sábado, 19 de abril de 2014

Machado de Assis (D. Jucunda)

Capítulo I

Ninguém, quando D. Jucunda aparece no Imperial Teatro de D. Pedro II, em algum baile, em casa, ou na rua, ninguém lhe dá mais de trinta e quatro anos. A verdade, porém, é que orça pelos quarenta e cinco; nasceu em 1843. A natureza tem assim os seus mimosos. Deixa correr o tempo, filha minha, disse a boa madre eterna; eu cá estou com as mãos para te amparar. Quando te enfastiares da vida, unhar-te-ei a cara, polvilhar-te-ei os cabelos, e darás um pulo dos trinta e quatro aos sessenta, entre um cotilhão e o almoço.

É provinciana. Chegou aqui no começo de 1860, com a madrinha, — grande senhora de engenho, e um sobrinho desta, que era deputado. Foi o sobrinho quem propôs à tia esta viagem, mas foi a afilhada quem a efetuou, tão-somente com fazer descair os olhos desconsolados.

— Não, não estou mais para essas folias do mar. Já vi o Rio de Janeiro... Você que acha, Cundinha? perguntou D. Maria do Carmo.

— Eu gostava de ir, dindinha.

D. Maria do Carmo ainda quis resistir, mas não pôde; a afilhada ocupava em seu coração a alcova da filha que perdera em 1857. Viviam no engenho desde 1858. O pai de Jucunda, barbeiro de ofício, residia na vila, onde fora vereador e juiz de paz; quando a ilustre comadre lhe pediu a filha, não hesitou um instante; consentiu entregar-lha para benefício de todos. Ficou com a outra filha, Raimunda.

Jucunda e Raimunda eram gêmeas, circunstância que sugeriu ao pai a ideia de lhes dar nomes consoantes. Em criança, a beleza natural supria nelas qualquer outro alinho; andavam na loja e pela vizinhança, em camisa rota, pé descalço, muito enlameadas às vezes, mas sempre lindas. Aos doze anos perderam a mãe. Já então as duas irmãs não eram tão iguais. A beleza de Jucunda acentuava-se, ia caminhando para a perfeição: a de Raimunda, ao contrário, parava e murchava; as feições iam descambando na banalidade e no inexpressivo. O talhe da primeira tinha outro garbo, e as mãos, tão pequenas como as da irmã, eram macias — talvez, porque escolhiam ofícios menos ásperos.

Passando ao engenho da madrinha, Jucunda não sentiu a diferença de uma a outra fortuna. Não se admirou de nada, nem das paredes do quarto, nem dos móveis antigos, nem das ricas toalhas de crivo, nem das fronhas de renda. Não estranhou as mucamas (que nunca teve), nem as suas atitudes obedientes; aprendeu logo a linguagem do mando. Cavalos, redes, jóias, sedas, tudo o que a madrinha lhe foi dando pelo tempo adiante, tudo recebeu, menos como obséquios de hospedagem que como restituição. Não expressava desejo que se lhe não cumprisse. Quis aprender piano, teve piano e mestre; quis francês, teve francês. Qualquer que fosse o preço das cousas, D. Maria do Carmo não lhe recusava nada.

A diferença de situação entre Jucunda e o resto da família era agravada pelo contraste moral. Raimunda e o pai acomodavam-se, sem esforço, às condições da vida precária e rude; fenômeno que Jucunda atribuía, instintivamente à índole inferior de ambos. Pai e irmã, entretanto, achavam natural que a outra subisse a tais alturas, com esta particularidade que o pai tirava orgulho da elevação da filha, enquanto que Raimunda nem conhecia esse sentimento; deixava-se estar na humildade ignorante. De gêmeas que eram, e criadas juntas, sentiam-se agora filhas do mesmo pai — um grande senhor de engenho, por exemplo — que houvera Raimunda em alguma agregada da casa.

Leitor, não há dificuldade em explicar essas coisas. São desacordos possíveis entre a pessoa e o meio, que os acontecimentos retificam, ou deixam subsistir até que os dois se acomodem. Há também naturezas rebeldes à elevação da fortuna. Vi atribuir à rainha Cristina esta explosão de cólera contra o famoso Espartero: "Fiz-te duque, fiz-te grande de Espanha; nunca te pude fazer fidalgo". Não respondo pela veracidade da anedota; afirmo só que a bela Jucunda nunca poderia ouvir à madrinha alguma cousa que com isso se parecesse.

CAPÍTULO II

— Sabe quem vai casar? perguntou Jucunda à madrinha, depois de lhe beijar a mão.

Na véspera, estando a calçar as luvas para ir ao Teatro Provisório, recebera cartas do pai e da irmã, deixou-as no toucador, para ler quando voltasse. Mas voltou tarde, e com tal sono, que esqueceu as cartas. Agora de manhã, ao sair do banho, vestida para o almoço, é que as pôde ler. Esperava que fossem como de costume, triviais e queixosas. Triviais seriam; mas havia a novidade do casamento da irmã com um alferes, chamado Getulino.

— Getulino de quê? perguntou D. Maria do Carmo.

— Getulino... Não me lembro; parece que é Amarante, — ou Cavalcanti. Não. Cavalcanti não é; parece que é mesmo Amarante. Logo vejo. Não tenho ideia de semelhante alferes.

Há de ser gente nova.

— Quatro anos! murmurou a madrinha. Se eu era capaz de imaginar que ficaria aqui tanto tempo fora de minha casa! — Mas a senhora está dentro de sua casa, replicou a afilhada dando-lhe um beijo.

D. Maria do Carmo sorriu. A casa era um velho palacete restaurado, no centro de uma grande chácara, bairro do Engenho Velho. D. Maria do Carmo tinha querido voltar à província, no prazo marcado novembro de 1860; mas a afilhada obteve a estação de Petrópolis; iriam em março de 1861. Março chegou, foi-se embora, e voltou ainda duas vezes, sem que elas abalassem daqui; estamos agora em agosto de 1863. Jucunda tem vinte anos.

Ao almoço, falaram do espetáculo da véspera e das pessoas que viram no teatro.

Jucunda conhecia já a principal gente do Rio; a madrinha fê-la recebida, as relações multiplicaram-se; ela ia observando e assimilando. Bela e graciosa, vestindo-se bem e caro, ávida de crescer, não lhe foi difícil ganhar amigas e atrair pretendentes. Era das primeiras em todas as festas. Talvez o eco chegasse à vila natal — ou foi simples adivinhação de malévolo, que entendeu colar isto uma noite, nas paredes da casa do barbeiro: Nhã Cundinha Já rainha Nhã Mundinha Na cozinha.

O pai arrancou, indignado, o papel; mas a notícia correu depressa a vila toda, que era pequena, e foi o entretenimento de muitos dias. A vida é curta.

Jucunda, acabado o almoço, disse à madrinha que desejava mandar algumas coisas para o enxoval da irmã, e, às duas horas, saíram de casa. Já na varanda — o coupé embaixo, o lacaio de pé, desbarretado, com a mão no fecho da portinhola —, D. Maria do Carmo notou que a afilhada parecia absorta; perguntou-lhe o que era.

— Nada, respondeu Jucunda, voltando a si.

Desceram; no último degrau, perguntou Jucunda se a madrinha é que mandara pôr as mulas.

— Eu não; foram eles mesmos. Querias antes os cavalos? — O dia está pedindo os cavalos pretos; mas agora é tarde, vamos.

Entraram, e o coupé, tirado pela bela parelha de mulas gordas e fortes, dirigiu-se para o Largo de S. Francisco de Paula. Não disseram nada durante os primeiros minutos; D.

Maria é que interrompeu o silêncio, perguntando o nome do alferes.

— Não é Amarante, não, senhora, nem Cavalcanti; chama-se Getulino Damião Gonçalves, respondeu a moça.

— Não conheço.

Jucunda tomou a mergulhar em si mesma. Um dos seus prazeres diletos, quando ia de carro, era ver a outra gente a pé, e gozar as admirações de relance. Nem esse a atraía agora. Talvez o alferes lhe fizesse lembrar algum general; verdade é que só os conhecia casados. Pode ser também que esse alferes, destinado a dar-lhe sobrinhos cabos-deesquadra, viesse lançar-lhe alguma sombra aborrecida no céu brilhante e azul. As ideias passam tão rápidas e embrulhadas, que é difícil colhê-las, e pô-las em ordem; mas, enfim, se alguém supuser que ela cuidava também em certo homem, esse não andará errado.

Era candidato recente o doutor Maia, que voltara da Europa, meses antes, para entrar na posse da herança da mãe. Com a do pai, ia a mais de seiscentos contos. A questão do dinheiro era aqui um tanto secundária, porque Jucunda tinha certa a herança da madrinha; mas não se há de mandar embora um homem, só porque possui seiscentos contos, não lhe faltando outras qualidades preciosas de figura e de espírito, um pouco de genealogia, e tal ou qual pontinha de ambição, que ela puxaria em tempo, como se faz às orelhas das crianças preguiçosas. Já havia recusado outros candidatos. De si mesma chegou a sonhar com um senador, posição feita e ministro possível. Aceitou este Maia; mas, gostando dele, e muito, por que é que não acabava de casar? Por quê? Eis aí o mais difícil de aventar, amigo leitor. Jucunda não sabia o motivo. Era desses que nascem naqueles escaninhos da alma, em que o dono não penetra, mas penetramos nós outros, contadores de histórias. Creio que se liga à doença do pai. Já estava ferido, na asa, quando ela para cá veio; a moléstia foi crescendo, até fazer-se desenganada. Navalha não exclui espírito, haja vista Fígaro; o nosso velho disse à filha Jucunda, em uma das cartas, que tinha dentro de si um aprendiz de barbeiro, que lhe alanhava as entranhas. Se tal era, era também vagaroso, porque não acabava de escanhoá-lo. Jucunda não supunha que a eliminação do velho fosse necessária à celebração do casamento — ainda que por motivo de velar o passado; se claramente lhe viesse a idéia, é de crer que a repelisse com horror. Ao contrário, a ideia que agora mesmo lhe acudia, pouco antes de parar o coupé, é que não era bonito casar, enquanto o pai lá estava curtindo dores. Eis aí um motivo decente, leitor amigo; é o que procurávamos há pouco, é o que a alma pode confessar a si mesma, é o que tirou à fisionomia da moça o ar fúnebre que ela parecia haver trazido de casa.

Compraram o enxoval de Raimunda, e o remeteram pelo primeiro vapor, com cartas de ambas. A de Jucunda era mais longa que de costume; falava-lhe do noivo alferes, mas não empregava a palavra cunhado. Não tardou que viesse resposta da irmã, toda gratidão e respeitos. Sobre o pai dizia que ia com os seus achaques velhos, um dia pior, outro melhor; era opinião do doutor que podia morrer de repente, mas podia também aguentar meses e anos.

Jucunda meditou muito sobre a carta. Logo que Maia se lhe declarou, pediu-lhe ela que nada dissessem à madrinha por uns dias; ampliou o prazo a semanas; não podia fazê-lo a meses ou anos. Foi à madrinha, e confiou a situação. Não quisera casar com o pai enfermo; mas, dada a incerteza da cura, era melhor casar logo.

— Vou escrever a meu pai, e peço-me a mim mesma, disse ela, se dindinha achar que faço bem.

Escreveu ao pai, e terminou: Não o convido para vir ao Rio de Janeiro, porque é melhor sarar antes; demais, logo que nos casarmos, lá iremos ter. Quero mostrar a meu marido (desculpe este modo de falar) a vilazinha do meu nascimento, e ver as coisas de que tanto gostei, em criança, o chafariz do largo, a matriz e o padre Matos. Ainda vive o padre Matos? O pai leu a carta com lágrimas; mandou-lhe dizer que sim, que podia casar, que não vinha por andar achacado; mas longe que pudesse...

— Mundinha exagerou muito, disse Jucunda à madrinha. Quem escreve assim, não está para morrer.

Tinha proposto casamento à capucha, por causa do pai; mas o tom da carta fê-la aceitar o plano de D. Maria do Carmo e as bodas foram de estrondo. Talvez a proposta não lhe viesse da alma. Casaram-se pouco tempo depois. Jucunda viu mais de um dignitário do Estado inclinar-se diante dela, e dar-lhe o parabéns. Os mais célebres colos da cidade fizeram-lhe corte. Equipagens ricas, cavalos briosos, atirando as patas com vagar e graça, pela chácara dentro, muitas librés particulares, flores, luzes; fora, na rua, a multidão olhando. Monsenhor Tavares, membro influente do cabido celebrou o casamento.

Jucunda via tudo através de um véu mágico, tecido de ar e de sonho; conversações, música, danças, tudo era como uma longa melodia, vaga e remota, ou próxima e branda, que lhe tomava o coração, e pela primeira vez a fazia estupefata diante de alguma coisa deste mundo.

CAPÍTULO III

D. Maria do Carmo não alcançou que os recém-casados ficassem morando com ela.

Jucunda desejava-o; mas o marido achou que não. Tinham casa na mesma rua, perto da madrinha; e assim viviam juntos e separados. De verão iam os três para Petrópolis, onde residiam debaixo do mesmo teto.

Extinta a melodia, secas as rosas, passados os primeiros dias do noivado, Jucunda pôde tomar pé no recente tumulto, e achou-se grande senhora. Já não era só a afilhada de D.

Maria do Carmo, e sua provável herdeira; tinha agora o prestígio do marido; o prestígio e o amor. Maia literalmente adorava a mulher; inventava o que a pudesse fazer feliz, e acudia a cumprir-lhe o menor dos seus desejos. Um destes consistiu na série de jantares que deram em Petrópolis, durante uma estação, aos sábados, jantares que ficaram célebres; a flor da cidade ali ia por turmas. Nos dias diplomáticos, Jucunda teve a honra de ver a seu lado, algumas vezes, o internúncio apostólico.

Um dia, no Engenho Velho, recebeu Jucunda a notícia da morte do pai. A carta era da irmã; contava-lhe as circunstâncias do caso: o pai nem teve tempo de dizer: ai, Jesus! Caiu da rede abaixo e expirou.

Leu a carta sentada. Ficou por algum tempo com o papel na mão, a olhar fixamente; relembrava as coisas da infância, e a ternura do pai; saturava bem a alma daqueles dias antigos, despegava-se de si mesma, e acabou levando o lenço aos olhos, com os braços fincados nos joelhos. O marido veio achá-la nessa atitude, e correu para ela.

— Que é que tem? perguntou-lhe.

Jucunda, sobressaltada, ergueu os olhos para ele; estavam úmidos; não disse nada.

— Que foi? insistiu o marido.

— Morreu meu pai, respondeu ela.

Maia pôs um joelho no chão, pegou-a pela cintura e aconchegou-a ao peito; ela escondeu a cara no ombro do marido, e foi então que as lágrimas romperam mais grossas.

— Vamos, sossegue. Olhe o seu estado.

Jucunda estava grávida. A advertência fê-la erguer de pronto a cabeça, e enxugar os olhos; a carta, envolvida no lenço, foi esconder no bolso a ruim ortografia da irmã e outros pormenores. Maia sentou-se na poltrona, com uma das mãos da mulher entre as suas.

Olhando para o chão, viu um papel impresso, trecho de jornal, apanhou-o e leu; era a notícia da morte do sogro, que Jucunda não vira cair de dentro da carta. Quando acabou de ler, deu com a mulher, pálida e ansiosa. Esta tirou-lhe o papel e leu também. Com pouco se aquietou. Viu que a notícia apontava tão-somente a vida política do pai, e concluía dizendo que este "era o modelo dos varões que sacrificam tudo à grandeza local; não fora isso, e o seu nome, como o de outros, menos virtuosos e capazes, ecoaria pelo país inteiro".

— Vamos, descansa; qualquer abalo pode fazer-te mal.

Não houve abalo; mas, à vista do estado de Jucunda, a missa por alma do pai foi dita na capela da madrinha, só para os parentes.

Chegado o tempo, nasceu o filho esperado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Esse primeiro e único fruto, parece que veio ao mundo menos para aumentar a família, que para dar às graças pessoais de Jucunda o definitivo toque. Com efeito, poucos meses depois, Jucunda atingia o grau de beleza, que conservou por muitos anos. A maternidade realçava a feminilidade.

Só uma sombra empanou o céu daquele casal. Foi pelos fins de 1866. Jucunda estava a mirar o filho dormindo, quando lhe vieram dizer que uma senhora a procurava.

— Não disse quem é? — Não disse, não, senhora.

— Bem vestida? — Não, senhora; é assim meia esquisita, muito magra. Jucunda olhou para o espelho e desceu. Embaixo, reiterou algumas ordens; depois, pisando rijo e farfalhando as saias, foi ter com a visita. Quando entrou na sala de espera, viu uma mulher de pé, magra, amarelada, envolvida em um xale velho e escuro, sem luvas nem chapéu. Ficou por alguns instantes calada, esperando; a outra rompeu o silêncio: era Raimunda.

— Não me conhece, Cundinha? Antes que acabasse, já a irmã a reconhecera. Jucunda caminhou para ela, abraçou-a, fêla sentar-se; admirou-se de a ver aqui, sem saber de nada; a última carta recebida era já de muito tempo; quando chegara? — Há cinco meses; Getulino foi para a guerra, como sabe; eu vim depois, para ver se podia...

Falava com humildade e a medo, baixando os olhos a miúdo. Antes de vir a irmã, estivera mirando a sala, que cuidou ser a principal da casa; tinha receio de macular a palhinha do chão. Todas as galanterias da parede e da mesa central, os filetes de ouro de um quadro, cadeiras, tudo lhe pareciam riquezas do outro mundo. Já antes de entrar, ficara por algum tempo a contemplar a casa, tão grande e tão rica. Contou à irmã que perdera o filho, ainda na província; agora viera com a ideia de seguir para o Paraguai, ou para onde estivesse mais perto do marido. Getulino escrevera-lhe que voltasse para a província ou ficasse aqui.

— Mas que tem feito nestes cinco meses? — Vim com uma família conhecida, e aqui fiquei costurando para ela. A família foi para S.

Paulo, vai fazer um mês; pagou o primeiro aluguel de uma casinha onde moro, costurando para fora.

Enquanto a irmã falava, Jucunda contornava-a com os olhos — desde o vestido de seda já gasto — o último do enxoval, o xale escuro, as mãos amarelas e magras, até às bichinhas de coral que lhe dera ao sair da província. Era evidente que Raimunda pusera em si o melhor que possuía para honrar a irmã. Jucunda viu tudo; não lhe escaparam sequer os dedos maltratados do trabalho, e o composto geral tanto lhe deu pena como repulsa. Raimunda ia falando, contou-lhe que o marido saíra tenente por atos de bravura e outras muitas coisas. Não dizia você; para não empregar senhora, falava indiretamente; "Viu? Soube? Eu lhe digo. Se quiser..." E a irmã, que a princípio fez um gesto para dizer que deixasse aqueles respeitos, depressa o reprimiu, e deixou-se tratar como à outra parecesse melhor.

— Tem filhos? — Tenho um, acudiu Jucunda: está dormindo.

Raimunda concluiu a visita. Quisera vê-la e, ao mesmo tempo, pedir-lhe proteção. Havia de conhecer pessoas que pagassem melhor. Não sabia fazer vestidos de francesas, nem de luxo, mas de andar em casa, sim, e também camisas de crivo. Jucunda não pôde sorrir. Pobre costureira do sertão! Prometeu ir vê-la, pediu indicação da casa, e despediua ali mesmo.

Em verdade, a visita deixou-lhe uma sensação mui complexa: dó, tédio, impaciência. Não obstante, cumpriu o que disse, foi visitá-la à Rua do Costa, ajudou-a com dinheiro, mantimento e roupa. Voltou ainda lá, como a outra tornou ao Engenho Velho, sem acordo, mas às furtadelas. No fim de dois meses, falando-lhe o marido na possibilidade de uma viagem à Europa, Jucunda persuadiu a irmã da necessidade de regressar à província; mandar-lhe-ia uma mesada, até que o tenente voltasse da guerra.

Foi então que o marido recebeu aviso anônimo das visitas da mulher à Rua do Costa, e das que lhe fazia, em casa, uma mulher suspeita. Maia foi à Rua do Costa, achou Raimunda arranjando as malas para embarcar no dia seguinte. Quando ele lhe falou do Engenho Velho, Raimunda adivinhou que era o marido da irmã; explicou as visitas, dizendo que "D. Jucunda era sua patrícia e antiga protetora"; agora mesmo, se voltava para a vila natal, era com o dinheiro dela, roupas e tudo. Maia, depois de longo interrogatório, saiu dali convencido. Não disse nada em casa; mas, três meses depois, por ocasião de falecer D. Maria do Carmo, referiu Jucunda ao marido a grande e sincera afeição que a defunta lhe tinha, e ela à defunta.

Maia lembrou-se então da Rua do Costa.

— Todos lhe querem bem a você, já sei, interrompeu ele, mas por que é que nunca me falou daquela pobre mulher, sua protegida, que aqui esteve há tempos, uma que morava na Rua do Costa? Jucunda empalideceu. O marido contou-lhe tudo, a carta anônima, a entrevista que tivera com Raimunda, e finalmente a confissão desta, as próprias palavras, ditas com lágrimas.

Jucunda sentiu-se vexada e confusa.

— Que mal há em fazer bem, quando a pessoa o merece? perguntou-lhe o marido, concluindo a frase com um beijo.

— Sim, era excelente mulher, muito trabalhadeira...

CAPÍTULO IV

Não houve outra sombra na vida conjugal. A morte do marido ocorreu em 1884. Bela, com a meação do casal, e a herança da madrinha, contando quarenta e cinco anos que parecem trinta e quatro, tão querida da natureza como da fortuna, pode contrair segundas núpcias, e não lhe faltam candidatos; mas não pensa nisso. Tem boa saúde e grande consideração.

A irmã faleceu antes de acabar a guerra. Getulino galgou os postos em campanha, e saiu há alguns anos brigadeiro. Reside aqui; vai jantar, aos domingos, com a cunhada e o filho desta, no palacete de D. Maria do Carmo, para onde a nossa D. Jucunda se mudou. Tem escrito alguns opúsculos sobre armamento e composição do Exército, e outros assuntos militares. Dizem que deseja ser ministro da Guerra. Aqui, há tempos, falando-se disso no Engenho Velho, perguntou alguém a D. Jucunda se era verdade que o cunhado fitava as cumeadas do poder.

— O general? retorquiu ela com o seu grande ar de matrona elegante; pode ser. Não conheço os seus planos políticos, mas acho que daria um bom ministro de Estado.

Fonte:
http://www.dominiopublico.gov.br

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Clevane Pessoa (Despedida de Gabriel Garcia Marquez)

Gabriel Garcia Marquez, faleceu hoje, 17 de abril de 2014, na Cidade do México, aos 87 anos, de câncer nos pulmões, gânglios e fígado.
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Gabriel García Márquez (Olhos de cão azul)

Então olhou para mim. Pensava que olhava para mim pela primeira vez. Mas então, quando se virou por trás do abajur, e eu continuava sentindo sobre o ombro, nas minhas costas, seu escorregadio e oleoso olhar, compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas posteriores. Depois disso a vi ali, como havia estado todas as noites, de pé junto ao abajur, me olhando. Durante breves minutos não fizemos nada mais que isto: olhar-nos. Eu, olhando-a da cadeira, equilibrando-me numa das pernas traseiras. Ela, em pé, me olhando, com uma das mãos, comprida e quieta, sobre o abajur. Via as pálpebras iluminadas como todas as noites. Foi então que lembrei o de sempre, quando lhe disse: "Olhos de cão azul". Ela me disse, sem tirar a mão do abajur: "Isso. Já não o esqueceremos nunca". Saiu da órbita suspirando: "Olhos de cão azul. Escrevi isso por todas as partes”.

Vi-a caminhar em direção à cômoda. Vi-a aparecer na lua circular do espelho, olhando-me agora no final duma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar me olhando com seus grandes olhos de cinza acesa: olhando-me enquanto abria uma caixinha revestida de nácar rosado. Vi-a passar pó-de-arroz no nariz. Quando acabou de fazer isso, fechou a caixinha e voltou a ficar em pé e andou novamente em direção ao abajur, dizendo: "Temo que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas"; e estendeu sobre a chama a mão comprida e trêmula, a mesma que estivera esquentando antes de sentar-se em frente ao espelho. E me disse: "Você não sente o frio". E eu lhe disse: "Às vezes". E ela me disse: "Você deve senti-lo agora". E então compreendi por que não tinha podido ficar sozinho na cadeira. Era o frio o que me dava certeza da minha solidão. "Agora o sinto", disse. "E é raro, porque a noite está quieta. Talvez o lençol tenha rodado". Ela não respondeu. Começou a se mexer em direção ao espelho e voltei a girar sobre a cadeira para ficar de costas para ela. Embora sem vê-Ia, sabia o que estava fazendo. Sabia que estava outra vez sentada diante do espelho, vendo minhas costas, que haviam tido tempo para chegar até o fundo do espelho, e serem encontradas pelo seu olhar, que também havia tido o tempo justo para chegar até o fundo e regressar antes que a mão tivesse tempo de iniciar a segunda virada — até os lábios que estavam agora pintados de carmim, da primeira virada da mão em frente ao espelho. Eu via, à minha frente, a parede lisa, que era como outro espelho cego, onde eu não a via sentada às minhas costas, mas imaginando onde estaria, se no lugar da parede tivesse sido colocado um espelho. "Estou vendo você", disse-lhe. E vi, na parede, como se ela tivesse levantado os olhos e me visto de costas na cadeira, ao fundo do espelho, com o rosto voltado para a parede. Depois vi-a abaixar as pálpebras, outra vez, e ficar com os olhos quietos no seu sutiã, sem falar. E voltei a lhe dizer: "Estou vendo você." E ela voltou a levantar os olhos do sutiã. "É impossível", disse. Eu perguntei por quê. E ela, com os olhos outra vez quietos no sutiã: "Porque você tem o rosto voltado para a parede". Então eu fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado na boca. Quando fiquei de frente para o espelho, ela estava outra vez junto do abajur. Agora tinha as mãos abertas sobre a chama, como duas asas abertas de galinha, sendo assada, e com o rosto sombreado pelos próprios dedos. "Acho que vou me resfriar", disse. "Esta deve ser uma cidade gelada”. Voltou o rosto de perfil e sua pele de cobre vermelho se tornou repentinamente triste. "Faça alguma coisa contra isso", disse. E ela começou a tirar a roupa, peça por peça, começando por cima; pelo sutiã. Disse-lhe: "Vou me virar para a parede". Ela disse: "Não. De todas as maneiras você vai me ver, como me viu quando estava de costas". Mal tinha acabado de dizer isso e já estava despida quase por completo, com a chama lambendo-lhe a comprida pele de cobre. "Sempre tinha querido ver você assim, com o couro da barriga cheio de buracos fundos, como se houvessem feito você a pauladas". E antes que eu me desse conta de que minhas palavras se tinham tornado torpes diante da sua nudez, ela ficou imóvel, esquentando-se na órbita do abajur, e disse: "Às vezes creio que sou metálica". Manteve o silêncio por um instante. A posição das mãos sobre a chama mudou levemente. Eu disse: "Às vezes, em outros sonhos, pensei que você é apenas uma estatueta de bronze num canto de algum museu. Talvez por isso sinta frio". E ela disse: "Às vezes, quando durmo sobre o coração, sinto que o corpo fica como um ovo, e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me bate por dentro, é como se alguém me estivesse chamando com os nós dos dedos na barriga, e sinto meu próprio som de cobre na cama. É como se fosse assim como você diz: de metal laminado". Aproximou-se mais do abajur. "Teria gostado de ouvir você", disse. E ela disse: "Se alguma vez nos encontrarmos ponha o ouvido nas minhas costelas, quando eu dormir sobre o lado esquerdo, e me ouvirá ressonar. Sempre desejei que você alguma vez fizesse isso”. Ouvi-a respirar fundo enquanto falava. E disse que durante anos não tinha feito nada diferente disso. Sua vida estava dedicada a me encontrar na realidade, por meio dessa frase identificadora. "Olhos de cão azul." E na rua ia dizendo em voz alta, que era uma maneira de dizer à única pessoa que teria podido compreendê-la:

"Eu sou a que chega em seus sonhos todas as noites e lhe diz isto: olhos de cão azul". E ela disse que ia aos restaurantes e dizia para os garçons, antes de fazer o pedido: "Olhos de cão azul". Mas os garçons lhe faziam uma respeitosa reverência, sem que houvessem lembrado nunca ter dito isso nos seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e riscava com a faca o verniz das mesas: "Olhos de cão azul". E nos cristais embaçados dos hotéis, das estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador: "Olhos de cão azul". Disse que uma vez chegou a uma drogaria e percebeu o mesmo cheiro que tinha sentido no seu quarto uma noite, depois de ter sonhado comigo: "Deve estar perto", pensou, vendo a cerâmica limpa e nova da drogaria. Então se aproximou do vendedor e lhe disse: "Sempre sonho com um homem que me disse: "Olhos de cão azul". E disse que o vendedor a havia olhado nos olhos e dito: "Na verdade, moça, a senhora tem os olhos assim". E ela disse: "Preciso encontrar o homem que me diz isso nos sonhos". E o vendedor começou a rir e foi para o outro lado do balcão. Ela permaneceu olhando o ladrilho limpo do chão e sentindo o cheiro. E abriu a bolsa e se ajoelhou e escreveu com o batom sobre o ladrilho, com grandes letras vermelhas: "Olhos de cão azul". O vendedor regressou de onde se encontrava. Disse-lhe: "Moça, a senhora sujou o ladrilho". Deu-­lhe um pano úmido, dizendo: "Limpe-o". E ela disse, ainda junto ao abajur, que passou a tarde toda agachada, lavando o ladrilho e dizendo: "Olhos de cão azul", até que as pessoas se aglomeraram na porta e disseram que estava louca.

Agora, quando acabou de falar, eu continuava no canto, sentado, equilibrando-me na cadeira. "Tento me lembrar todos os dias da frase com que preciso encontrar você", disse. "Agora creio que amanhã não a esquecerei. Mas sempre esqueço ao acordar quais são as palavras com que posso encontrar você". E ela disse: "Você mesmo as inventou desde o primeiro dia". E eu lhe disse: "Inventei-as porque vi seus olhos cor de cinza. Mas nunca me lembro delas na manhã seguinte." E ela, com os punhos fechados junto ao abajur, respirou fundo: "Se pelo menos pudesse recordar agora em que cidade estive escrevendo isso".

Seus dentes apertados resplandeceram sobre a chama. "Eu gostaria de tocar em você agora", disse. Ela levantou o rosto que estivera olhando a luz: levantou o olhar ardente, assando-se também do mesmo jeito que ela, do mesmo jeito que suas mãos: e eu senti que me viu, no canto, onde continuava sentado, me balançando na cadeira. "Você nunca me tinha dito isso", disse. "Agora digo, e é verdade", disse. Do outro lado do abajur ela me pediu um cigarro. O toco tinha desaparecido dos meus dedos. Esquecera que estava fumando. Disse: "Não sei por quê, não posso lembrar onde o escrevi". E eu lhe disse: "Pela mesma razão pela qual eu não poderei lembrar as palavras amanhã". E ela disse, triste: "Não. É que às vezes creio que também sonhei isso". Fiquei em pé e andei até o abajur. Ela estava um pouco mais para lá, e eu continuava andando, com os cigarros e os fósforos na mão, e não passaria o abajur. Aproximei dela o cigarro. Ela o apertou entre os lábios e se inclinou para atingir a chama, antes que eu tivesse tempo de acender o fósforo. "Em alguma cidade do mundo, em todas as paredes, têm que estar escritas estas palavras: 'Olhos de cão azul", disse. "Se amanhã me lembrasse delas iria buscar você". Ela levantou outra vez a cabeça e já tinha a brasa acesa nos lábios. "Olhos de cão azul", suspirou, recordando, com o cigarro jogado sobre o queixo e um olho semifechado. Aspirou a fumaça, com o cigarro entre os dedos, e exclamou: "Já isto é outra coisa. Estou me sentindo mais quente". E disse-o com a voz um pouco morna e fugidia, como se não o tivesse dito realmente, mas como se houvesse aproximado o papel à chama enquanto eu lia: "Estou entrando — e ela tivesse continuado com o papelzinho entre o polegar e o indicador, virando-o, enquanto ia se consumindo e eu acabava de ler — ­... mais quente", antes que o papelzinho se consumisse por completo e caísse ao chão amassado, diminuído, convertido num leve pó de cinza. "Assim, é melhor", disse. "Às vezes me dá medo ver você assim. Tremendo junto ao abajur".

Há vários anos nos víamos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém deixava cair lá fora uma colherinha e acordávamos. Pouco a pouco íamos compreendendo que nossa amizade estava subordinada às coisas, aos acontecimentos mais simples. Nossos encontros terminavam sempre assim, com o cair de uma colherzinha na madrugada.

Agora, junto ao abajur, estava me olhando. Eu lembrava que antes também me havia olhado assim, desde aquele remoto sonho em que fiz a cadeira girar sobre as pernas traseiras e fiquei diante de uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi nesse sonho que perguntei a ela pela primeira vez:"Quem é a senhora?" E ela me disse: "Não lembro". Eu lhe disse: "Mas acredito que nos vimos antes". E ela disse, indiferente: "Creio que alguma vez sonhei com o senhor, com este mesmo quarto". E eu lhe disse: "É isso. Já começo a lembrar". E ela disse: "Que curioso. É verdade que temos nos encontrado em outros sonhos".

Deu duas chupadas no cigarro. Eu estava ainda em pé em frente ao abajur, quando fiquei olhando para ela de repente. Olhei-a de cima a baixo e ainda era de cobre; mas já não de metal duro e frio, senão de cobre amarelo, macio, maleável. "Gostaria de tocar em você", voltei a dizer. E ela disse: "Você jogaria tudo por água abaixo", voltou a dizer, antes que eu pudesse tocá-la. "Talvez, se você se virar por trás do abajur, acordaríamos sobressaltados quem sabe em que parte do mundo". Mas eu insisti: "Não importa". E ela disse: "Se virássemos o travesseiro, voltaríamos a nos encontrar. Mas você, quando acordar, terá esquecido tudo". Comecei a me mexer em direção ao canto. Ela ficou por trás, esquentando as mãos sobre a chama. E eu ainda não estava junto da cadeira quando a ouvi falar às minhas costas: "Quando acordo à meia-noite, fico revirando-me na cama, com os fios do travesseiro ardendo no joelho e repetindo até o amanhecer: 'Olhos de cão azul'".

Então fiquei com o rosto na parede. "Já está amanhecendo", disse sem olhar para ela. "Quando deram duas da manhã, estava acordado, já fazia bastante tempo." Dirigi-me até a porta. Quando tinha pegado a maçaneta, ouvi outra vez sua voz igual, invariável: "Não abra essa porta", disse. "O corredor está cheio de sonhos difíceis". E eu lhe disse: "Como você sabe disso?" E ela me disse: "Porque há pouco estive ali e tive que voltar quando descobri que estava dormindo sobre o coração". Eu mantinha a porta entreaberta. Movi um pouco o batente, e um ar frio e tênue me trouxe um cheiro fresco de terra vegetal, de campo úmido. Ela falou outra vez, virei-me, mexendo ainda o batente montado em gonzos silenciosos, e lhe disse: "Creio que não há nenhum corredor aqui fora. Sinto o cheiro do campo". E ela, já um pouco longe, me disse: "Conheço isso mais do que você. O que acontece é que lá fora há uma mulher sonhando com o campo". Cruzou os braços sobre a chama. Continuou falando: "É essa mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca pôde sair da cidade". Eu lembrava ter visto a mulher num outro sonho anterior, mas sabia, já com a porta entreaberta, que dentro de meia hora tinha que descer para o café da manhã. E lhe disse: "De todas maneiras, tenho que sair daqui para acordar".

Lá fora o vento bateu um instante, ficou quieto depois, e ouviu-se a respiração de alguém adormecido que acabava de virar-se na cama. O vento do campo suspendeu-se. Já não houve mais odores. "Amanhã vou reconhecer você por isso", disse. "Vou reconhecê-la quando vir na rua uma mulher que escreva nas paredes: 'Olhos de cão azul'". E ela, com um sorriso triste — que já era um sorriso de entrega ao impossível, ao inatingível —, disse: "Não obstante, você não lembrará nada durante o dia". E voltou a pôr as mãos sobre o abajur, com a expressão obscurecida por uma névoa amarga: "Você é o único homem que, ao acordar, não se lembra nada do que sonhou".

Fonte:
RAMAL, Alícia (organizadora). Contos Latino Americanos Eternos. RJ: Bom Texto, 2005.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 5


Nilto Maciel (Literatura e Internet)

Recebi esta semana do Nilto o livro que lançou recentemente: Sôbolas manhãs.

Falo com certa vaidade ao declarar que possuo quase todos os livros deste escritor cearense (a maioria me foi enviada pelo escritor), de Fortaleza, que considero um dos maiores escritores e ativista da atualidade no território nacional.

Assim como Mário Quintana, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade ou Clarice Lispector, sem pertencerem aos “imortais” da Academia Brasileira de Letras, seus nomes ficaram imortalizados no livro de nossa história, também Nilto está gravando seu nome nele também.

Sôbolas Manhãs se compõe de textos de sua autoria ao longo dos anos, e ocasionalmente estarei postando um ou outro. Alguns, entretanto, já se encontram no blog, que com o decorrer do tempo estarei indicando seus links.
(José Feldman)

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Os sites literários devem ser grandes depósitos de textos, bibliotecas universais? Devem abrir espaço para a discussão de problemas editoriais no Brasil? Os catálogos das editoras e as estantes das livrarias brasileiras revelam que os escritores brasileiros contemporâneos (poetas, contistas e romancistas) são minoria no imenso universo do livro. Estão espremidos (quando muito) entre livros didáticos (a maior fonte de lucro), clássicos da literatura universal e brasileira (domínio público), traduções, biografias, livros de auto-ajuda, etc. O ideal seria a elaboração de uma lei que criasse um fundo, cujos recursos proviessem dos lucros obtidos pelas editoras com a publicação dessas obras de domínio público. Esse fundo poderia patrocinar concursos públicos para publicação de obras inéditas ou mesmo editar (como o fazia o Instituto Nacional do Livro) livros selecionados em concurso ou em outra modalidade de seleção.

                    Os poetas, contistas e romancistas contemporâneos brasileiros estão fora do mercado. Entretanto, na opinião de livreiros, editores, dirigentes de câmaras do livro, a indústria editorial no Brasil vai muito bem, obrigado. Ora, só o governo compra 40% da produção de livros. Isto significa que está tudo muito bom (para eles). Todos nós (ou quase todos) publicamos nossos livros (quando publicamos) por editoras universitárias ou por conta própria. Ou seja, somos lidos apenas pelos amigos. A grande maioria escreve para as próprias gavetas. Um ou outro escritor consegue pôr a cabeça fora da água, a muito custo. Alguns conseguem organizar antologias e, assim, tirar do limbo, uns poucos escritores. É o caso de Nelson de Oliveira, Rinaldo de Fernandes e outros. Louve-se também o trabalho de Rogério Pereira, à frente do jornal Rascunho.

                    Realizei pesquisa no dia 13 de março de 2006, no “Google”. Fiz busca das seguintes palavras, em ordem alfabética: amor, arte, Bíblia, conto,  cultura, guerra, Jesus, literatura, livro, paz, poesia, revista, saúde, sexo e vida. Pela ordem de grandeza, são os seguintes os números de páginas, no Brasil, de cada uma das palavras acima: Saúde – 37.600.000; Vida – 24.300.000; Cultura – 19.200.000; Livro – 16.500.000; Revista – 15.100.000; Arte – 13.600.000; Amor – 13.200.000; Literatura – 9.440.000; Sexo – 9.440.000; Guerra – 6.520.000; Jesus – 6.130.000; Poesia – 6.000.000; Bíblia – 5.130.000; Paz – 2.370.000; Conto – 1.690.000.

O elevado número de páginas dedicadas ao livro é sintomático. Como falar em “morte do livro”, se na própria Internet ele está mais vivo do que nunca? Eduardo Diatahy B. de Menezes, no artigo “A morte do livro na era virtual?”, observa: (...) “em nossa época de avanço exponencial das tecnologias de comunicação e informação, resumidas na presença avassaladora da Internet, surgem novos profetas anunciando a morte do Livro! Felizmente, o que se tem presenciado é o processo contrário: nunca se produziu tanto livro e jamais houve um acesso tão amplo a informações de toda ordem, contidas nas maiores bibliotecas e museus do mundo; jamais existiu uma livraria com um acervo de 3 milhões de livros como a 'Amazon.com', e criações generosas como a Biblioteca Virtual do Estudante produzida pela USP ou o Jornal de Poesia realizado por Soares Feitosa, que põem enorme volume de livros à disposição na Internet. Nossos velhos hábitos mentais não nos fazem capazes de vislumbrar sequer as mudanças que ainda virão nesse rumo sem limites”.

E “crise da literatura”? Pode-se falar em crise, num sentido amplo. Certamente a crise não será de criação, mas de editoração, de mercado editorial. Pois os poetas, contistas e romancistas não param de escrever. Se não conseguem publicar (em forma de livro), a causa não está neles. Ou está? Os leitores estariam mais interessados em Paulo Coelho do que em Francisco Carvalho? Ou tem sido sempre assim? Dizem que os editores esperam por novos transgressores da linguagem. Novos Guimarães Rosa, James Joyce, Franz Kafka. Não, eles esperam por novos O Nome da Rosa, Harry Potter, O Código da Vinci, que vendem antecipadamente milhões de milhares. O que é perfeitamente lógico, do ponto de vista do mercado. Eles estão interessados em quem vende mais. Em razão disso, poetas como Anderson Braga Horta, romancistas como Carlos Emílio Corrêa Lima, contistas como Emanuel Medeiros Vieira, e outras centenas de bons e excelentes escritores continuarão com seus livros nas gavetas ou nas páginas da Internet.

Como afirmar que poesia não é lida? Há dezenas ou centenas os sites e blogs de pura poesia. Pelos comentários dos leitores, percebe-se que há uma avidez de leitura. Então por que são raros os livros de poesia nas prateleiras das livrarias?

Fonte:
Nilto Maciel. Sôbolas Manhãs. Porto Alegre: Bestiário, 2014.

Jangada de Versos do Ceará (Haroldo Lyra)

(Nasceu em Icó, radicou-se em Fortaleza)

SUBLIME AMOR

Numa clínica, um velho procurava
Rápido curativo à mão doente.
Dizia-se apressado, que era urgente,
Pois tinha um compromisso e se atrasava.

O médico, atendendo ao paciente,
Perguntou por que tanto se apressava!
É que, num certo Asilo, costumava
Tomar café co’a esposa, já demente.

O médico ressalta: “Por descaso,
Não reclamara ela desse atraso?”
E ele: “Nem mais me reconhece, até”.

“Então! É apenas um capricho seu?”
“Oh, não! Ela não sabe quem sou eu,
Mas eu sei muito bem quem ela é”.

COISIFICADAS

Hoje é comum mulher tirar a roupa
Pra revelar nas bancas de jornal,
Despudoradamente o colossal
Segredo da virtude, já tão pouca.

Desnuda-se, aos apelos do mural;
Na crapulosa folha a pose louca
Que a revista conduz de boca em boca
E faz dessa mulher coisa venal,

Que assim exposta nua à sordidez;
Dependurada à espreita do freguês,
Nem percebe aonde e como vai chegar.

Mas chega ao pai, os sonhos carcomidos,
Por ver da filha os garbos preteridos,
E oferecida a quem puder pagar.

AMIZADE

Depois de salpicada uma amizade,
Por leve farpa num fugaz momento,
Traz o fato, humana realidade,
Carência de afeto e entendimento.

Se à prosa que se faz se põe maldade,
Perde, a amizade, o doce encantamento.
Há de perder também sinceridade
E lesto se avizinha o rompimento.

Mas, valham as que têm, irrelevante,
O dardo que feriu por um instante
Involuntariamente a fidalguia.

Nisso, aquela que impõe severa norma,
Inexoravelmente se transforma
Em triste olá de falsa cortesia.

APANIGUADOS I

Tenho pena de quem não é capaz
De sustentar-se pelos próprios meios,
Nos donativos finca os seus esteios
E a propaganda de um viver falaz.

Tenho pena dos que romperam veios
Das batalhas que não enfrentam mais;
Mendigos de padrões oficiais
Classificados sem quaisquer receios.

Que pena!… quando o silo esvaziar-se
E o joio dessa safra esparramar-se
Sobre as mentes que o dolo enfeitiçou.

Será penoso então o amanhecer,
Pois apenas terão para comer:
As sengas do pão que o diabo amassou.

DUAS TAÇAS

O álcool sempre vem abrilhantar
Os banquetes em salas requintadas,
Servido nas baixelas prateadas
Que aos olhos serve mais que ao paladar.

O álcool é um prazer bem popular,
Nos bares, nas barracas empalhadas,
Servido n’umas taças mal lavadas,
Agrada à boca, à venta, a quem tomar.

Um drink, salgadinhos de salmão;
Uma cereja adorna a taça à mão
E o fino aristocrata se enaltece.

Um trago, um tira-gosto de buchada;
A banda de um limão, já machucada,
E o jeca deita e rola e a pinga desce.

TROVAS

A gaiola me resguarda
da fatal atiradeira:
do chumbo da espingarda,
da pedra da baladeira.

Bailar na vida é rotina
de quem sabe ser feliz,
e nunca fecha a cortina
do baile que não tem bis.

Considero a efervescência
dessa densa multidão,
estressante consequência
da tal globalização.

Cores de outono bizarro
que a paisagem modifica;
E a estrada tosca de barro
juncada de folhas fica.

No cais, sem vela, ancorado,
o barco sofre a lacuna,
de um capitão reformado
que abandonou velha escuna.

O luar no mar refrata
feixe de raios azuis,
realça a onda e retrata
a praia que nos seduz

Os sentimentos do mar
as ondas cantam na areia,
afagando o firme olhar
da solitária sereia.

Pode até conter amor,
mas a emoção será pouca:
beijos por computador!...
prefiro os de boca à boca.

Rio de curvas simétricas
emoldurando a paisagem,
cinzela as veias poéticas
da natureza selvagem

Tens a missão importante
num mar sereno ou escuro,
indicando ao navegante
aquele porto seguro.

Fonte:
O Autor

Nilto Maciel (O Invisível Isaías)

Nunca vimos Isaías e muito menos o seu coelho. Um vizinho nosso nos disse: Isaías mora num sítio, cercado de galinhas, perus, porcos, cabras, bodes. Tenho muita vontade de falar com ele, conversar. Se isto não for possível, quero vê-lo. Imagino-o de barba branca, chapéu velho, mas bem cuidado, roupas limpas, sandálias ou alpercatas, um cajado. E, se não for assim, não vou me decepcionar. Papai anda aborrecido ultimamente. Talvez  porque Isaías não aparece. Perguntei-lhe se Isaías ainda será menino. Ele olhou para mim com espanto e saiu resmungando. Fiquei mais triste ainda porque Natália riu na minha cara, como se eu fosse um bobo ou papai não gostasse mais de mim.

            Quantos anos terá Isaías? Talvez já seja muito velho. Ou terá morrido? Se morreu, vou sentir saudades dele. Nunca mais poderei vê-lo. Ora, nunca o vi mesmo. Natália, você também vai sentir falta de Isaías? Não sei ainda. Vou esperar até amanhã. Se não sonhar com ele será porque não sinto falta dele. E se no sonho ele for um velho cheio de manias? Não vou querer mais saber dele. E se ele lhe der o coelho? Nesse caso serei capaz até de lhe dar um beijo na testa. Não faça isso; ele poderá se zangar. E nunca mais aparecer. Sonhei com ele muitas vezes. Num dos sonhos corria atrás do coelhinho. Subiam e desciam montes. Subiam as árvores, riam, rolavam no chão. Não havia galinhas nem outros animais por perto. E você falava com ele? Não, ele não me via. Então me empresta este seu sonho. Se eu entrar nele, vou fazer de tudo para ser visto por Isaías.

            Num sábado Carlos acordou cedo. Parecia espantado, a olhar para debaixo da cama, os cantos das paredes, o armário. Jeová tomava café ao lado de Lia. Pretendia passar o dia numa oficina para conserto de carros. O menino lavou o rosto, fez xixi e correu para o colo da mãe. O homem fez cara de zangado e sorveu mais um gole de café: Era uma vez um menino inexistente que queria ser gente. Passava o dia querendo falar, correr, brincar. Mas nada disso conseguia fazer. Porque não existia ou porque não era gente? Jeová fez gestos com as mãos, os lábios, os olhos e não conseguiu pronta resposta. Pai, eu existo ou me inventei? Lia sorriu e deu um beijo no garoto. Natália correu para o colo do pai. Coitado do Carlos, preocupado com Isaías que nem existia de verdade! Quem disse uma tolice tão grande, minha irmã? Isaías é um homem da bíblia. Natália se irritou: Não havia só um Isaías no mundo. O garoto riu. Isaías morava num sítio muito bonito, cheio de plantas, árvores, riachos, cachoeiras, pássaros. Não sei se mora com mulher e filhos. Talvez viva só desde menino. Os pais dele morreram há muito. Não gosta das cidades porque detesta barulho, carros, multidão. Nós não o vemos por isso. Se formos ao sítio dele, nós o veremos. E o menino inexistente, pai? Vivia querendo brincar de esconde-esconde com a irmã. Ele também queria ver Isaías? Queria, mas não podia. Por que ele não existia ou porque Isaías era invisível? Natália correu para o meio da sala: Queria ir à praia ver as ondas. Sentia-se cansada de tanto ouvir falar daquele Isaías invisível. Carlos propôs passeio mais salutar: Irem ao sítio de Isaías. O homem não podia. Precisava passar o dia na oficina. A mulher se sentia cansada. Nada de praia, nada de sítio. Melhor procurarem Isaías dentro de casa. Talvez no porão, no fundo do quintal, atrás das bananeiras. Os meninos se espantaram: moravam em prédio de apartamentos. Onde ficava o porão? Pois é lá que Isaías se esconde. Ele e o coelho. Sabiam o nome do coelho? Jeremias.

            Passamos o resto do dia em busca de Jeremias. Vasculhamos todos os armários, todas as caixas, todas as gavetas. Papai saiu para a oficina. Mamãe jogou ao cesto a revista Cães&Gatos e se debruçou diante da televisão. Eu e minha irmã nos perdemos dentro de casa. Aparece, Isaías, vem conversar conosco. E não esquece de trazer o coelho. Vamos brincar muito, os quatro. Aparece, pois eu sei que você está aqui. Fale comigo. Eu existo ou me inventei, Isaías? Você mora mesmo num sítio muito bonito, cheio de plantas, árvores, riachos, cachoeiras, pássaros? Quantos anos terá Isaías? Talvez já seja muito velho. Ou terá morrido? Papai anda aborrecido ultimamente. Talvez porque Isaías não aparece. Pois nunca vimos Isaías e muito menos o seu coelho.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Pedro Du Bois (Navegando nos Versos) 4

ENVENENAR

O veneno atua. O agir envelhece.
Passos cadenciam músicas.
Ouvidos temem o silêncio.
O veneno conclama a vontade
a partir do medo. O agir condensa
a partida em doses: repete
o nome. Nomina. Denomina
no esgotar o espaço e sufocar
o corpo ao cansaço.

SOTURNO
 
Dia soturno de apagadas horas
em partidas indiferentes. Ocaso
de única espera. Aos amantes
cabem desejos passados.

Permaneço incapaz do gesto
de renúncia no aguardo
do que diria em quadros
estáticos de atávicos amigos.

Sou quem vai embora em literário
afago no desconsiderado beijo recebido.

A distância da luz no sabor
do insosso nas curvas
em que me afasto.

Iludido em sonhos de tórridas
realidades de não aconchego.
          Flâmula imóvel em ventos
               continuados de paixão.

A noite soturna de aprazadas horas
remete o riso ao invisível no tempo
restante por onde escapam os sonhos.

POR ISSO
 

Por isso nos fogem as palavras
escondidas em hinos oficiais
entre esgarçados espíritos
na densidade rarefeita
dos últimos tempos
não há lugar onde termos
sensibilizem espíritos
nos velhos que pensam
em versos feito do presente
em luzes de feéricas ruas
fotografamos eventos
e a platéia em cadeiras vazias
dispensa a banda esvaziada
em músicas sem palavras
imóveis e calados sentimos a chuva
molhar os ossos dos que se atrevem
combalidos na última estrutura
em que o estame em flor
em ínfimos pedaços
apodrece no solo infértil.

NÁUSEA
 

A náusea
percorre
o corpo
no cansaço

letras no branco papel
violado na pureza
registram haveres
                       e teres
em ordens cansativas

a náusea
representa
o corpo
cansado

olhos fechados evitam temas
sobrepostos e opostos se encontram
no acordar o cérebro no destempero
em que verdades irrompem.

DÍVIDAS
 

Despeça o cobrador em vida, a conta
não será apresentada, jamais encontre
a fatura com que se fartam as noites,
o ódio concentrado esmaece o corpo,
a morte transita entre carros,
vende flores e velas, lembranças
traduzem o quanto, óbice dos encontros
o sangue convalesce o doente, suspira
a hora da verdade, seres
perseguem o nascer do dia,
vida entrecruzada em dogmas,
raro o momento que prescinde
de quem cobra os créditos, incautos
devedores; a lida representa a garantia,
o navio se afasta em margens,
gaivotas seguem rastros e restos.

OLHAR

Nos olhos da criança
a mãe sobrevive
ao pai escondido
em intermináveis
horas de trabalho

descobre a sobrevivência
necessária ao crescimento
na orientação ausente
do que se apresenta
em seu crescimento

refugiado em mitos
que mentem a realidade
desconfortável dos momentos
em que precisa da ajuda
de quem está longe
e cansado.

FUGA
 
Na varanda onde escrevo
                         meras palavras
o barulho da rua invade o espaço

poucas flores folhagens
a procissão no quadro
                       estática

ilumino na cena a coragem
de estarem na rua

                       abaixo

corpos passam: pedaços
de vidas no declínio
da fome pelo descompasso
aberto em frêmitos
           e frestas devassadas

espero o escurecer da terra
 o ir embora de casa
 no sorriso angustioso
 de fora para dentro
 na oitava fuga do corpo
                       agora rígido.

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Conto Alexandrino)

Capítulo I

No mar — O quê, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro.

— Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: — é que o rato deve expirar debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é essencial.

Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão...

— Ladrão autêntico? — Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: — a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia...

— Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo.

— Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferi-la a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço-te de um caseiro um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe.

Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu.

Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direto a Alexandria, com essa carga preciosa de dois filósofos, que iam levar àquele regaço do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e quinquagenários. Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista, tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas.

Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor da nova doutrina expô-la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e experiências.

— Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e divulgá-la.

— Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.

Capítulo II


Experiência Os garotos alexandrinos não trataram os dois sábios com o escárnio dos garotos cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos dois amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros, crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade, dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente. Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra coisa se podia esperar de dois homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados...

— Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes.

— Não é esse o ofício dos deuses? objetava um.

— Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina...

— Explica-te.

— Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem.

Imaginem a expectativa pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos possuíam.

Entretanto, esperavam todos. Os dois hóspedes eram apontados na rua até pelas crianças.

Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto.

Stroibus tornou-se a esperança da cidade e do mundo.

Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe: — Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só um meio.

Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão como pela rigidez do caráter, somos o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e pode crê-lo, porque é um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas meditações.

Stroibus aceitou a proposta.

— O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve momento...

Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo.

Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro, atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente, cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático.

Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida; mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem azul, mas um lírio roxo, tirando a claro.

A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a eloquência de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa da ciência.

E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava do amigo.

— Então? nada? — Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de sandálias.

Capítulo III

Vitória Enfim, venceu Stroibus! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três ideias ouvidas ao próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma teoria dos ventos.

Nada mais científico do que essas estréias. As ideias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal.

Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica, e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam-se de véspera, e iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las, designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dois amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava para eles os mais altos destinos.

Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: — um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º livros da República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam sempre alguma coisa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhes rótulos falsos, e trataram de fugir.

Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos por aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dois varões ilustres; Ptolomeu entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que interveio Herófilo, inventor da anatomia.

Capítulo IV

Plus Ultra! — Senhor, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora escalpelar cadáveres.

Mas o cadáver dá-me a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos, não me dá as funções.

Eu preciso das funções e da vida.

— Que me dizes? redarguiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus? — Não, senhor; não quero estripar os ratos.

— Os cães? os gansos? as lebres?...

— Nada; peço alguns homens vivos.

— Vivos? não é possível...

— Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinquentes do universo.

Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio, e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida. Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes.

Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o esperava. Saíam um por um; às vezes dois a dois, ou três a três. Muitos deles, estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada; imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro, porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado.

Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares distanciados.

Tinham sido escalpelados cerca de cinquenta réus, quando chegou a vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá-los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos.

— Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes do principal, examinemos aqui o outro ponto...

O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e, como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética, disse-lhe mais ou menos isto: — Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento.

Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados, coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles.

Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: — "Século virá em que a mesma coisa nos aconteça". Ao que retorquiu um rato: "Mas até lá, riamos!"

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

A Natureza em Versos V

LÚCIA PÉRISSÉ

Chuva


Olhei na janela;
A chuva lá fora
Cai mansa, dengosa,
espalhando carinho na terra molhada...

E a grama a recebe de braços abertos;
e as plantas sorriem, cantando, dançando,
com a doce cantiga que a chuva ensinou...

Olhei para o alto
e os pingos caíram
molhando meu rosto...
São olhos do céu
chorando de amor...

Pra mim essa chuva é
como uma lágrima
que a nuvem derrama
só de saudade...;

Saudade do amor,
saudade da vida,
da vida que é linda
porque ela é amor...

E eu olho pra chuva,
que cai de mansinho.
molenga, dengosa...
espalhando carinho,
abraços, sorrisos
na terra molhada.

ADRIANA APARECIDA DE OLIVEIRA PAVANI

Bendita seja a água


Bendita seja a água!
Que cai do céu e molha a terra.
Fecunda a árvore e brota na nascente.
Que apazigua a guerra,
desperta o coração dormente,
e lava a alma de quem erra.

Bendita seja a água!
Que liga um ponto a outro na Terra.
Que conduz o barco e transporta o viajante,
Que o Sol aquece
E ao céu torna, ternamente.

Bendita seja a água!
Que dá sustento ao sobrevivente.
Que está dentro e fora da gente,
Que abriga humildemente,
dentro da mãe que vive na Terra,
a humana semente.

TEREZINHA TEIXEIRA SANTOS

O rio da minha infância


Do meu tempo de infância
Com saudades eu me lembro,
Do rio da Casa Velha
E das chuvas de dezembro.

O rio ganhava cheia
Num bravo desafio
As águas corriam e invadiam
As terras do baixio.

No meu tempo de criança
O rio corria noite e dia;
A chuva caia,
A natureza florescia,
E o homem colhia.

Hoje, procurei e não vi
O rio da Casa Velha;
Vi a natureza chorando,
As queimadas aflorando,
Os animais em extinção;
Vi matas se transformando
Em celeiros de carvão.

Procurei pelo rio da Casa Velha,
Ninguém sabe.
Ninguém viu!
O homem destruiu
A chuva não caiu
A água secou
O rio sumiu.

Fonte:
Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Poemas do Ensino Superior)

GREICY KELY CARLA DOS SANTOS
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – Campus Avançado Mucuri

Saudade...


Só, sem ti, senti...
Saudade,
múltiplas,
Dos sorrisos.

Só risos com lágrimas
De tantos momentos
Apagados no tempo
E que o coração resgata;
Dói sem explicação
Aquela recordação
Do que se foi e não volta.

Passou um minuto
E já me faz falta o segundo
Que eu perdi sem querer
Tentando esquecer
Quem também me falta;
Entre partidas e encontros,
Distâncias...
Que alongam os braços
E abraçam as lembranças;
Entre perdas e ganhos
Fico desejando a velha infância.
Lembro que esqueci
Que na verdade
Ninguém morre de sentir
Saudade da saudade.

ANDRÉ FERRARI
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – Campus Avançado Mucuri

As dores dos Santos


Toda vez que na sua beira eu passo
Vejo os santos se lamentarem
O rio que não tem água doce
Tem agora desgosto, o esgoto e um odor doentio.

Antítese de um rio tão raso
É a tristeza tão profunda
O cheiro é insuportável
Sinônimo de coisa imunda.

Preto, roxo ou marrom.
Tem sempre um tom de descaso
Quando chove, o rio respira, mas em seguida chora.
Está fadado ao fracasso.

Ao seu lado o povo corre, caminha e passa;
Nem reparam que o rio grita socorro
Cada latinha que lá está jogada
Deixa a mãe natureza envergonhada.

Vejo ainda pequenas esperanças
Nas orações dos santos daquele rio
Pedem um olhar mais inteligente
O futuro nas mãos das crianças.

ABEL DE MATOS LOPES
Universidade Presidente Antônio Carlos UNIPAC – Campus Teófilo Otoni

Natureza


És mãe de toda as belezas
Da flor, dos pássaros e do mar.
De tudo que toco e que vejo
Das águas, do sol e do ar.

Na fauna, riqueza de espécies,
Da doce preguiça à onça fera.
Na flora encantos e surpresas,
Em cada planta ou flor da primavera.

Mas cada um de nós é parte,
Desta imensa obra da criação.
Se tu foste criada por Deus,
O homem também é teu irmão.

Que o Senhor Criador do universo,
Conserve pra nós esta beleza;
Mas se cada um fizer sua parte,
Poderemos salvar–te oh! natureza!!!

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 4

VENCIDO

No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.

Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!

Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vômito plebeu...

E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

O CORRUPIÃO

Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!

Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!...
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.

Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!

NOITE DE UM VISIONÁRIO
 

Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!

— “Que esta alucinação tátil não cresça!”
— Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.

É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma — este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!

Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.

Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.

Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.

E eu saí a tremer com a língua grossa
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!

Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.

A essa hora, nas telúrias reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das ervas.

E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!

Bolia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.

As vegetalidades subalternas
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.

E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!

E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a filogenética vingança!

A cidade exalava um podre báfio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elégias* de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.

O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.

A química feroz do cemitério
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser deletério.

Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.

Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu — coetâneo do horrendo cataclismo —
Era puxado para aquele abismo
No redemoinho universal das cousas!

ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR

Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas,
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!

VANDALISMO
 

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandido as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

VERSOS ÍNTIMOS

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem..
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

MATER
 

Como a crisálida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!

E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
No lábio róseo a grande teta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éfebos de Esparta. —

Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas coisas pequeninas
A um biscuit de quilate muito raro
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.

Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescer, há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.

Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias...
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos bárbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
À sombra dos sicômoros eternos!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

Marcelo Spalding (Clichê: o que é, como evitar, quando usar)

   
Não há fórmulas para a escrita, considerada em si uma arte. Evidentemente, porém, qualquer arte é resultado de séculos de convenção social, então há alguns elementos que são desejáveis e outros que são inaceitáveis num bom texto. Vamos falar aqui de um dos “pecados” da escrita: o clichê.

    Clichê é uma construção utilizada à exaustão em determinada cultura, como o desenho do coração ou do cupido. Exatamente por essa repetição, ela é uma construção desgastada.

    Quando se fala de textos criativos, devemos fugir do clichê como se foge de uma praga, dizem os mestres. E o clichê é, realmente, como um inseto que está em nossas frases, em nossas cenas, em nossas metáforas, em nossos personagens, em nosso desfecho, enfim, pode-se ter um texto todo clichê, o que é desastroso, quando não é intencional, ou apenas frases e construções clichês. Vejamos alguns exemplos:

    Abriu com chave de ouro.
    Aquela era a mulher mais linda que conheci.
    O futebol é uma caixinha de surpresas.

    O professor Luiz Antonio de Assis Brasil costuma dizer que um personagem ir para a janela ou ver uma fotografia são cenas absolutamente clichês. Assim como começar um conto escrevendo "era uma noite escura e chuvosa".

    Claro que o conceito de clichê varia de acordo com o público para o qual se escreve, pois a experiência de leitura é fundamental para determinar onde começa o clichê. É importante, porém, entender que a fuga do lugar-comum vai além do todo, chegando a suas partes, a suas metáforas, a suas frases.

    O problema do clichê é que ele não acrescenta ao leitor. Basta lembrarmos de uma novela da Globo, uma dessas quaisquer, repleta de clichês. Elas podem até nos distrair por algumas horas, mas as esquecemos quase completamente tão logo desligamos a TV (e aquelas que permanecem em nossa memória, um "Irmãos Coragem", "Pecado Capital", "Vale Tudo", é porque souberam inovar e não ficaram repetindo-se em clichês).

    Quando usar o clichê

    O clichê pode ser muito útil para a comédia, como dito anteriormente, e também para a criação de personagens estereotipadas. Cuide, porém, a funcionalidade de uma personagem estereotipada em sua narrativa caso não se trate de uma comédia: o crente religioso, o guarda de trânsito intransigente, o bandido, etc. Embora nem todas as personagens precisem ser esféricas, é importante que cada personagem seja necessário para a narrativa.

    Uma técnica para evitar o clichê

    Uma técnica para usar o clichê é desculpar-se pelo clichê, de forma direta ou indireta. Por exemplo: "Como diria o poeta, beleza é fundamental" ou "Como diriam os mais velhos, o futebol é uma caixinha de surpresa" ou "Com o perdão do clichê, era a mulher mais linda que já conheci". Tal técnica funciona muito bem em textos dissertativos, quando se pode lançar mão de ditos populares.

    Um exemplo célebre dessa técnica de esquiva está em "O caçador de pipas":

    Um professor de redação literária que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se aos clichês: "Tratem de evitá-los como se evita uma praga." E ria da própria piada. A turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça. Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a adequação das expressões-clichê é ofuscada pela natureza da expressão enquanto clichê. Por exemplo, aquela história do "esqueleto no armário". Nada melhor para descrever os momentos iniciais do meu encontro com Rahim Khan. (O caçador de pipas, Khaled Hosseini, cap XV)

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/3971/cliche-o-que-e-como-evitar-quando-usar