sábado, 10 de maio de 2014

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 3


A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Cecília Meireles, por sua qualidade poética, marcou a história de nossa poesia no século XX. A sua poesia mostra cuidado formal rigoroso. Os versos bem medidos têm musicalidade, com nuances de ritmos e cadências, e plasticidade, em imagens que se distribuem com variedade cromática de tons pastéis. A delicadeza, que gera leveza nos gestos e finos traços, pode ser uma tônica desta poesia. Como resultado final, paira o equilíbrio formal, com simetria de quantidades, em que nada parece sobrar ou faltar. A etereidade de “nuvens” e “mares” é um dos temas centrais de tais versos. Sem ambições de se fixar, e, assim, cristalizar-se, o etéreo flui de modo suave, encadeia-se em sequência de espelhamentos, em busca de uma imagem que está sempre mais além - “face perdida” - que se lhe escapa[70].

Cecília Meireles “paira, simplesmente”, segundo afirmação do crítico Amadeu Amaral[71]. E paira tanto no território da produção, em que a própria autora se instala enquanto voz poética, quanto no da recepção pelo público leitor, ocupando um lugar de realce na literatura brasileira.

Embora Cecília Meireles estreie em 1919, com Espectros, seguido de Nunca Mais e Poema dos Poemas, de 1923, e ainda de Baladas para El-Rei, de 1925, em que tendências simbolistas e traços parnasianos misturam-se, só vai considerar como obra sua os poemas a partir de 1939, com Viagem. Mas desde o início de sua produção, pratica uma poesia de fina sensibilidade e delicadeza.

E o conjunto de sua produção mostra tendências heterogêneas, como bem observou o crítico Mário de Andrade, em referência ao livro Viagem, premiado pela Academia Brasileira de Letras. De fato, se ocorre aí a heterogeneidade que o crítico traduziu pela imagem do "bordado búlgaro", reconhece também outras qualidades que a esta se somam: os "requintes de pensamento refinado" e a “simplicidade popularesca”, por exemplo.[72]

Como resultado da primeira, cria uma poesia que, ainda segundo Mário de Andrade, “parece totalmente sem assunto".[73] E que se pauta por uma preocupação que atravessa a sua produção poética, a de experimentar "femininamente, além das  lágrimas, a angustiada volúpia de ter um nome”, usando, para atingir tal meta, uma técnica "energicamente adequada". E dando vazão a uma "alma grave e modesta, bastante desencantada, simples e estranha ao mesmo tempo, profundamente vivida. E silenciosa".[74] Daí talvez a constante do tema do auto-retrato, em imagens que traduzem a temporariedade dos fatos e sua fluidez em fluxo vital, transfigurando-se em águas, ares e mares.

Da segunda vertente de sua poesia, a do seu pendor popular, surge a marca da musicalidade em sons que constroem canções e serenatas. Cultivando um lirismo de tradição medieval, a escritora exercita a oralidade em linguagem límpida. E dessa pesquisa, advém o seu Romanceiro da Inconfidência, de 1953, quando sua poesia ganha ainda nova dimensão, mediante a construção do retrato nacional do país em momento de crise e de luta, mediante defesa de reivindicações de caráter político que alimentaram a Inconfidência Mineira.

Nesse trabalho ganha vigor a autora poeta e também pesquisadora dos Autos da Devassa, estudiosa do folclore brasileiro, enquanto professora da hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (na época Universidade do Distrito Federal), onde lecionou Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Crítica Literária.

O poema histórico monta-se em quadros sucessivos mediante colagem de cenas e retratos de personagens envolvidos no movimento pela nossa independência e autonomia, em obra de maturidade poética, em que o lirismo social pisa firme o chão da história. E assume o tom de denúncia, a partir do compromisso de luta. Acusa, entre tantos erros, o defeito da corrupção pelo ouro. E o da injustiça.

O conjunto da obra poética de Cecília Meireles caracteriza-se, pois, por uma dimensão individual – a mulher buscando sua imagem – e também por uma experiência de dimensão coletiva – no campo político das reivindicações de caráter libertador.

Seguindo a trilha dessa primeira vertente da poesia de Cecília Meireles, muitas outras escritoras vão procurar, no espaço da representação artística da literatura, a sua identidade de mulher. Entre elas, Adélia Prado, que se reconhece “desdobrável” e que, na sua “bagagem” drummondiana, incorpora um cotidiano em “dor sem amargura” - expressão que, a meu ver, já bem traduz o clima poético de sua obra.[75] Instala-se à vontade neste ponto de encruzilhada de múltiplos papéis, que exigem versatilidade e até acrobacia. Assume atribuições que vai simplesmente incorporando, sem rigorosas triagens eletivas nem exigências constrangedoras. Adere a si, de bom grado e de bom humor.

Em poesia plantada no cotidiano mineiro de Divinópolis a mulher come “arroz, feijão-rouxinho, molho de batatinhas”, tem o Zé, bonito, do lado, tem filhos e compadres, tem fé, que dá certeza e tem Deus, que dá tudo. Talvez por isso, rodeada de tanta graça, seja poesia que mais responde que pergunta.

Parece haver uma gradação neste percurso poético: da sensação ávida, perturbadora, de Gilka Machado, até a suavidade serena, indagadora, de Cecília Meireles, e desta, até a confiança firme e inabalável da fé, em Adélia Prado, em universo de certezas que, no entanto, se desfaz...em algumas outras escritoras contemporâneas.

É o caso de Ana Cristina César, que habita um ponto extremo da contundência e da energia problematizadora, não só nos seus poemas, mas nos seus textos teóricos e críticos, todos de caráter polêmico, de muita erudição, de aguda curiosidade, de rara lucidez. Dificilmente um mundo poético se encontra tão alimentado pelo próprio universo das imagens da arte, da palavra, do livro, da experiência artística, enfim. E nesse mundo marcado pelos tempos do pós-modernismo, nele tudo cabe e nada, finalmente, é verdade: lugares de vários países, citações de vários autores, peças de vários guarda-roupas, num misto de magicista e de camelô ambulante de cidade grande.[76]

Num mural virtual de opções, cujo suporte é sempre a sensação intensa e desesperada, as imagens se somam, por colagens, citações, remissões, numa espécie de clicagem, ancorada em duas propostas de antiga linhagem feminina: o diário íntimo - ficcional, sim, mas quem sabe também autobiográfico? - em que o eu se encontra diante de si mesmo; e a correspondência ou carta, em que o eu se dirige a um outro supostamente ausente. Qual a razão dessa desenfreada interlocução, no sentido de sempre querer mobilizar alguém? De sempre querer atingir esse ponto, do eu, do outro, esticando a malha poética até as últimas consequências? E tal ponto extremo lhe chega, mesmo, sob a forma do suicídio.

A PROSA DE CLARICE LISPECTOR

Antecedendo a contundência extrema de Ana Cristina César, Clarice Lispector tenta também levar às últimas consequências a capacidade de resistência da linguagem, numa arte ‘suicida’. Desmancha a realidade feita, assim, de capas, de invólucros, de máscaras. E reconstrói, do caos primitivo, ou dos cacos de um caos primitivo, restos de uma civilização falida, um jeito novo de ver, ao  mesmo tempo enviesado, perscrutrador, dirigido a profundidades remotas e arcaicas, mas reconhecidas na realidade de superfície em que se desnudam, ou simplesmente aparecem, por um olhar também loucamente direto.

Sob este aspecto, a literatura de Clarice pode ser considerada como um corajoso processo de desconstrução, pela via da linguagem, ela também, a todo momento, questionada, inserindo-se, assim, na fértil linhagem de literatura metalinguística do nosso século. A novidade dessa literatura reside, talvez, no fato de submeter o discurso a essa prova de resistência, elasticizando o movimento de tensão até um ponto determinado que, no seu caso, é o do encontro de si consigo mesmo, que é, ao mesmo tempo, um outro, que é o outro também social, e que, a certa altura, se transfigura em nada.

No decorrer do percurso, a certa altura, sob a figura do paradoxo, Inferno e Paraíso se equivalem. E por um instante, não há senão silêncio. Aí, “a vida se me é”, como afirma em A Paixão segundo G.H.[77], após os difíceis passos de uma via-sacra que levam a personagem a se aproximar do pior e melhor de si mesma - a barata - até se reconhecer aí como essa matéria reles, arcaica, matéria viva pulsando.

O jogo de alteridade, praticado sob diferentes configurações em quase toda a obra de Clarice Lispector, desde os primeiros contos dos anos 40, encontra uma equivalência metafórica de caráter social no seu último romance publicado em vida, A Hora da Estrela.[78] Neste, o “drama em linguagem” - para usar expressão do crítico Benedito Nunes[79] - , faz-se pelo desdobramento já típico dessa autora: o indivíduo que, ao reconhecer-se como tal, aparece já desdobrável num eu e num outro, cada um desdobrando-se, por si, em mais dois, e assim sucessivamente.

Dessa forma, Clarice assina seu nome de autora sobre os treze títulos que dá ao romance. E cria um outro, Rodrigo, que irá escrever o romance, criando, por sua vez, uma outra, a Macabéa, que tem nome de origem judia e é nordestina pobre - como, aliás, a própria Clarice. A experiência individual - a mulher em busca de seu outro criando esse outro em que se espelha - faz-se em vários níveis: autora que vira narrador que vira personagem de si mesma, personagem que também é o narrador e também é a autora.

Numa das cenas que representam tal acoplagem o escritor Rodrigo vê a nordestina ao espelho e “no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos”.[80] Termo eficaz, este, o da intertroca, para traduzir a montagem dessa construção de imagens/personagens que se desdobram ao longo da obra que se faz.

Numa outra cena é Macabéa que, após receber a notícia de que seria despedida do emprego, vai ao banheiro “para ficar sozinha porque estava toda atordoada” e lá se vê jogada em duplo, enxergando-se ora como ‘ninguém’, ora com a ‘deformação’: “Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem”.[81]

O espelhamento de eus faz-se não só no campo das classes sociais, mas no de gêneros e de culturas. A autora Clarice é a que supomos que conhecemos: muito pobre, enquanto imigrante judia passando fome no nordeste, até os seus doze anos - ou vivendo também miseravelmente quando chega ao Rio de Janeiro, onde vive dos 12 aos 23; ou não digo rica, mas de classe alta, enquanto casada com diplomata, vivendo no exterior, primeiro na Itália, depois na Suíça, Inglaterra, Estados Unidos. E é a Clarice novamente bem pobre, mas sobrevivendo por atividade artística, precisando escrever crônicas para jornal e livro por encomenda para cuidar dos dois filhos com quem vive depois da separação do marido, já de volta ao Rio de Janeiro. Passa, pois, por três situações de vida - econômicas e culturais - diferentes. Foi as três. E carregou, pelos menos, as três, ao escrever este seu último romance publicado, no seu último ano de vida.

O narrador Rodrigo também vive a pressão de três classes sociais: é o escritor que é estranho para a classe alta, temido pela média e simplesmente desconhecido pela baixa. Afirma esse narrador Rodrigo a respeito de si mesmo: “A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”.[82]

E Macabéa é tão só a classe baixa, miserável, no seu generalizado ‘nada ter’, numa sociedade marcada pelos bens de consumo. E é ‘sem classe’, se considerada do ponto-de-vista do que ela encarna: milagre de vida inexplicável desde que, apesar de tudo, sobrevive, inconsciente, como verdade de um não-saber, na insignificância e no anonimato.

Paralelamente às classes, as respectivas culturas: a escritora Clarice e o escritor Rodrigo têm o bem cultural da escrita. São autores. E, além disso, pertencem à linhagem dos autores que questionam essa cultura, metalinguisticamente, com sofisticações refinadas. Ao criar, com prazer e dor, desdobram-se num outro, nas suas criaturas, como Macabéa. Esta, como datilógrafa, copia apenas. Não só suja o papel, com dedos de unhas curtas demais e maltratadas, como copia errado, sem saber o que significam as palavras. Escreve “desiguinar”. E pergunta o que é “cultura”. Vive de cultura de massa e de sucata: ouve músicas sentimentais pelo rádio, aprende coisas de almanaque (que, por exemplo, uma mosca leva 28 dias para dar volta ao mundo, caso voe em linha reta) e recorta anúncios das revistas que outros leem.

Também sucedem-se, em cadeia, os gêneros. O feminino de Clarice cria o masculino de Rodrigo que, por sua vez, cria o neutro de Macabéa, que não se descobre socialmente localizado: marginal, não é mulher nem homem, é coisa. Assim, tanto pode ser ‘lida’ como força positiva, quanto negativa, ou seja, nela tudo cabe porque ela nada é. Paira, superior, acima das mesquinharias de uma sociedade como a nossa, regulada pelo império das aparências falsas e enganosas, e aí paira sem nem ter consciência de que representa ‘isso’, esse milagre de resistência, digna de um macabeu, que sobrevive, apesar de tudo e de todos, emitindo, na voz fraca e na morte na sarjeta, o grito mudo de reivindicação de um lugar onde possa sonhar - e se casar com o loiro estrangeiro, bonito e rico. Enfim, onde possa tornar-se sujeito de uma história, até então manipulada pelos outros donos do saber, inclusive pelo seu proprietário intelectual, o escritor, que vive às custas dessa personagem que não pode viver ao seu lado, numa sociedade onde ele também, poderoso, vive escrevendo, criando e...matando Macabéas.

A história de amor do romance também se desdobra, em tantas outras: é a história de amor de Clarice por Rodrigo, este narrador do seu romance, criatura sua, modelada para essa função de contar a história. É a história de amor de Rodrigo por sua personagem Macabéa, criatura sua, modelada  para essa função de contar de quanta miséria -  e, ao mesmo tempo, quanta grandeza - se faz a condição humana. E é a história de amor de Macabéa por Olímpico, o bandido que quer ser deputado. Ou por Hans, o moço bonito anunciado pela cartomante.

Dificilmente, na história da nossa literatura - de homens e de mulheres - houve um questionamento do intelectual de tal envergadura e coragem. Capítulo subsequente dos romances sociais dos anos 30, esse romance de Clarice Lispector desmitifica, ou desconstrói também, a figura do intelectual, do escritor, do artista, que é um dos que têm, em contraste com o seu objeto de arte, ou personagem, o que não tem. Numa experiência da diferença que se faz por dentro - há os que cosem por fora, eu coso para dentro, afirmava Clarice - . a ‘verdade’ dessa injustiça social surge não por teorias, nem por plataformas revolucionárias. Surge por experiência desmitificadora: desmonta o que está feito. E é assim também que cada um conquista a sua hora da estrela, em momento de extrema grandeza e miséria.

O desejo - como manifestação de um querer, que é simultaneamente configurado como individual e coletivo - , traduz-se, também em Clarice, tal como o foi no início do século com Júlia Lopes de Almeida, por um ardoroso apego ao detalhe e por uma aparente ligeireza e banalidade, como se aí nada fosse importante, mas num tom descompromissado que esconde, perversamente, sob a forma da máscara, uma outra realidade.

Nesse espelhamento a mulher, de lá para cá, mudou muito. Sempre em estado de solidão e, por vezes, de insatisfação, tais estados de desejo são elaborados literariamente sob diferentes olhares, por essas mulheres. Um passeio pela ligeireza do cotidiano, como traço quase caricaturesco de uma sociedade em miúda festa da banalidade, com Júlia Lopes de Almeida. Uma reflexão da condição social com aparelhamento ideológico marxista, mediante experimentações modernistas, com Pagu-Mara Lobo; sensível, com aberturas para experiências da fantasia, em Rachel de Queiroz; estritamente familiar, a partir do peso da estrutura conservadora, em Lúcia Miguel Pereira. E metalinguisticamente, em etapas sucessivas, gradativas, ritualisticamente, num processo desconstrutor radical, em Clarice Lispector.

Até essa Hora de Estrela, a Mulher teve de percorrer um longo e penoso caminho. Afinal, não é fácil reconhecer-se, a partir do tudo com que nos deparamos, no extremo nada de que todos, homens e mulheres, somos feitos. E em que, paradoxalmente, a mulher encontra seu brilho próprio. Nessa altura, no entanto, já não se vê mais, pois está feito o percurso necessário “para desaprender o seu nome”, conforme expressão minha para parodiar, à moda de Clarice Lispector, o verso de Cecília Meireles. Sem espelho, sem imagem, sem reflexo, na conquista de si mesma, a mulher-personagem já pode pairar, anônima, no silêncio, enquanto simplesmente um ser.

A descoberta de que o verdadeiro nome está na ausência dele – ser nada e ninguém – por um fluxo narrativo que escava, em profundidade, os invólucros ou artifícios culturais que abafam a selvageria instintiva, pode ser considerada como uma nova etapa de nossa antropofagia cultural. O mundo da privacidade recalcada e até mórbida da mulher, no seu espaço familiar de que se vê na maioria das vezes prisioneira, e a dimensão coletiva em que a mulher descortina a consciência de seu não-espaço, marginal e massacrado, será assunto de outros romances femininos, como os de Lygia Fagundes Telles e Lya Luft, por exemplo.[83] Mas o que se sobressai nesse último romance de Clarice Lispector é o grau de questionamento que leva a mulher até o extremo limite de sua capacidade desconstrutora.

Até o presente momento, é o grito de Macabéa na sua hora de agonia e morte, quando conquista a grandeza da dimensão humana pelo poder de resistência num contexto adverso, que ainda ecoa, forte, como música de fundo de toda uma história da mulher na literatura brasileira.
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NOTAS

[70] Tais propostas encontram-se desenvolvidase em: Nádia Battella Gotlib, “Nem ausência, nem desventura: ser poeta”. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 53: Imagens da Mulher (Org.: Benjamin Abdala Júnior), jan.-dez.1995, p.115-122.

[71] Amadeu Amaral, “Cecília Meireles”. Em: O Elogio da Mediocridade. São Paulo-Hucitec, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1976, p. 159-164.

[72] Mário de Andrade, “Viagem.” Em: O Empalhador de Passarinho. 3. ed. São Paulo, Martins, 1972, p.161-164.

[73] Mário de Andrade, ob. cit., p. 163.

[74] Mário de Andrade, ob. cit., p. 164.

[75] Tal tendência anuncia-se desde seus primeiros livros publicados, Bagagem e O coração disparado, que surgiram pela Editora Nova Fronteira em 1977 e 1978, respectivamente.

[76] A tendência é patente não só nos seus poemas reunidos em, por exemplo, A teus pés (São Paulo, Brasiliense, 1987; esta edição traz, além dos poemas de A teus pés, também os poemas de Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica). Aparece também em outros textos da autora, como em Escritos  da Inglaterra  (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Escritos no Rio (São Paulo-Rio de Janeiro, Brasiliense-Ed. da UFRJ, 1993).

[77] Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H. (1964) 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1974, p. 217.

[78] Clarice Lispector, A Hora da Estrela  (1977) 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1978.

[79] Benedito Nunes, O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1989.

[80] Clarice Lispector, ob. cit., p. 28.

[81] Clarice Lispector, ob. cit., p. 32.

[82] Clarice Lispector, ob. cit., p. 24.

[83] Tais escritoras têm sido privilegiadas pela crítica, ao lado de – apenas para citar alguns exemplos - Nélida Piñon, Zulmira Ribeiro Tavares, Rachel Jardim. Dentre as poetas, Hilda Hilst e Orides Fontella. E dentre as mais jovens, Ana Miranda e Marilene Felinto. Além de trabalhos acadêmicos e livros que têm como assunto a leitura analítica e crítica da obra de cada escritora, têm sido publicados volumes de ensaios e artigos referentes a várias escritoras.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Aparecido Raimundo de Souza (As Eternas Bagagens)

(Recontado de uma mensagem recebida)

QUANDO A NOSSA vida começa, temos apenas uma pequena sacolinha de mão. Na medida em que os anos vão passando, a bagagem vai aumentando, aumentando... Indefinidamente...

Por conta disso, somos obrigados a deixar de lado a sacolinha e arranjar uma mochila, por exemplo, um pouco mais robusta. Que caibam mais tralhas. Os anos seguem passando, e com eles, a tendência desta bagulhada recolhida é crescer de tamanho, de intensidade e volume. Num piscar de olhos, se tornar uma torre de babel.

Geralmente isto ocorre porque existem muitas coisas que vamos catamos pelas diversas sendas que percorremos. Chega num determinado ponto da jornada, o peso da bagagem começa a ficar pesada, a ponto de fazer doer as costas, as pernas e, no mesmo norte, a atingir as raias do insuportável.

Nesta hora, precisamos parar. Estancar os passos, pensar, repensar, meditar e, depois de tudo, escolher: voltar atrás, ou abortar os passos seguintes e ficar à espera que alguma alma caridosa nos ajude. Ou seguir em frente, suportando, sozinho, o peso do fardo que nos foi imposto pelo destino, pelas adversidades da vida e o pior de todos aquele causado pela inconsequência de nossa insana imbecilidade de recolher e guardar velhas quinquilharias imprestáveis.

Todos nós, seres humanos, sem exceção, juntamos coisas de que não precisamos. Colecionamos porcarias que nunca faremos uso. Todavia, há, em contrapartida, outra alternativa: a do desapego. Isto quer dizer o seguinte. Abrir a mala e jogar fora o que julgar não ser essencial. Mas, nesta altura, pelo andar da carruagem, um outro problema vem à baila. O que dispensar a velha lata de lixo? O que seria válido largar de lado e o que não seria? É neste momento angustioso, que surge a dúvida cruel. A mais difícil de todas. O que deixar de vez grosso modo, abandonado definitivamente pelas calçadas?!

O Amor? A Amizade? Amor ou Amizade? Os dois?

Momentos bons, coisas más, lembranças inesquecíveis? Difícil escolha. Meu Deus! Espere... Existe algo mais pesado que pode e deve ser largado para sempre: a raiva. A raiva é como uma pedra enorme que obstrui. Tem a incompreensão que apavora; o medo que desalenta; o pessimismo que entristece; a fúria que aflora de forma maligna, como também a discórdia e a insegurança que, a semelhança dos demais, deixam na alma desalentada marcas indeléveis... Para sempre…

Neste momento, em linha paralela, surgem as lutas. Primeiro a do desânimo que pinta do nada e puxa o coração na ânsia de prendê-lo dentro da mala.

Tem inicio, pois, uma peleja insana, quase irreal, para não nos deixarmos ser vencidos. De repente, eis que entra em cena o Sorriso. Bonito, largo, aberto, atraente, bem apessoado, enlevado numa paz tão imensa que parece mudar o quadro desolador.

De mãos dadas com ele, de roldão, vem a Felicidade. A Felicidade por sua vez traz a Paciência, e, então, por alguns momentos, a gente se sente envolto numa onda gigantesca de tranquilidade indescritível.

Buscamos, às carreiras, o restante das coisas dentro da mala repleta: E se nos deparamos com a Força, com a Coragem, com a Responsabilidade, com a Tolerância, e com o Bom Humor.

Pronto. Problema resolvido. Não há mais nada a ser retirado de dentro da mala. Pois bem! E agora? Pinta o inverso. O que guardar novamente para seguir a viagem em direção ao amanhã?!

Enquanto a gente não se decide, ficamos a olhar ao redor e espiar o futuro. O futuro é longo. Mas igualmente incerto, escuro, solitário, vazio, oco sem nada para se pegar, como a mente conturbada, que não deixa nosso anjo do bem pensar direito: pelo menos no sentido de se saber o que realmente jogar de volta dentro da mala, tranca-la a sete chaves e se pôr, ato contínuo, em marcha.

E uma vez mais na estrada, seguir em frente, cabeça erguida, confiante, dono de nossa vida, do nosso nariz. Temos que seguir, bem sabemos, sem olhar para trás, sem medo de, num leve tropeçar nos passos, metros à frente, voltarmos a cair no mais estúpido dos buracos. O da nossa própria desgraça anunciada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 9


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Mavutsinim

MAVUTSINIM - O PRIMEIRO HOMEM

No principio existia apenas Mavutsinim, que vivia sozinho na região do Morená. Não tendo família nem parentes, possuía apenas para si o paraíso inteiro. Um dia sentiu-se muito, muito só. Usou então de seus poderes sobrenaturais, transformando uma concha da lagoa em uma linda mulher e casou-se com ela. Tempos depois, nasceu seu filho. Mavutsinim, sem nada explicar, levou a criança à mata, de onde não mais retornaram. A mãe, desconsolada, voltou para a lagoa, transformando-se novamente em concha. Apesar de ninguém haver visto a criança, os índios acreditam que do filho de Mavutsinim tenham se originado todos os povos indígenas. Foi também Mavutsinim que criou de um tronco de árvore a mãe dos gêmeos Sol (Kuát) e Lua ( Iaê,) responsáveis por vários acontecimentos importantes na vida dos Xinguanos, antes de se tomarem astros.

MAVUTSINIM  E O XINGU - A FORMAÇÃO DAS TRIBOS


Foi Mavutsinim quem tudo criou; fez as primeiras panelas de barro e as primeiras armas; a borduna, o arco preto, o arco branco e a espingarda. Tomando quatro pedaços de tronco, resolveu crias as tribos Kamayurá, Kuikuro, Waurá e Txukahamãe. Cada uma delas escolheu uma arma, ficando a tribo Waurá com a panela de barro. Mavutsinim pediu à Kamayurá que tomasse a espingarda, mas esta preferiu o arco preto. Os Kuikuros ficaram com o arco branco e os Txukahamães preferiram a borduna. A espingarda sobrou para os homens brancos. A população aumentou em demasia e Mavutsinim resolveu separar os grupos. Mandou que os Txukahamães fossem para bem longe, pois eram muito bravos. Os homens foram para as cidades, bem distantes das aldeias, pois tinham muitas doenças e com as armas de fogo viviam a ameaçar a vida dos outros grupos. Desta forma, as tribos puderam viver em paz.

MAVUTSINIM - O PRIMEIRO KUARUP, A FESTA DOS MORTOS

Mavutsinim, o grande pajé, desejava fazer com que os mortos revivessem e voltassem ao convívio de seus familiares. Cortou dois troncos e deu-lhes a forma de um homem e de uma mulher, pintando-os e adornando-os com colares, penachos e braçadeiras de plumas. Cravou-os no centro da aldeia. Preparou então uma festa e distribuiu alimentos a todos os índios, para que esta não fosse interrompida. Pediu aos membros da tribo que cobrissem seus corpos com uma pintura que expressasse apenas alegria, pois aquela seria uma cerimônia em que, ao som do canto dos maracá-êp, os mortos iriam reviver: os Kuarups criariam vida. No outro dia a festa continuava; os índios deveriam cantar e dançar, embora proibidos pelos pajé de olharem para os troncos. Aguardariam de olhos cerrados a grande transformação. Naquela mesma noite, as toras começaram a mover-se, tentando sair das covas onde foram colocadas. Ao amanhecer já eram metade humanos, modificando-se constantemente. Mavutsinim pediu então aos índios que se aproximassem dos Kuarups sem parar de festejar, cantando, rindo e dançando. Apenas os que haviam passado a noite com mulheres não poderiam se integrar à cerimônia, permanecendo afastados do local. Um destes, porém, com irresistível curiosidade, desobedeceu às ordens do pajé e aproximou-se, quebrando o encanto do ritual. E os Kuarups voltaram à sua forma original de troncos. Contrariado, Mavutsinim declarou que, a partir daquele instante, os mortos não mais reviveriam no ritual do Kuarup! Haveria somente a festa. Ordenou que os troncos fossem retirados da terra e lançados ao findo das águas, onde permaneceriam para sempre.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Helena Sacadura Cabral (O que serei eu? Afrolatino, Afrotuga ou AfroLemos)

Desde que os americanos se lembraram de começar a chamar aos pretos 'afro-americanos', com vista a acabar com as raças por via gramatical, isto tem sido fartamente empregado!

As criadas dos anos 70 passaram a 'empregadas domésticas' e preparam-se agora para receber a menção de 'auxiliares de apoio doméstico' .

De igual modo, extinguiram-se nas escolas os 'contínuos' que passaram todos a 'auxiliares da ação educativa'.

Os vendedores de medicamentos, com alguma presunção, tratam-se por 'delegados de informação médica'.

E pelo mesmo processo transmutaram-se os caixeiros-viajantes em 'técnicos de vendas '.

O aborto eufemizou-se em 'interrupção voluntária da gravidez';

Os gangs étnicos são 'grupos de jovens'

Os operários fizeram-se de repente 'colaboradores';

As fábricas, essas, vistas de dentro são 'unidades produtivas' e vistos de estrangeiros são 'centros de decisão nacionais'.

O analfabetismo desapareceu da crosta portuguesa, cedendo o passo à 'iliteracia' galopante.

Desapareceram dos comboios as 1.ª e 2.ª classes, para não ferir a susceptibilidade social das massas hierarquizadas, mas por imperscrutáveis necessidades de tesouraria continuam a cobrar-se preços distintos nas classes 'Conforto' e 'Turística'.

A Ágata, rainha do pimba, cantava chorosa: «Sou mãe solteira...» ; agora, se quiser acompanhar os novos tempos, deve alterar a letra da pungente melodia: «Tenho uma família monoparental...» - eis o novo verso da cançoneta, se quiser fazer jus à modernidade em voga.

Aquietadas pela televisão, já se não veem por aí aos pinotes crianças irrequietas e «terroristas»; diz-se modernamente que têm um 'comportamento disfuncional hiperativo'

Do mesmo modo, e para felicidade dos 'encarregados de educação' , os brilhantes programas escolares extinguiram os alunos cabuladores; tais estudantes serão, quando muito, 'crianças de desenvolvimento instável'.

Ainda há cegos, infelizmente. Mas como a palavra fosse considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado 'invisual'. (O termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos - mas o 'politicamente correto' marimba-se para as regras gramaticais...)

Para compor o ramalhete e se darem ares, as pessoas cultas da praça desbocam-se em 'implementações', 'posturas pró-ativas', 'políticas fraturantes' e outros barbarismos da linguagem.

E assim linguajamos o Português, vagueando perdidos entre a «correção política» e o novo-riquismo linguístico.

Estamos lixados com este 'novo português'; não admira que o pessoal tenha cada vez mais esgotamentos e stress. Já não se diz o que se pensa, tem de se pensar o que se diz de forma 'politicamente correta'.

E falta ainda esclarecer que os tradicionais "anões" estão em vias de passar a "cidadãos verticalmente desfavorecidos"...

Os idiotas e imbecis passam a designar-se por "indivíduos com atitude não vinculativa"

Os pretos passaram a ser pessoas de cor.

O mongolismo passou a designar-se síndrome do cromossomo 21.

Os gordos e os magros passaram a ser pessoas com disfunção alimentar.

Os mentirosos passam a ser "pessoas com muita imaginação"

Os que fazem desfalques nas empresas e são descobertos são "pessoas com grande visão empresarial mas que estão rodeados de invejosos"

Para autarquias e políticos, afirmar que "eu tenho impunidade judicial", foi substituído por "estar de consciência tranquila".

O conceito de corrupção organizada foi substituído pela palavra "sistema".

Difícil, dramático, desastroso, congestionado, problemático, etc., passou a ser sinônimo de complicado. 
 
Fonte:
http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/1003840.html, 24 ago 2013.

Paulo Mendes Campos (Poemas Escolhidos)

EPITÁFIO

Se a treva fui, por pouco fui feliz.
Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.
Se Deus foi a doença, fui a saúde.
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.

Se a luz era visível, me enganei.
Se eu era o só, o só então amei.
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.

Se Deus era de pedra, em vão sofri.
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.

Para que me reflitas e me fites
estas turvas pupilas de cimento:
se devo a vida à morte, estamos quites.

NESTE SONETO

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.

Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.

Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto

Dentro da forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

O VISIONÁRIO

Debaixo dos lençóis, a carne unida,
Outro alarme mais forte nos separa.
Vai ficar grande e feia a mesma cara
Com que surgimos cegos para a vida.

Vemos o que não vemos. Quando, erguida
A parede invisível, o olhar pára
De olhar, abre-se além uma seara
Muito real porém desconhecida.

São dois mundos. Um deles não tem jeito:
Cheio de gente, é só como o deserto,
Duro e real, parece imaginário.

Também dois corações temos no peito
Mas não sei se o que bate triste e certo
Vai reunir-se além ao visionário.

PROJETO

De papel e nanquim é um brinquedo
Perigoso, ideal, nossa morada.
Das suas dimensões nos é vedada
A quarta, que, torcida pelo medo,

Dos projetos humanos faz perguntas.
São reentrantes estas duas plantas:
Na planta alta vão chorar infantas,
Na planta baixa vão sorrir defuntas.

Este diedro geme como um cão.
Mas das arestas miarás à lua.
Para abrir ou fechar a tua rua,

Estes dois riscos tramam teu portão:
Regressa horizontal das paralelas
Quem vertical, gentil, entrou por elas.

REI DA ILHA

No fim da rua, um pônei rubro, rubro,
No fim da tarde, um muro escuro, um muro.
Descubro alguma coisa mais? Descubro:
Um coração impuro, tão impuro.

Querer guardar este sinal (querer)
De que minh'alma não morreu? Morreu.
Ser ou não ser como esta tarde (ser)
Que apareceu e desapareceu?

Ser como a tarde que voltou, voltou
Além de meus enganos, muito além...
Eu vou por um país, por onde eu vou,

Onde existe uma ilha, a minha ilha.
Ali não há ninguém. Ninguém? Alguém
Regressará por mim, ó minha filha.

SONETO DE PAZ


Cismando, o campo em flor, eu vi que a terra
Pode ser outra terra, de outra gente,
Para o prazer armada e competente
E desarmada para a voz da guerra.

No chão, olhando o céu que nos desterra,
Sem terminar falei, presente, ausente,
Ó vento desatado da vertente,
Ó doce laranjal sem fim da serra!

Mais tarde me esqueci, mas esse instante
De muito antiga perfeição campestre
Fez-me constante um pensamento errante:

Era o sem tempo, a paz da eternidade
Unindo a luz celeste à luz terrestre
Sem solução de amor e de unidade.

TEMPO-ETERNIDADE

O instante é tudo para mim que ausente
Do segredo que os dias encadeia
Me abismo na canção que pastoreia
As íntimas nuvens do presente.

Pobre do tempo, fico transparente
A luz desta canção que me rodeia
Como se a carne se fizesse alheia
À nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
E a minha eternidade uma bandeira
Aberta em céu azul de solidões.

Sem margens, sem destino, sem história,
O tempo que se esvai é minha glória
E o susto de minh'alma sem razões.

Felipe Daiello (Dublin de Oscar Wilde)

Monumento Oscar Wilde, Parque Merrion/Dublin
Nascido em Dublin, Oscar Fingal O’ Fhahertie Wills Wilde, escritor irlandês, autor de “O Retrato de Dorian Gray, torna-se um dos maiores dramaturgos em Londres ao final do século XIX.

“A vida é muito importante para ser levada a sério.”

Circular pela atual Dublin é recordar as frases do grande pensador. Tarefa agradável, mas exige tempo e paciência.

“A ambição é o último recurso do fracassado.”

A Irlanda sempre foi berço para grandes literatos e produziu quatro prêmios Nobel de Literatura. Apesar do prestígio mundial, Oscar Wilde e James Joyce não receberam o galardão em Estocolmo. Circular à noite pelos pubs, seguindo a velha tradição, degustando a Guiness escura, contagiado pela alegria da música e da dança irlandesa, possibilita recriar e imaginar a atmosfera de velha Dublin que tanto inspirou Oscar Wilde.

“A melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada. De terminar com ela, também.”

Os goles da amiga, Guiness, ouvindo a alegre música irlandesa, intercalando os pratos onde a batata é a resistência, recordam o poeta:

“Devem-se escolher os amigos pela beleza, os conhecidos pelo caráter e os inimigos pela inteligência.”

Educado no “Trinity College”, local onde o famoso manuscrito de Kell está exposto, o dramaturgo teve pai médico e mãe poeta, e desde cedo, apaixonou-se pelos escritos gregos e romanos.

Em Londres, vive com amigo e retratista popular da época, Frank Miles, convivência que lhe trará problemas no futuro. O relacionamento homossexual não era aceito pela rígida sociedade vitoriana.

Em 1881, ao realizar palestras pelos Estados Unidos, conhece Henry Longfellow, Oliver Holmes e Walt Whitmann. Começa a desenvolver a teoria da beleza que deve ser o foco absoluto na arte e na literatura.

Casado, precisando sustentar dois filhos trabalha em Revistas e Magazines; publica histórias infantis. “Quando eu era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje tenho certeza.”

A importância de ser Ernesto será outra obra para recordar o gênio irlandês. Mas, o retrato de Dorian Gray é o seu clássico.

Única novela, “O Retrato de Dorian Gray”, de 1890 provoca uma torrente de protestos. Necessário adaptações. Surge um best seller.

“As mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos”.

Oscar Wilde, que já tivera relações homoafetivas, com o pintor Frank Miles, quando estava em Oxford, ao se relacionar com Lord Inglês provoca escândalo que o leva à prisão.

Sua esposa troca o nome de família e Oscar Wilde, após sair da prisão, nunca mais recupera o seu brilho e prestígio. Durante os seus últimos três anos de vida, pobre, miserável, circula pela Europa, vivendo em hotéis baratos e do apoio dos amigos.

“Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria da pessoa apenas existe.”

Não podemos esquecer que após a ruptura do Império Romano, a cultura ocidental foi preservada em locais ermos e escondidos dessa Terra Verde. Em mosteiros, centro de formação cultural, monges e pessoas de todo o mundo encontravam local para estudar, para ler, para traduzir e para produzir livros. Diversas línguas e culturas tinha aqui local de abrigo e de desenvolvimento. As raízes das futuras universidades estavam lançadas. Será essa a razão da Irlanda produzir nomes como: Bernard Shaw, W.B. Yeats, Swift, James Joyce, Samuel Becket, Oscar Wilde e tantos outros. Títulos de livros clássicos aparecem na memória. ‘Viagens de Gulliver’, ‘ Esperando Godot’, “Ulisses”, “O Retrato de Dorian Gray”.

“Ser grande significa ser Incompreendido.”

As frases de Oscar Wilde surgem no improviso:

“O pessimista é uma pessoa que, podendo escolher entre dois males prefere ambos.”

A arquitetura Georgiana dos prédios as pontes cercando o rio Liffey, os parques e jardins, a alegria contagiante da noite, tudo nos leva a parte antiga de Dublin. Entre ruelas estreitas e bares centenários, o Temple Bar nos aguarda. Oportunidade de esquecer por momentos a literatura e entrar direto e na gastronomia irlandesa e na magnífica escura Guiness. As canções em irlandês, difíceis de entender, serão companheiras de outras lembranças. Oscar Wilde ainda presente.

“Hoje em dia, conhecemos o preço de tudo e o valor de nada”.

“Ah! Não me diga que concorda comigo! Quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão que estou errado”.

“Aqueles que não fazem nada estão sempre dispostos a criticar os que fazem algo”.

Dorian Gray, o seu retrato espelha a visão de Dublin e de Londres na época em que Oscar Wilde viveu e escreveu. Duas versões para o Retrato de Dorian Gray refletem a censura imposta, o preconceito, as críticas, a necessidade de escapar das alfinetadas. De tornar a obra mais aceitável, mesmo em desfavor de critérios literários.

Visitar a casa onde o poeta viveu, relembrar frases bem articuladas, cheias de vida, circular pelos locais onde ele andou, absorvendo detalhes, guardando minúcias é tentar entender o gênio. Difícil!

No parque ao lado, estátua em mármore apresenta o escritor em pose característica. Parece rir de quem chega. Algumas das suas frases estão bem a mão:

“Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morreu os peixes e Oscar Wilde”.

 “Crer é muito monótono, a dúvida é apaixonante”

“Se soubéssemos quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria mais silêncio neste mundo”.

“Escolho os meus amigos pela cara lavada e alma exposta”:

Junto ao mármore de sua estátua, em Dublin, além do sorriso irônico o que nos encanta são as suas expressões gravadas na negra pedra, para a eternidade:
Nos assuntos muito sérios, o essencial é o estilo, não a sinceridade.
Uma ideia que não é perigosa, não merece nem mesmo ser chamada de ideia.
A verdade pura e simples é raramente pura e nunca simples.
Não há outro jeito de livrar-se de uma tentação à não ser sucumbindo a ela.
Se você resistir, a sua alma adoecerá desejando aquelas coisas que lhe foram recusadas.
As mulheres estragam qualquer romance, com essa mania de querer que eles durem para sempre.


Fonte:
O Autor

Ana Rosenrot (O Relógio de Parede)

As batidas compassadas do relógio a marcar as horas, tão vigorosas e constantes, contrastam com as de meu coração que a cada minuto se torna mais fraco, alertando que meu fim será breve.

Nesta triste cama de hospital, o melancólico relógio que se destaca negro e acusador na cama a minha frente, infelizmente e minha única companhia nestes tristes instantes de agonia e dor.

Abandonado por todos que falsamente diziam me amar, deixei-me abater pelos problemas, ficando a mercê de conflitos e desafios que pouco a pouco flagelaram meu corpo e minha alma. Logo já não conseguia me alimentar e em menos de um mês meu coração demonstrava indícios de parada prematura; nao me importei devido ao enfraquecido estado de espírito em que me encontrava e também não fui capaz de admitir que houvesse me tornado um viciado, não conseguia enxergar meu estado mental confuso nem meu corpo cadavérico. Hoje, largado nesta cama de hospital, sinto falta do nada que deixei para trás, anos e anos de vida inútil, pessimamente aproveitada; estou agora prestes a terminar na solidão total de um leito; somente as batidas do relógio acompanham meu sofrimento e vigiam meu sono perturbado.

As horas vão passando, a morte esta cada vez mais perto, posso senti-la em meu sangue; sei que tudo estará terminado antes das doze badaladas e já está aqui, como um ser palpável, o sopro frio e as garras afiadas da dama das trevas a tocar minhas carnes, o fim vazio que tanto temi durante a vida se concretiza e eu estou sozinho, lamentando o triste destino que busquei para mim mesmo, tantos anos perdidos na desesperada busca por dinheiro, fama e poder. Obtive tudo o que ambicionei passando por cima de todos que cruzaram meu caminho, roubando, enganando e sempre mentindo.

Mas de tudo o que consegui, só me restou o suficiente para pagar um tratamento digno de um mendigo; queria tanto me curar para ter outra chance, para poder fazer tudo diferente...

As badaladas parecem aumentar seu ritmo a cada segundo, ou será meu coração galopando em direção ao fim? Desesperado grito por socorro, mas parece não existir no mundo alguém que possa me ouvir, meus sentidos estão se tornando lentos, meu cérebro lateja, não consigo respirar, sei que meu corpo miserável está partindo.

No medo sufocante que sinto nesses minutos finais e sem perspectiva de salvação, sinto um aperto no peito e uma dor dilacerante, minhas ilusões se acabam neste instante de completo desespero, um turbilhão de visões bizarras habitam minha mente e lentamente somente a imagem do relógio de parede permanece, enquanto minha alma esta prestes a abandonar sua sofrida morada, ele soa em funestas badaladas.

Banhado de suor, com a sensação de morte ainda presente, acordo assustado, o coração aos pulos, minha cabeça esta doendo horrivelmente, meu estômago se revira em náuseas, chego a esquecer que tudo foi somente um sonho e fico um bom tempo imóvel, com medo de sair da cama, um estranho pavor de estar realmente morto neste quarto tão escuro, onde só posso ouvir o badalar do relógio. Respiro fundo e procuro abrir bem os olhos, percebendo que o dia amanhecera já há algum tempo, levantei-me rápido, cambaleando, resolvido a dedicar este e todos os dias que restam de minha vida a efetuar mudanças radicais e evitar a qualquer custo que este terrível sonho – ou premonição, ou pesadelo – possa tornar-se realidade, para minha total desgraça.

Sonhos podem ser tão reveladores, que mudam nossas vidas completamente.

Fonte:
Jacqueline Aisenman (org.). Revista Varal do Brasil n. 27 b – fev 2014 ano 5 – Ed. Especial – Sonhar ainda pode
(Conto publicado na Antologia “O Sonho” da Casa do Novo Auto Editora em 1999.)

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) I

O Canto do Guerreiro

I

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
- Ouvi-me, Guerreiros.
- Ouvi meu cantar.

II

Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
- Guerreiros, ouvi-me;
- Quem há, como eu sou?

III

Quem guia nos ares
A frecha imprumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
- Guerreiros, ouvi-me,
- Ouvi meu cantar.

IV

Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
- Guerreiros, ouvi-me:
- Quem há, como eu sou?

V

Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
- Quem há mais valente,
- Mais destro do que eu?

VI

Se as matas estrujo
Co os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
- Quem é mais valente,
- Mais forte quem é?

VII

Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as malas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles - guerreiros,
Que faço avançar.

VIII

E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.

IX

E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
- Guerreiros, dizei-me,
- Tão forte quem é?

O Canto do Piaga

I

Ó GUERREIROS da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribu Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite - era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitus! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitus já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribu Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser?

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitus já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

O Canto do Índio

Quando o sol vai dentro d’água
Seus ardores sepultar,
Quando os pássaros nos bosques
Principiam a trinar;
Eu a vi, que se banhava...
Era bela, ó Deuses, bela,
Como a fonte cristalina,
Como luz de meiga estrela.

Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
Calcara agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.

O tacape fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim somente ver teu rosto
Nas águas, como a lua, retratado.

Eis que os seus loiros cabelos
Pelas águas se espalhavam,
Pelas águas, que de vê-los
Tão loiros se enamoravam.

Ela erguia o colo ebúrneo,
Por que melhor os colhesse;
Níveo colo, quem te visse,
Que de amores não morresse!

Passara a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita à guerra
Me infiltrasse o valor que m’hás roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.
As vezes, quando um sorriso
Os lábios seus entreabria,
Era bela, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.
Outra vez - dentre os seus lábios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.
Que importa? Esse falar deixou-me n’alma
Sentir d’amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeu, vontade e força
Ah! que não queiras tu viver comigo,
Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!

Sobre a areia, já mais tarde,
Ela surgiu toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua!?

Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flor mimosa,
Do seu corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.

Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus, como te adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.

Ary Franco (Insensatez Materna)

         
http://gregoriojr.com
   Nem sempre somos bem sucedidos na tentativa de prestarmos uma ajuda. Não pensem que seja fácil auxiliar aqueles que não querem ser ajudados.

            Todas as quartas-feiras, cumpro minha prazerosa penitência de esperar na pracinha que minha esposa e filha terminem suas compras no supermercado em frente. Dizem que eu atrapalharia mais do que ajudaria se fosse com elas, assim, aguardo pelo celular uma ligação avisando que já estão no caixa tal (são numerados de 1 a 10) pagando as compras efetuadas.

            Normalmente, levo alpiste e miolos de pão para dar aos pombos e, sentado em um dos bancos, aprecio a frenética comilança daqueles columbídeos livres e alados, com todo o espaço do Universo ao seu dispor. Alguns deles parece que já me conhecem, pois logo que chego, de mim se acercam com seus arrulhos e rodopios, como que a cobrar-me o alimento por eles esperado. Alguns são por mim reconhecidos, destacando-se o “guloso”  que enquanto come, tenta não deixar os outros comerem distribuindo bicadas nos mais próximos. Os fones em meus ouvidos dão o arremate musical à minha aprazível espera.

            Em torno, sempre observo as pessoas passantes, aqueles também sentados à sombra em outros bancos ou até mesmo os deitados no gramado, todos vencidos pelo calor. Despertou-me curiosidade um menino sozinho orbitando uns seis aninhos, que acabara de sentar-se ao meu lado, atraído pela coreografia que os pássaros faziam durante seu ávido repasto. Parecia-me ter acabado de chorar; seus olhinhos estavam marejados e havia marcas do caminho ressecado de lágrimas em seu rostinho não muito limpo. Retirei os fones dos ouvidos e dirigi-me a ele.

–  Olá! Bonitos esses pombinhos, né?! (não houve resposta, mas mantive meu monólogo).

– Você tá triste? Fica não! Quando você chora, papai do céu também chora, sabia?

– Não tenho pai! (respondeu-me, sem tirar os olhos dos pombos).

– Você é que pensa! Todo mundo tem um pai e Ele mora lá no céu e vê tudo que acontece com a gente. Se a gente merecer, ele ajuda a gente, sabia? Cadê sua mamãe?

– Ela tá pedindo esmola e eu não quis ficar com ela. Preferi vir pra cá sentar na praça pra ver os pombos. Aí ela me deu um beliscão e eu corri pra cá. Ela diz que ganha mais se eu ficar do lado dela.

– E agora? Como é que ela vai te achar?

– Tomara que ela não ache eu!

– Olha... Papai do céu tá vendo tua má-criação e vai ficar muito triste!

– Ih! Aquele pombo tá batendo nos outros! Vou chutar ele! (e fez menção de se levantar do banco).

– Não faz isso, não! Ele é o chefe do bando e tá botando ordem nos  bagunceiros. Vamos jogar mais comida pra eles e vai acabar a briga. Quer ver?!
– Quero!

Acabei de virar o vidro de maionese que tinha trazido com o petisco das aves e a calma voltou a reinar. Nisso lembrei-me de umas moedas que trazia espalhadas na minha capanga e resolvi fazer uma brincadeira com o menino. Sem que ele percebesse, fechei em meu punho uma meia dúzia aleatória de níqueis de valores variados. O menino permanecia embevecido com o espetáculo proporcionado pelos pombos.

– Meu nome é Ary e o seu?

– É “Duardo”.  Me chamam de Duda, mas eu não gosto!

– Então vou te chamar de Eduardo, combinado?

– Combinado!

– Pera aí! O que é que você tem na sua orelha?

– Nada! (ele passou a mão na orelha e nada encontrou).

– Tem sim! Eu tô vendo! Posso tirar?

– Pode!

            Como que num passe de mágica, retirei detrás do lóbulo de sua orelha uma moeda de cinquenta centavos e entreguei pra ele. O tamanho dos olhos que ele abriu quase foi o mesmo que o de sua boca aberta.

– Pôxa, você falou que não tinha nada! Olha aí! (disse-lhe eu)

            Ele ficou apalpando a moeda uns segundos e começou a querer ver se tinha outras. Quase arrancou o lóbulo da orelha. Aí eu ri e ele também. Existe coisa mais divinamente bela que o sorriso de uma criança, mormente quando esse sorriso substitui lágrimas antes choradas?! Hein?

Responda-me você que está pacientemente me lendo até aqui!!! Sucessivamente continuei a tirar outras moedas. Duas de um real, vinte centavos, cinquenta centavos... Ele sopesava os níqueis, maravilhado e apertando-os em sua mãozinha. Foi a forma que encontrei de ajudá-lo, sem que ele sofresse mais tarde dizendo que na infância tinha sido um esmoleiro. Afinal, aquelas moedas eram dele. Ninguém as deu!

– Você quer escutar música?

– Quero!

            Encostei um dos fones no ouvido dele (na mesma orelha milagrosa que fabricava moedas) e ele ficou extasiado. Minha alegria, de repente foi bruscamente interrompida. Eduardo viu a mãe no início da praça, parada, com as mãos nas cadeiras e olhando-o. Ele imediatamente saiu correndo ao seu encontro. Gritei um tchau que não foi retribuído.

            A mãe sacudiu-o pelo braço e deu um cascudo na cabeça dele. Aí, chorei quando o menino mostrava pra mãe as moedas e apontava para sua orelhinha. Não dava pra escutar nada por causa da distância e pelo barulho das águas dançantes do chafariz ao meu lado. Ela pegou os níqueis, colocou-os em um saco encardido e empurrou o Eduardo, obrigando-o a seguir na frente dela.

            Num ímpeto, levantei-me do banco disposto a admoestar aquela megera que estava transformando um anjo em demônio. Com esse meu gesto brusco, os pombos debandaram em revoada e o vidro de maionese que estava esquecido no meu colo caiu ao chão espatifando-se. Procurei catar rapidamente os cacos e coloquei-os na lixeirinha. Ainda dava tempo de alcançá-los!

            Nisso, toca meu celular.

– Pai, pode vir, estamos no caixa 5.

            Olhei para o céu e disse: Está bem, meu Divino Pai! Já entendi Tua mensagem. Não queres que eu interfira na vida daquela mulher desnaturada. Que guarde para mim as palavras desagradáveis que iria dizer-lhe... E caminhei resignado para o supermercado, onde eu era aguardado.

– Mãe, aconteceu alguma coisa com o papai. Ele andou chorando. (disse minha filha)

– Claro que chorei! Na pressa de vir ajudar vocês, dei uma topada no meio-fio e machuquei o dedão...

– Quando chegarmos em casa, vou esfregar um pouco de arnica. (disse minha esposa)

– Não precisa não, a dor já está passando!

Fonte:
O Autor

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 2

O PERIODISMO FEMININO

Um dos veículos dessa emancipação, que possibilitou a divulgação dos textos das mulheres, tanto literários quanto mais propriamente políticos, foi a imprensa. E, dentro da imprensa, o periodismo feminino. O primeiro deles foi provavelmente, segundo Dulcília S. Buitoni, o jornal carioca O Espelho Diamantino, lançado em 1827.[34] Desde então, outros jornais feitos por mulheres foram fundados com a intenção de tratar de questões ligadas às mulheres e, por vezes, problematizando questões importantes de caráter político, incluindo aí o direito ao voto.

Mas a matéria era, em geral, variada. Um dos pioneiros, intitulado Correio das Modas (1839-1841), trazia “bastante literatura, crônica de bailes e teatros e figurinos pintados à mão, vindos da Europa”.[35] E o Jornal das Senhoras, editado no Rio de Janeiro, numa primeira fase, por Joana Paula Manso de Noronha, em 1852 anunciava como objetivo colaborar para a educação da mulher, livrando-a do peso de ser considerada, pelo homem, “como sua propriedade”.[36]

Na década de 70, em 1873, é fundado o primeiro jornal feminista, O Sexo Feminino[37], com o objetivo de defender a educação da mulher. Durante a campanha abolicionista, participaram de sociedades ora simplesmente angariando fundos, ora escrevendo panfletos, ora proferindo palestras, como é o caso da pernambucana Maria Amélia de Queiroz, que em 1887 faz conferência e mais tarde colaborará no jornal A Família, editado e publicado por Josefina Álvares de Azevedo, este, mais firme nas reivindicações, chegando a defender o divórcio. Ligada ao movimento de campanha pelo sufrágio feminino, Josefina Álvares de Azevedo escreveu peça de teatro intitulada O voto feminino, em 1893, que foi representada no Teatro Dramático do Rio de Janeiro.

E tem regularidade também, uma “revista literária” publicada na virada do século, em São Paulo, intitulada A Mensageira, dirigida por Presciliana Duarte de Almeida, de 1897 a 1900.[38] A revista, centrada em questões referentes à mulher, tem como eixo das considerações a necessidade da educação feminina, no sentido de se proclamar, nas palavras da diretora, “a igualdade na diferença”. Traduz posições mais conservadoras, na defesa de uma educação da mulher que não interfira no papel de mãe e esposa, não aceitando, conforme afirmação de um colaborador da revista, “nem a mulher que vota, nem a mulher que mata!”.[39] E insere também artigos mais avançados, que defendem o voto feminino e o trabalho como instrumento de independência econômica. Um deles chega a defender um feminismo político engajado a uma prática socialista, como é o caso do artigo da escritora portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito e publicado na revista por ocasião do encerramento do Congresso Internacional das Mulheres, em Londres, em agosto de 1899.[40]

A importância dessa revista deve-se, sobretudo, à preocupação com a formação de um grupo ativo de intelectuais e artistas preocupado com a construção de um contexto de cultura literária. E os textos aí publicados tendem, na maioria, para a feição artística, na linha de um sentimentalismo romântico, por vezes eloquente, em sonetos e demais poemas das escritoras;  e na linha de estilo leve de crônicas alertas ao cotidiano da vida brasileira e, ao mesmo tempo, à literatura e ao feminismo internacional. Essa visão dupla causa, por vezes, contrastes curiosos. Em seção intitulada “Carta do Rio”, uma colaboradora lamenta, em tom solene, a morte do grande escritor francês Alphonse Daudet e, em seguida, comenta o aparecimento de uma “onça pintada lá para os lados do Irajá”…[41]

A publicação revela a existência de um público feminino não radical, que incorpora na revista colaboradores do sexo masculino que publicam aí textos literários e artigos de opinião. E revela também a existência de um grupo de intelectuais e artistas colaboradores que trazem dados de informação sobre a literatura feminina que se fazia nas várias regiões do Brasil da época, funcionando pois como um centro irradiador de informação a respeito da situação da literatura feminina da época.[42]

O tom da revista é o da literatura da belle-époque brasileira: leve, aparentemente descontraído, por vezes mais crítico e até polêmico, com certa ironia sutil. Os textos literários traduzem esse mesmo tom de época, situando-se entre um sentimentalismo de tradição romântica, um rigor formal de índole parnasiana e uma etereidade diáfana, típica da arte simbolista. No campo político das reivindicações, mostra a mulher entre os ‘novos’ rumos trazidos pelos movimentos emancipatórios liberais, com o abolicionismo e o republicanismo, mas atrelada ainda aos laços fortes de uma tradição burguesa calcada no exclusivismo dos seus papéis sociais domésticos.

Colaboram na revista tanto escritoras da segunda metade do século XIX, provenientes da era romântica, como Narcisa Amália, quanto escritoras que continuarão a escrever pelo início do século XX, até a segunda década, na fase do pré-modernismo brasileiro, como Júlia Lopes de Almeida.

Nesta segunda metade do século XIX, portanto, as mulheres ganham progressivamente espaço cultural, ainda que de modo um tanto acanhado e quase que sem repercussão nacional, sobretudo se se encontram em regiões afastadas da região sudeste (do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo). Além disso, a maioria das mulheres escritoras da época acumula à atividade da escrita, um trabalho didático, mais ou menos profissionalizado, e um trabalho jornalístico, na divulgação das propostas de teor feminista, mais ou menos politicamente engajado.

É o caso de, por exemplo, Maria Firmina dos Reis, professora de família humilde, que escandalizou cidade do interior do Estado quando fundou, em 1880, uma sala de aula mista, formada por meninos e meninas. Além de poesia e de romances que tratam da relação entre brancos e índios, publicou também um romance intitulado Úrsula, em 1859, em São Luís (do Maranhão). Se o enredo segue o padrão romântico, de amor, incesto e morte, o romance anuncia uma nova postura da mulher diante de problemas sociais, denunciando, de uma perspectiva abolicionista, os horrores do escravismo. Sob esse aspecto, a escritora avança ao defender certos valores, como por exemplo, a legitimidade da rebelião do filho bacharel em relação ao pai tirano; o seu projeto de se casar com uma jovem sem qualquer dote e a sua amizade por um escravo. E avança também quando atribui ao escravo uma forte personalidade.[43]

Persiste, no entanto, ao longo do século, a ideia preconceituosa de que à mulher não compete interferir nos assuntos de política. Narcisa Amália (de Oliveira Campos), por exemplo, que também foi professora, no Rio de Janeiro, e que publicou seus poemas em 1872, em volume intitulado Nebulosas, defendia ideias liberais democráticas, abolicionistas e republicanas, e por isso recebeu críticas severas. Guimarães Júnior, em carta a amigo, de 1873, referindo-se à escritora, afirma: “em suas composições políticas parece que deixa de lado a alma, para tomar a baioneta, cousa bem pouco feminina”. [44] Também C. Ferreira, no Correio do Brasil, do Rio de Janeiro, em 1872, já se pronunciara: “Mas perante a política, cantando as revoluções (…), endeusando as turbas, acho-a simplesmente fora de lugar (…) o melhor é deixar [o talento da ilustre dama] na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza”.[45]

Mas as mulheres consideradas como fora de lugar já haviam, a essa altura, definido uma linha de ocupação do seu espaço próprio. Sob tal perspectiva, Délia, pseudônimo da gaúcha Maria Benedita Bormann, defende as propostas da ‘nova mulher’, naquele momento em voga na Europa e Estados Unidos: sexualmente independente, sem aceitar o casamento como única solução de vida e felicidade, com oportunidades de estudo e de profissionalização, com projetos de satisfação dos próprios desejos. A reação é imediata, por parte de médicos e sanitaristas, por exemplo. Mas a escritora, também abolicionista, tem participação incisiva. E a sua personagem também. No romance Lésbia, a mulher, depois de se separar de marido tirano, escreve sua própria história: emerge a mulher escritora no repertório dos enredos dos romances feitos por mulheres .[46]

A BELLE-ÉPOQUE

No final do século XIX e no início do século XX, em pleno período da belle-époque, tendências de antes (romantismo, realismo, parnasianismo, naturalismo) e tendências mais recentes (simbolismo) misturam-se, num período caracterizado, sobretudo, pela ocorrência simultânea de vários ‘ismos’, sob novas configurações: neo-romantismo, neo-parnasianismo, neo-realismo, neo-simbolismo, pré-modernismo, como num ensaio de concomitância de tendências a serem mais tarde praticadas no corpo mesmo de um só discurso, no período do pós-modernismo.[47]

Encontram-se, pois, nesse período, romances de tradição romântica, na linha folhetinesca da “profusão episódica”, como é o caso de A Divorciada, da cearense Francisca Clotilde, professora, poeta e periodista.[48] Neste, a personagem principal se dilacera em sucessivos sofrimentos, vítima de marido crápula, cujos defeitos justificam a opção da mulher pelo divórcio, com o objetivo de se casar com o homem que ela realmente ama.

No entanto, mais do que a filiação a uma linhagem de folhetins, o que interessa neste romance é justamente a construção da personagem que, premida pela infelicidade, chega a admitir a ideia do divórcio, viabilizando a ruptura de uma linha de relação conjugal formal até então considerada indissolúvel. Mas a liberação do laço matrimonial ainda não é tão simples assim. Como resolver o conflito entre a tradição dos costumes – a união oficial,  e o desejo de nova união – a satisfação do desejo da mulher, casando-se com o homem digno do seu amor e que, por feliz coincidência, ela ama? A escritora encontra uma solução: o marido morre e ela, viúva, pode então casar-se com o homem amado.

Nessa linha de enredo traçado nos meandros das miudezas da vida familiar burguesa - na cidade grande ou no meio rural pitoresco - , desenvolve-se a prosa de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), em mais de 40 anos de atividade literária dedicados tanto à ficção quanto ao jornalismo.

Nas dezenas de livros publicados (entre romances, contos, crônicas, literatura infantil e pouco teatro) a escritora nos fala de um lugar cultural já conquistado pela mulher. O tema aparece já nos seus primeiros versos e no primeiro artigo publicado, em 1881, graças ao auxílio do pai, num jornal de Campinas, sobre uma artista de teatro. Mais acentuadamente, desenvolve-o a partir de 1886, quando publica seu primeiro livro, e ao longo de sua colaboração na imprensa, na revista A Semana, no Rio de Janeiro. Engaja-se, a certa altura, na luta pela emancipação da mulher integrando o grupo da Legião da Mulher Brasileira, liderado por Bertha Lutz. Sua atividade intelectual manifesta-se também no território da vida pessoal: casa-se com um escritor português, Filinto de Almeida; participa, com o marido, das reuniões para fundação da Academia Brasileira de Letras, embora o marido para lá entre e ela, não; escreve texto com o marido, usando o pseudônimo de “Filinto”; e terá filhos escritores: Afonso, Albano, poetas; e Margarida Lopes de Almeida, célebre declamadora.

Os romances, narrados com simplicidade e de modo agradável, seguem esquemas de enredo calcados no amor, por vezes trágico: é o caso de A viúva Simões, de 1897, em que duas mulheres, mãe e filha, amam o mesmo homem e enlouquecem. Noutros, aborda pontos que atestam sensibilidade diante da realidade brasileira: “histórias de nossa terra” e da vida rural na roça, por exemplo, ou a expulsão dos pobres das zonas mais centrais da cidade, no Rio de Janeiro.

A sua posição em relação aos papéis sociais da mulher é ambígua: de um lado, defende-a enquanto mãe e esposa[49]; de outro, investe no apoio a sua capacidade de trabalho e a sua força para gerir recursos que lhe garantam uma sobrevivência e autonomia financeira. Embora ciente da encruzilhada de opções da mulher – entre formas mais tradicionais e outras mais inovadoras de atuar profissionalmente - a escritora mais levanta que problematiza tais questões. Mostra, por exemplo, sensibilidade diante das diferenças e discriminações sociais, defendendo o abolicionismo. E realça o contraste cruel entre a riqueza da oligarquia endinheirada do café e a miséria dos escravos e colonos imigrantes, como no romance A família Medeiros, de 1892.

É o caso, também, do volume de crônicas intitulado Eles e Elas, publicado em 1910, significativo enquanto tradução de clima de época, na leveza de tom típico da segunda década do século. Neste, a narradora expõe a relação homem/mulher no território da ordem social brasileira, a partir de um recurso que usa com rara habilidade: o de monólogos e diálogos - recurso que permite a fala, direta, das mulheres e homens a respeito dos seus próprios problemas, na maioria, conjugais.

Partindo sempre de situações banalíssimas do cotidiano, surgem os detalhes de comportamento, em tom bem humorado, usados teatralmente, a garantirem a eficácia do texto como uma espécie de comédia de costumes. Neste contexto é que surge uma de suas personagens, a mulher consciente mas inoperante, que se reconhece como “boneca de carne e osso” e “mais nada”, mas sem força para se livrar dessa dependência. E mais: sem nem mesmo ter palavras para se fazer entender pelo marido…[50] Daí o tom duplo que estes contos/crônicas têm: aparentemente, ligeiros, quase levianos, mas, ao mesmo tempo, um tanto trágicos, já que, por detrás da fala conformada da mulher, que apenas se distrai, entre compras e chás, entre as curvas e ornamentos do cenário belle-époque, pesa uma certa amargura de situação mal resolvida.

O interesse dessa ‘visão de dois’ reside, ainda, no modo como o livro se desenvolve, como se fossem sketches que se sucedem, em diferentes situações, com alternância de pontos de vista: ora é a mulher, ora é o homem que fala. Mas paira a voz da autora-narradora, que usa o ridículo para se manifestar contra certos papéis sociais na relação homem/mulher. Um dos seus personagens, por exemplo, um homem, quando chega em casa e não acha a mulher... clama contra o feminismo. Mas, ao mesmo tempo, ele aparece em cena sendo ridicularizado pelo narrador, que bem poderia ser a mulher escritora Júlia, aí implícita.

A narradora parece seguir o preceito que anuncia logo no início do livro e como epígrafe: no livro o leitor encontrará mínimos detalhes insignificantes, mas a vida compõe-se de detalhes, como a hora se compõe de minutos. E parece praticar o “defeito” de um dos seus personagens: o de “esquadrinhar intenções e ideias através dos ditos mais simples ou das expressões mais banais...”.[51]

Através da simplicidade da narradora, reconhecida pela crítica, e do seu aparente “tom  menor”, desenha-se, pois, um diagnóstico de comportamento que se pauta por alegrias leves e também por crueldades e perversões, já que, segundo um dos personagens (e poderia afirmar uma vez mais, segundo a autora implícita) “a educação da mulher só tem servido para a criação de mártires ou de hipócritas”.[52]

Num sistema de constante liberdade vigiada, o homem tenta manter a mulher em zona de segurança. Como articulador da ordem, tenta controlar possíveis desvios. E, por sua vez, resguarda o seu próprio espaço de intimidade e privacidade. Como a experiência clandestina, tanto do homem quanto da mulher, não pode ser ventilada, nas diversas situações da relação, vence a moral da dissimulação necessária. Explicitamente, só resta a máscara. E para a mulher, ela paira, sob o invólucro de chapéus com véus e plumas, que sinalizam uma aparente e boa consciência e o dever também aparente do bem-estar social.

Já na poesia do início do século, pelo menos duas tendências se sobressaem. Na linha da tradição herdada do final do século XIX e que persistem, em alguns casos, até os anos 20 do século seguinte, persiste a poesia que prima pelo acabamento nos moldes parnasianos, na trilha de um dos líderes desse movimento: o poeta Olavo Bilac. É o caso da escritora Francisca Júlia, por exemplo, que mantém repertório temático de gosto greco-latino e cultiva sonetos imitados dos poetas-homens que considerava mestres. Até nos próprios títulos nota-se o aplacamento de ânsias e emoções, que são praticamente domesticadas em favor da objetividade e dos rigorosos compromissos formais. Um dos seus livros de poemas intitula-se Mármore, publicado em 1895; e outro, já de 1920, intitula-se Esfinges. Neste, um dos poemas intitula-se “Musa impassível”...

Mário de Andrade, na célebre série de artigos intitulados “Mestres do Passado” e publicados em São Paulo, no Jornal do Commercio, em 1921, ao criticar os parnasianos Olavo Bilac, Raimundo Correa, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho, inclui aí sua crítica a Francisca Júlia que, segundo o crítico, era didática e também “gelada”…e sacrificava a poesia à arte de “fazer belos versos”.[53]

Paralelamente, um outro tipo de poesia se instaura: a poesia erótica de Gilka Machado, que foi muito divulgada no seu tempo. Contrariamente a colegas suas que tentavam aplacar sensações e sentimentos e procuravam, ao fazer poesia, não se manifestar enquanto mulheres, Gilka Machado elege o desejo feminino como principal motivo de construção poética.

Aos 22 anos, inicia uma carreira poética marcada por dados de uma sensibilidade íntima da mulher, patente nos títulos de livros de poemas: Cristais partidos, de 1915; Estados de alma, de 1917; Mulher nua, de 1922; Meu glorioso pecado, de 1928. Nesses poemas, embora haja cuidados de teor parnasiano, a poeta adota soluções de teor simbolista, que funcionam como válvulas de escape de suas pulsões sensoriais. Os sentidos são cultivados até com certo requinte, regados a perfumes de sândalo, manacás, rosas, violetas e sempre-vivas. E a sensualidade ganha espaço, em poemas sobre temas até então proibidos: o “cio”, “a volúpia”, por exemplo.[54] Mas as sensações, de caráter liberador, são mobilizadas em poemas de ansiedade e de denúncia social do papel da mulher reprimida.

Além de reivindicar o direito de tomar decisões a respeito do próprio corpo e o direito de sua representação sob a forma poética, a poesia de Gilka Machado vai mais além: acusa os agentes opressores – os homens; e proclama a rejeição dessa forma reprimida de ser mulher.

A crítica, diante dessa escritora forte e decidida, adotou solução curiosa: defendeu a mulher- esposa e mãe. Aliás, Gilka Machado batizou a filha com o nome de Eros Volúsia, menina que haveria de se tornar bailarina famosa, com experimentações na linha da dança de motivos nacionais brasileiros. Assim como a crítica defendeu a mulher-esposa e mãe, separou-a da mulher-artista e  poeta.[55] Portanto, incapaz de admitir as duas em uma, dividiu a Gilka Machado em duas. Uma delas é a “poetisa de imaginação ardente, transpirando paixão carnal nos seus nervos”; e a outra é “a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães”.[56] A artista ainda não podia ser socialmente aceita como uma mulher que tem – e que manifesta – seus desejos.
 
 A ECLOSÃO DO MODERNISMO E O ROMANCE SOCIAL


Curiosamente, na década de 20, enquanto as mulheres se notabilizavam pela produção plástica, as escritoras continuavam a escrever como os homens de antes – adotando posturas de um romantismo, um parnasianismo ou um simbolismo tardio. Ou escreviam como mulheres, misturando tendências, mas desbravando um novo repertório temático, marcado pelo sensualismo vigoroso, quando, então, eram vistas com reservas por esse mesmo público.

Embora a literatura feita por mulheres nos anos 20 não tenha ainda sido suficientemente examinada, pode-se, até o presente momento, afirmar, com base nos dados de que dispomos, que a literatura feminina dos anos 20 não teve o mesmo vigor e divulgação que as artes plásticas produzidas pelas mulheres neste mesmo período. Anita Malfatti, em 1917, com suas desenhos e óleos de cunho expressionista/cubista, inaugurava o modernismo, chocando a opinião pública de concepção mais conservadora, de que nos ficou documento primoroso do ponto de vista do registro da recepção: o depoimento de Monteiro Lobato que, surpreso e desorientado, preferia devolver para um outro o que dessa arte recebera, perguntando, desconcertado, se tal pintura seria uma paranóia (loucura que levava o artista a perseguir o espectador) ou seria uma mistificação (fingimento do artista que dava como sendo bom o que era ruim).[57]

Se sua arte não agradou a Lobato, nem mesmo a alguns modernistas, como Tarsila do Amaral, já estava feita a primeira revolução nas artes plásticas brasileiras. A abdicação do figurativismo acadêmico cedia terreno às cores fortes, pinceladas largas, em expressões conturbadas de sofrimentos e anomalias mentais, num tipo de pintura e desenho que valorizava a energia, tanto  da musculatura da figura humana, quanto dos elementos que integravam paisagens.

E Tarsila do Amaral inaugurava, a partir de 1925, com seu parceiro e marido Oswald de Andrade, a arte pau-brasil, após célebre viagem passando Semana Santa em Minas Gerais e Carnaval no Rio de Janeiro. Mais tarde, por volta de 1928, o chamado “casal Tarsiwald” (Tarsila e Oswald de Andrade casaram-se em 1926), pratica a arte da antropofagia, inaugurada com quadro de Tarsila do Amaral, intitulado “Abaporu” (o homem que come carne humana), arte que teve manifesto, revista, muitos quadros, poemas, críticas e, nesse mesmo ano, Macunaíma, de Mário de Andrade.

Tanto na fase do pau-brasil quanto na fase da antropofagia, a arte de Tarsila do Amaral inventa um novo modo de olhar a realidade brasileira, pela volta às raízes da sua cultura, relendo toda uma história, retraduzindo-a mediante o desrecalque do que até então era considerado secundário e  indigno de entrar no rol dos repertórios plásticos: as cores rosa e azul, por exemplo. Cria um Brasil geometrizado, com cores e formas variadas, de teor infantil e alegre, na fase pau-brasil. Cria um Brasil onírico, com cores fortes e intensas, remetendo a lendas, mistérios e mitos populares, na fase da antropofagia.

Mas na literatura não houve uma manifestação das mulheres correspondente à participação das mulheres nas artes plásticas nesse momento de eclosão modernista. Nenhuma mulher participou, como escritora, da Semana de 22. E as que na época escreviam, na sua maioria filiavam-se a movimentos que provinham do século XIX. No entanto, o modo de participação de tais escritoras na vida cultural brasileira dos anos 20 ainda está para ser devidamente avaliado.

No final da década de 20 surge uma escritora que funcionará como uma espécie de símbolo da ponte entre o grupo modernista dos anos 20, esteticamente inovador, e o grupo dos escritores engajados politicamente que atuarão após a Revolução de 30, a qual põe fim à chamada República Velha dominada pela oligarquia cafeeira.

Patrícia Galvão, chamada Pagu, nos seus dezoito anos, foi recebida pelo casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Pagu seria a próxima mulher de Oswald de Andrade e iria escrever, em 1931, com pseudônimo de Mara Lobo, um romance intitulado Parque Industrial, publicado dois anos mais tarde: em 1933.[58]

Talvez a figura de Pagu, marcada pela militância política, tenha sido o seu traço mais importante, sobretudo com suas crônicas jornalísticas. Estas foram escritas logo depois do seu livro de poemas com arranjo gráfico inovador, o “Album de Pagu - Vida, Paixão e Morte”, de 1919. E ocuparam a coluna “A Mulher do Povo”, em jornal que publicou com Oswald de Andrade em 1931 e que depois de 8 números foi fechado pela polícia, após brigas entre pessoas da redação, em especial, Oswald de Andrade, e estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo. Mais tarde a militante Pagu será presa na França. E, de volta ao Brasil, passará cinco anos na cadeia, dos seus 25 aos 30 anos: de 1935 a 1940.

Pagu, neste seu romance dos anos 30 - portanto, dentro do clima literário do momento, que foi o do romance social - toma por fio do enredo a questão trabalhista e a causa revolucionária comunista. Os personagens classificam-se segundo adesão ou não à causa. E, consequentemente, segundo a classe social. Dessa forma, um deles representa a adesão firme: é morto pela polícia em pleno movimento grevista. Outro, da classe alta, abandona seu lugar social em favor do proletariado, mas é expulso do partido, acusado de trotskysta. Dentro dessa perspectiva é que surgem as classes de mulheres. E, sob esse aspecto, a narradora é implacável.

As da classe alta são “éguas do mesmo pedigree”. São elas “meia dúzia de casadas, divorciadas, semi-divorciadas, virgens, semi-virgens, sifilíticas, semi-sifilíticas. Mas de grande utilidade política. Boemiazinhas conhecendo Paris. Histéricas. Feitas mesmo para endoidecer militares desacostumados”.[59] Dentre estas, há mocinhas da Escola Normal, à espera dos futuros maridos. E há madames preocupadas apenas em experimentar vestidos nas modistas de renome, atitude tão inócua quanto a fala dita politizada de uma delas, que pergunta: “ - Como não hei de ser ‘comunista’, se sou ‘moderna’?[60] A crítica ao feminismo burguês incipiente e retrógrado é a marca por excelência da caracterização das personagens femininas no romance.[61]

Defende, pois, um feminismo dependente de reformas mais globais e ligadas a mudanças sociais baseadas em princípios do materialismo histórico, bandeira que carregou também nas colunas críticas “A Mulher do Povo”. Aí faz acusação veemente às mulheres fúteis, que ela chama de “baixa da alta”.[62]

A atitude de consciência política manifesta-se, inclusive, no comportamento afetivo de certa personagem, que, no entanto, deve ceder diante dos compromissos partidários e abdicar da relação amorosa, pondo à prova, assim, suas convicções políticas.

A romancista prima por praticar recursos que favorecem o dinamismo da narrativa, como frases brevíssimas em linguagem telegráfica, imagens-flashes fotográficas e reunidas por colagem, segundo os moldes do modernismo dos anos 20. Mas o romance se sobressai mais pelo seu tom de firme inconformismo, buscando novos caminhos de ação prática e evitando o perigo da simples e passiva constatação da vitimização da mulher e do homem, agora, unidos ou enquanto operários, ou enquanto militantes, diante das circunstâncias nefastas de desigualdade social.

Este também é o eixo central do romance escrito por Rachel de Queiroz em 1937, intitulado Caminho de pedras. Depois de se dedicar ao romance nordestino, abordando o tema da famosa seca de 1915, no romance por isso intitulado O quinze, de 1930, a escritora conta a história de mulher que escolhe o seu companheiro: abandona o marido que ela não ama e se une a um outro homem, enfrentando os preconceitos que tal decisão provoca.

Fica, do romance, uma especial sensibilidade da narradora em relação à personagem feminina, que aparece representada na sua integridade de caráter, marcada pela firmeza e pertinácia nos caminhos políticos e afetivos. O equilíbrio manifesta-se no percurso da ação, entre o comportamento individual e coletivo. Os fatos da intimidade, que afloram e se expandem, revertem em ações práticas de satisfação, equilibrando-se com os da vida social, que se justificam na prática da militância política. De um lado, a paixão. De outro, a revolução. E os dois, unidos nesta dupla e harmoniosa causa. Concluindo: diria que houve, nesse romance, por parte da sua autora, Raquel, a construção de uma feliz coincidência: o homem amado ser também o colega político...até que um final infeliz os separe.

Nesta história, parece haver muito da história da própria autora, que, com seus 27 anos de idade, já havia passado por boa literatura com seu célebre O Quinze, e já havia passado pelo Partido Comunista, de 1931 a 1933; e é presa como trotskysta neste mesmo ano de 1937, justamente no ano da publicação deste romance, o Caminho de pedras.

Mas se existe uma contenção estrutural que assegura permanente equilíbrio entre forças individuais e sociais, tônica dos romances da época, existe também uma argúcia e respeito da autora na construção de estados da intimidade. O engajamento político não reduziu os limites do horizonte das personagens; antes parece haver contribuído para a melhor apreensão da natureza dos sentimentos, como o da paixão, representado na sua complexidade, e acarretando, por vezes, reações insuspeitadas. É o caso do momento em que a personagem feminina, fugindo da estreiteza da vida cotidiana infeliz e mesquinha, se expande pelo imaginário de histórias de mulheres “heróicas, livres e valentes”, embriagada por tais “possibilidades de libertação”.[63]. É o caso também de momentos de sutileza, em que se espera tudo e, aparentemente, nada acontece a não ser o fluxo irremediável do sentimento, simplesmente acontecendo, como se fosse um crime: “essa força invencível arrastando, fazendo agir, e essa lucidez melancólica e impotente constatando”.[64]

Foi justamente esta capacidade de perceber nuances de um comportamento feminino apaixonado que se vê abandonar às suas forças - o que considero, tal como aqui foi construído, uma qualidade - , foi justamente este fato que a crítica não reconheceu, ao elogiar seus valores de escritora. Olívio Montenegro, por exemplo, e justamente no “Prefácio” deste livro, atribui o valor da escritora ao fato de, em nenhum de seus romances, deixar “trair (manifestar) o sentimentalismo do seu sexo”, pois o que a distingue, afirma ele, é ser “uma personalidade viril”...[65]

Uma das boas razões que encontra para elogiar os livros - e talvez tivesse razões para isso - é que a escritora, além de ser homem na escrita, não “se detém tampouco em nenhuma fantasia.” Parece não haver ele lido o trecho em que existe a entrega da personagem feminina principal a um sonho de libertação. E não haveria como executar, na prática, o projeto de libertação do caminho de pedras - individual e coletivo - sem se deixar levar por estes caminhos de areia do imaginário, sacudindo, de vez em quando, os sapatos, na feliz companhia do amante camarada.

Os romances de Lúcia Miguel Pereira, ainda nos anos 30, não têm a tônica da mudança social, com traços de invenção modernista, mas radical nas colocações - como o de Pagu-Mara Lobo. Nem se trata de narrativa mais tradicional, sensível às pulsões da fantasia, como o de Rachel de Queiroz. Centra-se, de acordo com a linhagem dos romances do século passado, no fio das questões da sociedade burguesa, nas suas relações dentro do núcleo familiar. Mantém-se estritamente dentro destas células da família, abrindo apenas este circuito, tenuamente, em função de um ou outro acontecimento, desde que não comprometa as fronteiras internas deste território tão bem delimitado.

Nenhum dos seus três romances publicados nesta década foge a essa regra: Maria Luiza[66], de 1933, conta a história da mulher casada, que comete adultério, sente-se culpada e se refugia na religião. No romance Em Surdina[67], também de 1933, a personagem feminina principal não se casa porque não enfrenta a libertação da autoridade do pai nem reconhece, como válidos, os valores do casamento - como também não se contenta com os valores de solteira com os quais tem de se defrontar. No romance Amanhecer[68], de 1938, a personagem feminina nem se casa, como no primeiro romance; nem fica solteira, como no segundo. Junta-se a um amigo, mas também não é feliz. Assim sendo, nem o casamento, ainda que com adultério, nem o celibato, nem o concubinato, trazem a felicidade para a mulher. Apenas no último romance, de 1954, Cabra-Cega[69], a  personagem experimenta um momento de felicidade, quando tem caso com um sujeito que mal conhece e constrói, assim, o seu “segredo”. (Clarice Lispector diria: a sua “felicidade clandestina”.) Que dura, aliás, muito pouco.

A estrutura romanesca traduz, nesse universo fechado e severo, os resultados de uma experiência de vida da autora que se desenvolveu em ambiente de formação católica acentuada, ligada ao grupo Dom Vital, no Rio de Janeiro, a que se somariam outras experiências: a de mulher casada com historiador de renome, Otávio Tarquínio de Sousa; a de mulher de grande atividade intelectual, também funcionária da Secretaria de Educação e Cultura e da Biblioteca de Educação, integrante da comissão Machado de Assis, encarregada da publicação das obras desse autor; a de biógrafa - de Machado de Assis e de Gonçalves Dias; a de tradutora, ensaísta, jornalista, e, sobretudo, crítica.

Os romances trazem as marcas dessa formação. A estrutura do primeiro deles, Maria Luiza, inclui digressões de ordem religiosa, filosófica, moral, voltadas, na maioria, para as fases da experiência da personagem que caminha do dever ao prazer, e do prazer, novamente ao dever, passando, ao final, por toda sorte de mortificações, até a confissão e absolvição. E se a linguagem é bem organizada, sem grandes lances imagísticos, restringe-se ao andamento episódico, com amarração um tanto frouxa entre alguns capítulos. E é no segundo, Em Surdina, que a narradora desenvolve uma verdadeira inquisição a respeito do que é a vida de mulher carioca, com papéis sociais bem demarcados.

Anuncia, pois, e critica, as várias opções de vida da mulher: se casada, escrava, dependente financeiramente e mentirosa; ou casada e mãe, verdadeira criadeira, decadente fisicamente; ou ainda casada e separada tragicamente;  ou casada sem afinidade com o marido e infiel a ele. Deste emaranhado de funções, só a solteira se salva, conservando certa dignidade - ainda que sem muita alegria. Este retrato de família brasileira carrega um substrato moralista de crítica à avareza, ao hedonismo, ao adultério, aos prazeres exagerados, ao egoísmo, ao casamento sob variadas formas, ao comportamento estereotipado. E defende a liberdade ainda que relativa e a criação literária.

A autora denuncia, pois, a pressão das convenções de família, a submissão da mulher diante de tal peso e os vícios de uma família aparentemente bem comportada. Não há satisfação pessoal nessas relações convencionais. Simplesmente porque tais relações são convencionais, ou seja, a experiência aparece filtrada pela barreira das regras movidas a hipocrisia de uma sociedade que perdeu o sentido da experiência de sua própria autenticidade. Perdeu-se a própria identidade primitiva, única garantia possível de sobrevivência - diria - criativa e, assim, original.

A constatação dessa perda de identidade e a sua problematização, pela prática de uma linguagem literária, é o que a poesia de Cecília Meireles e a prosa de Clarice Lispector efetivamente executam, nas décadas subsequentes, a partir da década de 40.
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NOTAS

[34] Dulcília Schroeder Buitoni, Imprensa Feminina. São Paulo, Ática, 1986. Cf. Dulcília Schroeder Buitoni, Mulher de papel. A representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo, Loyola, 1981.

[35] Dulcília Schroeder Buitoni, ob. cit., p. 38.

[36] June E. Hahmer, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 35.

[37] O Sexo Feminino foi fundado pela professora Francisca Senhorinha da Motta Diniz, em Campanha da Princesa, em Minas Gerais. Cf. June E. Hahmer, ob. cit., p. 52.

[38] A Mensageira. Revista literária dedicada à mulher brazileira, Diretora: Presciliana Duarte de Almeida. Edição fac-similar. 2 v. Comentários: Zuleika Alambert. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado,  Secretaria de Estado da Cultura, 1987.

[39] J. Vieira de Almeida, “Chronica omnimoda”. A Mensageira, ano I, n. 3, 15 nov. 1897, v. 1, p. 33.

[40] Maria Amália Vaz de Carvalho, “A mulher do futuro”. A Mensageira, ano II, n. 31, 31 ago. 1899, v. II, p. 139.

[41] Maria Clara da Cunha Santos, “Carta do Rio”. A Mensageira, ano I, n. 6, 30 dez. 1897, v. I, p. 82-83.
Irajá é bairro da cidade do Rio de Janeiro.

[42] Interessante observar a menção à então contemporânea produção literária feminina, pela referência a escritoras brasileiras sob a forma de notícias, num relato ‘vivo’, em tom de crônica, da vida cotidiana literária brasileira. É o caso, por exemplo, do artigo de Pelayo Serrano (Nelson Senna), “Intelectualidade feminina brasileira”, publicado em: A Mensageira, ano I, n. 7, 15 jan. 1898, v. I, p. 103-106. As resenhas de livros escritos por mulheres e as referências a obras recebidas pela redação ajudam a compor um perfil de contexto de literatura feita por mulheres na época.

[43] Cf. Norma Telles, “Escritoras, escritas, escrituras”. Em: Mary Del Priore (Org.), História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo, Contexto/Editora UNESP, 1997, p. 414. Ver também: Norma Telles, Encantações: Escritoras e imaginação literária no Brasil do Século XIX. São Paulo, NAT Editora, 1998.

[44] Cf. Norma Telles, “Escritoras, escritas, escrituras”, em Mary Del Priore (Org.), ob. cit., p. 423.

[45] Cf. Norma Telles, ob. cit., p. 422.

[46] Cf. Norma Telles, ob. cit., p. 431-435.

[47] Para o estudo da cultura literária da belle-époque, sobretudo no que se refere à participação das mulheres nos salões literários, ver: Jeffrey D. Needell, Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

[48] Francisca Clotilde, A Divorciada. Fortaleza, 1902. Dele há edição recente: Francisca Clotilde, A Divorciada. Romance. 2. ed. atualizada, acrescida de estudos críticos de Otacílio Colares, Angela Barros Leal, Nádia Battella Gotlib. Ceará, Terra Bárbara, 1996.

[49] É o caso do manual em que dá conselhos às noivas, publicado com o título de O livro das noivas em 1896.

[50] Julia Lopes de Almeida, “Cada vez que…”. Em: Eles e Elas. 2. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1922, p. 21-28.

[51] Julia Lopes de Almeida, ob. cit., p.185.

[52] Julia Lopes de Almeida, ob. cit., p. 169.

[53] Mário de Andrade, “Mestres do Passado”, em: Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 4. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, p. 259-266.

[54] Gilka Machado, “Nocturno VIII”. Em: Poesias (1915-1917). Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918, p. 13. (Esta edição reúne Cristais Partidos e Estados de alma).

[55] Uma leitura da fortuna crítica de Gilka Machado desenvolvo em: Nádia Battella Gotlib, “Com dona Gilka Machado, Eros pede a palavra. (Poesia erótica feminina brasileira nos inícios do século XX).” Polímica: Revista de crítica e criação. São Paulo, n. 4, 1982, p. 23-47. Ver: Sylvia Paixão, A fala-a-menos: A repressão do desejo na poesia feminina. Rio de Janeiro, Númen, 1991.

[56] Humberto de Campos, Crítica. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W. M. Jackson, 1945, p. 400.

[57] Monteiro Lobado, “A propósito da Exposição Malfatti”. O Estado de S. Paulo, 20 dez. 1917. O artigo, que ficaria conhecido através de um outro título, “Paranóia ou Mistificação?”, encontra-se transcrito em: Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro. I – Antecedentes da Semana de arte Moderna. 4. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, p. 52-56.

[58] Mara Lobo (Patrícia Galvão), Parque Industrial. São Paulo, 1933.

[59] Idem, ibidem, p. 86.

[60] Idem, ibidem, p. 38.

[61] Cf. Nádia Battella Gotlib, “A mulher artista, a mulher arteira: Pagu, ou uma certa poética política dos anos 30”. Belo Horizonte, Cadernos do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher/ UFMG, n. 6, nov. 1988, p. 63-74.

[62] Pagu, “A Baixa da Alta”. “O Homem do Povo” n. 2, 28 mar. 1931. In Augusto de Campos (Org.), ob. cit., p.82.

[63] Rachel de Queiroz, Caminho de Pedras. 7. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979, p.45.

[64] Rachel de Queiroz, ob. cit., p. 69.

[65] Olívio Monenegro, Prefácio. In: Rachel de Queiroz, ob.cit., p.VIII.

[66] Lúcia Miguel Pereira, Maria Luiza. Rio de Janeiro, Schmidt, 1933.

[67] Lúcia Miguel Pereira, Em Surdina. 3. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1979.

[68] Lúcia Miguel Pereira, Amanhecer. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1938.

[69] Lúcia Miguel Pereira, Cabra-Cega. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1954.

 
Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012