Mas como arranjou isso? Nunca me falou em tal. Verdade é que sempre o conheci discreto; e meu pai costumava dizer que o senhor era uma urna inviolável.

- Por que motivo andaria eu a bater com a língua nos dentes? - Tem razão...

- Este casamento há de dar que falar, porque eu já estou um pouco maduro.

- Oh! não parece.

- Mas estou; cá tenho já os meus quarenta e cinco. Não os mostro, bem sei; apuro-me no vestir, e não tenho um fio de cabelo branco.

- E conta ainda um mérito mais: é experiente.

- Dois méritos: experiente e sossegado. Não estou na idade de andar correndo a via sacra e dando desgosto à família, que é o defeito dos rapazes. Parece-lhe então que seremos felizes? - Como dois eleitos do céu.

Cosme, que ainda não era o infeliz Cosme, esfregou as mãos de contentamento e manifestou a opinião de que o seu jovem amigo era um espírito sensato e observador.

Efetuou-se o casamento com assistência de Oliveira, que, apesar da mudança de estado do amigo de seu pai, não deixou de lhe frequentar a casa. De todos os que lá iam era o que tinha maior intimidade. Suas boas qualidades lhe davam jus à estima e veneração.

Desgraçadamente era moço e Carlota era bela. Oliveira, ao cabo de alguns meses, sentiu-se loucamente apaixonado. Era honrado e viu a gravidade da situação. Quis evitar o desastre; deixou de frequentar a casa de Cosme. Cerca de cinquenta dias deixou de lá ir, até que o amigo o encontrou e à viva força o levou a jantar.

A paixão não estava morta nem caminhava para isso; a vista da bela Carlota não fez mais do que converter em incêndio o que já era braseiro.

Eu desisto de contar as lutas em que andou o coração de Oliveira durante todo o tempo que viveu a esposa de Cosme. Evitou ele manifestar nunca à formosa dama o que sentia por ela; um dia, porém, tão patente era o seu amor, que ela claramente lho percebeu.

Uma leve sombra de vaidade fez com que Carlota não descobrisse com maus olhos o amor que inspirara ao rapaz. Não tardou, porém, que a reflexão e o sentimento da honra lhe mostrassem todo o perigo daquela situação. Carlota mostrou-se severa com ele, e este recurso fez ainda mais aumentar as disposições respeitosas em que se achava Oliveira.

- Tanto melhor! disse ele consigo.

A exclamação de Oliveira queria dizer duas coisas. Era, primeiramente, uma homenagem de respeito à amada do seu coração. Era também uma esperança. Oliveira nutria a doce esperança de que Carlota enviuvasse mais cedo do que supunha o marido, e nesse caso podia ele apresentar a sua candidatura, com certeza de que recebia uma mulher provadamente virtuosa.

Os acontecimentos dissiparam todos esse castelos; Carlota foi a primeira a sair deste mundo, e a dor de Oliveira não foi menor que a dor do infeliz Cosme. Nem teve ânimo de ir ao enterro; foi à missa, e a muito custo pôde reter as lágrimas.

Agora que seis semanas haviam decorrido depois da terrível catástrofe, Oliveira procurou o infeliz viúvo na véspera do dia em que este saía à rua, como eu tive a honra de lhes dizer.
 
III

Cosme estava assentado diante da escrivaninha examinando melancolicamente alguns papéis. Oliveira assomou à porta do gabinete. O infeliz viúvo voltou o rosto e encontrou os olhos do amigo. Nenhum deles se moveu; a sombra da moça parecia ter surgido entre ambos. Enfim, o infeliz Cosme levantou-se e atirou-se aos braços do amigo.

Não se sabe bem o tempo que eles gastaram nesta magoada e saudosa atitude. Quando se desprenderam, Oliveira enxugou furtivamente uma lágrima; Cosme levou o lenço aos olhos.

A princípio, evitaram falar da moça; mas o coração trouxe naturalmente aquele assunto de conversa.

Cosme era incansável nos louvores que tecia à finada esposa, cuja perda, dizia ele, não era só irreparável, havia de ser-lhe mortal. Oliveira procurava dar-lhe algumas consolações.

- Oh! exclamou o infeliz Cosme, para mim não há consolações. Isto agora já não é viver, é vegetar, é arrastar o corpo e a alma sobre a terra, até o dia em que Deus se compadeça de ambos. A dor que eu sinto cá dentro é um germe da morte; sinto que não posso durar muito tempo. Tanto melhor, meu caro Oliveira, mais depressa irei ter com ela.

Estou muito longe de lhe censurar esse sentimento, observou Oliveira procurando disfarçar a comoção. Não conheci eu durante três anos o que valia aquela alma? - Nunca a houve mais angélica! Cosme proferiu estas palavras levantando as mãos para o teto, com uma expressão mesclada de admiração e saudade, que abalaria as próprias cadeiras se tivessem ouvidos. Oliveira concordou plenamente com o juízo do amigo.

- Era efetivamente um anjo, disse ele. Nenhuma mulher teve ainda tantas qualidades juntas.

- Oh! meu bom amigo! Se soubesse que satisfação me está dando! Neste mundo de interesses e vaidades, ainda há um coração puro, que sabe apreciar os dotes do céu.

Carlota era isso mesmo que o senhor está dizendo. Era ainda muito mais. A alma dela ninguém a conheceu nunca como eu. Que bondade! que ternura! que graça infantil! Além destes dons, que severidade! que singeleza! E, enfim, se passarmos, melhor direi, se descermos a outra ordem de virtudes, que amor da ordem! que amor do trabalho! que economia! O infeliz viúvo levou as mãos aos olhos e ficou algum tempo acabrunhado ao peso de tão doces e amargas recordações. Oliveira também estava comovido. O que ainda mais o entristecia foi reparar que estava sentado na mesma cadeira em que Carlota costumava passar as noites, a conversar com ele e o marido. Cosme levantou enfim a cabeça.

- Perdoe-me, disse ele, estas fraquezas. São naturais. Eu seria um monstro se não chorasse aquele anjo.

Chorar, naquela ocasião, era uma figura poética. O infeliz Cosme tinha os olhos secos.

- Nem já lágrimas tenho, continuou ele traduzindo em prosa o que acabava de dizer. As lágrimas ao menos são um desabafo; mas este sentir interior, esta tempestade que não rompe, mas que se concentra no coração, isto é pior que tudo.

- Tem razão, disse Oliveira, deve ser assim, e é natural que seja. Não me tenha entretanto por um consolador banal; é necessário, não digo esquecê-la, que seria impossível, mas voltar-se para a vida, que é uma necessidade.

Cosme esteve algum tempo calado.

- Já tenho dito isso mesmo, respondeu ele, e sinto que assim acontecerá mais cedo ou mais tarde. Vida é que nunca hei de ter; daqui até a morte é apenas um vegetar. Mas, enfim, isso mesmo é preciso...

Oliveira continuou a dizer-lhe algumas palavras de consolação, que o infeliz Cosme ouvia distraído, com os olhos ora no teto, ora nos papéis que tinha diante de si. Oliveira, entretanto, precisava também de quem o consolasse, e não pôde falar muito tempo sem comover-se a si próprio. Seguiu-se um curto silêncio, que o infeliz Cosme foi o primeiro a romper.

- Sou rico, disse ele, ou antes, corre que o sou. Mas de que me servem os bens? A riqueza não me substitui o tesouro que perdi. Mais ainda; essa riqueza ainda aumenta a minha saudade, porque parte dela foi Carlota que ma trouxe. Bem sabe que eu a receberia com um vestido de chita...

- Ora! disse Oliveira levantando os ombros.

- Bem sei que me faz justiça; mas há invejosos ou caluniadores para quem estes sentimentos são apenas máscaras de interesse. Lastimo essas almas. Esses corações são podres.

Oliveira concordou plenamente com a opinião do infeliz Cosme.

O viúvo continuou: - Demais, ainda que eu fosse um homem de interesse, a minha boa Carlota devia tornar-me um amigo. Nunca vi mais nobre desinteresse que o dela. Alguns dias antes de morrer quis fazer testamento. Baldei todos os esforços para impedi-la; ela foi mais forte do que eu. Tive de ceder. Nesse testamento constituiu-me ela seu herdeiro universal. Ah! eu daria toda a herança por uma semana mais de existência para ela. Uma semana? que digo? por uma hora mais! 

IV 

Os dois amigos foram interrompidos por um escravo que trazia uma carta. Cosme leu a carta e perguntou: - Esse homem está aí? - Está na sala.

- Lá vou.

O escravo saiu.

- Veja, senhor! Não se pode durante uma hora falar ao coração; a prosa da vida aí vem.

Permite-me? - Pois não.

Cosme saiu e foi à sala; Oliveira ficou só no gabinete, onde tudo lhe recordava os tempos de outrora. Estava ainda ao pé da escrivaninha o banquinho onde Carlota pousava os pés; Oliveira teve ímpetos de beijá-lo. Tudo ali, até as gravuras de que Carlota gostava tanto, tudo ali parecia ter impressa a viva imagem da moça.

No meio das reflexões foi interrompido pelo infeliz Cosme.

- Perdão! disse este, venho buscar uma coisa; volto já.

Cosme abriu uma gaveta, tirou de dentro algumas caixas de jóias, e saiu. Oliveira teve curiosidade de saber para que fim o viúvo levava as jóias, mas ele não lhe deu tempo de o interrogar.

Nem era preciso.

O próprio Cosme veio dizer-lho cerca de dez minutos depois.

- Meu amigo, disse ele, isto é insuportável.

- Que há? - Lá se foi parte da minha existência. As jóias de minha mulher...

Não pôde acabar; caiu sobre uma cadeira e pôs a cabeça nas mãos.

Oliveira respeitou aquela explosão de dor, que ele não compreendia. Ao cabo de algum tempo, Cosme levantou a cabeça; tinha os olhos vermelhos. Esteve ainda alguns segundos calado. Enfim: - O homem a quem fui falar veio buscar as jóias de minha mulher. Obedeço a uma expressa vontade dela.

- Vontade dela? - Um capricho, talvez, mas um capricho digno do seu coração. Carlota pediu-me que não me tornasse a casar. Era inútil o pedido, porque depois de ter perdido aquele anjo, é claro que eu não tornaria ligar a minha existência à de nenhuma outra mulher.

- Oh! decerto! - Todavia, exigiu que lho jurasse. Jurei. Não se contentou com isso.

- Não? - "Tu não sabes o que pode acontecer no futuro, disse-me ela; quem sabe se o destino não te obrigará a esquecer este juramento que me fizeste? Exijo uma coisa mais, exijo que vendas as minhas jóias, a fim de que outra mulher não as ponha sobre si".

O infeliz Cosme terminou esta revelação com um suspiro. Oliveira estava interiormente dominado por um sentimento de inveja. Não era inveja somente, eram também ciúmes.

Pobre Oliveira! era completa a sua desgraça! A mulher que ele amava tanto se desfazia em provas de amor com o marido na hora solene em que se despedia da terra.

Estas reflexões fazia o triste namorado, enquanto o infeliz Cosme, todo entregue à doce imagem da esposa extinta, interrompia o silêncio com suspiros que vinham diretamente do coração.

- Vendi as jóias, disse Cosme depois de algum tempo de meditação, e o senhor pode avaliar a mágoa com que me desfiz delas. Bem vê que foi ainda uma prova de amor que dei à minha Carlota. Todavia, exigi profundo silêncio do joalheiro e o mesmo exijo do senhor... Sabe por quê? Oliveira fez sinal que não entendia.

- É porque eu não vou contar a todos a cena que se passou unicamente entre mim e ela.

Achariam ridículo, alguns nem lhe dariam crédito. De maneira, que eu não poderia escapar à reputação de avaro e mau homem, que nem uma doce lembrança sabia guardar da mulher que o amou.

- Tem razão.

O infeliz Cosme tirou melancolicamente o lenço da algibeira, assoou-se e prosseguiu: - Mas teria razão o mundo, ainda quando aquele anjo me não houvesse pedido o sacrifício que acabo de fazer? Vale mais uma lembrança representada por pedras de valor do que a lembrança representada na saudade que fica no coração? Com franqueza, eu detesto esse materialismo, esse aniquilamento da alma, em proveito de coisas passageiras e estéreis. Bem fraco deve ser o amor que precisa de objetos palpáveis e sobretudo valiosos, para não ser esquecido. A verdadeira jóia, meu amigo, é o coração.

Oliveira respondeu a esta teoria do infeliz Cosme com um desses gestos que não afirmam nem negam, e que exprimem o estado duvidoso do espírito. Efetivamente, o mancebo estava perplexo ao ouvir as palavras do viúvo. Era claro para ele que a saudade existe no coração, sem necessidade de recordações externas, mas não admitia de todo que o uso de guardar alguma lembrança das pessoas mortas fosse um materialismo, como dizia o infeliz Cosme.

Estas mesmas dúvidas expôs ele ao amigo, depois de alguns minutos de silêncio, e foram ouvidas com um sorriso benévolo da parte deste.

- O que o senhor diz é exato, observou Cosme, se atendermos unicamente à razão; mas tão entranhado se acha o sentimento no coração do homem, que eu vendi tudo, menos uma coisa. Quis que, ao menos isso, me ficasse até a morte; tão certo é que o coração tem seus motivos e argumentos especiais...

- Oh! sem dúvida! disse Oliveira. Metade das coisas deste mundo são regidas pelo sentimento. Em vão procuramos furtar-nos a ele... Ele é mais forte do que os nossos débeis raciocínios.

Cosme fez uma leve inclinação de cabeça, e ia metendo a mão na algibeira do paletó, para tirar a jóia aludida, quando um escravo veio anunciar que o jantar estava na mesa.

- Vamos jantar, disse Cosme; à mesa lhe mostrarei o que é.


Saíram do gabinete para a sala de jantar. A sala de jantar ainda mais entristeceu o amigo do infeliz Cosme. Tantas vezes jantara ali em companhia dela, tantas contemplara ali os seus olhos, tantas ouvira as suas palavras! O jantar era farto, como de costume. Cosme deixou-se cair numa cadeira, enquanto Oliveira tomava assento ao pé dele. Um criado serviu a sopa, que o infeliz viúvo comeu apressadamente, não sem observar ao amigo, que era a primeira vez que realmente tinha vontade de comer.

Não era difícil de crer que assim devia de ser após seis semanas de quase total abstinência, ao ver a celeridade com que o infeliz Cosme varria os pratos que lhe punham diante dele.

Terminada a sobremesa, Cosme ordenou que o café fosse levado ao gabinete, onde Oliveira teve ocasião de ver a jóia que a saudade de Cosme impedira de ser vendida como as outras.

Era um alfinete de esmeralda perfeito; mas a perfeição da obra não era o que lhe dava todo o valor, como observou o infeliz Cosme.

Oliveira não pôde reter um grito de surpresa.

- O que é? perguntou o dono da casa.

- Nada.

- Nada? - Uma lembrança.

- Diga o que é.

- Esse alfinete quis eu comprar, no ano passado, em casa de Farani. Não foi lá que o comprou? - Foi.

- Que singularidade! - Singularidade? - Sim; eu quis comprá-lo justamente para dar à minha irmã no dia em que fazia anos.

Disseram-me que estava vendido. Era ao senhor.

- Era a mim. Não me custou barato; mas que me importava isso, se era para ela? Oliveira continuou a examinar o alfinete. De repente exclamou.

- Ah! - Que é? - Lembra-me ainda outra circunstância, disse Oliveira. Eu já sabia que este alfinete tinha sido comprado pelo senhor.

- Disse-lho ela? - Não, minha irmã. Um dia em que aqui estivemos, minha irmã viu este alfinete no peito de D. Carlota, e gabou-o muito. Ela disse-lhe então que o senhor lho dera um dia em que foram à Rua dos Ourives, e ela ficara encantada com esta jóia... Se soubesse como eu praguejei nessa ocasião contra o senhor! - Não lhe parece muito bonito? - Oh! lindíssimo! - Ambos nós gostávamos muito dele. Pobre Carlota! Nem por isso deixava de amar a simplicidade. A simplicidade era o seu principal dote; este alfinete, de que tanto gostava, só o pôs duas vezes, creio eu. Um dia altercamos por causa disso; mas, já se vê, altercação de namorados. Eu disse-lhe que era melhor não comprar jóias, se ela as não havia de trazer, e acrescentei, brincando, que me daria muito gosto, se mostrasse que tinha bens de fortuna. Gracejos, gracejos, que ela ouvia a rir e acabávamos ambos alegres... Pobre Carlota! Durante este tempo, Oliveira contemplava e admirava o alfinete, com o coração palpitante, como se tivesse ali um pedaço do corpo que se fora. Cosme olhava atentamente para ele. Seus olhos faiscavam às vezes; outras vezes pareciam apagados e sombrios. Seriam ciúmes póstumos? O coração do viúvo adivinharia o amor culpado, ainda que respeitoso, do amigo? Oliveira surpreendeu o olhar do infeliz Cosme e prontamente lhe entregou o alfinete.

- Ela queria muito à sua irmã, disse o desventurado viúvo depois de alguns instantes de silêncio.

- Oh! muito! - Conversávamos muita vez a respeito dela... Tinham a mesma idade, penso eu? - D. Carlota era mais moça dois meses.

- Pode-se dizer que era a mesma idade. Às vezes pareciam-se duas crianças. Quantas vezes ralhei graciosamente com ambas; riam-se e zombavam de mim. Se soubesse com que satisfação as via brincar! Nem por isso era Carlota menos grave, e sua irmã, também, quando convinha que o fossem.

O infeliz Cosme continuou assim a elogiar ainda uma vez os dotes da finada esposa, com a diferença que, desta vez, acompanhava o discurso com movimentos rápidos do alfinete que tinha na mão. Um raio de sol poente vinha brincar na pedra preciosa, de onde Oliveira quase não podia arrancar os olhos. Com o movimento que lhe dava a mão de Cosme, parecia a Oliveira que o alfinete era uma coisa viva, e que parte da alma de Carlota ali brincava e sorria para ele.

O infeliz Cosme interrompeu os louvores que fazia à amada do seu coração e olhou também para o alfinete.

- É realmente bonito! disse ele.

Oliveira olhava para o alfinete, mas via mais do que ele, via a moça; não admira pois que respondesse maquinalmente: - Oh! divino! - É pena que tenha este defeito...

- Não vale nada, acudiu Oliveira.

A conversa prosseguiu ainda algum tempo a respeito do alfinete e das virtudes da finada Carlota. A noite veio interromper essas doces efusões do coração de ambos. Cosme anunciou que provavelmente saía no dia seguinte para recomeçar a lida, mas já sem o ânimo que tivera nos três anos anteriores.

- Todos nós, disse ele, ainda os que não somos poetas, precisamos de uma musa.

Separaram-se pouco depois.

O infeliz Cosme não quis que o amigo fosse sem levar uma lembrança da pessoa a quem tanto estimara, e que o prezava deveras.

- Tome lá, disse o infeliz Cosme, tome esta flor de grinalda com que ela se casou; leve esta outra para sua irmã.

Oliveira quis beijar as mãos do amigo. Cosme recebeu-o nos braços.

- Nenhuma lembrança dei ainda a ninguém, observou o viúvo depois de o apertar nos braços; nem sei se alguém receberá tanto, como estas que lhe acabo de dar. Eu sei distinguir os grandes amigos dos amigos comuns.

VI 

Oliveira saiu da casa de Cosme com a alegria de um homem que acabasse de tirar a sorte grande. De quando em quando tirava as duas flores secas, quase desfeitas, metidas numa caixinha, e olhava para elas e tinha ímpetos de as beijar.

- Oh! posso fazê-lo! exclamava ele consigo. Não me punge nenhum remorso. Saudades, sim, e muitas, mas respeitosas como foi o meu amor.

Depois: - Infeliz Cosme! Como ele a ama! Que coração de ouro! Para aquele homem já não há gozos na terra. Ainda que não fosse seu amigo de longo tempo, a afeição que ele ainda hoje tem à sua pobre esposa era bastante para que o adorasse. Bem haja o céu que me poupou um remorso! No meio destas e outras reflexões Oliveira chegou à casa. Então beijou à vontade as flores da grinalda de Carlota, e acaso verteu sobre elas uma lágrima; depois do quê, foi levar à irmã a flor que lhe pertencia.

Nessa noite teve sonhos de ouro.

No dia seguinte estava a almoçar quando recebeu uma carta de Cosme. Abriu-a com a sofreguidão própria de quem se achava ligado àquele homem por tantos laços.

- Não vem só a carta, disse o escravo.

- Que há mais? - Esta caixinha.

Oliveira leu a carta.

A carta dizia: Meu bom e leal amigo, Vi ontem o entusiasmo que lhe causou o alfinete que desejava dar à sua irmã e que eu tive a fortuna de comprar primeiro.

Tanta afeição lhe devo que não posso nem quero privá-lo do prazer de oferecer essa jóia à sua interessante irmã.

Apesar das circunstâncias em que ela se acha nas minhas mãos, refleti, e entendi que devo obedecer aos desejo de Carlota.

Cedo-lhe a jóia, não pelo custo, mas com dez por cento de diferença. Não vá imaginar que lhe faço um obséquio: o abatimento é justo.

Seu infeliz amigo Cosme.

Oliveira leu a carta três ou quatro vezes. Há fundadas razões para crer que não almoçou nesse dia.

Fonte: 
www.dominiopublico.gov.br

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) IV

Darzee era um bobinho, incapaz de conservar na cabeça mais de uma ideia ao mesmo tempo, e unicamente porque lhe disseram que os filhos de Nagaína vinham de ovos, como os seus, não lhe parecia justo que algum os destruísse. Mas já a sua companheira tinha outro modo de pensar, e sabia que ovos de cobra querem dizer futuras cobras; por isso voou do ninho, deixando em seu lugar o marido a aquecer os filhotes e sempre cantando cantigas a respeito da morte de Nag. Darzee em muitos pontos se assemelhava bastante aos homens.

A companheira de Darzee pousou perto de Nagaína, na estrumeira, e gemeu:

- Oh, a minha pobre asa quebrada!... O menino da casa grande me jogou uma pedra...

Em seguida pôs-se a esvoaçar desesperadamente.

Nagaína ergueu a cabeça e silvou:

- Foi você quem advertiu Rikki-tikki quando eu ia apanhá-la pelas costas, não me esqueci disso - e, portanto, acho que escolheu um bem mau ponto para debater-se ...

E, rápida, esgueirou-se para o lado da avezinha.

- O menino me quebrou a asa com urna pedra! - continuava a lamuriar-se, com pios de choro, a companheira de Darzee.

- Bom! Há de ser uma consolação para você, depois de morta, saber que breve justarei contas com esse menino. Meu pobre marido jaz na estrumeira, mas antes que a noite caia o menino também estará muito caladinho na casa grande. Para que correr? Não sabe que não me escapa dos dentes? Tolinha, olhe para mim!

A companheira de Darzee conhecia muito bem o perigo de fazer tal coisa. Quando os olhos do passarinho se encontram com os da serpente, o medo o tolhe de tal modo que ele não consegue fugir. Assim, a prudente avezinha continuou a esvoaçar, fingindo-se ferida, e a piar lamentosamente, mas sem volver os olhos para a cobra. E Nagaína continuou a persegui-la.

Rikki-tikki percebeu de longe aquele jogo, que ia afastando a cobra de perto do monturo, e tratou de correr para o canteiro dos melões. Lá encontrou, habilmente escondidos, vinte e cinco ovos do tamanho dos de garnizé, mas revestidos duma pele branquicenta em vez de casca.

- Cheguei a tempo, murmurou ela, vendo por transparência as cobrinhas enroladas no interior dos ovos. Rikki não ignorava que logo ao saírem dos ovos as cobrinhas já podem matar homem ou mangusta. Fez serviço rápido. Esmagou-os. Depois passou-os em revista para verificar se não havia escapado algum. Encontrou três ainda intatos. Nesse instante riu-se, ouvindo a companheira de Darzee piar de longe:

- Rikki-tikki, eu trouxe Nagaína para a casa! Está na varanda! Venha depressa! Nagaína quer matar o menino!

Rikki-tikki esmagou dois dos ovos restantes e com o terceiro na boca precipitou-se para a varanda o mais depressa que pôde.

Teddy e seus pais lá estavam, diante do lanche do costume. Mas não comiam. Muito pálidos, conservavam-se numa imobilidade de estátuas, como que fascinados pela serpente enrolada sobre a esteira, em ótima distancia para um bote contra a perna nua do menino. Nagaína balançava a cabeça dum lado e doutro, cantando o seu próximo triunfo.

- Filho do homem que matou Nag, silvava ela, fica tranqüilo... Ainda não vou ferir... Espera um bocado... Imóveis, todos os três, hein? Insensatos que me mataram o meu Nag!

Os olhos de Teddy estavam fixos em seu pai, e tudo quanto o homem podia murmurar era:

- Não se mova, Teddy! Não faça o menor movimento... Foi quando Rikki-tikki entrou gritando:

- Eis-me aqui, Nagaína. Em guarda, que lá vai!

- Cada coisa a seu tempo, respondeu a cobra sem tirar os olhos da família apavorada. Depois justarei minhas contas com você. Olhe os seus amigos, Rikki-tikki. Estão imóveis e pálidos de morte... Estão aterrorizados e não ousam fugir... Se você se aproximar de mais um passo, dou o bote.

- Vá ver os seus ovos, respondeu Rikki-tikki. Vá ver os seus ovos lá no canteiro dos melões. Vá vê-los, Nagaína!

A serpente voltou-se então e viu rolar por terra o ovo trazido na boca pela mangusta.

- Ah! gemeu ela. Dê-mo!

Rikki-tikki pousou as patas de cada lado do ovo, enquanto seus olhos se tornavam rubros como o sangue.

- Qual o preço dum ovo de serpente? Qual o preço duma cobrinha? Qual o preço da última cobrinha? Da última da última ninhada? As formigas lá estão ocupadas em comer as outras, no canteiro dos melões.

Ao ouvir aquilo, Nagaína deu volta sobre si, esquecida de tudo por amor ao seu derradeiro ovo. Nesse momento Rikki-tikki viu o pai de Teddy estender os braços para o menino e e arrancá-lo donde estava, por cima da mesa.

- Lograda! Lograda! Lograda! Rikk-tck-tck! gargalhou a mangusta triunfante. O menino está salvo e fui eu... eu... eu quem agarrou Nag pelo capelo, esta noite, na sala de banho.

Em seguida pôs-se a saltar de todos os lados, numa alegria louca.

- Nag me sacudiu à grande, mas não conseguiu fazer-me largar cio seu pescoço - e já estava morto quando o homem lhe deu o tiro de misericórdia. Fui eu quem o matou! Rikkitikk-tck-tck ! Por aqui, Nagaína. Por aqui - e batamo-nos. Você não ficará viúva por muito tempo.

Nagaína viu que havia perdido toda a chance de matar o menino e que o ovo - seu último ovo - permanecia entre as patas da mangusta.

- Dê-me o ovo, Rikki-tikki! Dê-me o meu derradeiro ovo, que prometo ir-me para sempre, murmurou ela baixando o capelo.

- Sim, você vai daqui para sempre, porque vai para o monturo fazer companhia a Nag. Em guarda, senhora viúva! O homem já foi buscar o canudo que faz pum! Em guarda!

Rikki-tikki pôs-se a pular em torno de Nagaína, sempre fora do seu alcance, com os olhos vivos como brasas. A cobra armou o bote e arremeteu. Rikki escapou dum salto e recuou. Outro e outro bote foram lançados, mas a cabeça da cobra batia sempre num choque surdo contra a esteira e seu corpo tinha de enrolar-se de novo, como espiral de relógio. Rikk-tikki dançava-lhe em redor para a pilhar de costas e a serpente girava sobre si para ter sempre a cabeça de frente ao inimigo. O ruído da sua cauda na esteira soava como folhas mortas que o vento agita.

Rikki-tikki havia esquecido o ovo em certo ponto da varanda. A cobra foi se aproximando dele pouco a pouco, e, num momento em que Rikki tomava fôlego, segurou-o na boca e disparou de rumo ao jardim com a rapidez da flecha. Rikki a seguiu. Quando uma cobra foge para salvar a vida, toma o aspecto dum chicote ao acamar-se no pescoço do cavalo.

A mangusta sabia muito bem que, ou dava cabo da cobra, ou não haveria mais sossego na casa. Nagaína dirigia-se em linha reta para o ervaçal, perto do espinheiro, onde Darzee continuava piando o seu canto de triunfo, qual perfeito maluquinho. Já a companheira, muito mais avisada, voou do ninho e veio esvoaçar sobre a cabeça da cobra. Se Darzee fizesse o mesmo, teriam conseguido fazê-la deter-se; mas Nagaína limitou-se a achatar o capelo e prosseguiu na fuga veloz. Não obstante, a breve atrapalhação que o voejo da avezinha determinara na marcha da cobra permitiu que Rikki-tikki se aproximasse e lhe ferrasse o dente na cauda, no momento em que Nagaína se ia sumindo no buraco onde morava - e lá se
foram por ele além, a cobra e a mangusta, embora nenhuma, por mais experiente que seja, tenha o costume de seguir as cobras nos buracos.
==========
continua…
 
Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Trova 267 - Maria Lúcia Daloce Castanho (A Poesia)


Trova 266 - Janske Niemann (Dia da Poesia)

Ógui Lourenço Mauri (Poesia)

Poesia vem do impulso do poeta,
Só ele mesmo a concebe e cultiva.
Inconteste linguagem subjetiva,
Nasce aos olhos e o coração completa.

Poesia é essência provinda d'alma,
Conduzindo fluidos de paz e amor.
Tomado pelas bênçãos do Senhor,
O poeta, no rimar, tudo acalma.

Poesia, eco da imaginação!
Sonhos, requintes de dor... e a verdade!
Lágrima, esperança... felicidade!...
Poeta é um dínamo de emoção.

Poesia é uma voz com ressonância,
Passaporte de sonhos, devaneios.
Instrumento para encontrar os meios
De trazer pra perto o amor à distância.

Poesia é bálsamo para a ferida;
Acenos de fé, chamando o descrente;
Canto dos passarinhos, envolvente...
A troca do "armagedon" pela vida.

Paulo Walbach Prestes (Lembrando Castro Alves... )

(no dia do aniversário de seu nascimento - 14 de março de 1847)

Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro cainda n'alma
É germe - que faz a palma,
É chuva - que faz o mar.

Bravo! a quem salva o futuro!
Fecundando a multidão!…
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.

Uma trova para o dia da poesia:
Hoje é dia de alegria...
ao lembrar os imortais,
é o dia da poesia
que canta os nossos ais...