domingo, 6 de abril de 2014

Helenice Sardenberg (Poemas Escolhidos)

Helenice é de Niterói/RJ

ARTE

Arte é conversar com a vida
Escutar os anjos
Não esconder as emoções
Deixar-se levar pela paixão

Arte é não duvidar do amor
É crer que o impossível é possível
Que a natureza é sábia
E que dela surge o inusitado, o imponderável

Arte é fazer da vida poesia
Espraiar-se em versos
Estrofes
Com rimas, sem rimas

Arte é brincar com prosa
É brindar-se em risos
É contagiar-se de alegria
É se deixar levar...

BAILARINA

Sola de sapato,
meia arrastão,
luva no bolso,
gravata no chão,
pura loucura...
Só confusão!
Eu bailarina,
você cafetão!
Vamos à festa?
Mais confusão!
Você me vigia, controla, assedia...
Quero bagunça, dança, alegria...
Você me esvazia, não me sacia...
Eu, bailarina, dançando sozinha...
No meio da rua,
olhando pra lua,
no meio do mundo,
é só solidão!

BRINDO A VIDA

Brindo a vida, mais que tudo
Brindo o amor, sua plenitude
Busco na realidade
A concretização dos sonhos
E sonho com novas possibilidades
Brindo as memórias
Que me constituíram
Brindo a lua, o sol
As forças da natureza
Entendo as dificuldades cotidianas
Supero-as acreditando no amanhã
Vislumbro novos amanheceres

ESSÊNCIA

Me descubro um ser sensível
Em eterno estado de apaixonamento
Desabrochando em emoções
Me descubro um ser capaz
De ver além da aparência
Desvelando suavemente a essência
A coisa em si
Que se esconde e que se revela
Às vezes escapa
E nada nunca é demais…

Amor de outono
Amor de outono
Amor que acarinha
Que coloca no colo
Que aconchega
E que de mansinho
Aquece o coração

AMOR DE OUTONO

Amor que escuta
Que entende os silêncios
Que devolve com palavras
Afeto e emoção

Amor de outono
Amor pleno de poesia
Que se espraia devagarinho
Preenchendo toda e qualquer lacuna
Que exista no coração

Amor de outono
Amor sábio
Que celebra
Que se desenrola
Se desenvolve
Pronto pra próxima estação

NAVEGANDO

Navego em seu corpo
Mergulho nos seus sonhos
Viajo em seus beijos
É tanto desejo
Sou feliz por tê-lo comigo
Sentindo o seu hálito banhado em frescor
Suas mãos percorrendo suavemente meu rosto
Sorriso que se revela
Olhares secretos
Repletos de segredos
Confidências
Juras e promessas de amor
Navego em seu corpo
Há a magia do encontro
Sou toda sua
Sem medo
Encontro de almas
Contato sublime
Eterno apaixonamento
Momento sagrado
Só nós dois: amor!

PROMESSA

Da terra seca e árida brota o amor
A lua inconteste reflete o desejo dos amantes
Corações densos de paixão
Busca intensa pelo prazer
Esperança no amanhã

Os amantes choram, pois há plenitude
Suas lágrimas são como gotas de chuva
Incessantes, lavam a alma
Limpam o terreno aberto à sedução
Extrapolam o limite do agora, amor-paixão!

PALAVRAS

Palavras ditas
Não ditas
Malditas
Palavras que se debruçam em minha garganta
Palavras silenciadas
Sofridas
Gritos
Sussurros
Feridas
Quero curá-las
Quero vencê-las!

NA ESQUINA

Na esquina
Na dobra
Na curva
Perímetro urbano
Limites do coração
Enganado, enganando a si próprio
Mundano
Coração desarrumado
Que faz pirraça
E que deixa espraiar a melancolia
Coração que se perdeu
Na curva
Na dobra
Na esquina

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/poesias/4648186

Artur Eduardo Benevides (Dos mortos e de seus veleiros invisíveis)

I

Os que vão morrer
não sabem o que é a morte.
Só os mortos são grandes. E fortes.
Artifícios não têm. Ou sarabandas.
E imóveis estão, em finíssimas varandas,
atrás dos vitrais de sua solidão.
O seu ficar-em-si
é como um espelho entrando num espelho
ou os reflexos da tarde num rubi.
Ninguém os turbará. Eles já são
iguais a velas, à noite, nos conventos,
ou a imóveis e puros pensamentos
ao brilho estelar das estações.
De seu sono nos vêm. Na realidade
são semáforos quase evanescentes
da verdade.
E todos estão
bem mais em nossa dor do que no chão.

II

Livres de mágoas ou de precisões,
ou do incessante ulular das multidões,
os mortos são iguais aos talismãs
ou aos ventos gemendo nas manhãs
sem saber que gemem.
Mesmo assim se cumprem. E vão
pelos entardeceres da canção
pondo o seu olhar que tudo diz
ao pé de um invisível chafariz.
E alguns são belos
como um vago cantar que não cantamos.
E se os lembramos,
há uma chuva lá fora, mesmo que não chova,
e tudo, semelhando alguém que nos socorra,
busca levar-nos aos seus mediterrâneos.

III

Os mortos nada pedem, mas pesam no silêncio
de sua ausência e pura transcendência.
Em seu vasto doer e solidão,
são versos exaustos da canção de velha serenata.
Em sua face inexata
tudo é exílio qual coche a se afastar
ao final de delírios,
tentando retornar.
Mas, para quê? Para onde?
O que lhes pertencia já em nós se esconde.
E em todas as salas do nosso infortúnio
crescem plenilúnios.

IV

Os mortos preservam-se. E prosseguem
com a força do frio em largos icebergs.
Seus gestos já desaconteceram,
mas alguns, de tão jovens, reamanheceram
como romãs nas árvores de Deus.
Outros, viraram camafeus
que senhoras carregam pregados as vestidos.
Muitos, contudo, permanecem esquecidos.
E a morte é noturna. É uma invisível urna
de cristal.
Ou um solo de órgão
em catedral.
E os mortos escutam sem medo
as chaconas que cobrem os dobres e segredos.
Alguns, às vezes, passam, em perdição,
e numa asa de canção
sorriem.

V

Ai, na morte
surpresas não há: só grandeza.
Acima do tempo ou das navegações,
ela alimenta a noite
em nossa dimensão.
É igual às crianças que jamais nasceram
ou não chegaram nunca com seu riso.
E num vôo, na tarde, se perderam
e só retomarão no Grande Juízo.
Virão tristes, alegres, ou caladas?
Ou ficarão para sempre encantadas?
Mas, alguns saem da paz dos ataúdes
seguindo os sons de estranhos alaúdes
que procuram endormir profundamente
as almas já cansadas.

VI

Eles não necessitam de relógios,
ou dos ruídos das solenidades.
São simples e belos, iguais à irrealidade
de seu silêncio sempre tão real.
Mesmo alados, estão paralisados
ante córregos imóveis a olhar
o Mar do mar.
E por eles choraram assírios e hebreus,
macedônios, caldeus e babilônios,
as mulheres de Esparta e os lutadores jônios,
ou as violas sensuais de Andaluzia
no final do dia.
Ou as cornamusas nas noites de Sião.
E tudo é solidão. Tudo são fráguas.
E o cadáver de Ofélia sobre as águas?
Os escravos de Jó? Ou os que em Jericó
feriram as cabeças junto aos muros
em momentos terríveis ou escuros?
E enquanto atravessamos lonjuras e fronteiras,
as chamas se apagam, lentas, nas fogueiras.

VII

Os mortos, nas camarinhas de sua hospedaria,
sustêm a ponte pênsil de longa travessia,
amarrando-a em réquiens e em gestos piedosos
daqueles que, au delà, esperam todo dia
seu nunca regressar.
E a verdade da morte, tão única e púnica?
Às vezes, é mais terrível do que um grito nas muralhas,
ao trágico esplendor de chamas e batalhas.
E tudo em silêncio e abandono cai,
nas tardes de Avignon, nas ruas de Xangai,
em terras de Espanha e areias de Portugal,
na Serra da Aratanha e no Canal
da Mancha. Ou em Bruxelas.
E o vento, soturno, bate nas janelas
enquanto a morte, sempre insaciada,
sorve o néctar que molha
os ramos, em alvoradas.
Oh, os mortos, nas arcas da história,
ou na obscura nudez de sua vã memória!
Quantos sonetos e epitáfios
gravados a seus pés!
De seu grande convés eles nos olham
a barlavento e a sotavento, além.
E continuam a olhar, às vezes com desdém,
e com tal força de convencimento,
que amadurecem qual grave pensamento
ante a visão do mar.
Tudo neles é um túnel
circular. Ou uma árvore
sem água e sem ar.
À luz de suas lanternas
a eternidade hiberna.
E é nossa missão cantar seu cantochão.
Ou mastigar, em nossa consciência,
as amêndoas amargas ou o sal
de sua inexistência.

VIII

Os mortos
(os únicos seres que não envelhecem)
chorados não sejam, mas amados.
Cada dia devemos imaginar
que eles de repente podem retornar.
E são iguais a borboletas no chifre de um bisão
ou a esquilos a saltar, nas sombras, sobre a vida,
enquanto os santos e os monges rezam
e o inverno aproxima-se fatal
como em despedida.

IX

Praticamos lágrimas.
Somos hóspedes
do fluir de vãs recordações.
E solitudes sentam-se em nós
e alteram nossa voz
como o vento da terra se altera nos verões.
Mas tudo, afinal, é um infindo
morrer. Um que fazer
sem fim. Ou um trampolim
de nada.
Não há sol entre os mortos.
Só lâmpadas de azeite
entre as brumas e os ócios
de seus vagos portos.
E as cores são baças. Ou lânguidas. E há
entre portões cinzentos uma indizível
paz.
Muito mais do que nós eles estão
completamente sós.
E não há notícias de novas madrugadas.
As portas estão entrecerradas.
E pelas frestas percebe-se lá fora
a triste beleza de sua imóvel aurora.

Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/artur1.html#esperanca

Artur Eduardo Benevides (Príncipe dos Poetas do Ceará)

Artur Eduardo Benevides (Pacatuba, Ceará, 1923) é poeta, ensaísta e contista brasileiro, com mais de quarenta livros publicados.

Nasceu em Pacatuba, 25 de julho de 1923, filho de Artur Feijó Benevides e Maria do Carmo Eduardo Benevides. Fez os preparatórios no Colégio São Luís e no Liceu, bacharelando-se em 1947 pela Faculdade de Direito do Ceará. Bacharel em Letras (1970).

Presidiu o Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua e a Sociedade Acadêmica de Cultura.

Iniciou-se no jornalismo (“Correio do Ceará”, “Unitário”, “O Povo”, “O Nordeste”). Um dos fundadores do Grupo Clã, de cuja revista foi assíduo colaborador. Também escreveu em “Valor”.

– Professor Emérito da Faculdade de Filosofia do Ceará. Diretor da Faculdade Católica de Filosofia.
– Professor titular da Universidade Federal do Ceará.
– Dirigiu o Departamento Regional do SENAC (Serviço de Aprendizagem Comercial) e o Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Rosário (Argentina).
– Ocupou o cargo de Chefe da Procuradoria da extinta LBA (Legião Brasileira de Assistência) no Ceará.
– Visitou grandes universidades européias (Oxford, Colônia, Bonn, Sorbonne, Lisboa), em todas colhendo observações práticas sobre currículos e orientação pedagógica.
– Participou do 1 Congresso Internacional de Escritores, do II Congresso Brasileiro de Escritores, dos Congressos Cearenses de Escritores e de Poesia.

Titular da cadeira n° 40 (patrono: Visconde de Sabóia), coube-lhe a honra de presidir a instituição no seu centenário, fazendo realizar programação comemorativa de alto nível.

Portador de numerosas condecorações e medalhas, entre elas a do Mérito Cultural da Universidade Federal do Ceará, a Justiniano de Serpa (por serviços prestados à educação), a José de Alencar (pelos serviços prestados às letras e artes cearenses), a de Honra ao Mérito do SENAC (por sua colaboração à melhoria do ensino técnicoprofissional no Brasil) e a Cidade de Fortaleza (concedida pela Câmara Municipal da capital cearense).

Membro correspondente da Academia Cearense de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro.

Detentor dos prêmios “Cassiano Ricardo”, de São Paulo; “Filgueiras Lima, do Ceará; “Farias Brito”, da Prefeitura Municipal de Fortaleza; “José Albano”, da Universidade Federal do Ceará, e “José Veríssimo”, da Academia Brasileira de Letras.Fonte:1001 Cearenses Notáveis-F. Silva Nobre.

Foi eleito, em 1985, o Príncipe dos Poetas Cearenses, título já detido pelo Padre Antônio Tomás, por Cruz Filho e por Jáder de Carvalho.

Membro da Academia Cearense de Letras, tendo sido seu presidente entre 1995 e 2005);

Membro da Academia Cearense de Língua Portuguesa e da Academia Fortalezense de Letras.

Em 2000 foi derrotado em eleição para a Academia Brasileira de Letras pelo escritor Ivan Junqueira.

Artur Eduardo Benevides é vencedor de mais de trinta prêmios literários, destacando-se a Bienal Nestlé de Literatura, em 1988.

Estreou em 1944 com os poemas de Navio da Noite;
Os Hóspedes (1946), em parceria com Aluísio Medeiros, Antônio Girão Barroso e Otacílio Colares.
A Valsa e a Fonte (1950);
Cancioneiro da Cidade de Fortaleza (1953);
O Habitante da Tarde (1958);
O Caçador e as Cousas Longamente Procuradas (1966);
Canção da Rosa dos Ventos (1966);
O Viajante da Solidão (1969);
Vida de Andarilho (1974);
Elegias de Outono e Canção de Muito Amar e de Adeus (1974);
Arquitetura da Névoa (1979);
A Rosa do tempo ou o Intérmino Partir (1981);
Sonetos à Beira-Mar e Elegias do Espaço Imaginário (1981), e
Inventário da Tarde (1983), afora outros.

Como ensaísta, publicou:
A Lâmpada e os Apóstolos (1982);
Universidade e Humanismo (1971);
Uma Vida a Serviço da Cultura (1973);
Idéias e Caminhos (1974);
Evolução da Poesia e do Romance Cearense (1976);
O Tema da Saudade na Poesia Luso-Brasileira (1979);
Literatura do Povo: Alguns Caminhos (1980), e Camões - Um Tema Brasileiro (1983).

Também se incluem na sua produção os contos de Caminho sem Horizonte (1958), a Antologia de Poetas Bissextos do Ceará (1970) e obras sobre educação.

Fonte:
Portal do Ceará

Machado de Assis (Cinco Mulheres)

Aqui vai um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na mesma coleção, como em um álbum de fotografias.

Desenhei-as rapidamente, conforme apareciam, sem intenção de precedência, nem cuidado de escolha.

Cada uma delas forma um esboço à parte; mas todas podem ser examinadas entre o charuto e o café.

I

Marcelina


Marcelina era uma criatura débil como uma haste de flor; dissera-se que a vida lhe fugia em cada palavra que lhe saía dos lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido como os últimos raios do dia. A cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava ao céu. Quinze anos contava, como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava destinada a colher a um tempo as flores da terra e as flores da morte.

De todas as irmãs — eram cinco —, era Marcelina a única a quem a natureza tinha dado tão pouca vida. Todas as mais pareciam ter seiva de sobra. Eram mulheres altas e reforçadas, de olhos vivos e cheios de fogo. Alfenim era o nome que davam a Marcelina.

Ninguém a convidava para as fadigas de um baile ou para os grandes passeios. A boa menina fraqueava depois de uma valsa ou no fim de cinqüenta passos do caminho.

Era ela a mais querida dos pais. Tinha na sua fragilidade a razão da preferência. Um instinto secreto dizia aos velhos que ela não havia de viver muito; e como que para desforrá-la do amor que havia de perder, eles a amavam mais do que às outras filhas. Era ela a mais moça, circunstância que acrescia àquela, porque ordinariamente os pais amam o último filho mais do que os primeiros, sem que os primeiros pereçam inteiramente no seu coração.

Marcelina tocava piano perfeitamente. Era a sua distração habitual; tinha o gosto da música no mais apurado grau. Conhecia os compositores mais estimados, Mozart, Weber, Beethoven, Palestrina. Quando se assentava ao piano para executar as obras dos seus favoritos, nenhum prazer da terra a tiraria dali.

Chegara à idade em que o coração da mulher começa a interrogá-la secretamente; mas ninguém conhecia um sentimento só de amor no coração de Marcelina. Talvez não fosse a hora, mas todos que a viam acreditavam que ela não pudesse amar na terra, tão do céu parecia ser aquela delicada criatura.

Um poeta de vinte anos, virgem ainda nas suas ilusões, teria encontrado nela o mais puro ideal dos seus sonhos; mas nenhum havia na roda que frequentava a casa da moça. Os homens que lá iam preferiam a tagarelice insossa e incessante das irmãs à compleição frágil e a recatada modéstia de Marcelina.

A mais velha das irmãs tinha um namorado. As outras sabiam do namoro e o protegiam na medida dos seus recursos. Do namoro ao casamento pouco tempo mediou, apenas um mês. O casamento foi fixado para um dia de junho. O namorado era um belo rapaz de vinte e seis anos, alto, moreno, de olhos e cabelos pretos. Chamava-se Júlio.

No dia seguinte em que se anunciou o casamento de Júlio, Marcelina não se levantou da cama. Era uma ligeira febre que cedeu no fim de dois dias aos esforços de um velho médico, amigo do pai. Mas, ainda assim, a mãe de Marcelina chorou amargamente, e não dormiu uma hora. Nunca houve crise séria na moléstia da filha, mas o simples fato da moléstia bastou para que a boa mãe perdesse a cabeça. Quando a viu de pé regou de lágrimas os pés de uma imagem da Virgem, que era a sua devoção particular.

Entretanto seguiam os preparativos do casamento. Devia efetuar-se dali a quinze dias.

Júlio estava radiante de alegria, e não perdia ocasião de comunicar-se a todos o estado em que se achava. Marcelina ouvia-o com tristeza; dizia-lhe duas palavras de cumprimento e desviava a conversa daquele assunto, que lhe parecia penoso. Ninguém reparava, menos o médico, que um dia, em que ela se achava ao piano, disse-lhe com ar pesaroso: — Menina, isso faz-lhe mal.

— Isso quê? — Sufoque o que sente, esqueça um sonho impossível e não vá adoecer por um sentimento sem esperança.

Marcelina cravou os olhos nas teclas do piano e levantou-se a chorar.

O doutor saiu mais pesaroso do que estava.

— Está morta, dizia ele descendo as escadas.

O dia do casamento chegou. Foi uma alegria na casa, mesmo para Marcelina, que cobria a irmã de beijos; aos olhos de todos era a afeição fraternal que se manifestava assim num dia de júbilo para a irmã; mas a um olhar experimentado não escaparia a tristeza escondida debaixo daquelas demonstrações tão fervorosas.

Isto não é um romance, nem um conto, nem um episódio; — não me ocuparei, portanto, com os acontecimentos dia por dia. Um mês se passou depois do casamento de Júlio com a irmã de Marcelina. Era o dia marcado para o jantar comemorativo em casa de Júlio. Marcelina foi com repugnância, mas era preciso; simular uma doença era impedir a festa; a boa menina não quis. Foi.

Mas quem pode responder pelo futuro? Marcelina, duas horas depois de estar em casa da irmã, teve uma vertigem. Foi levada para um sofá, mas tornada a si achou-se doente.

Foi transportada para casa. Toda a família a acompanhou. A festa não teve lugar.

Declarou-se uma nova febre.

O médico, que sabia o fundo da doença de Marcelina, procurou curar-lhe a um tempo o corpo e o coração. Os remédios do corpo pouco faziam, porque o coração era o mais doente. O médico quando empregava uma dose no corpo, empregava duas no coração.

Eram os conselhos brandos, as palavras persuasivas, as carícias quase fraternais. A moça respondia a tudo com um sorriso triste — era a única resposta.

Quando o velho médico lhe dizia: — Menina, esse amor é impossível...

Ela respondia: — Que amor? — Esse: o de seu cunhado.

— Está sonhando, doutor. Eu não amo ninguém.

— É debalde que procura ocultar.

Um dia, como ela insistisse em negar, o doutor ameaçou-a sorrindo que ia contar tudo à mãe.

A moça empalideceu mais do que estava.

— Não, disse ela, não diga nada.

— Então, é verdade? A moça não ousou responder: fez um leve sinal com a cabeça.

— Mas não vê que é impossível? perguntou o doutor.

— Sei.

— Então por que pensar nisso? — Não penso.

— Pensa. É por isso que está tão doente...

— Não creia, doutor; estou doente porque Deus o quer; talvez fique boa, talvez não; é indiferente para mim; só Deus é quem manda estas coisas.

— Mas sua mãe?...

— Ela irá ter comigo, se eu morrer.

O médico voltou a cabeça para o lado de uma janela que se achava meio aberta.

Esta conversa reproduziu-se muitas vezes, sempre com o mesmo resultado. Marcelina definhava a olhos vistos. No fim de alguns dias o médico declarou que era impossível salvá-la.

A família ficou desolada com esta notícia.

Júlio ia visitar Marcelina com sua mulher; nessas ocasiões Marcelina sentia-se elevada a uma esfera de bem-aventurança. Vivia da voz de Júlio. As faces se lhe coloriam e os olhos readquiriam um brilho celeste.

Depois voltava ao seu estado habitual.

Mais de uma vez quis o médico declarar à família qual era a verdadeira causa da moléstia de Marcelina; mas que ganharia com isso? Não viria daí o remédio, e a boa menina ficaria do mesmo modo.

A mãe, desesperada com aquele estado de coisas, imaginou todos os meios de salvar a filha; lembrou a mudança de ares, mas a pobre Marcelina raras vezes deixava de arder em febre.

Um dia, era um domingo de julho, a menina declarou que desejava comunicar alguma coisa ao doutor.

Todos os deixaram a sós.

— Que quer? perguntou o médico.

— Sei que é nosso amigo, e sobretudo meu amigo. Sei quanto sente a minha doença, e como lhe dói que eu não possa ficar boa...

— Há de ficar, não fale assim...

— Qual doutor! eu sei o que sinto! Se lhe quero falar é para dizer-lhe uma coisa. Quando eu morrer não diga a ninguém qual foi o motivo da minha morte.

— Não fale assim... interrompeu o velho levando o lenço aos olhos.

— Di-lo-á somente a uma pessoa, continuou Marcelina; é a minha mãe. Essa sim, coitada, que tanto me ama e que vai ter a dor de me perder! Quando lhe disser, entregue-lhe então este papel.

Marcelina tirou debaixo do travesseiro uma folha de papel dobrada em quatro, e atada por uma fita roxa.

— Escreveu isto? Quando? perguntou o médico.

— Antes de adoecer.

O velho tomou o papel das mãos da doente e guardou-o no seu bolso.

— Mas, venha cá, disse ele, que ideias são essas de morrer? Tão moça! Começa apenas a viver; outros corações podem ainda receber os seus afetos; para que quer tão cedo deixar o mundo? Pode ainda encontrar nele uma felicidade digna da sua alma e dos seus sentimentos... Olhe cá, ficando boa iremos todos para fora. A menina gosta da roça. Pois toda a família irá para a roça...

— Basta, doutor! É inútil.

Daí em diante Marcelina pouco falou.

No dia seguinte à tarde Júlio e a mulher vieram visitá-la. Marcelina achava-se pior. Toda a família estava ao pé da cama. A mãe debruçada à cabeça chorava silenciosamente.

Quando veio a noite fechada, declarou-se a crise da morte. Houve então uma explosão de soluços; porém a menina, serena e calma, a todos procurava consolar dando-lhes a esperança de que iria orar por todos no céu.

Quis ver o piano em que tocava; mas era difícil satisfazer-lhe o desejo e ela facilmente se convenceu. Não desistiu porém de ver as músicas; quando elas lhas deram distribuiu-as pelas irmãs.

— Quanto a mim vou tocar outras músicas no céu.

Pediu algumas flores secas que tinha numa gaveta, e distribuiu-as igualmente pelas pessoas presentes.

Às oito horas expirou.

Um mês depois o velho médico, fiel à promessa que fizera à moribunda, pediu uma conferência particular à infeliz mãe.

— Sabe de que morreu Marcelina? perguntou ele; não foi de uma febre, foi de um amor.

— Ah! — É verdade.

— Quem era? — A pobre menina pôs a sua felicidade num desejo impossível; mas não se revoltou contra a sorte; resignou-se e morreu.

— Quem era? perguntou a mãe.

— Seu genro.

— É possível? disse a pobre mãe dando um grito.

— É verdade. Eu o descobri, e ela me confessou. Sabe como eu era amigo dela; fiz tudo quanto pude para desviá-la de semelhante pensamento; mas tinha chegado tarde. A sentença estava lavrada; ela devia amar, adoecer e subir ao céu. Que amor, e que destino! O velho tinha os olhos rasos de lágrimas; a mãe de Marcelina chorava e soluçava que cortava o coração. Quando ela pôde ficar um pouco calma, o médico continuou: — A entrevista que ela me pediu nos seus últimos dias foi para dar-me um papel, disse-me então que lho entregasse depois da morte. Aqui o tem.

O médico tirou do bolso o papel que recebera de Marcelina e lho entregou intacto.

— Leia-o, doutor. O segredo é nosso.

O doutor leu em voz alta e com voz trêmula: Devo morrer deste amor. Sinto que e o primeiro e o último. Podia ser a minha vida e é a minha morte. Por quê? Deus o quer.

Não viu ele nunca que era eu a quem devia amar. Não lhe dizia acaso um secreto instinto que eu carecia dele para ser feliz? Cego! foi procurar o amor de outra, tão sincero como o meu, mas nunca tão grande e tão elevado! Deus o faça feliz! Escrevi um pensamento mau. Por que me hei de revoltar contra minha irmã? Não pode ela sentir o que eu sinto? Se eu sofro por não ter a felicidade de possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer a minha felicidade à custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou. Que ela seja feliz e sofra eu a minha sorte.

Talvez eu possa viver; e nesse caso, ó minha Virgem da Conceição, eu só te peço que me dês a força necessária para ser feliz só com a vista dele, embora ele me seja indiferente.

Se mamãe soubesse disto talvez ralhasse comigo, mas eu acho que...

O papel achava-se interrompido neste ponto.

O médico acabou estas linhas banhado em lágrimas. A mãe chorava igualmente. O segredo confiado aos dois morreu com ambos.

Mas um dia, tendo morrido a velha mãe de Marcelina, e procedendo-se ao inventário, foi achado o papel pelo cunhado de Marcelina... Júlio conheceu então a causa da morte a cunhada. Lançou os olhos para um espelho, procurando nas suas feições um raio da simpatia que inspirara a Marcelina, e exclamou: — Pobre menina! Acendeu um charuto e foi ao teatro.

II

Antônia


A história conhece um tipo da dissimulação, que resume todos os outros, como a mais alta expressão de todos: — é Tibério. Mas nem esse chegaria a vencer a dissimulação dos Tibérios femininos, armados de olhos e sorrisos capazes de frustrar os planos mais bem combinados e enfraquecer as vontades mais resolutas.

Antônia era uma mulher assim.

Quando eu a conheci era ela casada de doze meses. O marido tinha nela a mais plena confiança. Amavam-se ambos com o amor mais ardente e apaixonado que ainda houve.

Era uma alma só em dois corpos. Se ele demorava fora de casa, Antônia não só velava todo o tempo, como desfazia-se em lágrimas de saudades e de dor. Apenas ele chegava, não havia o desenlace comum das recriminações estéreis; Antônia lançava-se-lhe aos braços e tudo voltava em bem.

Onde um não ia, não ia o outro. Para quê, se a felicidade deles residia em estarem juntos, viverem dos olhos um do outro, fora do mundo e dos seus vãos prazeres? Assim ligadas estas duas criaturas davam ao mundo o doce espetáculo de uma união perfeita. Eram o enlevo das famílias e o desespero dos mal casados.

Antônia era bela; tinha vinte e seis anos. Estava no pleno desenvolvimento de uma dessas belezas robustas e destinadas a resistir à ação do tempo. Oliveira, seu marido, era o que se podia chamar um Apolo. Via-se que aquela mulher devia amar aquele homem e aquele homem devia amar aquela mulher.

Frequentavam a casa de Oliveira alguns amigos, uns da infância, outros de data recente, alguns de menos de um ano, isto é, da data do casamento de Oliveira. A amizade é o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte na felicidade de outro. Os amigos de Oliveira, que não primavam pela originalidade dos costumes, não ficaram isentos de encantos que a beleza de Antônia produzia em todos.

Uns, menos corajosos, desanimaram diante do extremoso amor que ligava o casal; mas um houve, menos tímido, que assentou de si para si tomar lugar à mesa da ventura doméstica do amigo.

Era um tal Moura.

Não sei dos primeiros passos de Moura; nem das esperanças que ele pôde ir concebendo à proporção que corria o tempo. Um dia, porém, a notícia de que entre Moura e Antônia havia um laço de simpatia amorosa surpreendeu a todos.

Antônia era até então o símbolo do amor e da felicidade conjugal. Que demônio lhe soprara ao ouvido tão negra resolução de iludir a confiança e o amor do marido? Uns duvidaram, outros se irritaram, alguns esfregaram as mãos de contentes, animados pela ideia de que o primeiro erro devia ser uma arma e um incentivo para os erros futuros.

Desde que a notícia, contada à meia voz, e com a mais perfeita discrição, correu de boca em boca, todas as atenções voltaram-se para Antônia e Moura. Um olhar, um gesto, um suspiro, escapam aos mais dissimulados; os olhos mais experimentados viram logo a veracidade dos boatos; se os dois se não amavam, estavam perto do amor.

Deve-se acrescentar que ao pé de Oliveira, Moura fazia o papel de deus Pã ao pé do deus Febo. Era uma figura vulgar, às vezes ridículo, sem nada que pudesse legitimar a paixão de uma mulher bela e altiva. Mas assim aconteceu, a grande aprazimento da sombra de La Bruyère.

Uma noite uma família da amizade de Oliveira foi convidá-la para irem ao Teatro Lírico.

Antônia mostrou grande desejo de ir. Cantava então não sei que celebridade italiana.

Oliveira, por doente ou por enfado, não quis ir. As instâncias da família que os convidara foram inúteis; Oliveira teimou em ficar.

Oliveira insistia em ficar, Antônia em ir. Depois de muito tempo o mais que se conseguiu foi que Antônia fosse em companhia das amigas, que a trariam depois para casa.

Oliveira ficara em companhia de um amigo.

Mas, antes de saírem todos, Antônia insistiu de novo com o marido para que fosse.

— Mas se eu não quero ir? dizia ele. Vai tu, eu ficarei, conversando com ***.

— E que se tu não fores, disse Antônia o espetáculo não vale nada para mim. Anda! — Vai, querida, eu irei em outra ocasião.

— Pois não vou! E sentou-se disposta a não ir ao teatro. As amigas exclamaram em coro: — Como é isso: não ir? Que maçada! Era o que faltava! anda, anda! — Vai, sim, disse Oliveira. Então por que eu não vou, não te queres divertir? Antônia levantou-se: — Está bem, disse ela, irei.

— De que número é o camarote? perguntou bruscamente Oliveira.

— Vinte, segunda ordem, disseram as amigas de Antônia.

Antônia empalideceu ligeiramente.

— Então, irás depois, não é? disse ela.

— Não, decididamente, não.

— Dize se vais.

— Não, fico, é decidido.

Saíram para o Teatro Lírico. Sob pretexto de que desejava ir ver a celebridade tomei o chapéu e fui ao Teatro Lirico.

Moura estava lá!

III

Carolina


Pois quê! vais casar-te? — É verdade.

— Com o Mendonça? — Com o Mendonça.

— Isso é impossível! Tu, Carolina, tu formosa e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor? Ama-o acaso? — Hei de estimá-lo.

— Não o amas, já vejo.

— É meu dever. Que queres, Lúcia? Meu pai assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai! ele cuida fazer a minha felicidade. A fortuna de Mendonça parece-lhe uma garantia de paz e de ventura da minha vida. Como se engana! — Mas não deves consentir nisso... Vou falar-lhe.

— É inútil, nem eu quero.

— Mas então...

— Olha, há talvez outra razão: creio que meu pai deve favores ao Mendonça; este apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não teve ânimo de recusar-me.

— Pobre amiga! Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte da futura mulher de Mendonça. É mais uma vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à necessidade. Assim é. Carolina devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e era isso o que lamentava a amiga Lúcia.

— Pobre Carolina! — Boa Lúcia! Carolina é uma moça de vinte anos, alta, formosa, refeita. Era uma dessas belezas que seduzem os olhos lascivos, e já por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça é um desses, com a circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os seus caprichos.

Bem vejo como me poderia levar longe este último ponto da minha história; mas eu desisto de fazer agora uma sátira contra o vil metal (por que metal?); e bem assim não me dou ao trabalho de descrever a figura da amiga de Carolina.

Direi somente que as duas amigas conversavam no quarto de dormir da prometida noiva de Mendonça.

Depois das lamentações feitas por Lúcia à sorte de Carolina, houve um momento de silêncio. Carolina empregou algumas lágrimas; Lúcia continuou: — E ele? — Quem? — Fernando.

— Ah! esse que me perdoe e me esqueça; é tudo quanto posso fazer por ele. Não quis Deus que fôssemos felizes; paciência! — Por isso o vi triste lá na sala! — Triste? ele não sabe nada. Há de ser por outra coisa.

— O Mendonça virá? — Deve vir.

As duas moças saíram para a sala. Lá se achava Mendonça em conversa com o pai de Carolina, Fernando a uma janela de costas para a rua, uma tia de Carolina conversando com o pai de Lúcia. Ninguém mais havia. Esperava-se a hora do chá.

Quando as duas moças apareceram todos voltaram-se para elas. O pai de Carolina foi buscá-las e levou-as a um sofá.

Depois, no meio do silêncio geral, o velho anunciou o casamento próximo de Carolina e Mendonça.

Ouviu-se um grito sufocado do lado da janela. Ouviu-se, digo mal — não se ouviu; Carolina foi a única que ouviu ou antes adivinhou. Quando voltou os olhos para a janela, Fernando estava de costas para a sala e tinha a cabeça entre mãos.

O chá foi tomado no meio de geral acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai de Carolina, aprovava semelhante consórcio.

Mas, quer aprovasse, quer não, ele devia efetuar-se daí a vinte dias.

Entro no teto conjugal como num túmulo, escrevia Carolina na manhã do casamento à amiga Lúcia; deixo as minhas ilusões à porta, e peço a Deus que não perca só isso.

Quanto a Fernando, a quem ela não pôde ver mais depois da noite da declaração do casamento, eis a carta que ele mandou a Carolina, na véspera de realizar-se o consórcio: Quis acreditar até hoje que fosse uma ilusão, ou um sonho mau semelhante casamento; agora sei que não é possível duvidar da verdade. Pois quê! tudo te esqueceu, o amor, as promessas, os castelos de felicidade, tudo, por amor de um velho ridículo, mas opulento, isto é, dono desse vil metal, etc., etc..

O leitor sagaz suprirá o resto da carta, acrescentando qualquer período tirado de qualquer romance da moda.

Isto que aí fica escrito não muda em nada a situação da pobre Carolina; condenada a receber recriminações quando ia dar a mão de esposa com o luto no coração.

A única resposta dada por ela à carta de Fernando foi esta: Esqueça-se de mim.

Fernando não assistiu ao casamento. Lúcia assistiu triste como se fora um enterro. Em geral perguntava-se que amor estranho era aquele que levava Carolina a desfolhar a sua mocidade tão viçosa nos braços de semelhante homem. Ninguém atinava com a resposta.

Como eu não quero entreter os leitores com episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou levá-los à casa do Mendonça, numa manhã de inverno.

Lúcia, solteira ainda, está com Carolina, onde costuma ir passar alguns dias. Não se fala na pessoa de Mendonça; Carolina é a primeira a respeitá-lo; a amiga respeita esses sentimentos.

É verdade que os seis primeiros meses de casamento foram para Carolina seis séculos de lágrimas, de angústia, de desespero. De longe a desgraça parecia-lhe menor; mas desde que ela pôde tocar com o dedo o deserto árido e seco em que entrou, então não pôde resistir e chorou amargamente.

Era o único recurso que lhe restava: chorar. Uma porta de bronze separava-a para sempre da felicidade que sonhara nas suas ambições de donzela. Ninguém sabia dessa odisséia íntima, menos Lúcia, que ainda assim sabia mais por adivinhar e por surpreender as torturas menores da companheira dos primeiros anos.

Estavam, pois, as duas em conversa, quando às mãos de Carolina chegou uma carta assinada por Fernando.

Pintava-lhe o antigo namorado o estado em que tinha o coração, as dores que sofrera, as mortes de que escapara. Nessa série de padecimentos, dizia ele, nunca perdera a coragem de viver para amá-la, embora de longe.

A carta era abundante em comentários, mas eu julgo melhor conservar somente a substância dela.

Leu-a Carolina, trêmula e confusa; esteve alguns minutos calada; depois rasgando a carta em tiras muito miúdas: — Pobre rapaz! — Que é? perguntou Lúcia.

— É uma carta de Fernando.

Lúcia não insistiu. Carolina indagou do escravo que lhe trouxera a carta o modo por que lhe havia chegado às mãos. O escravo respondeu que um moleque lha entregara à porta.

Lúcia deu ordem para que não recebesse cartas que viessem pelo mesmo portador.

Mas no dia seguinte uma nova carta de Fernando chegou às mãos de Carolina. Outro portador a entregara.

Nessa carta Fernando pintava com cores negras a situação em que se achava e pedia dois minutos de entrevista com Carolina.

Carolina hesitou, mas releu a carta; ela parecia tão desesperada e dolorosa, que a pobre moça, em quem falava um resto de amor por Fernando, respondeu afirmativamente.

Ia mandar a resposta, mas de novo hesitou e rasgou o bilhete, protestando fazer o mesmo a quantas cartas chegassem.

Durante os cinco dias seguintes vieram cinco cartas, uma por dia, mas todas ficaram sem resposta, como as anteriores.

Enfim, na noite do quarto dia, Carolina achava-se no gabinete de trabalho, quando assomou à janela que dava para o jardim a figura de Fernando.

A moça deu um grito e recuou.

— Não grite! disse o moço em voz baixa, podem ouvir...

— Mas, fuja! fuja! — Não! quis vir de propósito, a fim de saber se deveras não me amas, se esqueceste aqueles juramentos...

— Não devo amá-lo!...

— Não deve! Que tem o dever conosco? — Vou chamar alguém! Fuja! Fuja! Fernando saltou para o quarto.

— Não, não hás de chamar! A moça correu para a porta. Fernando travou-lhe do braço.

— Que é isso? disse ele; amo-te tanto, e tu foges de mim? Quem impede a nossa felicidade? — Quem? Meu marido! — Seu marido! Que temos nós com ele? Ele...

Carolina pareceu adivinhar um pensamento sinistro em Fernando e tapou os ouvidos.

Nesse momento abriu-se a porta e apareceu Lúcia.

Fernando não pôde afrontar a presença da moça. Correu para a janela e saltou para o jardim.

Lúcia, que ouvira as últimas palavras dos dois, correu a abraçar a amiga, exclamando: — Muito bem! muito bem! Dias depois Mendonça e Carolina saíram para uma viagem de um ano. Carolina escrevia o seguinte a Lúcia: Deixo-te, minha Lúcia, mas assim é preciso. Amei Fernando, e não sei se o amo agora, apesar do ato covarde que praticou. Mas eu não quero expor-me a um crime. Se o meu casamento é um túmulo, nem por isso posso deixar de respeitá-lo. Reza por mim e pede a Deus que te faça feliz.

Foi para estas almas corajosas e honradas que se fez a bem-aventurança.

IV

Carlota e Hortência


Uma fila de cinquenta carros, com um coche fúnebre à frente, dirigia-se para um dos cemitérios da capital.

O carro funerário conduzia o cadáver de Carlota Durval, senhora de vinte e oito anos, morta no esplendor da beleza.

Os que acompanhavam o enterro, apenas dois o faziam por estima à finada: eram Luís Patrício e Valadares.

Os mais iam por satisfazer a vaidade do viúvo, um José Durval, homem de trinta e seis anos, dono de cinco prédios e de uma dose de fatuidade sem igual.

Valadares e Patrício, na qualidade de amigos da finada, eram os únicos que traduziam no rosto a profunda tristeza do coração. Os outros levavam uma cara de tristeza oficial.

Valadares e Patrício iam no mesmo carro.

— Até que morreu a pobre senhora, disse o primeiro ao fim de algum silêncio.

— Coitada! murmurou o outro.

— Na flor da idade, acrescentava o primeiro, mãe de duas crianças tão bonitas, amadas por todos... Deus perdoe aos culpados! — Ao culpado, que foi só ele. Quanto à outra, essa se não fora desinquietada...

— Tens razão! — Mas ele deve ter remorsos.

— Quais remorsos! É incapaz de os ter. Não o conheces, como eu? Ri e zomba de tudo.

Isto para ele foi apenas um acidente; não lhe dá maior importância, acredita.

Este pequeno diálogo dá já ao leitor uma ideia dos acontecimentos que precederam à morte de Carlota.

Como esses acontecimentos são o objeto destas linhas destinadas a apresentar o perfil desta quarta mulher, passo a narrá-los mui sucintamente.

Carlota casara com vinte e dois anos. Não sei por que apaixonara-se por José Durval, e menos ainda no tempo de solteira, de que depois de casada. O marido era para Carlota um ídolo. Só a ideia de uma infidelidade da parte dele bastava para matá-la.

Viveram algum tempo no meio da mais perfeita paz, não que ele não desse à mulher motivos de desgosto, mas porque eram estes tão encobertos que nunca haviam chegado aos ouvidos da pobre moça.

Um ano antes Hortência B., amiga de Carlota, separava-se do marido. Dizia-se que era por motivos de infidelidade conjugal da parte dele; mas ainda que o não fosse, Carlota receberia a amiga em sua casa, tão amiga era dela.

Carlota compreendia as dores que podiam trazer a uma mulher as infidelidades do marido; por isso recebeu Hortência com os braços abertos e entusiasmo no coração.

Era o mesmo que se uma rosa abrisse o seio confiante a um inseto venenoso.

Dai a seis meses Carlota reconhecia o mal que tinha feito. Mas era tarde.

Hortência era amante de José Durval.

Quando Carlota descobriu qual era a situação de Hortência em relação a ela, sufocou um grito. Era a um tempo, ciúme, desprezo, vergonha. Se alguma coisa podia atenuar a dor que ela sentia, era a covardia do ato de Hortência, que tão mal pagava a hospitalidade que obtivera de Carlota.

Mas o marido? Não era igualmente culpado? Carlota avaliou de um relance toda a hediondez do proceder de ambos, e resolveu romper um dia.

A frieza que começou a manifestar a Hortência, mais do que isso, a repugnância e o desdém com que a tratava, despertou no espírito desta a ideia de que era preciso sair de uma situação tão falsa.

Todavia, retirar-se simplesmente seria confessar o crime. Hortência dissimulou e um dia recriminou a Carlota os seus modos recentes de tratamento.

Então tudo se clareou.

Carlota, com uma cólera sufocada, lançou em rosto à amiga o procedimento que tivera em casa dela. Hortência negou, mas era negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.

Depois disso era necessário sair. Hortência, negando sempre o crime de que era acusada, declarou que sairia de casa.

— Mas isso não desmente, nem remedia nada, disse Carlota com os lábios trêmulos. É simplesmente mudar o teatro das suas loucuras.

Esta cena abalou a saúde de Carlota. No dia seguinte amanheceu doente. Hortência apareceu para falar-lhe, mas ela voltou o rosto para a parede. Hortência não voltou ao quarto, mas também não saiu da casa. José Durval impôs essa condição.

— Que dirá o mundo? perguntava ele.

A pobre mulher foi obrigada a sofrer mais essa humilhação.

A doença foi rápida e benéfica, porque no fim de quinze dias Carlota expirava.

Os leitores já assistiram ao enterro dela.

Quanto a Hortência, continuou a viver em casa de José Durval, até que se passassem os primeiros seis meses do luto, no fim dos quais casaram-se perante um concurso numeroso de amigos, ou pessoas que se davam por isso.

Supondo que os leitores terão curiosidade de saber o que sucedeu depois, aqui termino com uma carta escrita, depois de dois anos da morte de Carlota, por Valadares a L.

Patrício.

Meu amigo. Corte, 12 de... — Vou dar-te algumas notícias que te hão de alegrar, como a mim, posto que a caridade evangélica nos manda lastimar as desgraças alheias. Mas há certas desgraças que parecem um castigo do céu e a alma sente-se satisfeita quando vê o crime punido.

Lembras-te ainda da pobre Carlota Durval, morta de desgosto pela traição do marido e de Hortência? Sabes que esta ficou a viver em casa do viúvo, e que no fim de seis meses casaram-se à face da Igreja, como duas criaturas abençoadas do céu? Pois bem, ninguém as faça que as não pague; Durval está mais do que nunca arrependido do passo que deu.

Primeiramente, ao passo que a pobre Carlota era uma pomba sem fel, Hortência é um dragão de saias, que não deixa o marido pôr pé em ramo verde. São exigências de toda a casta, exigências de luxo, exigências de honra, porque a fortuna de Durval não podendo resistir aos ataques de Hortência, foi-se desmoronando a pouco e pouco.

Os desgostos envelheceram o pobre José Durval. Mas se fosse apenas isso, era de agradecer a Deus. O caso, porém, tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga, não teve dúvida em trair o marido: Hortência tem hoje um amante! É realmente triste semelhante coisa, mas eu não sei por que esfreguei as mãos de contente quando soube da infidelidade de Hortência. Parece que as cinzas da Carlota deviam estremecer de alegria debaixo da terra...

Perdoe-me Deus a blasfêmia, se acaso o é.

Julguei que estas notícias te seriam agradáveis, a ti que estimastes aquela pobre mártir.

Ia acabando sem contar a cena que houve entre Durval e a mulher.

Um bilhete mandado por H. (o amante) caiu nas mãos de José Durval, não sei por que terrível acaso. Houve explosão da parte do marido; mas o infeliz não tinha forças para manter-se na sua posição; dois gritos e dois sorrisos da mulher puseram-lhe água fria na cólera.

Daí em diante, Durval anda triste, cabisbaixo, taciturno. Emagrece a olhos vistos. Pobre homem! afinal de contas começo a ter pena...

Adeus, meu caro, vai cultivando, etc...

Esta carta era dirigida a Campos, onde se achava L. Patrício. A resposta deste foi a seguinte: Muito me contas, meu amigo Valadares, acerca dos algozes da Carlota. É uma pagã, não deixes de crê-lo, mas no que fazes mal, é em mostrares alegria por essa desgraça. Nem devemos tê-la, nem as cinzas de Carlota se regozijaram no outro mundo. Os maus, no fim de conta, são dignos de lástima, por serem tão fracos que não possam ser bons. E basta a punição para ficarmos já condoídos do pobre homem.

Falemos de outra coisa. Sabes que os cafezais...

Não interessa aos leitores saber dos cafezais de L. Patrício.

O que interessa saber é que Durval morreu de desgosto dentro de pouco tempo, e que Hortência procurou na devoção de uma velhice prematura a expiação dos erros passados.

Fonte: 
www.dominiopublico.gov.br

Dáguima Collection - Trova 6

Facebook da trovadora

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Jangada de Versos do Ceará (Francisco Pessoa)

Francisco José Pessoa de Andrade Reis
Fortaleza/CE (1949)

-
DE PESSOA PRA PESSOA

Poesia é um sonho e, se sonhado,
Sobre nuvens volutas, pictóricas,
Rédeas soltas sem bridas, metafóricas,
Faz do poeta um ser místico e alado.
Quem o lê, leia certo ou leia errado,
Sempre os versos encontram o seu intento…
Lamentar cada um com seu lamento,
E sorrir cada um com seu sorriso,
Coração de poeta é sem juízo
E a razão de fingir é seu talento!

QUAL DAS CARNES?

Ó meu amigo Garcia
És professor renomado
Que fala um tanto pausado
Na tristeza e na alegria
Tua voz mansa irradia
Uma paz de dó a dó
Responda qual a mió
Para a gente encher o bucho
Se o churrasco do gaúcho
Ou a carne de Caicó.

(Décima feita ao Prof. Garcia, de Caicó/RN)

CADA PASSO É MAIS UM SONHO
AO LONGO DO CAMINHAR


Esteja alegre ou tristonho
O poeta enxerga a vida
Tal a terra prometida…
Cada passo é mais um sonho.
Chega ao destino risonho,
Pelo prazer de rimar
E antes mesmo de apear
Em pensamentos, imerso,
Olha pra trás, vê seu verso
Ao longo do caminhar.

Usei todos os atalhos
Que encontrei pelo caminho,
Fiz de quando em quando um ninho,
Fiz de estrelas agasalhos.
Os meus cabelos grisalhos
Tingidos pelo luar,
Retratam bem meu andar…
Embora um tanto tardonho,
Cada passo é mais um sonho
Ao longo do caminhar.


NO MEU LAR SOU EU QUEM MANDA
QUANDO A PATROA VIAJA!

 

Sou chefe até do meu chefe
Sou o grito que calou
Se você pensa quem sou
Me beije e lhe dou tabefe.
No carteado sou blefe
Dentre as cobras sou a naja,
Quer me ver doido? Reaja…
Mais brabo que urso panda,
No meu lar sou eu quem manda
Quando a patroa viaja!


AO POETA LUCIANO MAIA
 

Poeta, és parto do teu Jaguaribe
Artéria viva do sertão d’antanho
Tão seco ou cheio, do mesmo tamanho,
És liberdade plena que proíbe
O negar da verdade, diatribe,
Pois tua voz, poeta, em tom brejeiro,
Vem das vazantes do teu Limoeiro,
Vem do frescor do vento Aracati,
Que lá do Olimpo esbarra em nós aqui,
E à noitinha passa tão faceiro.

PALHAÇO

A vida se nos faz meros palhaços…
Sorriso solto num choro prendido,
Querer que é dado nunca agradecido
Saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
Embebedar-se tanto pra esquecer,
Sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
No picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
Imagem tão real quanto ilusória
Pranto da morte rindo pra viver!

Fonte:
REIS, Francisco José Pessoa de Andrade. Isso é coisa do Pessoa, em prosa e verso. Fortaleza: Tipografia Íris, 2013.
........................

A Jangada de Versos do Ceará já teve publicados anteriormente:

ANTONIO GIRÃO BARROSO Araripe (1914 – 1990) Fortaleza
ARTUR EDUARDO BENEVIDES – Pacatuba (1923)ARY ALBUQUERQUE Fortaleza (1934)
BATISTA DE LIMA Lavras da Mangabeira (1949)
CÂNDIDO ROLIM Várzea Alegre
CARLYLE DE FIGUEIREDO MARTINS Fortaleza (1899 – 1986)
CÉSAR LEAL (Francisco César Leal) Saboeiro (1924 – 2013) Recife/PE
DIMAS MACEDO Lavras de Mangabeira (1956)
DOM HELDER CÂMARA (Helder Pessoa Câmara) Fortaleza (1909 – 1999) Recife
EDUARDO PRAGMACIO DE LAVOR TELLES FILHO Fortaleza (1969)
FILGUEIRAS LIMA (Antonio Filgueiras Lima) Lavras da Mangabeira  (1909 – 1965)
FLORIANO MARTINS Fortaleza (1957)
HORÁCIO DÍDIMO PEREIRA BARBOSA VIEIRA Fortaleza (1935)
JOSÉALBANO (José d'Abreu Albano) (Fortaleza 1882-1923)
JOSÉ LINHARES FILHO (Lavras da Mangabeira , 1939)
LEONTINO FILHO Aracati (1961)

MÁRCIA THEÓPHILO – Fortaleza/CE (1940)
MAVIGNIER DE CASTRO (Antonio Mavignier de Castro) (1895 - 1972)
MYRIA DO EGITO (Fortaleza)
NATÉRCIA ROCHA (Natercia Carmen de Sales Rocha) Fortaleza, (1971)
NILTO MACIEL Baturité (1945)
NIRTON VENÂNCIO  – Crateús (1955)
QUINTINO CUNHA (José Quintino da Cunha) – Itapajé  (1875 -1943) Fortaleza
RACHEL DE QUEIROZ -  Fortaleza (1910 – 2003)
SOARES FEITOSA (Francisco José Soares Feitosa) Ipu (1944)
VIRNA TEIXEIRA Fortaleza (1971)

André Luiz Alvez (Dias Claros ou Cinzentos)

Nunca gostei de chuva. Quando os silvos impactante dos ventos anunciam dias cinzentos, me tranco em casa com receio da chuva que se anuncia.  Em dias assim, recordo de quando era criança. Ah, quando eu era criança... vislumbro nossa antiga casa, parece que ouço meus amigos me chamando pra brincar lá fora. Quero ir, me aproximo da porta, que não quer abrir, para meu desespero. E cai a chuva que nos obriga a ficar dentro de casa, eu, meus tios e os amigos que correram do terreno tentando escapar dos primeiros pingos grossos.  Era terrível, nossos brinquedos jogados lá fora e nada podíamos fazer.  Sem perceber, tirava à unha a casca de ferida na canela machucada de tanto brincar, não conseguia mais esperar que ela secasse por completo, fazendo o sangue tornar a escorrer. Logo alguém teve a idéia de fazer uns barquinhos de papel e num instante tínhamos à disposição uma frota inteira.  Dependurados nas estroncas da casa, cada um jogava seu barquinho na correnteza da água da chuva, que formou um veio d água abaixo da janela de madeira e ficávamos vendo os barcos partirem lado a lado. Hoje deslumbro aquela cena, que transformo numa alegoria da vida, como se eu fosse atirado junto dos barquinhos, naquela corrente de água sem fim.  E depois veio o sol, um convite para a diversão: corremos lá pra fora já armados dos galhos da árvore que caíram, fazendo deles lápis e desenhando um enorme círculo na terra molhada, um oco ao meio feito com o calcanhar, que se transformou na meta do jogo de bolitas, e assim o dia foi passando naquela alegria de criança. Vários dias claros e outros cinzentos vieram e cá estou perto dos cinquenta anos. O símbolo do remédio que tomo pra controlar a pressão é parecido com o carrinho de rolimã que tive quando criança. As rodas daquele brinquedo um dia se quebraram e o conserto que nele faltou ainda existe em mim. Se pudesse voltar no tempo, trocaria as rodinhas por outras novas, talvez de madeira, e o brinquedo voltaria a funcionar já no dia seguinte. Daria solução ao caso porque hoje, maduro e vivido, tenho respostas para quase tudo.  Certa vez pediram a Nelson Rodrigues um conselho aos mais jovens. A resposta veio certeira: "Envelheçam".  Não concordo. A maturidade não é nada boa, é cinza, começo do fim, basta olhar novamente para o remédio para controle da pressão, ou alisar os óculos que uso para ler, e o constante esquecimento de coisas pequenas. Bom mesmo é ser jovem, embora a experiência de vida nos torne mais astutos.  Hoje consigo farejar as marcas dos pés que se aproximam, percebo quando o assoalho, antes falho e de pedra bruta, se faz encerado e limpo e, assim, consigo distinguir um dia claro daquele outro cinzento, como nesse fim de tarde, quando um bando de passarinhos se recolhe no pé de limão que tenho no quintal, celebram o fim do dia e eu só espero que amanhã não chova. Detesto dias cinzentos.

 Fontes:
O Autor
Imagem = Fabio Junior http://fabioinocente.blogspot.com

Pedro Du Bois (Navegando nos Versos) 3

APENAS

Você
      pode alcançar
      o inatingível
      mas não quer correr riscos
                         e não sabe gerenciar o tormento
                    ou se alegrar com pequenos gestos

 apática
          aguarda a sua hora   
fosse o estopim e a corda
          ao redor do pescoço
 ou a espoleta sob a pedra

a espera desglorifica o sentido
e a consciência cede ao impulso
                           em quase nada.

TERRAS 

 
A terra entre mãos desperta
a forma e a fome. Sintetiza
e reserva o espaço ao vazio.

Escorre a terra na conquista
           e reconhece na placa
            o nome antepassado.


A terra sobre o corpo em mortalha
na batalha vencida pelo cansaço
e desistência na indolência
do corpo
          superficial
                     da entrega.


A terra morta é abandono
em ávidas carícias.

FEITOS

Feito aço: a lâmina assusta
o corpo indefeso.

O olhar perdido em divagação
ao remoer o espaço


zune a lâmina atravessada
na distância do corpo trespassado.


Feito espaço: o aço é remetida
                       vida em cansaço.

PREFERIR
 

A preferência se apresenta
                          na alteração das cores
                                                 e traços:

 destroços do navio
casco submerso
boias
e botes


             mulheres
                 crianças
                      e ratos.

DESENREDO

                    Chovo
                    o tempo
                    dedicado
                    à seca.

Seco a hora enredada.

Falam em catástrofes: finalizo
                                     o inexistente.

Na esterilidade do planeta
aposto verdes plantas
e azuis marítimos: dói

              a água derramada sobre o solo
castigado em vazios. O relógio desperta
o sono irreparável da espécie.

FUGIR
 

Onde passado
tenso passo
cadenciado

botas sobre pedras
na infância esquecida
em pés n'água
e mãos na árvore

rito e coragem
risco

a vida no mais e menos
da escadaria íngreme
da baixada

pesado passo com que foge
                      de sua vida passada.

REPETIÇÕES

gestos se repetem
na lenta agonia
do olhar sobre a pessoa
que passa ereta e fria

não há o cumprimento formal
no esquecimento e no desânimo
fossem inimigos ou estrangeiros
desconhecidos em árido abrigo

loucos assumidos em  praças
de assustados ladrões
entre árvores

gestos repetidos em adeus
prenunciam a chegada imprópria
e o saber-se longe: é longa
a despedida antes do embarque

CRESCIMENTO

A criança
    chave do crescimento
    hormônio da sempre vida
no orgasmo em que o pai
                   personagem
                   deposita em sua mãe
            fúlgida companheira
                       das primeiras horas
                       em todas as noites

no acelerado infinito
a criança cresce problemas
no desabrochar adulto isento
                                      de culpas
na robotização das letras
inconsumidas em regras
                               e regulamentos

o pai insiste no momento do espasmo
e a mãe se esconde sob o corpo
                    na entrega da razão
                           e na fé dos cometas

ao filho resta remediados efeitos
no tédio da presença em frentes
de batalhas onde se iguala
                           em arrependimentos.

LOUCURA

estranhos anúncios
mal feitos na execução
da ilusão - extrema -
da possibilidade
de mudanças

nada muda: o fogo
e a violência cristalizam
o fim em resultado
inconsistente

o animal se aferra
na derrubada da última
esperança de convivência

FIM
 

Retorcido o ferro
obedece e sustenta
estrutura maiores

oxidado desmancha
no que se deforma

enferrujado corpo
em finas partículas
na dor de quem sabe
que tudo acaba.

PASSADO

Onde armazeno as coisas
 desprovidas de matéria: acode ao cego
                                  a bengala
                                      o cachorro
                                 acorre ao surdo
                            em sinais e gestos
escondo na criança o crescer e a seriedade
em gavetas trancadas
                  o mistério transparece
                  na mão conduzida em chaves

apelo ao senso
           o desuso e a catraca
arrepia o sujo
           a água e a macela
ausentam o corpo
           a matéria e a ilusão
roubam do portador a entrada

forço a gaveta
            minha mão é forte
e avanço lerdo o caminho no instante
atravessado ao mundo
            a conversa e o barulho
acendem o fogo
            na imagem e gosto
jogados aos mortos

a ventura recupera meu medo
em conversas baixas

           o silêncio impera.

AMAR

Sou o castigo
em postiça forma
culpada na tipicidade do ato

amo
   como amam os insanos
   - como os vejo amando -
em inimagináveis fases
de fragmento e enlevo

torço o rosto ao desgosto
da lâmina brilhante sobre a face
no assalto concluído em fuga

fuga de sentimentos
irrealizados em ondas
deletérias de paixão

retoco a tinta no sentido
do vento a balançar a flor
sobre a amurada
da minha ausência

amo
sendo o amor
             agora.
.
Fonte:
O Autor

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Crônicas) II

ANA CLARA BLANC
Ensino Médio da Escola Particular Santo Agostinho

Preserve hoje para colher amanhã


O meio ambiente comumente chamado apenas de ambiente, envolve todas as coisas vivas e não vivas que ocorrem na terra, ou alguma região dela, que afetam os ecossistemas e a vida dos humanos. Se a temos como benefício, por qual motivo a destruímos? Se nela em que vivemos, em que construímos nossas casas, por que a prejudicar?

Os humanos massacram, destroem o ambiente por qualquer motivo, seja para a própria subsistência ou até mesmo a venda de produtos advindos da natureza, são egocêntricos, pensam que a natureza é apenas uma fonte de onde pode se obter lucro, não a encaram como realmente deve ser vista, como uma forma de vida, em que sua capacidade de regeneração é surpreendentemente rápida e eficaz, mas infelizmente não consegue acompanhar o ritmo de destruição causada sobre ela.

Aquecimento global, queimadas de florestas, poluição dos mares e do ar, desmatamento são problemas a ser tratados urgentemente, porém comum, qualquer pessoa sabe o que é, e nada faz. Ao contrário, sabem o que é, os problemas que trazem e ainda trarão futuramente, ainda assim em vez de tentar combatê–los, apenas os aumentam gradativamente. Cada vez mais vemos mais queimadas, mais desmatamentos, mais indústrias que jogam seu lixo em locais inapropriados, indústrias que lançam gases poluentes na nossa atmosfera e ficamos parados.

Desde o início dos tempos, pensadores destacam a importância da natureza para nossa vida, alguns chegaram até citá–la como princípio formador da vida, como o filósofo Thales de Mileto e aqui estamos, séculos depois, em vez de desenvolvermos essa ideia, e proteger a nossa “mãe” estamos apenas a destruindo; onde está a lógica em destruir o nosso lar, o nosso criador? A cada árvore cortada, a cada gás lançado, a cada litro de água poluída, uma parte de nossa vida se vai, pois ao prejudicar a natureza, nós nos prejudicamos, estamos na verdade nos destruindo.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Dáguima Collection - Trova 5


Machado de Assis (As Academias de Sião)

Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.

I

As estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vagalumes cor de leite, costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião, que se divertia com as suas trezentas concubinas. E, piscando o olho umas às outras, perguntavam: — Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noite o lindo Kalaphangko? Ao que os vagalumes respondiam com gravidade: — Nós somos os pensamentos sublimes das quatro academias de Sião; trazemos conosco toda a sabedoria do universo.

Uma noite, foram em tal quantidade os vagalumes, que as estrelas, de medrosas, refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço, onde se fixaram para sempre com o nome de via-láctea.

Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que não cuidava de outra coisa. Daí a ilusão das estrelas.

Vai senão quando, uma das academias achou esta solução ao problema: — Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados.

— Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste exterior.

Não foi preciso mais para que as vielas e águas de Bangkok se tingissem de sangue acadêmico. Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e finalmente a pancada. No princípio da descompostura tudo andou menos mal; nenhuma das rivais arremessou um impropério que não fosse escrupulosamente derivado do sânscrito, que era a língua acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em diante perderam a vergonha. A rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura, baixou à lama, à pedrada, ao murro, ao gesto vil, até que a academia sexual, exasperada, resolveu dar cabo das outras, e organizou um plano sinistro... Ventos que passais, se quisesseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular desforra. Os acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os outros, justamente quando estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir ao céu uma nuvem de vagalumes.

Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em cima, espumando de raiva. Os que puderam fugir, não fugiram por muitas horas; perseguidos e atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas vielas escusas. Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos principais, e fizeram delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o sublime U-Tong. Ébrios da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no qual cantaram este hino magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a luminária do universo." A cidade acordou estupefata. O terror apoderou-se da multidão. Ninguém podia absolver uma ação tão crua e feia; alguns chegavam mesmo a duvidar do que viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a flor das concubinas régias.

II

Molemente deitado aos pés da bela Kinnara, o jovem rei pedia-lhe uma cantiga.

— Não dou outra cantiga que não seja esta: creio na alma sexual.

— Crês no absurdo, Kinnara.

— Vossa Majestade crê então na alma neutra? — Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual.

— Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nenhuma delas? — Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o sol e a luz do universo.

— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma neutra, e punir a academia viva, ou crer na alma sexual, e absolvê-la.

— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte da sabedoria.

Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia, foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, aos mandarins, a todo o reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.

III

Entretanto, a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto. Uma noite, como o rei examinasse alguns papéis do Estado, perguntou-lhe ela se os impostos eram pagos com pontualidade.

— Ohimé! exclamou ele, repetindo essa palavra que lhe ficara de um missionário italiano. Poucos impostos têm sido pagos. Eu não quisera mandar cortar a cabeça aos contribuintes... Não, isso nunca... Sangue? sangue? não, não quero sangue...

— E se eu lhe der um remédio a tudo? — Qual? — Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...

Kalaphangko riu muito da ideia, e perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela respondeu que pelo método Mukunda, rei dos hindus, que se meteu no cadáver de um brâmane, enquanto um truão se metia no dele Mukunda, — velha lenda passada aos turcos, persas e cristãos. Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara declarou que a possuía; um velho bonzo achara cópia dela nas ruínas de um templo.

— Valeu? — Não creio no meu próprio decreto, redarguiu ele rindo; mas vá lá, se for verdade, troquemos... mas por um semestre, não mais. No fim do semestre destroçaremos os corpos.

Ajustaram que seria nessa mesma noite. Quando toda a cidade dormia, eles mandaram vir a piroga real, meteram-se dentro e deixaram-se ir à toa. Nenhum dos remadores os via. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.

— Pronto? disse Kalaphangko.

— Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade da minha pessoa...

Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados, continuam a falar e a viver juntos — coisa evidentemente mais dantesca, em que me pese à modéstia.

— Realmente, disse Kalaphangko, isto de olhar para mim mesmo e dar-me majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa? Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada.

Kalaphangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara. Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Kalaphangko. Sião tinha, finalmente, um rei.

IV

A primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do Kalaphangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual. Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins. Além disso, fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de valia, crocodilos empalhados, cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para almoço, diamantes, relíquias. A academia, grata a tantos benefícios, pediu mais o direito de usar oficialmente o título de Claridade do Mundo, que lhe foi outorgado.

Feito isso, cuidou Kalaphangko da fazenda pública, da justiça, do culto e do cerimonial. A nação começou de sentir o peso grosso, para falar como o excelso Camões, pois nada menos de onze contribuintes remissos foram logo decapitados. Naturalmente os outros, preferindo a cabeça ao dinheiro, correram a pagar as taxas, e tudo se regularizou. A justiça e a legislação tiveram grandes melhoras. Construíram-se novos pagodes; e a religião pareceu até ganhar outro impulso, desde que Kalaphangko, copiando as antigas artes espanholas, mandou queimar uma dúzia de pobres missionários cristãos que por lá andavam; ação que os bonzos da terra chamaram a pérola do reinado.

Faltava uma guerra. Kalaphangko, com um pretexto mais ou menos diplomático, atacou a outro reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do século. Na volta a Bangkok, achou grandes festas esplêndidas. Trezentos barcos, forrados de seda escarlate e azul, foram recebê-lo. Cada um destes tinha na proa um cisne ou um dragão de ouro, e era tripulado pela mais fina gente da cidade; músicas e aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas as festas, sussurrou ao ouvido a bela concubina: — Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que curti na ausência; dize-me que a melhor das festas é a tua meiga Kinnara.

Kalaphangko respondeu com um beijo.

— Os teus beiços têm o frio da morte ou do desdém, suspirou ela.

Era verdade, o rei estava distraído e preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se aproximando o termo do prazo em que deviam destrocar os corpos, e ele cuidava em iludir a cláusula, matando a linda siamesa. Hesitava por não saber se padeceria com a morte dela visto que o corpo era seu, ou mesmo se teria de sucumbir também. Era esta a dúvida de Kalaphangko; mas a idéia da morte sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito um frasquinho com veneno, imitado dos Bórgias.

De repente, pensou na douta academia; podia consultá-la, não claramente, mas por hipótese. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o ilustre UTong, que estava enfermo. Eram treze; prosternaram-se e disseram ao modo de Sião: — Nós, desprezíveis palhas, corremos ao chamado de Kalaphangko.

— Erguei-vos, disse benevolamente o rei.

— O lugar da poeira é o chão, teimaram eles com os cotovelos e joelhos em terra.

— Pois serei o vento que subleva a poeira, redarguiu Kalaphangko; e, com um gesto cheio de graça e tolerância, estendeu-lhes as mãos.

Em seguida, começou a falar de coisas diversas, para que o principal assunto viesse de si mesmo; falou nas últimas notícias do ocidente e nas leis de Manu. Referindo-se a UTong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo e incapaz de aprender nada. Kalaphangko estava pasmado. Um estúpido? — Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é um espírito raso e chocho. O coração é excelente, caráter puro, elevado...

Kalaphangko, quando voltou a si do espanto, mandou embora os acadêmicos, sem lhes perguntar o que queria. Um estúpido? Era mister tirá-lo da cadeira sem molestá-lo.

Três dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. Este perguntou-lhe carinhosamente pela saúde; depois disse que queria mandar alguém ao Japão estudar uns documentos, negócio que só podia ser confiado a pessoa esclarecida. Qual dos seus colegas da academia lhe parecia idôneo para tal mister? Compreende-se o plano artificioso do rei: era ouvir dois ou três nomes, e concluir que a todos preferia o do próprio U-Tong; mas eis aqui o que este lhe respondeu: — Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao sol e à lua. Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol cobriram mais singulares pulhas do que esses treze...

Compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria digno de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente...

Kalaphangko tinha a boca aberta. Treze camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou tão-somente o coração de todos, que declarou excelente; nada superior a eles pelo lado do caráter. Kalaphangko, com um fino gesto de complacência, despediu o sublime U-Tong, e ficou pensativo. Quais fossem as suas reflexões, não o soube ninguém. Sabe-se que ele mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de UTong, confirmou-a integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, ou treze, contando o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outro usavam circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto, nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas. Kalaphangko estava atônito.

Mas não foi esse o último espanto do rei. Não podendo consultar a academia, tratou de deliberar por si, no que gastou dois dias, até que a linda Kinnara lhe segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do crime. Como destruir o vaso eleito da flor que tinha de vir com a primavera próxima? Jurou ao céu e à terra que o filho havia de nascer e viver.

Chegou ao fim do semestre; chegou o momento de destroçar os corpos.

Como da primeira vez, meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro. Quando as vacas cintilantes da madrugada começaram de pisar vagarosamente o céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a comoção materna, como tivera a paterna quando ocupava o corpo de Kalaphangko.

Parecia-lhe até que era ao mesmo tempo mãe e pai da criança.

— Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à forma anterior.

Foram interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. Era algum junco ou piroga que subia o rio, pois a música aproximava-se rapidamente. Já então o sol alagava de luz as águas e as margens verdes, dando ao quadro um tom de vida e renascença, que de algum modo fazia esquecer aos dois amantes a restituição física. E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que, numa curva do rio, apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro mandavam aos ares o velho hino: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!" A bela Kinnara (antigo Kalaphangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro.

Não podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalaphangko, consultado por ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode obsequiar uma das mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta fechada, e, para maior segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Academia Paranaense da Poesia (Boletim de abril de 2014)

ACADEMIA PARANAENSE DA POESIA Antiga Sala do Poeta, fundada em 7 de abril de 1973, por  Pompília Lopes dos Santos – Academia Paranaense da Poesia  desde  17 de  setembro  de  2002.

“Os  livros são os túmulos dos que não podem morrer”
                                        George Crabbe

 

OFICINA PERMANENTE DE POESIA
                                 
Projeto da Academia Paranaense da Poesia em parceria com a Biblioteca Pública do Paraná – VOLUNTARIADO DA POESIA desde 2002 (de março a junho e de agosto a novembro) – todas as quintas-feiras – das 18 às 19h: Aula sobre Poesia por um dos poetas da nossa Academia ou de outros poetas do Paraná ou do Brasil; das 19 às 19:45h: Declamação de Poemas pelos participantes da Oficina.  Rua Cândido Lopes, 133 - 3º andar - Centro.
  
10- A POESIA DE GONÇALVES DIAS -  Poeta  Mamed  Zauíth

17 - VÉSPERA DE FERIADO – NÃO HAVERÁ OFICINA

24- UBT- OFICINA DE TROVA – Trovadora Andrea Motta

                                                        
TARDE DA SERESTA

12/04 –das  17:30h às  21h: no Restaurante San Domingos – Rua Voluntários da Pátria, 368, 1º andar – (antiga Confeitaria Iguaçu) – Café Colonial

TARDE DE MÚSICA E POESIA

15/04 – 17:00h – no Centro de Letras do Paraná – Rua Prof. Fernando Moreira, 370 –   Centro – O quadro  5 minutos com meu Patrono será apresentado pela Acadêmica Anna Maria  Rocha,  da cadeira nº  4 das Artes Plásticas.

ALMOÇANDO COM MÚSICA E POESIA

26/04 – às 12:30h – no Restaurante  Prato Fino – Rua José Loureiro,  385, Centro (entre as Ruas Monsenhor Celso e Barão do Rio Branco) – Buffet por quilo – Confirmar presença até  24 de abril.

ANIVERSARIANTES DO MÊS DE ABRIL NA GALERIA DA SAUDADE:
06 – Aluísio França;
14 – Silvas do Brasil;  
23 – Walfrido Pilotto.

Sua presença e sua alegria fazem a festa da Poesia.

Roza de Oliveira
Presidente