domingo, 17 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Papel de pão)

O presente vinha embrulhado num papel de pão. Ao lado dele, um menino, do alto de seus oito anos, aguardava o pai, que entrou na venda do Nhô Chico, voltar com as compras.

A família de Toquito, o menino ao lado do presente, era pobre e morava num casebre à beira da estrada que ligava Serrania com Adonai, duas cidades vizinhas. Família de respeito.

"Não abre o presente, Toco!", disse o pai ao menino um pouco antes de ir à venda. Ai, a curiosidade infantil lhe comia as pontas dos dedos, que formigavam para abrir o pacote pardo!

Toquito fora sempre um bom menino. Já sabia ler e escrever que era uma coisa! O pai e a mãe, analfabetos, sem letras na mão, mal podiam crer que o filho realmente aprendera a ler.

Hum... E se Toquito espiasse o presente pelas dobras mal feitas do pacote sem técnica de embrulho? Ninguém saberia. Mas seu anjo da guarda, que usava chapéu e tudo, estava lá.

O pai demorava muito. Meu Deus, que presente era aquele? O que seu pai comprara que precisou ser embrulhado em papel de pão? Seria pão mesmo? Mas pão era um presente?

Aquele menino sonhava em ter um mero relógio de pulso. Achava lindo ter as horas no corpo e, fazendo pose, como se tivesse mesmo um relógio, dava as horas para os porcos afinal.

Uma vez, com a caneta que a professora emprestou à turma para a aula de Arte, pintou um relógio no pulso e, na hora do banho, noites e noites, não o lavava bem, para não sair.

Finalmente o pai saiu da venda. Pedindo ajuda para o filho, quase se esquecera do presente devidamente embrulhado em papel de pão. Não lhe daria o presente mais não? Ora!…

Chegando à velha casa, pacote na mesa, o pai pediu, Toquito atendeu. Desembrulhava o presente com afoita avidez, como quem quer a fruta mais doce do galho mais alto e sadio.

Papel de pão já no chão, sem serventia, e, na caixa, o presente: um caderno com pauta, um lápis com ponta e a branca borracha. O pai pediu a ele que escrevesse o que pensou durante toda a tarde sobre o que seria o presente que vinha embrulhado num papel de pão, corriqueiro papel. Oh, escrevinhador!
 
Fontes:
O Autor
Imagem = www.maggnificas.com.br

Contos Populares Portugueses (O Ouriço-Caixeiro)

Era uma vez um rapaz que apanhou uma cobrazinha pequenina. Meteu-a dentro de um tanque e todos os dias lhe ia dar de comer. Assobiava à cobra e ela vinha.

A cobra foi crescendo e o rapaz todos os dias lhe ia sempre dando de comer, de modo que a cobra já estava muito acostumada com ele e não lhe fazia mal.

O rapaz foi crescendo, e veio para a cidade servir. Esteve muitos anos na cidade e um dia foi com uns amigos à terra dele. Quando iam a passar a cavalo por pé do tanque onde estava a cobra, quando ele era criança, disse para os amigos:

- Quando eu era pequeno, tinha aqui uma cobra a quem assobiava, e ela vinha para eu lhe dar de comer. Deixa-me ver se ainda me lembro do assobio e se ela ainda será viva.

E assobiou-lhe. Imediatamente lhe saltou uma cobra muito grande e muito grossa, enrolando-se-lhe à volta do pescoço para o matar.

O rapaz, aflito, queixou-se:

- É esta então a paga que tu me dás de eu te ter tratado tão bem quando era pequeno?

A cobra respondeu:

- Sim! Do bem fazer, mal haver. O rapaz disse-lhe:

- Espera aí! Não me mates sem eu encontrar três animais que digam «por bem fazer, mal haver».

A cobra:

- Pois sim!

Foram andando e daí a bocado encontraram um cavalo muito magro e coxo de uma perna, que mal se podia arrastar. O rapaz voltou-se para ele.

- Ó cavalo, de bem fazer, mal haver?

O cavalo respondeu:

- Sim! O meu amo, enquanto eu pude trabalhar, tratava-me bem. Hoje, que estou velho e aleijado e não posso trabalhar, manda-me para a esfola e já não quer saber de mim.

O rapaz, muito desconsolado, foi andando mais para diante e encontrou um cão encostado a uma parede, quase a morrer. Chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:

- Ó cão, por bem fazer, mal haver? O cão respondeu:

- Sim! O meu dono, enquanto eu ia à caça com ele, tratava-me bem, mesmo muito bem, e agora, que estou velho e já não posso caçar, deixa-me no meio da rua e não quer saber de mim. Morrerei à fome!

O rapaz estava cada vez mais triste porque a cobra já o queria matar, mas observou-lhe que ainda faltava um.

E foram andando mais para diante. Encontraram um ouriço-caixeiro. O rapaz chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:

- Ó ouriço, de bem fazer, mal haver? O ouriço não deu resposta.

O rapaz tornou outra vez: - Ó ouriço, de bem fazer, mal haver? O ouriço, nada, não lhe dava resposta nenhuma. Então o rapaz, zangado, exclamou:

- Ó ouriço, responde, senão esta cobra mata-me! E o ouriço:

- Qual é o tolo de um cavaleiro que espera a resposta do ouriço-caixeiro?

A cobra, assim que o ouviu dizer isto, desenrolou-se do pescoço do rapaz e saltou contra o ouriço. O rapaz, assim que se viu livre, meteu esporas ao cavalo e fugiu a galope.

O ouriço enrolou-se e a cobra matou-se nos espinhos.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIX

Nessas passagens há menções claras, embora parodiadas, da história original que está inserida na obra de Carter. No caso do hipertexto, em O quarto do Barba-Azul, a história original foi alterada, por mais que algumas ações sejam revividas, percebe-se que essas se apresentam com novas perspectivas. Sendo assim, o texto re-elaborado, re-escrito, torna-se um hipertexto, uma vez que a escritora buscou a narrativa primeira e a adaptou, segundo a ótica feminina.

É pertinente salientar que Carter, em O quarto do Barba-Azul, respeita o discurso de Perrault e de Beaumont, da forma como foi elaborado, porém a escritora apresenta um diferencial, ou seja, o discurso de Carter age dentro do discurso já constituído pelos escritores em questão.

O discurso de Carter, inserido em um contexto já existente, apresenta variações em relação ao estilo narrativo, além da abolição da frase inicial e tradicional em contos de fadas, ou seja, a escritora utiliza o narrador autodiegético, uma vez que, no conto O quarto do Barba-Azul, a personagem narradora é a própria protagonista da história e, sendo assim, direciona os rumos da narrativa de acordo com seus anseios.

Lembro que aquela noite eu estava deitada, acordada, no vagão-leito, imersa num suave e delicioso êxtase de excitação, com a face em brasa comprimida na impecável fronha do travesseiro e o bater do coração a imitar o bater dos grandes pistões que incessantemente impeliam o trem que me afastava de Paris, da mocidade, da quietude branca e fechada do apartamento de minha mãe, em direção ao país inimaginável do casamento [...] (CARTER, 1999, p. 3)                     
Quanto à organização do tempo e à manipulação de distância, percebe-se, no exemplo acima, que a narradora-personagem-protagonista vive no tempo presente, mas busca na memória fatos passados, apresentando dessa forma um hiato temporal, característica própria do narrador autodiegético.

Segundo Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998), narrador autodiegético configura a expressão [...], introduzida nos estudos narratológicos por Genette [...], designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história. Essa atitude narrativa arrasta importantes conseqüências semânticas e pragmáticas, decorrentes do modo como o narrador autodiegético estrutura a perspectiva narrativa, organiza o tempo, manipula diversos tipos de distância, etc. (p.118, grifo dos autores)
                     
Além de os narradores diferirem em Carter, em relação a Perrault e a Beaumont, há também outro desvio no conto de Carter, acima citado, o eu que narra e o eu narrado. Já nos contos de Perrault, Barba-Azul, e de Beaumont, A Bela e a Fera, o papel de narrador não é exercido por nenhuma personagem, uma vez que o narrador relata a história de forma impessoal, alheio aos fatos. Consoante a isso, nos contos de Perrault e de Beaumont, percebe-se a presença do narrador heterodiegético, observado nos exemplos que seguem:
                                                                                  
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de ouro e de prata, móveis de madeira lavrada e carruagens douradas. Mas, para sua infelicidade, esse homem tinha a barba azul, e isso o tornava tão feio e tão assustador que não havia nenhuma mulher e nenhuma moça que não fugisse da sua presença [...] (PERRAULT, 1999, p. 189).
Era uma vez um rico negociante que vivia com seus seis filhos, três rapazes e três moças. Sendo um homem inteligente, não poupou despesas na educação dos filhos, dando-lhes excelente instrução. Suas filhas eram muito bonitas, mas a caçula principalmente despertava grande admiração [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 66).                     
De acordo com Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, narrador heterodiegético é a expressão [...], introduzida no domínio da narratologia por Genette [...], designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão [...] (1998, p. 121).
                     
Além de a obra de Carter apresentar diferenças estruturais em sua narrativa em relação às obras originais, percebe-se ainda que, através de sua obra, Carter procurou inserir uma nova mulher em seu contexto. A autora ainda contemplou o universo e os sentidos femininos, utilizando-se “fartamente” de descrições de cheiros, sensações, roupas, jóias, comidas, acompanhadas de metáforas, em O quarto do Barba-Azul.

Ao adequar a figura feminina ao seu real contexto, Carter, na verdade, mostrou a verdadeira face feminina, enquanto mulher, que há muito se escondia atrás de caricaturas rabiscadas por homens. Além disso, Carter descreveu a mulher exatamente como ela é, de cara limpa, ou seja, aquela que, apesar de estar mais independente, procura se encontrar, entender-se, imergindo frequentemente e tão ferozmente em seus conflitos interiores que se mostram impregnados de fragmentos de heranças passadas, como a insegurança, a falta de confiança em si mesma.

Três vezes casado no breve espaço da minha vida com três graças diferentes, convidava-me agora, como para demonstrar o ecletismo do seu gosto, a juntar-me a essa galeria de mulheres bonitas, eu, filha de pobre viúva, eu, de cabelos cor de rato que ainda tinham as marcas das tranças que deixara de usar tão pouco tempo antes, eu, de cadeiras ossudas e nervosos dedos de pianista. (CARTER, 1999, p. 9)                                                                                  
Observando-se o conto A Bela e a Fera (La Belle et la Bete, 1757) (*), de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, a personagem Fera, o noivo de Bela, causava repulsa, aversão à mesma. Já em A noiva do tigre, de Carter, o oposto aconteceu, uma vez que Bela sentiu desejo sexual pela Fera, ainda mais quando essa exalava seu cheiro natural de macho no cio.

Na verdade, na recomposição dos papéis femininos, Carter invadiu os espaços    pertencentes    aos    personagens    masculinos,    visto    que,    quando    a transformação contempla um dos gêneros, conseqüentemente todo o contexto sofre modificações. Com isso, torna-se perceptível que a mitificação do homem-príncipe e rei não tem mais valia numa relação em que a mulher entende o seu papel, o seu espaço, o seu valor, desvendando ou permitindo transparecer as imperfeições masculinas e o desejo destas:

Quando pensava que a partir de então iria compartilhar os lençóis com um homem cuja pele, como a dele ou a dos sapos, continha uma sugestão viscosa e úmida, sentia vaga desolação por haver despertado dentro de mim, agora, que já estava sarada a ferida de mulher, certo anseio repugnante por suas carícias, como o anseio de mulheres grávidas pelo gosto do carvão, da cal ou de comida estragada. (CARTER, 1999, p. 28)                     
A nova mulher (que na verdade não é tão recente assim, mas somente nestas últimas décadas ela pôde se mostrar em sua essência) vê o homem como um ser, dotado de muitas imperfeições, tanto que ela é sutil o bastante para discernir os verdadeiros discursos, não admitindo as falsas promessas masculinas.

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(*) Coincidentemente ou não, Clarice Lispector também re-escreve esse mesmo conto de fadas, denominado A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais, direcionando a temática para as diferenças sociais e humanas entre as pessoas. A Fera, de Lispector, é um mendigo desdentado que possui uma chaga sangrando em sua perna. Por sua vez, a Bela é uma senhora da alta sociedade que possuía uma vida alienada. Ela, na verdade é uma fera letrada, porém fútil, prostrada em valores consumistas. Para Bela, o ser ainda era um processo latente, algo obscuro para sua compreensão.
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continua...
 
Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sábado, 16 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (O Próximo Livro)

Ana Lúcia estava na onda dos livros de vampiros românticos e "surfava" nas tramas à moda de Edward e Bella, Crepúsculo e afins. Sonhava que um deles, bem bonito e adolescente, pousaria no beiral da grande janela de seu quarto e a levaria para o alto do mundo, de onde os sonhos chovem sobre os homens. Não, nem se lembrava de que estava no Brasil e, via de regra, Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, criado por Chico Anísio, era um de nossos maiores representantes do Conde Drácula no Brasil. Aliás, sendo jovem e, além disso, sabendo pouco de nossa história televisiva, sequer sabia que havia existido um tal de Bento Carneiro na tevê. O tempo voa…

Havia criado um fã-clube para cultuar como se deve sua mais recente paixão, uma saga de cinco livros sobre um casal de adolescentes que se conhecem e se apaixonam perdidamente um pelo outro e têm de lidar com uma dúvida cruel: seriam eles irmãos? O nome da saga era "Amor de sangue", uma epopeia meio épica, meio pop, que encantara jovens e adultos no mundo todo e, para desespero de Ana Lúcia e de seus amigos, demorava a chegar ao Brasil o próximo livro da história. Nem pelo mercado negro se conseguia comprá-lo. Enlouquecida, chegava a sonhar todas as noites que era uma das belas da trama e se deixava chegar ao fim com seu amado.

A notícia de que o próximo livro da série vampírica entraria no mercado o próximo fim de semana deixou Ana Lúcia em polvorosa. Não bastava comprar e ler o exemplar, mas também tinha que ser a primeira de todos os fãs no Brasil a lê-lo e a descobrir se a mocinha ou era, ou não era irmã do mocinho vampiro. Se não fosse, se renderia ao beijo eterno do galã e se entregaria ad aeternum ao amado. "Venha me beijar / Meu doce vampiro / Ou Ouuuuu / Na luz do luar" ouvia pelos fones de ouvido a jovem que era louca pelo amor sem nunca ter amado e nem se dado à experiência de ser abduzida pelo monstro da paixão. "Ou Ouuuuu"...

Uma amiga da Aninha cujo pai viajava muito para o exterior a trabalho tinha conseguido o tal livro, em Espanhol, e trazido para a filha. Quando Ana Lúcia soube disso, quis morrer. Ainda era quarta-feira, e o livro só seria lançado oficialmente no Brasil sábado. Descontente, vendo o Face para matar o tempo, sem querer leu a postagem de sua amiga com pai viajante: Os dois não eram irmãos kkkkk!!! Nem preciso falar que Ana Lúcia, primeiro, gritou um palavrão e, em seguida, chorou de raiva por meia hora, sozinha. Que vampira que nada! O sangue de Ana Lúcia era quente e... e... nada. Esfriou. A sangue frio, jogara todos os livros da saga no lixo.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.livrosdefantasia.com.br

Contos Populares do Tibete (O Homem Bom)

Era uma vez um homem muito bom e generoso. Suas obras faziam-no querido e admirado por todos. Certo dia, chegou a seu povoado um lama muito famoso. O homem pediu para falar com o famoso lama, e quando este desejo lhe foi concedido, prostrou-se aos pés do santo homem e lhe falou assim:

— Queria chegar a ser um iluminado, cheio de compaixão e sabedoria, para poder ajudar a todos os seres vivos e dedicar a minha vida ao ensinamento de Buda. Que devo fazer?

O lama viu que o homem era sincero em suas intenções. Recomendou-lhe, então, que fosse às montanhas e que passasse a sua vida orando e meditando. Deu ao bom homem uma oração especial para invocar e lhe explicou que se assim procedesse continuamente e com grande devoção, então, poderia estar certo de que se converteria num iluminado, capaz de ajudar a todos os demais com sua sabedoria e compaixão.

O homem fez tal como o lama lhe havia recomendado. Partiu para as montanhas que rodeavam o povoado, entrou numa caverna e se pôs a meditar com o maior fervor. Durante muitos anos, foi perseverante, mas, apesar disso, não obteve a iluminação.

Passados vinte anos, o famoso lama visitou novamente o povoado. O homem bom soube da sua chegada e desceu da sua caverna nas montanhas para obter uma audiência com ele.

Teve de esperar muitos dias, pois muita gente fazia fila para ver o famoso lama e obter a sua bênção. Finalmente, lhe foi concedido ver o santo homem. Depois de lhe ter rendido homenagem prostrando-se três vezes aos seus pés, e de ter-lhe oferecido uma echarpe branca, o bom homem contou ao lama a sua situação:

— Tenho estado há vinte anos orando e meditando como o senhor me recomendou — disse —, mas ainda não obtive a iluminação. Devo estar fazendo algo errado. O lama adotou um porte solene e perguntou ao homem:

— O que eu lhe disse que fizesse?

O homem bom contou-lhe tudo o que havia estado fazendo durante os vinte anos.

— Oh! — disse o lama — temo que isso não tenha servido para nada. Foi errado o que eu lhe disse, e agora nunca mais obterá a iluminação.

O homem bom ficou desesperado, e, lançando-se aos pés do lama, chorou.

— Sinto muito, disse o lama, mas não posso fazer nada por você.

O homem bom, que já estava muito velho, sentiu que havia perdido vinte anos de sua vida. De volta à sua caverna, perguntava-se: "Que vou fazer? Durante todos estes anos, acreditei que poderia obter a iluminação e agora devo abandonar toda a esperança de alcançar esse objetivo.

Sentou-se sobre a laje que, durante vinte anos, tinha sido seu travesseiro, sua cama e sua mesa, cruzou as pernas, fechou os olhos e pensou: "Vou continuar com a minha oração e com a minha meditação, porque, que outra coisa, se não isso, poderia fazer agora?"

Assim, pois, sem nenhuma esperança de obter a iluminação, pôs-se a meditar e a invocar as orações que se haviam tornado tão familiares a ele, durante todo aquele seu longo retiro. E, imediatamente, obteve a iluminação. Viu o mundo em toda a sua realidade. Tudo estava claro. Compreendeu, por fim, que havia sido apenas a sua ânsia por obter a iluminação que o impedira de alcançá-la. Agora, poderia ajudar a todos os seres vivos a encontrarem a paz, graças a sua sabedoria e sua compaixão. Agora, abandonaria a sua caverna e voltaria ao mundo para espalhar os ensinamentos de Buda.

Saiu da sua caverna e contemplou o povo lá embaixo. Tantas vezes o havia visto antes, mas nunca com tanta claridade como agora. Por um momento, acreditou ouvir o doce riso do famoso lama, enquanto levantava os olhos para o céu e contemplava o imenso arco-íris que se estendia sobre os picos nevados.1
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Nota
1. Neste relato vemos um exemplo da colocação de prática, por parte do lama, de uma das virtudes (ou perfeições: paramitâ-s) do bodhisattva: a upâya-kausalva ou "habilidade nos meios".

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVIII

4.2 Releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de Beaumont

What happened to the mother
who looked at the snow? I don’t say
(you don’t know this grammar yet)
how mothers and stepmothers change,
looking, and being looked at.
It takes a long time...
Sinister twinkling animals,
Hollywood ikons, modern Greek style:
a basket of images, poison at work
in the woodland no Cretan child
ever sees. Closer to home
I’ve seen a loved girl turn feral.
These pages lurk in the mind,
speak of your sister,
her mother, and me. Perhaps,
PADEL apud WARNER, 1999, p. 233.


O que aconteceu à mãe/ que olhava para a neve? Não digo/ (você ainda não sabe essa gramática)/ como mães e madrastas mudam, // olhando e sendo olhadas./ Leva muito tempo.../ Animais sinistros e cintilantes,/ Ícones hollywoodianos, estilo grego moderno:// uma cesta de imagens, veneno em ação/ no bosque que nenhuma criança cretense/ jamais vê. Mais perto de casa/ Vi uma menina amada tornar-se feroz.// Essas páginas escondem-se na mente,/ falam de sua irmã,/ de sua mãe e de mim. Talvez,/ já, de você.

 Segundo Sylvia Paixão (1997), “quando se olha a cultura e a literatura sob o ponto de vista feminino, nada mais pode continuar igual a antes: nem a sociedade, nem a arte, nem a história” (p.72).

Na verdade, o que a escritura com identidade feminina realizou nestas últimas décadas foi um trabalho árduo de reelaboração de uma estrutura social decadente, não mais representativa do contexto presente. Desse modo, o que se observa é que a velha estrutura asfixiante e machista perdeu prazo de validade diante da evolução feminina e feminista.

Consequentemente, ao se reestruturar a sociedade, compõe-se também uma nova história que passa a ser escrita assim como a arte que absorve os novos ares, renovando-se.

Tendo-se como referência que as primeiras versões dos contos de fadas foram redigidas por homens, visando atender aspirações contextuais daquele tempo próprio, atualmente, tanto re-escrituras quanto paródias existem e se tornam necessárias, uma vez que essas se    adaptam a uma realidade    distinta, principalmente porque os valores sociais, morais, intelectuais já não são mais os mesmos, comparados a tempos longínquos. Dwight Macdonald, citado por Linda Hutcheon, tão bem argumentou, quando definiu a paródia, afirmando que “somos exploradores que olhamos para o passado e a paródia é a expressão central do nosso tempo” (mcDONALD apud HUTCHEON, 1989, p.11).

De acordo com o exposto, torna-se acertado afirmar que a paródia é a nova forma de escrever o já existente, com um diferencial, o irônico, que objetiva mostrar que os tempos mudaram e os antigos escritos não mais correspondem ao modo de viver, pensar e agir da humanidade. Segundo Linda Hutcheon:
 
A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no “vaivém” intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E. M. Forster, entre cumplicidade e distanciamento. (HUTCHEON, 1989, p. 48, grifos da autora)
                     
Alba Olmi (2006) acrescenta que, na atualidade, por exemplo, “o conto tradicional é re-contextualizado e re-adaptado às novas exigências sociais femininas, para tornar-se a expressão de um outro ponto de vista, longe da mitificação da imagem da mulher, típica da cultura patriarcal” (OLMI, 2006, p. 10).

Esta breve exposição a respeito da paródia se fez necessária para que se passasse a analisar alguns contos tradicionais do passado, re-escritos por Angela Carter.
                                                                                  
Evidentemente que, como já foi mencionado no capítulo anterior, escritores como Monteiro Lobato colaboraram para a desmistificação da inferioridade feminina, mas, apesar de sua importante contribuição à literatura, ainda faltava a sensibilidade, o sexto sentido, a visão de mulheres inseridas no processo de composição da nova identidade da figura feminina. Dessa forma, contos infanto– juvenis foram revistos na contemporaneidade, como A Bela e a Fera, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1757), uma vez que nesse se observou a personagem Bela comparando-a à mulher contemporânea de Angela Carter. Além dessas escritoras, verificar-se-á o estudo realizado pelas teóricas Maria Tatar e Marina Warner a respeito dos contos de fadas. E, ainda, os tipos de discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão vistos de acordo com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).

No entanto, o estudo da postura da figura feminina deter-se-á na obra O quarto do Barba-Azul, de Angela Carter, sendo nesta obra selecionados os contos O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do Tigre e A garota de neve para serem    analisados, tendo, como contraponto, os textos-origem de Perrault e de Beaumont.

Angela Olive Stalker nasceu em 7 de maio de 1940 e assumiu o sobrenome Carter após casar-se com Paul Carter, em 1960. A sua vida profissional dividiu-se entre ser professora universitária e escritora, sendo que inúmeras obras ela escreveu, consagrando-se como escritora, inclusive recebendo premiações por seu segundo romance The magic toyshop (1967) e pelo terceiro também Several perceptions (1968). De acordo com Vivian Wyler (em nota de prefácio), além desses dois romances,    Carter    escreveu ainda o romance Shadow dance (1966), o romance surrealista Love (1969-72),    a coletânea Fireworks: nine profane pieces (1974), o romance A paixão da Nova Eva (1977), em 1979 o ensaio The Sadeian woman e a coletânea de contos O quarto do Barba-Azul.    Carter publica ainda Noites no circo (1984), sendo premiada por esta obra, a coletânea Black Vênus (1985), Wise Children (1991) e, em 1993, acontece a publicação póstuma dos contos de American ghosts and old world wonders, pois ela vem a falecer de câncer em 1992.

Ainda segundo Wyler, Angela Carter começou a sua carreira literária na década de 60, “quando se especializou em literatura inglesa do período medieval na Universidade de Bristol” (1999, p. x) e o que realmente a destacou foi a sua forma original de compor suas obras, ou seja, a releitura de contos de fadas já há muito conhecidos,    narrados pela boca do povo. Visto que Carter possuía um gosto literário bastante eclético, parece que ela absorveu o que de melhor leu em diversos períodos da história para constituir suas obras.

Seguindo a receita que ela dá [...] para os contos de fadas, “feitos de pedaços de histórias perdidas, misturadas com outras e adaptadas pessoalmente pelo contador ao gosto da platéia”, ela foi fazendo acréscimos a esse caldo básico, em que giravam Chaucer e um certo tom farsesco. Um pouco de tudo. Simbolismo francês, leituras de Barthes e Foucault, surrealistas, filmes de Godard e Buñuel, Mary Shelley, Swift, Blake (favorito, desde a infância), Poe, Lewis Carroll e os filmes de horror B, da Hammer. (WYLER, 1999, p. x-xi)
                     
É bem verdade que Angela Carter colocou em prática a teoria parodística ao escrever O quarto do Barba-Azul, uma vez que ela redistribuiu ironicamente os papéis dos personagens em seus contos, visto que, histórica e tradicionalmente, esses eram acostumados a assumirem funções determinadas de acordo com preceitos sociais masculinos.

Em O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon e A Noiva do Tigre e A garota de neve; Carter recriou textos célebres, como os contos de fadas e acrescentou aos mesmos caráter crítico e satírico, narrando-os de acordo com a visão do que realmente interessa ao universo feminino. Processo esse que se constitui como um novo percurso realizado a partir do que já existe, ou seja, do hipotexto.

Além de Carter reescrever os contos de fadas, de acordo com a visão feminina, ela também mostrou-se diferente ao descartar a frase introdutória dos contos “era uma vez”, apresentando uma recente proposta narrativa que não consagra a cópia de um parágrafo introdutório típico da construção masculina.

Em O quarto do Barba-Azul (1999), por exemplo, os intertextos também são perceptíveis em inúmeros momentos, como quando o personagem Barba-Azul decide afastar-se temporariamente do castelo, devido a negócios e entrega o molho de chaves à sua atual esposa, ressalvando que uma das chaves não deveria ser usada. Os textos de Perrault, Barba-Azul (1999), e de Carter(1999) se cruzam e, em um certo ponto, as semelhanças se mostram mais acentuadas entre ambos. Inclusive, a inglesa Carter cita a França como localização do castelo de Barba-Azul em seu conto, origem do escritor Perrault e da publicação do conto.

- Esta é a chave do armário da louça... Não ria, querida; nele se encontra um resgate de rei em Sévres e de rainha em Limoges. E a chave do quarto trancado onde se guardam cinco gerações de prata.
[...] estava quase na hora de partir. Só lhe faltava falar de uma chave, e ele hesitou um pouco; por um instante pensei que a fosse separar para pôr nobolso e levar.
- Que chave é essa? - perguntei, uma vez que a troça que tinha feito de mim me imbuíra de certa ousadia. - A chave do seu coração! Dê-me! [...]
- Oh! - disse ele. - Não é a chave do meu coração. É antes a chave do meu inferno.
[...] Trata-se apenas da chave de um quartinho na base da torre ocidental, atrás da destilaria, no fundo de um corredorzinho escuro cheio de horríveis teias de aranha que lhe ficariam grudadas no cabelo e a assustariam se você se aventurasse a ir lá. Ah! E iria achar o quartinho muito sem graça!
Mas tem de me prometer, se me ama de verdade, manter-se afastada dele. [...] (CARTER, 1999, p. 26-27)

“Aqui estão as chaves dos dois grandes armários”, disse ele, “e estas aqui são as das baixelas de ouro e de prata, que não são usadas todos os dias [...]. Quanto a esta chavezinha aqui, é a do quarto que fica no final da grande galeria do andar inferior. Você pode abrir tudo, ir a toda parte, mas nesse pequeno cômodo está proibida de entrar. E é uma proibição tão rigorosa que, se você se aventurar a abri-lo, não há nada que não deva esperar da minha cólera”. (PERRAULT, 1999, p. 190)
O interessante, no estilo de Carter, é que ela usa as sutilezas para rememorar contextos pertencentes ao passado, como ao referir-se à chave do armário da louça que pertencera ao rei, em Sévres, e à rainha, em Limoges, uma vez que essas louças são delicadíssimas em sua estrutura. O irônico é justamente isso, o grotesco Barba-Azul em contraste com tais preciosidades. Inegavelmente, a sutileza é uma característica própria do sexo feminino, e o discurso de Carter se choca com o discurso autoritário, direto, incontestável de Perrault, perceptível nos exemplos acima.

Em outro momento, quando a personagem-protagonista se detém em observar o quarto dos horrores, deixa cair de sua mão a chave da porta, sendo que esta fica manchada de sangue (*) que escorre no local.

Com os dedos trêmulos, abri a frente do caixão vertical, que tinha a face esculpida num ricto de dor. Depois, subjugada, deixei cair a chave que ainda retinha na outra mão. Caiu no charco que seu sangue formava. (CARTER, 1999, p. 40)

[...] Após alguns instantes começou a ver que o chão estava todo coberto de sangue coagulado, no qual se refletiam os corpos de várias mulheres mortas, ao longo das paredes. Eram todas as mulheres que Barba-Azul havia desposado e às quais havia cortado o pescoço, uma após a outra. Ela pensou morrer de pavor, e a chave do quarto, que tinha acabado de tirar da fechadura, cai-lhe da mão. (PERRAULT, 1999, p. 193-4)
                     
O diferencial no discurso de Carter pode ser percebido na voz da personagem, que narra a situação conflitante em que está envolvida e, ao mesmo tempo, protagoniza a cena. Já no discurso de Perrault, o narrador conta os fatos acontecidos, como se fosse um observador, alheio à situação em que a esposa do Barba-Azul está enfrentando.

Ainda em outra situação, quando o Barba-Azul de Carter chama sua esposa para ser decapitada, instantaneamente vem à tona o conto de Perrault, Barba-Azul, uma vez que até os títulos (**) das obras se assemelham. No entanto, a escritora criou dois recursos ainda inexistentes para o escritor francês, ou seja, o uso do telefone, uma vez que o chamamento para a execução da protagonista veio através de uma ordem pelo telefone, além do telégrafo que o ogro utilizou como justificativa, ou melhor, o recebimento de uma correspondência telegráfica permitiu o retorno do mesmo antecipadamente.
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(*) Segundo Carter e Perrault a chave é encantada (detalhe esse que caracteriza os contos como de fadas), sendo assim o sangue impregnado na mesma mostra que a violação da regra da obediência não foi cumprida.
(**) No conto Alice-lobo, segundo Vivian Wyler, Carter fez “uma homenagem a Lewis Carrol” (1999, p. xviii), talvez seja através da adoção do nome de Alice para a menina-lobo, personagem-protagonista, como também para o título da obra. Além disso, neste mesmo conto, quando Alice descobre o espelho e o investiga de tal forma que acaba se ferindo nele (p. 224), pode ser só coincidência ou talvez a autora quisesse se referir à obra Alice através dos espelhos e o que Alice encontrou lá (1872), de Lewis Carrol.
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continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (O Sol)

José só sairia se houvesse sol. Ele, um rapaz de vinte e poucos anos, branco, não se exporia ao sol, sem proteção. O câncer de pele estava/está em alta, e os raios UVA, UVB, UVC (e até mesmo o "UVZ") não o pegariam por nada. Tinha medo até de ver injeção. Sua mãe lhe dissera que compraria um frasco novo, mas se esquecera totalmente e, em vez disso, lhe trouxera um creme de barbear. Assim, seu rosto estava limpo, liso como o de um bebê, mas a pele, sem nenhuma proteção. Não, não sairia. O sol, convidativo, sedutor, com seus raios multicores, o chamava, e nada. José não sairia de casa até que sua mãe providenciasse um frasco novo de protetor. Entendeu?

Seu amigo mais caro o chamou, mas José, de dentro do quarto, nem se dignou a responder. Estava exausto, morto de calor. Parecia uma lagartixa sobre uma pedra ao sol a pino, largado. Tomara suco, "refri", água de coco, água mesmo, leite gelado e, ainda assim, sentia-se mal. Com aquele sol todo, nem pensar em sair. Sua mãe, de vestido florido, fresquinho e um bom par de óculos escuros e chapéu de abas largas, tipo praieiro, o convidou para um banho de piscina no clube, mas qual! José não queria se arriscar. A mãe, nada egoísta, chegou a cogitar uma possível divisão do protetor solar com o filho caçula, sem sucesso. José, irredutível, calou-se.

Cansado, quis relaxar e, para isso, pôs música. Tocaram O sol nascerá, do Cartola, O segundo sol, do Nando Reis, com a quente Cássia Eller, e mais uma porção de músicas ensolaradas, tipo Samba de Verão, do Marcos e do Paulo Sérgio Valle. Inconformado, estava mais para Banho de lua, com a Celly Campello, e ficou em silêncio. Já eram quase seis da tarde. Aquele dia tinha sido triste. O sol já ia se pôr. Seria outro dia no Japão. José dormiu, mas, em sobressalto, acordou, preocupado. Seu sonho? Ele estava na praia, de calção, e o amor de sua vida havia passado. Teria dinheiro no porquinho? Compraria protetor (#partiupraia). E agora, José? Agora, com ou sem Cartola, "o sol nasceria". 

Fontes:
O Autor
Imagem = www.educacao.uol.com.br

Jorge Luis Borges (Um teólogo na morte)

Os anjos me disseram que quando Melanchton morreu, lhe foi oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o abandonaram.

Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu porque eram feitas sem convicção.

Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a cal; às vezes isso acontecia um pouco antes.

As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos homens sem rosto o levaram até às dunas e que agora ele é como que um criado dos demônios.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVII

4. RELEITURA E RE-ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO FEMININO

É sabido que as noções de intertextualidade, bem como outros conceitos que permeiam e orientam as discussões na esfera literária, são ainda relativamente  recentes, mas ainda muito em pauta na atualidade. A presença efetiva feminina em âmbito literário também é um dado recente, e os intertextos utilizados por algumas escritoras em suas obras remontam a textos calcados em estruturas arcaicas, machistas e patriarcais.

Desse modo, o primeiro momento deste capítulo fará uma breve abordagem intertextual, conforme alguns teóricos da área, o que introduzirá o subcapítulo seguinte, ao se observar o hipotexto, bem como os demais hipertextos que serão apresentados.

Posteriormente, uma breve exposição sobre paródia antecederá a análise de algumas releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de Beaumont. Dentre os inúmeros contos destes escritores, foram selecionados Barba– Azul (1999), de Perrault, A Bela e a Fera, de Beaumont (2004) e as releituras de Carter, contidas na obra O quarto do Barba-Azul (1999), abrangendo os contos O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do tigre e A garota da neve.

A análise da figura feminina, enquanto personagem, será realizada nos contos escolhidos. Além disso, o estudo se enriquecerá com os comentários das teóricas Marina Warner e Maria Tatar a respeito de contos de fadas. Ainda, os tipos de discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão analisados, de acordo com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).

Por último, serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras Margaret Drabble e Lucía Extrebarría, além de Carter que, através de suas releituras e re-escrituras de romances, engajaram-se na composição da personagem feminina. A teórica Marie-Louise von Franz será citada também, de acordo com seus estudos realizados nesta área.

4.1 Abordagem intertextual

Os contos variam infinitamente, mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai dispondo-os diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade. CASCUDO, 2004, p. 22.                                                                 
Sabe-se que toda literatura passa por uma renovação na medida em que mudam os tempos e os autores. Por isso, os contos tradicionais da antiguidade têm sido alvo de releituras como modo de adaptação a uma realidade diferenciada. Assim, Angela Carter, por exemplo, “re-aproveitando” o já conhecido, insere-o em sua narrativa, dando a ela características originais, uma vez que nova tessitura e novas expectativas são acrescidas à mesma. Esse processo de constituição de um texto denomina-se intertextualidade.

Julia Kristeva, apoiando-se em Bakhtin, afirma que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (1974, p. 64). Além disso, Kristeva sustenta que “em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (1974, p. 64). Nessa duplicidade de leituras, há presença de vozes de vários autores de diferentes épocas, constituindo uma única obra.

Alba Olmi, citando Kristeva (2003), salienta que o texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto. A ciência paragramática deve, pois, levar em conta uma ambivalência: a linguagem poética é um diálogo de dois discursos. Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve segundo leis específicas que estão por descobrir. Assim, no paragrama de um texto, funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor. (KRISTEVA apud OLMI, 2003, p. 266)
                     
Olmi ainda afirma que, na própria etimologia da palavra texto, do latim textus, tem-se o que é “tecido entrelaçado”: “Nessa afirmativa está implícita a idéia de algo que resulta da relação de elementos pré-existentes ao texto, o que evidencia a presença intertextual” (OLMI, 2003, p. 265).

Por sua vez, Koch conceitua intertextualidade “como aquilo que diz respeito aos modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona” (KOCH, 2000, p. 46).

Marly Amarilha salienta que o processo intertextual é o de revitalizar o passado, revivendo novamente, sob novos ângulos, algo já conhecido: “[...] Ao retomar na história contemporânea os ecos do passado, o leitor tem a oportunidade de despertar todo um sistema vital que estava resguardado no texto” (AMARILHA, 1997, p. 89).

De certa forma, intertextualidade é a desconstrução, a renovação e a ampliação do já existente no campo literário. Provavelmente, não exista nada totalmente original, pois o que se constrói no presente aborda reminiscências advindas de outros tempos. Seria, então, acertado afirmar que os textos são “solidários” entre si, ou seja, comunicam-se, entrelaçando e ressaltando culturas, ideologias, valores, crenças e a história vivida pela humanidade em cada época.

No encontro do leitor com o texto é bem possível que se incite um impacto de desconstruções, releituras, construções, uma vez que quem está lendo traz consigo a sua bagagem cultural-ideológica-social que esbarra ou desliza ou se põe na tangente em meio ao que o autor evoca. Nesse momento surgem desconstruções que se dividem em dois mundos, o do leitor e o do autor. O processo posterior é a releitura, o buscar o que já se conhece e compará-lo com o que está sendo lido, vivenciado. Por sua vez, quando o leitor consegue encontrar os encaixes das partes desmontadas, desfiguradas, naturalmente assimila dois universos diferentes, o do autor e o do leitor, formando um único universo, que se faz enriquecido, novo, único, consistente, resultando em uma real construção, no entendimento, no conhecimento do que foi lido.

Quanto à inserção de um texto em outro, resultando na construção de uma nova obra literária, Olmi sustenta que o espaço literário é aberto para a apropriação, o surgimento e o “re-surgimento” de novas idéias:
                                                                                  
Essa apropriação, [...] foi e deverá ser um lugar, um espaço de proliferação, de disseminação capaz de produzir e re-produzir idéias, formas, conceitos e conteúdos e de ser aceita como fenômeno absolutamente natural, despreocupado de citação de fontes, influências e referências, de acordo com os postulados mais recentes dos estudos em Literatura Comparada. (OLMI, 1998, p. 7)                     
Entretanto, segundo Nitrini:
             
Intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas, mas sua instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente apresenta resultados satisfatórios, pois estas dependem muito da erudição do leitor. (NITRINI, 1997, p.167)
                     
É possível afirmar, observando a citação de Nitrini, que os elementos intertextuais que compõem uma obra só podem ser observados pelo leitor que os conhece, uma vez que o implícito torna-se explícito. De outro modo, se esse jamais leu ou ouviu um determinado conto de fadas, ou um romance, não encontrará a presença intertextual presente nele.

Consoante a isso, Peônia Guedes menciona a citação de Margaret Drabble, uma vez que Drabble explicita como lida com o processo intertextual em suas obras, ou melhor, as adaptações que ela realiza de acordo com os diferentes leitores:

O problema de alguém com um background como o meu é que tenho uma sobrecarga de alusões literárias. E para me comunicar com pessoas que não têm essa carga, tenho de tentar esconder e esquecer coisas, ou assegurar-me de que estão vindo das profundezas e não da superfície do texto. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 40)
                     
Quando se trata de intertextualidade e quando as mulheres decidem enveredar pelo caminho dos intertextos em suas obras, Jean Franco pensa o seguinte:

Todo escritor - tanto homens como mulheres - enfrenta o problema da autoridade textual ou da voz poética já que, desde o momento em que inicia a sua produção, estabelece relações de afiliação ou de diferença para com os mestres do passado. Este confronto tem um interesse especial quando se trata de uma mulher escrevendo “contra” o poder asfixiante de uma voz patriarcal, assim, continua Franco, a intertextualidade é um terreno de luta onde a mulher se enfrenta com as exclusões e com a marginalização do passado. (FRANCO apud NAVARRO, 1997, p. 46)
                                                                                  
Na verdade, o que Jean Franco percebe é o confronto entre autores historicamente conhecidos ou cânones que conquistaram o público e, com isso, adquiriram voz de autoridade em relação aos escritores mais recentes. E se essa batalha pelo espaço literário acontece entre homens escritores, imagine-se onde se pode encontrar uma lacuna para a inserção da autoria feminina. Além de a mulher lutar pelo seu espaço contra valores ultrapassados, excludentes, impostos pelo sistema patriarcal, ainda tem que enfrentar uma batalha maior, ou seja, concorrer no campo literário com homens que já traçaram a literatura conforme seus moldes.

Nessa perspectiva, depreende-se que a literatura escreve a sua própria releitura, ou seja, o escritor produz a partir do embasamento literário que constitui a própria literatura e, assim, no recém-criado, o antigo renasce. Dessa forma, seria acertado afirmar que a intertextualidade desencadeia um processo triplo na mente de quem a percebe, ou seja, observando-se a obra primeira, a obra é reconstruída e o material é absorvido e reconstruído na mente do leitor.

O curioso nesse processo de apropriações, já referido por Olmi, é como um texto A pode se relacionar com um texto B, e o que entre ambos, de acordo com as relevantes diferenças, pode ser apresentado efetivamente    como evidência intertextual?

Quando se percebe a presença de hipertextos (é a inclusão e/ou modificação de um ou vários textos em outro, uma vez que o surgimento do novo texto pode ser a soma de vários outros textos e/ou sua alteração parcial ou total.), verificando-se o uso de referências, diálogos, na verdade, o que se busca é desvendar as semelhanças e/ou diferenças em relação ao hipotexto (É o texto-origem.).

Segundo Olmi observa, Genette “prefere o conceito de transtextualidade (*) –  ou transcendência textual do texto definida como tudo aquilo que coloca o texto, explícita ou implicitamente, em relação com outros textos” (OLMI, 2003, p. 267).
                                                                                  
Segundo Genette, intertextualidade “é uma relação de co-presença entre dois ou mais textos [...] como a presença efetiva de um texto noutro” (GENETTE apud OLMI, 2003, p. 267). Essa “relação de co-presença entre textos”, é que será analisada a seguir nas re-escrituras de alguns contos de fadas.

___________________
(*) Genette divide o processo em cinco categorias: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade e a arquitextualidade (cf. Olmi, 2003).
________________________
 
continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Delicada)

Mulher na praia, de Silvério Reis
Era uma jovem de coração tão delicado que assustava. Não dava um passo além da luz que, como se estivesse num teatro, parecia iluminá-la. Sempre no centro de sua vida, Marina sabia bem o que dizer, quando dizer, como dizer, enfim, não perdia o foco, a força de sua voz, nem mesmo sendo tão delicada. Talvez, por isso mesmo, fosse tão forte. Nara Leão, segundo ouvi Maria Bethânia dizer numa entrevista, já ensinava: se estiver cantando num lugar com muito barulho, vá cantando mais baixo, pois, assim, você força a quem estiver falando alto a baixar o tom, o que nos leva a crer que silêncio demais também incomoda. Quantos decibéis, hein?

De coração tão delicado, delicadinho, Marina espraiava suas ondas azuladas como beijos frios na areia quente por onde passava. Um dia, um belo moço a trouxe à luz de sua história, e, juntos, formaram um casal. Totalmente o oposto de Marina, ele era bruto, não lhe dava tempo para dizer as coisas do jeito que ela gostava, como leves sussurros ao pé do ouvido numa noite de lua. Ensolarado, feroz, vociferava a qualquer gesto mais doce de sua amada, dizendo que não era fresco e que, se quisesse um maricas, que fosse procurar outro barco, em outra encosta, porque ele era macho, homem com h maiúsculo. Marina chorou. Não queria isso.

Terminado este namoro, sobrevieram outros, mas nada de encontrar um delicado coração que ao seu fizesse par. Bateria apenas solo um coração delicadinho como o dela? Não sei, mas, nos dias de hoje, mais se valoriza quem atropele o semelhante que quem ceda seu lugar ao outro. Gentileza é coisa rara, artigo de luxo, na loja de costumes. Acostumada a ser lívida, leve como a brisa de um verão que é quase outono, Marina estava um tanto desiludida. Seu coração, delicadinho, era amassado com frequência, e ela, sem defesa, se magoava e via seu coração, em pétalas, tão delicado, virar tapete. Olhando a si mesma, chorou, e o chão ficou inteiro em flor.

Hoje, numa praia de um litoral qualquer, Marina se rende ao som do mar e já não pensa muito em par ideal. Mantém acesa a delicada chama rubra que a mantém como a pessoa que ela foi e, se Deus quiser, sempre será. Magoa-se menos quando o amor naufraga nas ondas frívolas da ilusão, acreditando, ainda, no delicado azul que envolve o céu, que chove em nós quando amorosos, confiantes em que o delicado em nós não se perdeu. Ironia, sarcasmo, violência, tudo isso é parte do humano. Será que precisamos ser só isso? Estar só nisso? Marina acreditava que não. Fizera simpatia para Santo Antônio. Junho estava aí. Não, "não aprendeu dizer adeus".

Fonte:
O Autor

Contos Populares Portugueses (A Herança Paterna)

Era uma vez um pai que tinha dois filhos, dos quais o mais novo lhe disse:

- Meu pai, dê-me a minha parte, que eu quero ir correr terras a ver se junto fortuna.

Então o pai deu-lhe o que lhe pertencia da parte da mãe e ele partiu para terras longes.

Passaram-se alguns tempos e o rapaz, vendo que não juntava fortuna, antes ia gastando a sua parte, resolveu voltar à casa paterna. Chegado à sua terra natal, soube logo que seu pai havia falecido e seu irmão transformara a casa num palácio, onde vivia regaladamente. Então o rapaz foi ter com o irmão, contou-lhe a sua vida e ele respondeu:

- Eu nada te posso fazer, pois nosso pai nada me deixou e para ti ficou essa caixa velha, recomendando-me que a não abrisse.

Recebeu o rapaz a herança paterna e partiu para outras terras. No caminho desejou ver o que continha a caixa e abriu-a. Eis que lhe sai de dentro um negrinho muito pequenino que lhe diz:

- Mande, senhor!

- Mando que me apresentes um palácio com tudo quanto lhe é dado, carruagens e lacaios para me servirem.

Dito e feito - tudo apareceu como ele desejava. Vivia o rapaz muito feliz no seu palácio, que era muito mais belo que o do rei, quando um. Dia recebeu a notícia de que o seu irmão o ia visitar. Foi o irmão recebido ali com grandes festas e ele então perguntou-lhe como é que em tão pouco tempo tinha arranjado tanta coisa.

- Foi a herança que me deixou o nosso pai.

- Mas - retrucou o irmão - a tua herança foi uma caixa velha!

- Foi o que tu dizes, na verdade. Mas dentro dessa caixa é que estava o segredo.

Então o irmão tratou de lhe roubar a caixa e, sem que ele desse por isso, saiu do palácio. Chegado à sua terra, abriu a caixa e logo o pretinho disse:

- Mande, senhor!

- Mando que meu irmão fique sem o seu palácio e apareça metido numa prisão e que o meu palácio se transforme num mil vezes melhor do que era o dele.

Tudo assim se fez e ele disse mais ao pretinho:

- Ordeno que faças com que a filha do conde de tal case comigo e que eu fique com o título de conde.

Cumpriu-se tudo quanto ele desejava, e para não lhe roubarem a caixa trazia-a sempre consigo e dormia com ela debaixo da cabeça.

Ora o irmão que estava preso tinha um cão e um gato, e estes, logo que souberam que o seu dono estava na cadeia, trataram de lá ir ter com ele. Uma vez chegados, tomaram conhecimento de que o conde, irmão do seu dono, lhe tinha roubado a caixa e cuidaram ambos de ir ao palácio dele para a trazer. Para esse fim fizeram um batel de casca de abóbora, pois tinham de atravessar o mar.

Chegados ao palácio do conde, disseram-lhes logo que ele dormia com a caixa debaixo da cabeça. Então, o cão disse ao gato:

- Eu meto-me debaixo da cama e tu vais à cozinha molhar o rabo no vinagre e chegas com ele ao nariz do conde. Enquanto ele espirra, eu tiro a caixa e depois fugimos com ela!

Assim fizeram, e logo se acharam fora do palácio. Embarcaram no batel e foram navegando. Em determinada altura avistaram um navio de ratos, que logo içou bandeiras de guerra. Mas eles, que iam em paz, não fizeram mal aos ratos e contaram-lhes o motivo que ali os levava. Então os ratos disseram:

- Se formos precisos, ao vosso serviço estamos!

- Obrigados - responderam o cão e o gato.

Quando já estavam quase no termo da viagem, tiveram uma grande questão por causa de decidirem qual havia de levar a caixa ao dono. Neste dize-tu-direi-eu, deixaram cair a caixa ao mar. Então, o cão, aflito, exclamou:

– Valha-me aqui o rei dos peixes!

E logo apareceu um grande peixe, que lhe perguntou:

- Aqui estou; que me queres?

- Eu vinha em viagem mais o gato e trazíamos uma caixa que nos caiu ao mar. Só Vossa Majestade nos pode valer.

- Eu não sei disso, mas vou chamar os meus vassalos, pois talvez eles saibam.

Então vieram muitos peixes e uma lagosta, que trazia uma perna quebrada. Esta informou:

- Eu vi essa caixa. Por sinal, caiu-me em cima de uma perna e partiu-a.

O rei dos peixes ordenou-lhe que a fosse buscar e deu-a ao cão. Este e o gato, depois de mil agradecimentos partiram para a prisão do seu dono, resolvendo entrar ambos com a caixa às costas.

O dono ficou muito contente e abriu a caixa. Logo ordenou ao pretinho:

- Quero desfeita esta prisão. Quero um palácio em frente do do  meu irmão. Quero casar com a filha do rei.

Tudo assim aconteceu. Depois ele dirigiu-se ao irmão: - Podia fazer-te muito mal, mas não quero. Antes hei de repartir contigo a minha riqueza e seremos muito amigos de hoje em diante.

Esquecia-me de dizer que o cão e o gato tiveram coleiras de ouro fino e pedras preciosas. Morreram muito velhos.

Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVI

Por sua vez, a menina Lúcia, ou Narizinho arrebitado, como assim foi apelidada,    também adormeceu    e    sonhou    com    um    país    encantado    e, coincidentemente, foi levada desse país, ou seja, o Reino das Águas Claras, até o Sítio do Pica-pau Amarelo, embalada por fortes ventos.

Em 1920, Lobato escreve o conto infantil A história do peixinho que morreu afogado. Em 1921, o autor re-elabora e amplia esse mesmo conto, acrescendo nele uma série de aventuras vividas pela menina Lúcia no Sítio do Pica-pau Amarelo, só que desta vez publica-o sob o título de Narizinho arrebitado.

Narizinho vive no sítio de Dona Benta, sua avó e, de certa forma, este é um lugar que, de acordo com a imaginação da menina, torna-se encantado.

Lúcia, assim como as demais personagens já vistas, desempenha papéis que se distanciam da personagem até então conhecida, como Branca de neve, Cinderela ou Bela adormecida, pois a menina não espera passivamente os fatos acontecerem, como as demais que sofriam ações predestinadas por madrastas, fadas ou bruxas.

A menina Lúcia mostra-se possuidora de um espírito consciente, crítico e voltado para o social, pois questiona possíveis situações que não poderiam ser justas ou que poderiam causar transtornos não somente aos habitantes do sítio do Pica-pau Amarelo, mas também ao Reino das Águas Claras.

Enquanto menina e vivendo em um sítio, muitas ações, historicamente atribuídas somente a meninos, eram praticadas por ela, como subir em árvores, brincar com Pedrinho e direcionar as regras do jogo, bem como dançar, correr, andar livremente em ambientes externos e mostrar-se feliz ou infeliz se algo não a agradasse. Além disso, Lúcia possuía imaginação muito fértil, por isso não era levada muito a sério por Dona Benta e Tia Nastácia.

Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças”. Mas depois que a menina fez a boneca falar, Dona Benta ficou tão impressionada que disse para a boa negra: –  Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre pensei.
                                                                                   
- Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de ter encontrado por aí alguma varinha de condão que alguma fada tenha perdido...Eu também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso da boneca fiquei até transtornada da cabeça [...] (LOBATO, 1990, p. 33-34)                     
Narizinho arrebitado, como princesa do Reino das Águas Claras, é a imagem de menina-princesa que prenuncia novos tempos para a mulher, enquanto personagem e membro social atuante. Ela é uma menina simples, cheia de viva e que de princesa só possui o título, pois não apresenta nada em sua personalidade e postura que possa lembrar a alta nobreza.

Percebe-se, ao analisar-se Narizinho arrebitado, que não somente Lúcia assume a função de protagonista nas histórias, mas também Emília, que é a personagem que cresce, evoluindo gradativamente na narrativa do autor:

[...] Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por Tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela, não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira. (LOBATO, 1990, p. 6)                     
Emília, de mera boneca de pano, pertencente à menina Lúcia, passa a ser falante, com o auxílio do Doutor Caramujo, tornando-se audaz, independente e questionadora, representando os anseios a respeito da vida, do homem e do mundo, vivenciados inclusive pelo próprio autor.

Luciana Sandroni, conferindo à boneca Emília sua importância nas obras de Lobato, escreve o livro Minhas memórias de Lobato, sendo que a boneca narra a sua história junto ao autor, porém de seu ponto de vista feminino.

-Tive uma idéia mirabolante! Vou escrever minhas memórias.
Dona Benta não entendeu nada. Será que Emília estava sofrendo de amnésia e tinha esquecido que já tinha escrito as Memórias de Emília?
- Mas, Emília, você já escreveu suas memórias. Não me diga que já tem um segundo tomo!
- Não, é que eu tive a idéia de escrever as memórias do Monteiro Lobato, e é claro que metade do livro vai ser sobre mim, já que eu sou a personagem mais importante que ele criou. Por isso o livro vai se chamar “Eu e Lobato”. (SANDRONI, 1997, p. 5)

É importante salientar que, até mesmo quanto à constituição familiar, os três escritores citados inovaram, uma vez que as três meninas (Alice, Dorothy e Lúcia) pertencentes às narrativas em questão, não moravam com o pai e a mãe, o que era incomum em uma família tradicional naquela época.

No caso de Alice, menciona-se a presença de sua irmã. Dorothy, menina órfã, morava no Kansas com os tios.    Narizinho estava no sítio com a avó, tia Nastácia, e o primo Pedrinho.

Parece que a situação de as meninas estarem longe dos pais (vivos ou mortos) possibilita que a imaginação das mesmas flua naturalmente de forma que alcance terras distantes, uma vez que se eles estivessem presentes poderiam impor-lhes regras e restrições.

Além de Lúcia ser uma personagem bastante expressiva, Lobato concedeu também à boneca, características semelhantes. Com certeza, as personagens femininas criadas por Carrol, Baum e Lobato “roubaram” as cenas nas histórias, ou seja, brilharam por se mostrarem simples e autênticas. Na verdade, esses autores também se mostraram autênticos, abordando cenários e temáticas em suas histórias que se distanciavam do já conhecido, como “carruagem, espada, transportes a cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna”, como mencionou Câmara Cascudo.

Além disso, eles não colocaram um personagem masculino em posição de destaque em suas narrativas, o que indicaria conformidade com os valores patriarcais e com as estruturas sociais vigentes, mas escolheram personagens femininas para se tornarem sujeitos da ação, desfazendo-se do estereótipo de meros objetos-femininos propagados em um passado ainda recente, sendo que nesse a participação feminina ainda era considerada insignificante. Com certeza, a escassez ou a ausência de figuras masculinas foi um detalhe importante utilizado pelos escritores para que não se evidenciassem os convencionalismos desse sistema.

Os referidos escritores contribuíram para que a voz feminina fosse resgatada. Esse novo enfoque dado à figura feminina ou, quem sabe, esta nova prática discursiva em que as meninas pensam, falam e agem, contribuem para “desmascarar a ‘universalidade’ do discurso crítico tradicional da cultura dominante” (NAVARRO, 1997, p.49, grifo da autora), uma vez que a autoria das ações correspondiam, em geral, única e exclusivamente, a personagens masculinos.

Essas personagens representam os anseios femininos, visto que as mulheres queriam simplesmente viver de forma natural, e não acuadas em um submundo servil, somente moldando-se a convencionalismos e a padrões sociais que não coincidiam    com    seus    gostos,    desejos,    atitudes.    Assim    sendo,    desejavam compartilhar um mundo em igualdade de papéis, independendo do sexo a que pertencessem.

Como foi visto, Carrol, Baum e Lobato inovaram na criação de suas personagens femininas, distanciando-se da lógica comum da época, concedendo a uma menina atitudes e ações consideradas próprias do sexo masculino, bem como se utilizaram da magia e do mundo fantástico, talvez para mostrar ou alertar que mudanças eram necessárias em relação à concepção da personagem feminina, enquanto figura decisiva e atuante no cenário literário.

Quem sabe, futuramente, em plano fictício, essas três personagens (Alice, Dorothy e Lúcia) já crescidas possam vir a se parecer com as meninas más de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría ou, quem sabe, com as personagens femininas de Margaret Drabble, ou seja, imagens de mulheres que realmente sabem o que querem, construindo suas vidas, conforme suas vontades, mas com um detalhe que as torna realmente especiais, o interesse pelas causas sociais e a vontade incontrolável de consertar o mundo. Em consequência dessas atitudes e anseios, talvez, Alice, Dorothy e Lúcia possam ser consideradas os embriões das personagens criadas por Atwood, Etxebarría e Drabble.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (A hora certa de chorar)

Nunca se sabe a hora certa de chorar. O choro, assim como a voz, é uma expressão da alma. E a alma, pelo que se sabe, não tem relógio, não é mecânica. A alma é o que se mostra pelos olhos e pelas lágrimas. Você tem chorado o suficiente? Há muitas pequenas mortes durante o dia, todos os meses, o ano todo. A pressa, muitas vezes, empurra o choro para dentro e o sufoca, porque é preciso enfrentar. Mas, enfrentar?! Enfrentar o quê?! A vida não era para ser vivida, curtida, experimentada? Era. Mas deve ter havido alguma falha, e certas pessoas se esqueceram disso. Onde as lágrimas dessa gente? De que rio do esquecimento se esquivaram e, num cantinho das pálpebras, num abrir e fechar de olhos, empedraram-se e não caem mais?

Chorar é deixar cair as lágrimas e se render a apenas contemplar o que se perde, e se perde muito pela vida. Viver é perder um pouco de si a cada instante. E não há hora certa de chorar. Sufocado, o choro explode em palavras, muitas vezes com raiva, frustradas pelo medo e/ou pelo pouco caso com a vida, que é líquida como as águas que rolam dos olhos e lavam a alma. E a alma, pelo que se sabe, também se suja. A alma é o que se esconde atrás dos olhos, em forma de lágrimas. Chorar faz bem. E, mal e mal, sempre se soube disso.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.obaoba.com.br

Jorge Luis Borges (A loteria da Babilônia)

Como todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Alep, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança foi-me fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico conta com admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem ou que nelas trabalha de forma imperfeita e secreta: a loteria. Não indaguei a sua história; sei que os magos não conseguem por-se de acordo; sei dos seus poderosos propósitos; o que pode saber da Lua o homem não versado em astrologia. Sou de um país vertiginoso onde a loteria é a parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou do meu coração. Agora longe da Babilônia e dos seus estimados costumes, penso com certo espanto na loteria e nas conjecturas blasfemas que ao crepúsculo murmuram os homens velados.

Meu pai contava que antigamente – questão de séculos, de anos? – a loteria na Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros trocavam por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como os senhores vêem.

Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos no censo dos números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não adquiria sortes era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo esse desdém justificado duplicou-se. Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que perdiam e abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se nas caixas faltasse a importância quase total das multas. Propôs uma ação judicial contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas, ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia. Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: o seu valor eclesiástico, metafísico. Pouco depois, as informações dos sorteios omitiram as referências de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase inadvertido a seu tempo, foi de capital importância. Foi o primeiro aparecimento, na loteria, de elementos não pecuniários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos.

Ninguém ignora que o povo da Babilônia é devotíssimo à lógica, e ainda à simetria. Era incoerente que se computassem os números ditosos em moedas redondas e os infaustos em dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a posse das moedas não determina sempre a felicidade e que outras formas de ventura são talvez mais diretas.

Inquietações diversas propagavam-se nos bairros desfavorecidos. Os membros do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual na loteria, inspirou uma indignada agitação, cuja memória os anos não apagaram. Alguns obstinados não compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de uma necessária etapa histórica... Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio lhe deu direito a que lhe queimassem a língua. O código capitulava essa mesma pena para o que roubava um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que merecia o ferro candente, na sua qualidade de ladrão; outros, magnânimos, que se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o azar... Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica finalmente impôs a sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu plenamente os seus generosos fins. Em primeiro lugar, conseguiu que a Companhia aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era indispensável, dada a vastidão e complexidade das novas operações.) Em segunda etapa, conseguiu que a loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre participava automaticamente dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus de sessenta em sessenta noites e que demarcavam o seu destino até o próximo exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio dos magos ou a detenção de um inimigo (conhecido ou íntimo) ou a encontrar, nas pacíficas trevas do quarto, a mulher que começava a inquietá-lo ou que não esperava rever; uma jogada adversa: a mutilação, a infâmia, a morte. Às vezes, um fato apenas – o vil assassinato de C, a apoteose misteriosa de B – era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da Companhia eram (e são) todo-poderosos e astutos. Em muitos casos, teria diminuído a sua virtude o conhecimento de que certas felicidades eram simples fábrica do acaso; para frustrar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia. Os seus passos e os seus manejos eram secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um, dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphqa, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que, conforme a opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas depositavam delações nesses sítios. Um arquivo alfabético recolhia essas notícias de veracidade variável. Por incrível que pareça, não faltavam murmúrios. A Companhia, com a sua habitual discrição, não replicou diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras sagradas. Essa peça doutrinal observava que a loteria é uma interpolação da casualidade na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é confirmá-lo. Salientava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao direito de os consultar), funcionavam sem garantia oficial.

Essa declaração apaziguou os desassossegos públicos. Também produziu outros efeitos, talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as operações da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está para zarpar; mas tratarei de os explicar.

Por inverossímil que seja, ninguém tentara até então uma teoria geral dos jogos. O babilônio é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhe ocorre investigar as suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a declaração oficiosa que mencionei instigou muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De uma delas nasceu a seguinte conjectura: Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não apenas numa? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século – não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulo tão justos provocaram, por fim, uma reforma considerável, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que intentarei resumir, embora de modo simbólico.

Imaginemos um primeiro sorteio que decrete a morte de um homem. Para o seu cumprimento procede-se a um outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis. Desses executores quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do carrasco, dois podem substituir a ordem infeliz por uma ordem ditosa (o encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará (isto é, a tornará infame ou a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la... Tal é o esquema simbólico. Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam noutras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; em verdade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a Tartaruga. Essa infinitude condiz admiravelmente com os sinuosos números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que os platônicos adoram... Um eco disforme dos nossos ritos parece ter reboado no Tibre: Ello Lampridio, na Vida de Antonino Heliogábalo, refere que este imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de forma que um recebia dez libras de ouro, e outro, dez moscas, dez leirões, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo foi educado na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo.

Também há sorteios impessoais, de objetivo indefinido; um ordena que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte um pássaro, outro, que secularmente se retire (ou se acrescente) um grão de areia aos inumeráveis que há na praia. As conseqüências são, às vezes, terríveis.

Sob o influxo benfeitor da Companhia, os nossos costumes estão saturados de acaso. O comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não estranhará se uma delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, neste relato apressado, falseei certo esplendor, certa atrocidade. Talvez, também, uma misteriosa monotonia... Os nossos historiadores, que são os mais perspicazes da orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; é de notar que as operações desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem sem alguma dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro sem qualquer divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam juramento secreto de omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta.

A Companhia, com modéstia divina, evita toda publicidade. Os seus agentes, como é óbvio, são secretos; as ordens que distribui continuamente (talvez incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Para mais, quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de súbito e estrangula a mulher a seu lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca toda espécie de conjecturas. Uma insinua abominavelmente que há séculos não existe a Companhia e que a sacra desordem das nossas vidas é puramente hereditária, tradicional; outra julga-a eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando o último deus aniquilar o mundo. Outra afiança que a Companhia é onipotente, mas que influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem e do pó, nos entressonhos da madrugada. Outra, por boca de heresiarcas mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque a Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.