quarta-feira, 30 de março de 2016

Contos Populares do Tibete (A Rã)

Os raios do sol nascente acendiam os gelados picos das montanhas que contornavam as onduladas colinas, e estas iam dar num vale todo feito de uma quantidade imensa de campos das cores mais variadas.

Esta cena se refletia nos enormes olhos negros de uma grande rã, que permanecia sentada, imobilizada sempre, a não ser por algum pestanejar, de vez em quando. Seu corpo tinha mais de um palmo de comprimento, e a sua pele sarapintada de cor verde-oliva lhe dava uma camuflagem perfeita por entre as pedras empilhadas na base de um alto poste de bandeiras de preces. A rã observava atentamente os movimentos de uma anciã que acendia, com cuidado, um monte de ramos de zimbro.(1)

Situada bem diante da porta de sua casinha nas periferias de um povoado, a anciã fazia orações junto ao fogo de incenso. Seus fatigados lábios se moviam no rosto curtido e profundamente enrugado. Seu avental indicava que era uma mulher casada, e estava tão coberto de pó, que suas riscas de diferentes cores já haviam desbotado e estavam quase desfeitas, como dando a explicação dos seus muitos anos de viuvez.

Enquanto a anciã contava as invocações com o seu rosário de madeira já gasto, a rã se aproximou silenciosamente, aos saltos, até onde ela se encontrava. No começo, a anciã não a viu, mas depois, tendo a sensação de que estava sendo observada, virou-se e deu com a mirada imperturbável de uma grande rã. Tratava-se, pensou a anciã, de um exemplar realmente magnífico, com a sua pele lisinha esticada sobre os membros comprimidos, e com os seus enormes olhos negros quase ocultos pelas salientes pálpebras. A rã soltou um canto forte, e, depois, devagar, mas muito claramente, falou:

— Senhora, eu a tenho estado observando.

A anciã ficou atônita. Nunca ouvira dizer que uma rã falasse. E a ficou olhando assustada.

— Eu me perguntava — prosseguiu a rã — se a senhora consentiria, de bom grado, em ser minha mãe.

Entre incrédula e nervosa a anciã começou a rir, mas respondeu:

— Como poderia um animal ser filho meu?

A rã inchou, então, o seu saco bucal, coaxou forte muitas vezes, e depois voltou a dizer:

— Eu estou falando sério. Iria ficar muito agradecida à senhora, se aceitasse ser minha mãe. E, dizendo isto, deu um salto e veio postar-se bem junto aos pés da anciã.

A velhinha, agora, estava certa de que se tratava de uma brincadeira. Mesmo assim, não quis ferir os sentimentos da rã. Respondeu-lhe que, embora fosse uma rã muito formosa, ela não poderia, de forma alguma, consentir em ser sua mãe.

— Eu sou um ser humano — disse —, você deve buscar também uma rã para que ela, sim, seja sua mãe.

A rã pestanejou lentamente e continuou com o olhar fixo na anciã — olhos feitos bolas de mármore negro. A viúva se sentiu perturbada: seus dedos começaram a desfiar as contas do rosário e seus lábios se moviam numa invocação que pedia proteção. Sem dúvida, era realmente muito estranho que uma rã fizesse uma proposta como aquela. Começou a crer, então, que talvez se tratasse de um espírito maligno. A rã nem se movia. Acomodada aos pés da viúva, e coaxando de vez em quando, não tirava, nem por um segundo, os olhos do rosto da anciã.

— Vá embora! — disse a viúva. Aqui não é o lugar de uma rã. Estou dizendo a verdade, é preciso que você se vá!

A viúva notou, então, quão expressivos estavam os olhos da rã, quando esta, tristemente, voltou a dizer:

— Por favor, senhora, eu lhe peço, seja minha mãe.

A viúva começou a sentir-se invadida por uma grande raiva. Gritou, então, à rã, que se fosse, que a deixasse em paz; e não a olhava sequer nos olhos, enquanto falava. E quando, finalmente, se virou de novo para olhá-la, somente pôde perceber a visão rápida do dorso da rã, enquanto esta se afastava, a grandes saltos, em direção ao monte de pedras da base do mastro da bandeira de preces, primeiro, e, depois, para desaparecer ao longe.

Na tarde seguinte, a anciã estava sentada no terraço de sua casa, ocupada em classificar seus documentos para o cargo que tinha no mercado do povoado. Fez uma pausa para beber um pouco de chá numa tigela revestida interiormente de prata, e, quando estava aproximando dos lábios a vasilha de madeira, teve a sensação de que não estava só. Dois grandes olhos a observavam com descarada intimidade. A viúva continuou bebendo o seu chá e ia pensando em como poderia safar-se da rã. Esta estava no beirai do telhado, pendurada pelas longas patas traseiras, e coçava, indolentemente, a pálpebra esquerda com uma das patas dianteiras.

A viúva fez de conta que não havia notado a presença da rã, mas justo no momento em que terminava o seu chá, a rã repetiu o seu pedido:

— Senhora, senhora, por favor, seja minha mãe!

— “Demônios! — disse a anciã para si mesma. — Você nunca me deixará em paz?" E, dirigindo-se à rã, fritou:

— Não! Já lhe disse! Por que está brincando comigo?

— Senhora, disse a grande rã com tom carinhoso —, eu não estou brincando. Eu quero mesmo que a senhora seja minha mãe.

A viúva balançou a cabeça e ia se dirigindo para os inclinados degraus que baixavam do terraço, quando, antes que pudesse descer, a rã continuou:

— Poderíamos levar uma vida muito feliz juntas, se a senhora fosse minha mãe.

Suplicante, a viúva disse a rã:

— Não quero, de modo algum, ter uma rã por filho; por favor, deixe-me em paz e vá perturbar em outro lugar.

A rã olhou a anciã com tristeza nos olhos. Para surpresa sua, a viúva descobriu que essa mirada lhe fazia sentir-se culpada. Virando as costas, desceu os inclinados degraus de madeira, deixando a rã sentada no terraço.

Durante todo o dia seguinte, a anciã esteve tentando tirar a rã da cabeça, mas a visão dos seus olhos profundos não saía do seu pensamento. "Deve ser uma rã mágica que está tratando de enfeitiçar-me", pensou.

Ao entardecer, quando a anciã voltava do rio trazendo o seu balde de couro cheio de água, a rã saltou ao seu lado. E, desta vez, para sua própria surpresa, a viúva se alegrou ao vê-la.

— Senhora — disse a rã, enquanto seguiam pelo caminho solitário —, será minha mãe?

A viúva não respondeu imediatamente, mas se perguntou, como o havia feito muitas vezes, durante o dia, o que poderia fazer, e o que estaria realmente acontecendo, para que a rã quisesse tão persistentemente que ela fosse sua mãe. "Por mais que a mandasse embora pensou —, acaba sempre voltando". E o rosto tão curtido da viúva sorriu, e desenharam-se profundas rugas na sua pele que mais se assemelhava a um pergaminho. "Como a minha atitude mudou!" dizia-se, e lhe pareceu, pela expressão dos olhos da rã, que esta, estava sabendo dos seus sentimentos. Será que a teria realmente enfeitiçado? Não obstante, não sentia temor; tinha apenas uma sensação de afeto.

E se eu me converter realmente em sua mãe, que vai você fazer como filho (2) de uma pobre viúva?

Muitas coisas, senhora; farei muitas coisas pela senhora. Será, então, minha mãe?

Um pouco preocupada ainda com a situação, a viúva respondeu:

— Muito bem, serei sua mãe.

Ao ouvir isto, a rã reagiu saltando e pulando alegremente à frente da viúva, até chegarem à casinha desta.

Como anoitecesse, a viúva acendeu as lamparinas de azeite de mostarda com uma pedra de faísca e perguntou à rã:

— Onde vai querer dormir, meu filho?

— Dormirei muito à vontade na lareira, mãe.

Ao amanhecer, a anciã despertou e olhou para a rã: esta se espreguiçava na cinza ainda um tanto quente do forninho de argila, e deu a impressão à anciã de estar muito satisfeita. Isto não deixou de surpreendê-la, pois acreditava que uma rocha úmida fosse um leito muito mais apropriado a uma rã.

— Bom dia, mãe, a senhora dormiu bem?

— Mais ou menos — respondeu a viúva, enquanto lavava o rosto na água fria de seu balde de couro. Depois, com o velho fole, avivou o fogo de excrementos de iaque (3) no braseiro de latão, e em cima dele pôs a grande chaleira de cobre para esquentar. Com uma concha, serviu cevada tostada em duas xícaras grandes colocadas sobre a mesinha baixa de madeira. Depois, juntou à cevada tostada um pouco de chá espesso e manteigoso. Enquanto punha a xícara no chão diante da rã, a viúva pensava em como esta iria fazer para comer, e se preparava para perguntar-lhe isso, quando viu que a rã já estava de cócoras e amassava a cevada e o chá com grande destreza.

— Mãe, disse a rã —, necessitamos de queijo.

E de onde eu vou tirar o queijo, meu filho, se não tenho dinheiro para comprá-lo?

— Não se preocupe, mãe — respondeu a rã (e a viúva teve a impressão de que a rã sorria) —, eu conseguirei um pouco.

— E como você vai trazê-la? Você é muito pequena.

— Eu me arranjarei.

Falava com tanta confiança em si mesma, que a viúva não pôde evitar o riso. E, como a rã já estivesse ansiosa por partir, a anciã deu-lhe a sua bênção e disse:

— Pois bem, vá. Que Chenrezik o proteja e que você possa conseguir o queijo que quer. Depois, a observou desde a soleira da porta, enquanto a rã, com grandes saltos, se encaminhava para o mercado.

Oculta por um grande arbusto, a rã deu uma olhada no animado mercado. Logo ficou coberta pelo pó levantado pelas patas dos iaques, das mulas e dos cavalos dos comerciantes, que carregavam as suas bestas de carga e se dispunham a partir da estalagem do lugar.

O povo se apinhava em torno das bancas. A rã abandonou a proteção do arbusto e começou a perambular por ali, até encontrar exatamente o que buscava. Sem vacilar, saltou diretamente sobre o lombo de uma mula carregada com fardos de queijo. A mula escoiceou ao sentir a rã sobre o lombo, mas se tranquilizou a uma ordem firme desta.

Os aldeões não podiam crer no que seus olhos estavam vendo, e logo se ajuntou uma multidão. Mas ninguém tentou fazer nada para tirar a rã do lombo da mula, e tampouco para deter a mula no seu trote pelo povoado com a rã, a qual, aparentemente, tinha o total domínio da situação, mantendo-se equilibrada no lombo da mula. Todos concordavam quanto ao fato de que uma mula montada por uma rã era realmente um acontecimento demasiado estranho para que alguém quisesse interferir. Mas, o que os fazia não entrarem de acordo era se aquilo significava um bom augúrio ou não, e a maioria estava convencida de que se tratava de algum demônio maligno.

Quando a viúva escutou a mula no lado de fora, precipitou-se para a porta e viu que a rã, com efeito, havia trazido para casa uma copiosa provisão de queijo. Inclusive depois de descarregar e armazenar as sacas, e ainda quando já estavam comendo o queijo, a viúva não podia acreditar:

— Mas, não pode ser que você, sozinho, tenha feito isso! Não acredito!

A rã disse sorrindo:

— E, por acaso, isto é mais surpreendente do que o fato de que eu seja seu filho?

A viúva, séria, respondeu:

— Você é, de fato, meu filho, e, sendo meu filho, tenho o direito de saber quem você é.

A rã se limitou a coaxar e a rir baixinho.

— Você não é um ser humano — disse a viúva —; entretanto, não pode ser uma rã, você é alguma coisa especial. Mas a rã não respondeu; apenas sorriu melancolicamente. No dia seguinte, depois de terminado o desjejum, a rã comunicou que havia tido outra idéia. A anciã disse, rindo:

— De que se trata desta vez?

— Mãe, respondeu a rã, o que eu necessito agora é de uma esposa.

Por um momento, a viúva se entristeceu muito, pois não podia imaginar que alguma fêmea fosse gostar da vida que seu "filho" estava levando; e ela conhecia muito bem a vida para saber que a rã não poderia negar à sua esposa o tipo de vida que esta, sem dúvida alguma, quereria levar.

— Está bem, meu filho — disse a viúva sorrindo — faça como quiser, mas tome cuidado ao escolher a sua esposa. Despedindo-se da mãe, a rã iniciou, então, a sua aventura: atravessou de um salto a entrada da casa e saiu à luz do sol.

Tendo passado dois dias, a viúva começou a ficar preocupada e se perguntava se havia feito bem em deixar a rã ir em busca de esposa. Pôs-se a pensar em todas as coisas que lhe podiam ocorrer, a ela, uma pequena rã, sozinha no mundo, presa fácil de tantos animais selvagens; podia, inclusive, já estar morta. A viúva esperou. Passaram-se muitos dias, mas a rã não deu sinal de vida. A anciã se ocupava de seus trabalhos com tristeza, e foi aí, então, que comprovou quão profundos já eram seus sentimentos por seu recém-obtido "filho".

A rã, por sua vez, não tinha intenção alguma de se casar com outra rã; por isso, visitou todas as casas das imediações nas quais sabia haver alguma moça casadoura. E, depois de julgar cuidadosamente todas as candidatas possíveis, não teve boa impressão de nenhuma delas. Na manhã do quarto dia, espreitou por uma janela de papel-arroz o interior de uma bela casa, propriedade de um comerciante. A rã tinha ouvido falar da formosa filha deste, e, no final dessa manhã, depois de ter observado a jovem, soube que tinha encontrado aquela a quem tomaria para esposa. Agora apenas restava fazer os preparativos, e a rã se sentia muito feliz.

Foi em busca do pai da moça e, quando o encontrou, a rã subiu, de um salto, a um dos assentos atapetados que havia no quarto em que o comerciante estava trocando a roupa. O habitual aspecto preocupado deste se intensificou ao ver a rã.

"Como teria chegado aqui?" perguntou-se, olhando a rã e calçando as botas de feltro que lhe chegavam aos joelhos. Para seu espanto, a rã respondeu à pergunta:

Vim saltando e, às vezes, andando.

— Quem é você? — perguntou o comerciante, segurando o punho da espada. E o que você é?

— Sou apenas uma rã. Vim vê-lo e falar-lhe.

A voz melodiosa da rã tinha um tom tão doce, que o medo e a agressividade do comerciante desapareceram. Mesmo assim, ele continuava cauteloso e confuso ao perguntar:

— Quem é você? Deve ser um rei das rãs. E, sem esperar resposta, vestiu depressa a sua chuba cinza, deixando solta uma das mangas.

Então, a rã falou assim:

— Vim — disse com uma voz cheia de firmeza — pedir-lhe a mão de sua filha em casamento.

O comerciante pegou com raiva seu cinturão trançado e o amarrou à cintura, arregaçando a chuba, para que lhe ficasse até os joelhos, segundo é costume no Tibete oriental.

— Não sei o que você é — disse —, se demônio ou espírito; mas, seja o que for, você não pode se casar com minha filha.

Desesperado, o comerciante se perguntava como poderia fazer chegar uma mensagem a seu irmão, que era lama, e que saberia como vencer aquele demônio-rã.

A rã viu que o comerciante não ia ser fácil de ser convencido. Por outro lado, tinha que admitir que a maioria dos pais ia ser igualmente difícil de se convencer quanto à permissão de casar a filha com uma rã.

Se o senhor não permitir que sua filha se case comigo — disse a rã —, eu tossirei.

O comerciante pensou que isso não iria constituir ameaça alguma, e lhe disse:

— Pois que seja. Tussa!

Pareceu ao comerciante que a rã sorria... Logo, esta aspirou ar com um som agudo, e tossiu, ou fez o que o comerciante pensou que fosse tossir. Mas, do fundo da garganta da rã, saiu um rugido estrondoso, que derrubou o comerciante no chão e abalou a casa toda. Cambaleando, o comerciante tirou da espada, com a intenção de matar a rã. O animal cravou-lhe o olhar com seus olhos negros e voltou a tossir, no exato momento em que o comerciante ia decepá-lo com um golpe. O rugido encheu o espaço, o quarto se rachou, os móveis se partiram e a baixela caiu ao chão. A espada do comerciante se quebrou e a casa ficou devastada.

De súbito, a porta se abriu e entrou a esposa do comerciante, aterrorizada. E o comerciante respondeu à pergunta de sua esposa antes mesmo que esta a formulasse:

— Ela tossiu, disse, indicando a rã. E, dirigindo-se a esta: Por favor, permitiremos que se case com a nossa filha, mas, não tussa mais, eu lhe peço.

A esposa do comerciante começou a chorar ao ouvir as palavras do marido, e, logo em seguida, ambos viram, horrorizados, que a rã estava aspirando novamente o ar. Mas, desta vez, o que se ouviu não foi um forte rugido, mas sim um suave suspiro, como que uma brisa refrescante; e, por um momento, marido e mulher se sentiram consolados e acariciados.

— Olhe! disse a esposa do comerciante, enquanto tocava a parede que se havia rachado com a tremenda tosse da rã. Olhe! repetiu, passando a mão pela lisa superfície.

A fenda se havia fechado como se nunca houvesse existido! O comerciante e sua esposa notaram, então, que, no momento em que a rã soltara o seu suspiro, tudo aquilo que havia sido quebrado ou estragado tinha voltado à sua condição anterior.

A esposa do comerciante deixou-se cair pesadamente num dos assentos baixos atapetados do pequeno quarto. Vestia uma chuba de brocado, com um grande prendedor de prata com adornos de coral para o tarro pendurado na cintura. Nervosamente, mexia e remexia o relicário de turquesa em forma de estrela, que levava à volta do pescoço,(4) e discutia com o marido, tratando de convencê-lo, com súplicas. "Teria ele ficado louco? Como poderia a filha casar-se com uma rã?"

A rã saltou sobre um banco que havia em frente do casal, e falou ao comerciante e à sua mulher, com uma voz melodiosa e musical, uma voz clara e precisa, como o ruído de um pedaço de gelo ao se quebrar. Era, com efeito, uma voz estranha, e eles se sentiram impelidos a escutar.

— Os seres humanos, os animais, as aves, e inclusive as rãs — disse — participam todos de uma só força espiritual, de modo que vocês não devem se preocupar.

"E possível — pensou a esposa do comerciante — que os seres divinos e os santos possam ver que todos nós somos um só". Mas, a seus olhos, ali e naquele momento, isso distava muito de ser daquela forma, e não podia aceitar a ideia de que, no fundo, todos os seres fossem uma mesma coisa.(5)

— Vemos que você é uma rã muito especial — disse o comerciante, mas você nos pede a nossa única filha. Se você a levar, é possível que nunca mais a vejamos. Estava de pé, diante da rã, e novamente considerava o curioso encanto que a envolvia, inclusive quando estava quieta, como naquele momento em que estava escutando.

— Os senhores não perderão sua filha — disse a rã. —E ela terá tudo o que desejar.

A mulher do comerciante olhou a rã com olhos suplicantes, e esta pôde ver as lágrimas que brilhavam nos seus olhos, a ponto de transbordarem e deslizarem pelas faces.

— Qualquer outra coisa! — exclamou a mulher. — Nós lhe daremos nossa casa, nossas posses, tudo o que desejar, mas, por favor, nossa preciosa filha única, não! Mas a rã disse:

— Se não me derem sua filha, chorarei. Parecia tão triste, que a mãe da moça sentiu que uma onda de compaixão lhe invadia o peito. Quando a rã terminou de falar, de seus olhos saltaram duas lágrimas, e os pais, horrorizados, viram como as lágrimas se convertiam numa torrente impetuosa, a qual, num instante, invadiu toda a casa e as terras circundantes, como se cada lágrima fosse um oceano. O casal saltou para uma caixa que passava flutuando e, quando esta chegou à escada que levava ao terraço, saltaram e se agarraram a este, onde já os esperava o resto da casa. A rã os seguiu, com as lágrimas fluindo ainda dos olhos.

— Por favor, pare de chorar, gritou o comerciante, enquanto seus criados o olhavam assombrados.

A esposa do comerciante gemia ao ver toda a cevada, a farinha — e suas melhores roupas — saindo flutuando da casa.

— Por favor, pare de chorar — repetiu o homem.

— Não chore mais e poderá casar com a nossa filha.

A rã coaxou e parou de chorar. Assim que a água se evaporou de sua pele, toda a água da casa e dos campos circundantes secou. Roupas, farinha e grãos estavam secos, como se nunca houvessem sido atingidos pelas águas torrenciais. O comerciante e sua esposa observaram como seus criados recolhiam os móveis e utensílios, e os restituíam a casa.

A rã notou que numa árvore se haviam refugiado um raposo, uma galinha e um gato: o medo da água havia criado a harmonia entre estes animais antagônicos por natureza.

Depois, olhou com expectativa para o comerciante, mas a cara deste somente refletia inquietação. Sua mulher tratava de fazê-lo ver que não podiam deixar que a filha se casasse com uma rã. "Nos envergonharíamos — dizia — Como poderíamos dizer que ela estava casada com uma rã?"

— Não é necessário que se preocupem — disse a rã. — Não vêem que todos os seres, humanos ou animais, são um só?

Mas não, eles não poderiam pensar dessa maneira! E a rã descobria, em seus olhos, o que eles não se atreviam a declarar; sabia que pensavam que a rã era um dos seres mais inferiores, e que nem sequer uma rã tão especial quanto ela teria o mínimo direito à mão de sua filha.

O comerciante ordenou a um dos seus criados que trouxesse um grande baú com cobertura metálica.

— Olhe! — disse à rã. E tirou uma grande chave e abriu o baú, pondo à mostra uma quantidade enorme de peças de prata. Leve tudo isto para você.

A rã olhou o tesouro com desdém.

— Não é o seu tesouro o que eu quero — disse — mas a sua filha. Depois, coaxou e riu.

Os pais da moça se assustaram, mas disseram:

— Você não pode conseguir a nossa filha e, ainda assim, ri?

A rã riu a gargalhadas e, ao fazê-lo, elevaram-se chamas por toda a casa, as quais começaram a consumir o prédio. Nenhum dos esforços que os criados faziam para apagar o fogo tinha o mínimo efeito sobre este.

— Por favor, você está acabando com a nossa casa! — gritaram em uníssono o comerciante, sua mulher e os criados. A rã riu mais forte ainda, e as chamas aumentaram em intensidade.

— Você terá a nossa filha — gritaram o comerciante e a mulher. — Você é realmente uma rã muito especial. Nossa filha será sua mulher.

A rã coaxou e ao deixar de rir, as chamas se extinguiram. Tudo aquilo que havia estado ardendo com tanta fúria ficou ileso.

Enquanto o comerciante e sua mulher foram comunicar à filha o seu destino, a rã cantava com o vento que acariciava as bandeiras de preces que ondeavam num ângulo do telhado. Quando a rã voltou a ver a filha do comerciante, considerou que era, de fato, uma beldade, com a sua tez branca e as feições delicadas emolduradas pelo longo cabelo solto, da cor do azeviche. Seus olhos mostravam uma inteligência viva e sua voz era doce e delicada. Ela sorriu educadamente para a rã, mas sem nenhuma afeição, e esta compreendeu que o coração da moça estava transbordante de infelicidade.

— Devemos nos preparar para partir para a minha casa — disse a rã. — Não fica longe. Creio que você vai gostar.

A moça voltou-se rapidamente para esconder as lágrimas, e a rã continuou:

— Lembre-se do que eu vou lhe dizer e trate de compreender que eu posso fazê-la feliz, muito feliz. Lembre-se de que somos um só.

Mas a moça não conseguiu dizer nada. Olhou a rã uns instantes e se perguntou, desesperada, como poderia levar uma vida de casada com uma rã. Por bonita que fosse, não seria nunca senão uma rã, uma rã!

A rã foi refrescar-se no arroio, nadando feliz entre as plantas aquáticas e saltando de pedra em pedra. A jovem esposa se preparava para a viagem. A moça chorava enquanto a mãe a ajudava a pôr as roupas e os objetos em cofres de viagem de madeira revestidos de latão.

— Escute-me, Shoden-la — disse o pai, puxando-a para um lado e secando-lhe as lágrimas com o lenço. — Você tem que ser muito corajosa. E lhe apertou os ombros para incutir-lhe ânimo.

— Sim, Pa-la. Tentarei. Mas... uma rã! Que será de mim? Seus olhos se encheram de lágrimas de desespero.

— Escute-me, há uma possibilidade. A voz do pai era muito baixa e rápida, como se temesse que a rã, com seus extraordinários poderes, pudesse ouvi-lo.

— No caminho até a casa dele, você terá uma oportunidade. Choden a olhava perplexa. Você deve matá-lo. Então ficará livre. A menina balançou a cabeça energicamente. Deve fazê-lo, minha filha.

Trata-se de uma espécie de demônio, estou convencido. Você deve se livrar dele.

— Mas como poderia eu matá-lo? Ele logo se daria conta de meus planos — disse a moça ao pai.

Já viu os poderes que tem.

De um armário decorado com intrincados adornos de flores pintadas, o pai tirou três bolsas de couro, dizendo:

— Você não vai precisar de nenhuma arma para matar a rã...

— Mas, como, Pa-la? perguntou a moça em aflição. O pai deu-lhe as três bolsas de pele.

— Guarde-as cuidadosamente na chuba — disse. — Uma contém pedaços de turquesa, outra, pedaços de prata, e a terceira, pedaços de ouro. Durante a viagem, golpeie a rã na cabeça com um deles. Não serve usar uma pedra comum, não teria efeito sobre um demônio. Mas uma destas matérias matará a rã e dará liberdade a você.

— Vou tentar, Pa-la, disse a moça tristemente.

Algumas horas mais tarde, a rã e sua noiva começaram a viagem. A equipagem de Choden tinha sido amarrada com correias sobre duas bestas de carga, e a rã conduzia o cavalo da moça.

Esta estava assombrada com a velocidade da rã e com a distância que venciam. Não parecia cansar-se nunca, embora — considerava a moça — o fato de andar a saltos devesse ser uma forma muito fatigante de deslocar-se. Durante algum tempo viajaram em silêncio. Choden ia se tornando cada vez mais consciente do silêncio, que se acentuava pelo ruído dos cascos do cavalo e das mulas sobre o solo pedregoso, e por sua respiração, áspera pelo esforço.

Estes eram os únicos ruídos que se percebiam na vasta planície pedregosa em que haviam penetrado. Muito ao longe, se levantavam picos nevados e, dominando tudo, abarcando tudo, estava o céu azul-turquesa. Era, pensava a moça, o silêncio do céu. Sabia que os peregrinos que viajavam aos lugares santos haviam sido conscientes desse silêncio — um silêncio que podia ser palpado e que era, segundo alguns, o dos deuses.

Depois de ter viajado muitas horas, Choden compreendeu que tinha de sobrepujar o medo e matar logo a rã, se queria ver-se livre dela. Já estavam muito longe da casa de seus pais. E quando o sol se afundava detrás das montanhas e as sombras se estendiam, pegou, de sua chuba, o maior pedaço de turquesa que estava na bolsa de pele. Estava muito assustada, mas, com toda a sua força, o atirou na rã, que se encontrava poucos passos adiante. O pedaço de turquesa foi dar-lhe, na rã, fortemente na cabeça, mas, para espanto da moça, rebotou, sem nada causar. A rã pareceu não sentir nada, mas chegou a ver a turquesa e deu um pulo para recolhê-la. Deu-a, então, à moça, e esta pensou: "Este demônio vai me castigar". Mas, somente viu uma expressão risonha nos seus olhos.

— Isto deve ter caído de você — disse a rã. — Guarde-o bem.

Choden pegou a turquesa que a rã lhe estendeu, agradeceu-lhe em voz baixa, e continuaram o caminho. A moça se sentia confusa e assustada.

Outra jornada de viagem passou, antes que Choden pudesse adquirir suficiente coragem para tentar de novo matar a rã. Desta vez, escolheu um pedaço de prata. Tinha ouvido dizer que muitos demônios e espíritos haviam sido afugentados com êxito graças a armas rituais feitas de prata. Mas, desta vez, Choden decidiu não jogar. Conduzindo o cavalo, aproximou-o com cuidado da rã e, então, com toda a força, deu-lhe com o pedaço de prata na cabeça. Soou como se houvesse golpeado algo de ferro, e, com o impacto, a prata saltou-lhe da mão e uma dor intensa percorreu-lhe o braço. Mas a rã, para espanto da moça, não pareceu sentir o mais leve golpe. Não houve nem um segundo de vacilação em seus rápidos e regulares saltos.

A jovem esposa estava agora realmente muito assustada, e, para seu maior espanto, a rã se deteve de repente, deu uma olhada para trás e viu o pedaço de prata. Uma vez mais, recolheu com cuidado o tesouro e o devolveu à sua esposa.

— Você pode precisar disso algum dia.

A rã falava sossegadamente, mas a moça não podia olhá-la nos olhos, e se enrubesceu de perturbação e sentimento de culpa. Chegou à conclusão de que não havia realmente nada a fazer. Devia é dar-se por muito feliz, uma vez que a rã só lhe havia respondido com benevolência. "De fato, pensou — é uma pena muito grande que seja uma rã, pois realmente parece muito boa. Mas, de qualquer maneira, não passa de uma rã, ainda que, aparentemente, tudo leve a crer que seja uma rã mágica".

Enquanto viajavam, a moça se perguntava como iria ser a sua vida com esse seu marido. Onde viveriam? Naturalmente, essa casa da qual a rã falava não podia estar no mundo dos homens, pois neste não há lugar para uma rã, ainda que seja uma rã mágica. Tratou de trazer à memória o tipo de casa que tinham as rãs, e somente pôde pensar em águas sombrias e insalubres. Mas, de algum modo, tinha a impressão de que, por não ser uma rã comum, era provável que vivesse em algum dos céus, ou — pensou também — em algum dos infernos. Porém, a moça não pensava em ir a nenhum dos dois, pois achava o mundo, ainda, um lugar belo e interessante, e estava certa de ter, ela mesma, muito pouco em comum com os deuses.

Até que, desesperada, Choden decidiu que devia experimentar o ouro. Não era este o metal dos deuses, símbolo de tudo o que é sagrado? Assim, pegou da bolsa o maior pedaço de ouro. Esperou até que o cavalo estivesse bastante perto da rã, e, então, fechando os olhos, descarregou com as duas mãos o pedaço de ouro sobre a cabeça dela. "Sem dúvida, desta vez — pensou ela — devo tê-la matado". Mas o ouro soou como se houvesse golpeado uma nuvem. A rã, imperturbável, seguia saltando. Choden se pôs a chorar em silêncio. Só então, se deu conta de que seu cavalo havia parado. Enxugou as lágrimas e olhou a rã.

— Tome, encontrei o que você perdeu — disse esta, estendendo-lhe o pedaço de ouro. — Você tem que parar de ir perdendo o seu tesouro.

A voz da rã era delicada e a moça sentiu quão digna de amor ela lhe soava. Sorriu, como resposta, e começou a sentir-se à vontade em sua companhia. Na verdade, pensando-o bem, suas lágrimas haviam sido lágrimas de desabafo, mais do que outra coisa, e estava muito contente de não ter causado nenhum dano à rã. Porque, ferir uma rã com uma natureza tão bondosa não podia ser nada bom. Talvez, disse a si mesma, a sua vida iria ser muito melhor do que ela havia imaginado.

— Mãe, mãe! Abra a porta, por favor.

A viúva não podia acreditar que a rã houvesse voltado, e chorava de alegria enquanto abria a porta para dar boas-vindas ao "filho". Ficou atônita ao ver que, efetivamente, a rã havia tido êxito em sua busca de uma esposa — coisa que não podia caber na sua mente de anciã. A esposa era formosa e seus olhos — pensou — estavam inflamados de amor: devia se tratar, sem dúvida, de uma fada.

A casa da rã não era, em absoluto, o que sua esposa havia esperado. Mas, embora fosse muito mais humilde que a de seus pais, era, contudo, um lugar quente e acolhedor; e Choden comprovou, para surpresa sua, que era muito feliz. Aquela noite, os três festejaram e falaram. A rã contou à viúva as suas aventuras e esta lhes informou, que fazia dias, estavam chegando ao povoado pessoas de todas as partes da província, inclusive desde os vales mais remotos, para tomarem parte nas corridas de cavalos. Quase todo o mundo se achava acampado junto ao rio, em tendas de campanha; e, no dia seguinte, iriam começar as corridas.

Cedo, na manhã seguinte, a rã, sua esposa e sua "mãe" se dispuseram a assistir ao primeiro dia das corridas. Entretanto, a rã disse que tinha algumas coisas para fazer, e lhes pediu que fossem na frente, que logo se juntaria a elas. Choden e a viúva se surpreenderam, mas foram aos festejos, deixando a rã sozinha em casa.

Por um pequeno furo que fez na janela de papel-arroz, a rã as observou até que se perdessem de vista. Durante alguns minutos, a rã ficou pensativa no centro do quarto. Depois, inchou seu saco bucal e, num instante, se transformou num elegante jovem. O único sinal de sua forma anterior era uma pele de rã que estava, enrugada, a seus pés. Pegou um pouco de sal de uma caixinha e jogou com cuidado sobre a pele; depois, a pendurou num gancho, num lugar escuro.

Na cavalariça, havia dois cavalos que pertenciam à viúva. Pegou o melhor deles, com a esperança de que a anciã, com sua vista fraca, não o reconhecesse nas corridas. Na festa, a pista de corridas estava cercada de tendas enfeitadas, e a maior parte do dia era passada em cantos, bailes, comi lanças e jogando-se o mahjong. Mas, tudo se interrompia quando a corrida estava para começar. No transcurso de uma destas, os competidores tinham que superar provas de habilidade, como a de disparar uma flecha num alvo móvel, recolher uma echarpe do chão com os dentes, ou abrir-se passagem com uma espada diante de um boneco que fazia às vezes de adversário.

Os dias do festival transcorriam muito agradavelmente e, aos poucos, um homem foi-se destacando claramente como campeão. Mas esse homem era um mistério para todos. Ninguém sabia quem era ou de onde procedia, e nunca se o podia encontrar depois de uma corrida. Era tal a sua destreza e tão denso o mistério em torno dele, que se murmurava que era um dos deuses. E a esposa da rã tinha a impressão, cada vez mais forte, de que conhecia o elegante jovem. Em diversos momentos, durante o festival, a rã havia estado com elas, e algumas vezes a moça lhe tinha comunicado essa impressão; mas a rã havia se limitado a rir.

No quinto dia do festival, Choden concebeu um plano secreto. O jovem elegante estava competindo outra vez na corrida, e, antes que esta terminasse, a moça foi correndo, tão depressa quanto pôde, até a casa da viúva. Como de costume, a rã havia dito que com o passar do tempo, o amor do jovem pela esposa aumentou cada vez mais, e ele acabou ficando feliz por permanecer no mundo dos homens. Sabia que muitos contariam a sua história e aprenderiam, assim, que todas as coisas se distinguem apenas por sua "pele", por sua "forma", mas que todas as coisas são, na realidade, de uma única natureza.
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Notas
(1). A fumaça aromática do zimbro constitui o incenso que se eleva de incontáveis lugares no Tibete. Esta é outra das práticas que remontam a um passado ancestral. O zimbro (tibetano, sug-pa) era uma árvore sagrada e queimar os seus ramos era um sacrifício {bsang).
(2). A concordância nos obrigaria aqui a falar de "filha", mas, ainda à custa de forçar um pouco a expressão, somos obrigados a falar de "filho" pelos motivos que se tornarão evidentes na continuação do relato.
(3). O combustível habitual nas lareiras tibetanas eram os excrementos de iaque.
(4). Era costume muito corrente entre os tibetanos levarem um ou vários relicários. Seu conteúdo podia ser: diminutas imagens sagradas, minúsculos moinhozinhos de oração, "conjuros" (fórmulas escritas em papel) etc.
(5). Ideia central do budismo tântrico. Todos os seres participam da mesma natureza essencial de Buda (Tathâgata), e a condição de Buda está contida em germe (garbha) em cada um deles, germe que faz possível a iluminação. Assim, todos os seres são uma mesma coisa enquanto Tathâgata-garbha, ou seja, enquanto portadores todos eles de um mesmo germe de Budeidade.

A "rã" de nosso relato se trata, provavelmente, de uma nâga (tibetano, klu). As nagas são divindades aquáticas que podem adotar a forma humana. Vivem num reino subterrâneo com palácios resplandecente de pedras preciosas, e são consideradas guardiãs de tesouros. Geralmente, são representadas como serpentes.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

terça-feira, 29 de março de 2016

Olivaldo Júnior (Um Homem na Rua )

A pequena crônica que lhe escrevo abaixo realmente aconteceu. A vida é uma crônica dividida em muitas.________________________

Outro dia, vi um homem na rua. Na verdade, esse homem estava no hall de entrada do único shopping que existe em nossa cidade. Era na faixa do meio-dia, e estava um sol de rachar. Eu entrei no prédio e, de repente, lá estava ele, com um bebê, o seu filho, nos braços. Como sei que era seu filho? Porque eu conheço aquele homem.

Foi rápido, mas o carinho com que ele embalava o menino era bonito, beijando os cabelinhos do filho enquanto rodeava o balcão para, talvez, pedir comida em um dos restaurantes de lá. Não, não parei para cumprimentá-lo. Em vez disso, apertei o passo, nem parei para pensar. Por que fiz isso? É uma longa história... Mas foi mais por vergonha, inibição, timidez. Há cenas que não podem ser interrompidas. Além do mais, nem tive tempo para pensar a respeito. Quando vi, com medo de ser visto por ele, meus pés já me levavam para o meio do shopping, para a frente das lojas, que, em tempos de crise, ficam ainda mais sedutoras, convidativas, aliciadoras, em busca de possíveis clientes, time is money, my honey...

Aquele homem, tempos idos, era alguém que, de vez em quando, ia a minha casa e, mesmo tendo estado poucas vezes com ele, pressentia o quanto ele ficaria feliz se tivesse um pequeno herdeiro nos braços. Dito e feito: ele estava feliz. Uma onda de carinho paterno irradiava dele e preenchia o menino de amor. Foi rápido, mas eu vi.

Não vejo mais o pai daquele bebê, a não ser em casos muito especiais. Queria que tivéssemos sido amigos. Queria ter pelo menos um amigo, mas quero sempre demais. Nem tudo é para todos, eu já o disse.

Outro dia, vi um homem na rua, e aquele homem, para mim, teria sido meu melhor amigo.

Fonte:
O Autor

Aprygio Nogueira (Belo Horizonte/MG)


Abre , meu bem, a janela,
 me esquenta que a neve cai..."
 Quem abriu foi a mãe dela,
 quem me esquentou foi o pai!
-
A ilusão, grande cilada,
não passa, no conteúdo,
de uma árvore de nada
carregadinha de tudo.
-
A mulher é um livro lindo
mas de estranha redação,
que o homem folheia rindo,
sem saber a tradução…
-
Apago as luzes... No entanto,
nem cochilo - que tristeza -
pois em meu quarto, num canto,
existe uma ausência acesa...
-
As rugas, de vez em quando,
são as ruas pelas quais
os filhos vão caminhando
na própria alma dos pais!
-
A vida é pobre de abraços
mas nem os próprios ateus
conseguem fugir dos laços
do imenso abraço de Deus!
-

Cabra guloso e nefando
foi o cabra Zé Ramiro
que faleceu mastigando
o seu último suspiro!
-
Com salário tão velhaco
não posso - o pobre assegura -
construir o meu barraco 
nem na “ rua da amargura”.
-
Devolvo a carta, querida,
sem lê-la... Já li, no cais,
no "até breve" da partida,
as letras do "nunca mais"!
-
Diz-me o céu, ao fim da estrada
que percorremos na vida,
que a morte é a grande chegada
disfarçada de partida…
-
Dos teus passos, feiticeira,
pela rua da partida,
nasceu a estranha poeira
que escurece minha vida.
-
Embora invertendo o nome
do que lhe dás por almoço,
teu cão não ilude a fome,
pois osso invertido é... osso!
-

Em  minha definição,
 a dúvida é algo assim:
-  um sim com jeito de não
e um não com jeito  de sim.
-
És a maior das mulheres,
quando a renúncia, querida,
te faz dizer que não queres
o que mais queres na vida!
-
Já não tenho mocidade,
mas vou chutando, a meu jeito,
a bolinha da saudade
numa rua do meu peito.
-
Jantamos juntos e a mesa
de nossa velha mobília
sente o sabor de ser presa
pelo abraço da família!
-
Minha sogra bateu asa
quando, com muita cautela,
pus um retrato, lá em casa,
da finada sogra dela…
-
Nascer não basta - persista
seguindo o Divino Plano,
que nos garante a conquista
do "status" de Ser Humano.
-

Nosso lar, neste momento,
é como esquina florida
no sublime cruzamento
das ruas da nossa vida.
-
O amor é um sol diferente
cuja luz nos faz achar
o pedacinho da gente
que nasce em outro lugar.
-
O céu é longe, porém,
uma coisa descobri:
– pelo caminho do Bem,
esse longe é logo ali.
-
O Doutor, com voz avara,  
vendo o pobre, diz ao cura:          
- Seu Cura, confesse  o cara,
que esse cara não tem cura.
-
O meu abraço, meninas,
tem a força de um tesouro,
pois sou de Minas - e em Minas
o amor é banhado a ouro!
-
Os peões desse rodeio   
chegaram com tanto embalo, 
que cinco mocinhas - creio -
já “caíram do cavalo”...
-

Preso ao galho, aquele dia,
Seu Juca só deu trabalho, 
pois queria e não queria
que a gente “quebrasse o galho”.
-
Quando eu morrer, solidão,
quero chuva no jardim,
para sentir a ilusão
de alguém chorando por mim!
-
Receio que o meu amor
não dê  resposta... Receio.
Mas, na dúvida, vou pôr
a esperança no correio.
-
Saudade parece praga,
parece mato insistente:
– mato que nasce da vaga
da flor que morreu na gente.
-
Se a seca nos traz  a mágoa,
seca total não existe:
- sempre cai um pingo d`água
dos olhos de um povo triste.
-
Se moras no céu, querida,
tão longe dos olhos meus,
é a primeira vez na vida
que sinto inveja de Deus…
-

Solitário e sem abrigo,
encontro ainda socorro
no amor que fala comigo
pela voz do meu cachorro.
-
Só posso medir, morena,  
meu amor, quando te fito,
se Deus me der uma trena
de se medir o infinito.      
-
Sou pobre. Mas rezo, à mesa 
e  noto que o meu “virado”
perde o gosto da pobreza
quando Deus é convidado.
-
Sou tão feliz, minha gente,
que nem sei - feliz assim -
se o sol provém do Nascente
ou nasce dentro de mim!
-
Tal vaidade, mãe querida,
você tem, ao se compor,
que sempre a vejo, na vida,
vestindo raios de amor!
-
Tanto ao Mandu me associo
por termos rotas vizinhas,
que a epopéia desse rio
tem muitas estrofes minhas.
-


Tanto em teu rastro, querida,
meu coração se perdeu,
que quando cais, pela vida,
quem se machuca sou eu
-
Todo rio nos cativa,
mas o Mandu, sem cessar,
consegue ser a mais viva
continuação do meu lar.
-
Tudo é "trem", no meu Estado,
e é por isso que a patroa,
por me ver aposentado,
me chama de "trem à-toa"!
-
Tudo no mundo é mesquinho
mas teu abraço é um escudo
que tem fibras de carinho
e me separa de tudo!
-
Uma criança que chora
pela rua, sem um lar,
parece uma linda aurora
que não consegue raiar.
-
Um filho da vã paixão,
do mal do amor, condenado,
é a única redenção
que vem do próprio pecado!
-
Vai devagar pela Rua
dos Prazeres, mocidade,
que o seu final se situa
lá na Praça da Saudade…
-
Zé Correio é calmo, pois,
na subida ou na descida,
costuma atrelar os bois
do carro ao carro da vida.