sábado, 10 de maio de 2014

Marcelo Spalding (Como criar cenas)

Você pode pensar em cada cena como no cinema ou no teatro, já que o próprio conceito de cena vem do teatro. Enquanto a câmera está no mesmo ambiente, com os mesmos personagens e seguindo um tempo linear, temos uma cena.

Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhe para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel.

A menina não se atreveu a levantar os olhos, mas sentiu os olhares assustados prenderem-se a ela, enquanto ia puxando as palavras e exalando-as. Uma voz tocava as notas dentro dela. Este é o seu acordeão, dizia.

O som da página virada cortou-os ao meio.

Liesel continuou a ler. (...)

Todos esperavam o chão estremecer.

Essa ainda era uma realidade imutável, mas agora, ao menos, eles estavam distraídos com o menino e o livro. Um dos garotos menores pensou em chorar de novo, mas, nesse momento, Liesel parou e imitou seu papai, ou até Rudy, aliás. Deu-lhe uma piscadela e recomeçou.

Só quando as sirenes tornaram a se infiltrar no porão foi que alguém a interrompeu.

- Estamos salvos - disse o Sr. Jenson.

- Psiu! - fez Frau Holtzapfel.

Liesel ergueu os olhos.

- Só faltam dois parágrafos para o fim do capítulo - disse, e continuou a ler, sem fanfarra nem aumento da velocidade. Apenas as palavras.

(trecho de A Menina que Roubava Livros, de Markus Zusak)

O diálogo, claro, é um aliado importante para manter a cena, mas evite abusar do diálogo, o bom escritor saberá dosar narrativa com diálogo, lançando mão das falas apenas quando for essencial.

Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã de Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o coração.

Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguesias.

- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! Dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!

- Muita pobreza, mas muita preguiça considerou duramente o padre Natário. - Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas. - Súcia de mariolas, resumiu.

(trecho de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós)

Vale lembrar que na literatura, diferentemente do vídeo, o escritor pode mesclar a narrativa com reflexões dos personagens, descrições do cenário, comentários próprios. Até os pensamentos de um cão, como no genial Machado de Assis, podem ajudar na composição da cena:

Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto, e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa, depois outras idéias.

(trecho de Quincas Borba, de Machado de Assis)

É possível que cada cena ocupe um parágrafo próprio (ou vários, dependendo de sua extensão e importância na trama).

Evite várias cenas no mesmo parágrafo. Evite, também, mudar de ponto de vista narrativo em meio a uma cena. Se o fizer, deixe isso claro para o leitor, talvez trocando o parágrafo.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4052/como-criar-cenas

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 10


Machado de Assis (Entre Duas Datas)

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta para cavar um abismo entre duas pessoas.

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo.

Era filha de um coronel.

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

E é agora, em 1862, estando ele tranquilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

Poupo às pessoas que me leem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

— Nunca mais a viste? — Nunca.

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande? — Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

— À toa? repetiu Duarte rindo.

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

— Por quê? — A turvação de ontem...

— Que turvação? — Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado.

Presentemente...

Daí a dias, estando com a prima — a intermediária antiga das notícias —, contou-lhe o caso do Ginásio.

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

— Em todo caso, não é a mesma.

— Por quê? Está muito diferente? — Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

— Em Jaguarão? — Não; depois da morte do marido...

— Enviuvou? — Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas.

Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem.

Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a incriminemos por um pecado tão comum.

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

— Querem ver que você está querendo recordar-se... Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento.

Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças? — As mesmas.

— Não mudou nada? — Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

— Usa suíças? — Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominou-se e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles: — O Rio Grande é bonito? — Muito: gosto muito de Porto Alegre.

— Parece que há muito frio? — Muito.

E depois, ela: — Tem tido bons cantores por cá? — Temos tido.

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-se-ia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los.

Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela.

Duas pessoas que se veem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro.

Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.“ pensou ele.

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco.

Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas.

Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

— Vejo que fiz mal em falar a você, redarguiu ele rindo.

— Por quê? — Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a frequentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

“Nem parece a mesma,” disse ele consigo.

Outra coisa que ele lhe notou — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar.

Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal.

Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar? — Nada.

— Então...

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

— Pois só mudada; mas está mudada.

— Mudada...

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha os mesmos característicos da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 2

A LEVIANA
Souvent femme varie,
Bien fol est qui s’y fie.
- Francisco I


És engraçada e formosa
Como a rosa,
Como a rosa em mês d’Abril;
És como a nuvem doirada
Deslizada,
Deslizada em céus d’anil.
Tu és vária e melindrosa,
Qual formosa
Borboleta num jardim,
Que as flores todas afaga,
E divaga
Em devaneio sem fim.
És pura, como uma estrela
Doce e bela,
Que treme incerta no mar:
Mostras nos olhos tua alma
Terna e calma,
Como a luz d’almo luar.
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etérea mansão.
Assim, beijar-te receio,
Contra o seio
Eu tremo de te apertar:
Pois me parece que um beijo
É sobejo
Para o teu corpo quebrar.
Mas não digas que és só minha!
Passa asinha
A vida, como a ventura;
Que te não vejam brincando,
E folgando
Sobre a minha sepultura.
Tal os sepulcros colora
Bela aurora
De fulgores radiante;
Tal a vaga mariposa
Brinca e pousa
Dum cadáver no semblante.

A MINHA MUSA

Gratia, Musa, tibi; nam tu solattia praebes.
- Ovídio


Minha Musa não é como ninfa
Que se eleva das águas - gentil -
Co’um sorriso nos lábios mimosos,
Com requebros, com ar senhoril.
Nem lhe pousa nas faces redondas
Dos fagueiros anelos a cor;
Nesta terra não tem uma esp’rança,
Nesta terra não tem um amor.
Como fada de meigos encantos,
Não habita um palácio encantado,
Quer em meio de matas sombrias,
Quer à beira do mar levantado.
Não tem ela uma senda florida,
De perfumes, de flores bem cheia,
Onde vague com passos incertos,
Quando o céu de luzeiros se arreia.

Não é como a de Horácio a minha Musa;
Nos soberbos alpendres dos Senhores
Não é que ela reside;
Ao banquete do grande em lauta mesa,
Onde gira o falerno em taças d’oiro,
Não é que ela preside.
Ela ama a solidão, ama o silêncio,
Ama o prado florido, a selva umbrosa
E da rola o carpir.
Ela ama a viração da tarde amena,
O sussurro das águas, os acentos
De profundo sentir.
D’Anacreonte o gênio prazenteiro,
Que de flores cingia a fronte calva
Em brilhante festim,
Tomando inspirações à doce amada,
Que leda lh’enflorava a ebúrnea lira;
De que me serve, a mim?
Canções que a turba nutre, inspira, exalta
Nas cordas magoadas me não pousam
Da lira de marfim.
Correm meus dias, lacrimosos, tristes,
Como a noite que estende as negras asas
Por céu negro e sem fim.
É triste a minha Musa, como é triste
O sincero verter d’amargo pranto
D’órfã singela;
E triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas folhas do arvoredo
Por noite bela.
É triste como o som que o sino ao longe
Vai perder na extensão d’ameno prado
Da tarde no cair,
Quando nasce o silêncio involto em trevas,
Quando os astros derramam sobre a terra
Merencório luzir.
Ela então, sem destino, erra por vales,
Erra por altos montes, onde a enxada
Fundo e fundo cavou;
E pára; perto, jovial pastora
Cantando passa - e ela cisma ainda
Depois que esta passou.
Além - da choça humilde s’ergue o fumo
Que em risonha espiral se eleva às nuvens
Da noite entre os vapores;
Muge solto o rebanho; e lento o passo,
Cantando em voz sonora, porém baixa,
Vêm andando os pastores.
Outras vezes também, no cemitério,
Incerta volve o passo, soletrando
Recordações da vida;
Roça o negro cipreste, calca o musgo,
Que o tempo fez brotar por entre as fendas
Da pedra carcomida.
Então corre o meu pranto muito e muito
Sobre as úmidas cordas da minha Harpa,
Que não ressoam;
Não choro os mortos, não; choro os meus dias
Tão sentidos, tão longos, tão amargos,
Que em vão se escoam.
Nesse pobre cemitério
Quem já me dera um lugar!
Esta vida mal vivida
Quem já ma dera acabar!
Tenho inveja ao pegureiro,
Da pastora invejo a vida,
Invejo o sono dos mortos
Sob a laje carcomida.
Se qual pegão tormentoso,
O sopro da desventura
Vai bater potente à porta
De sumida sepultura:
Uma voz não lhe responde,
Não lhe responde um gemido,
Não lhe responde urna prece,
Um ai - do peito sentido.
Já não têm voz com que falem,
Já não têm que padecer;
No passar da vida à morte
Foi seu extremo sofrer.
Que lh’importa a desventura?
Ela passou, qual gemido
Da brisa em meio da mata
De verde alecrim florido.
Quem me dera ser como eles!
Quem me dera descansar!
Nesse pobre cemitério
Quem me dera o meu lugar,
E co’os sons das Harpas d’anjos
Da minha Harpa os sons casar!

DESEJO

E poi morir.
- Metastásio


Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 3


A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Cecília Meireles, por sua qualidade poética, marcou a história de nossa poesia no século XX. A sua poesia mostra cuidado formal rigoroso. Os versos bem medidos têm musicalidade, com nuances de ritmos e cadências, e plasticidade, em imagens que se distribuem com variedade cromática de tons pastéis. A delicadeza, que gera leveza nos gestos e finos traços, pode ser uma tônica desta poesia. Como resultado final, paira o equilíbrio formal, com simetria de quantidades, em que nada parece sobrar ou faltar. A etereidade de “nuvens” e “mares” é um dos temas centrais de tais versos. Sem ambições de se fixar, e, assim, cristalizar-se, o etéreo flui de modo suave, encadeia-se em sequência de espelhamentos, em busca de uma imagem que está sempre mais além - “face perdida” - que se lhe escapa[70].

Cecília Meireles “paira, simplesmente”, segundo afirmação do crítico Amadeu Amaral[71]. E paira tanto no território da produção, em que a própria autora se instala enquanto voz poética, quanto no da recepção pelo público leitor, ocupando um lugar de realce na literatura brasileira.

Embora Cecília Meireles estreie em 1919, com Espectros, seguido de Nunca Mais e Poema dos Poemas, de 1923, e ainda de Baladas para El-Rei, de 1925, em que tendências simbolistas e traços parnasianos misturam-se, só vai considerar como obra sua os poemas a partir de 1939, com Viagem. Mas desde o início de sua produção, pratica uma poesia de fina sensibilidade e delicadeza.

E o conjunto de sua produção mostra tendências heterogêneas, como bem observou o crítico Mário de Andrade, em referência ao livro Viagem, premiado pela Academia Brasileira de Letras. De fato, se ocorre aí a heterogeneidade que o crítico traduziu pela imagem do "bordado búlgaro", reconhece também outras qualidades que a esta se somam: os "requintes de pensamento refinado" e a “simplicidade popularesca”, por exemplo.[72]

Como resultado da primeira, cria uma poesia que, ainda segundo Mário de Andrade, “parece totalmente sem assunto".[73] E que se pauta por uma preocupação que atravessa a sua produção poética, a de experimentar "femininamente, além das  lágrimas, a angustiada volúpia de ter um nome”, usando, para atingir tal meta, uma técnica "energicamente adequada". E dando vazão a uma "alma grave e modesta, bastante desencantada, simples e estranha ao mesmo tempo, profundamente vivida. E silenciosa".[74] Daí talvez a constante do tema do auto-retrato, em imagens que traduzem a temporariedade dos fatos e sua fluidez em fluxo vital, transfigurando-se em águas, ares e mares.

Da segunda vertente de sua poesia, a do seu pendor popular, surge a marca da musicalidade em sons que constroem canções e serenatas. Cultivando um lirismo de tradição medieval, a escritora exercita a oralidade em linguagem límpida. E dessa pesquisa, advém o seu Romanceiro da Inconfidência, de 1953, quando sua poesia ganha ainda nova dimensão, mediante a construção do retrato nacional do país em momento de crise e de luta, mediante defesa de reivindicações de caráter político que alimentaram a Inconfidência Mineira.

Nesse trabalho ganha vigor a autora poeta e também pesquisadora dos Autos da Devassa, estudiosa do folclore brasileiro, enquanto professora da hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (na época Universidade do Distrito Federal), onde lecionou Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Crítica Literária.

O poema histórico monta-se em quadros sucessivos mediante colagem de cenas e retratos de personagens envolvidos no movimento pela nossa independência e autonomia, em obra de maturidade poética, em que o lirismo social pisa firme o chão da história. E assume o tom de denúncia, a partir do compromisso de luta. Acusa, entre tantos erros, o defeito da corrupção pelo ouro. E o da injustiça.

O conjunto da obra poética de Cecília Meireles caracteriza-se, pois, por uma dimensão individual – a mulher buscando sua imagem – e também por uma experiência de dimensão coletiva – no campo político das reivindicações de caráter libertador.

Seguindo a trilha dessa primeira vertente da poesia de Cecília Meireles, muitas outras escritoras vão procurar, no espaço da representação artística da literatura, a sua identidade de mulher. Entre elas, Adélia Prado, que se reconhece “desdobrável” e que, na sua “bagagem” drummondiana, incorpora um cotidiano em “dor sem amargura” - expressão que, a meu ver, já bem traduz o clima poético de sua obra.[75] Instala-se à vontade neste ponto de encruzilhada de múltiplos papéis, que exigem versatilidade e até acrobacia. Assume atribuições que vai simplesmente incorporando, sem rigorosas triagens eletivas nem exigências constrangedoras. Adere a si, de bom grado e de bom humor.

Em poesia plantada no cotidiano mineiro de Divinópolis a mulher come “arroz, feijão-rouxinho, molho de batatinhas”, tem o Zé, bonito, do lado, tem filhos e compadres, tem fé, que dá certeza e tem Deus, que dá tudo. Talvez por isso, rodeada de tanta graça, seja poesia que mais responde que pergunta.

Parece haver uma gradação neste percurso poético: da sensação ávida, perturbadora, de Gilka Machado, até a suavidade serena, indagadora, de Cecília Meireles, e desta, até a confiança firme e inabalável da fé, em Adélia Prado, em universo de certezas que, no entanto, se desfaz...em algumas outras escritoras contemporâneas.

É o caso de Ana Cristina César, que habita um ponto extremo da contundência e da energia problematizadora, não só nos seus poemas, mas nos seus textos teóricos e críticos, todos de caráter polêmico, de muita erudição, de aguda curiosidade, de rara lucidez. Dificilmente um mundo poético se encontra tão alimentado pelo próprio universo das imagens da arte, da palavra, do livro, da experiência artística, enfim. E nesse mundo marcado pelos tempos do pós-modernismo, nele tudo cabe e nada, finalmente, é verdade: lugares de vários países, citações de vários autores, peças de vários guarda-roupas, num misto de magicista e de camelô ambulante de cidade grande.[76]

Num mural virtual de opções, cujo suporte é sempre a sensação intensa e desesperada, as imagens se somam, por colagens, citações, remissões, numa espécie de clicagem, ancorada em duas propostas de antiga linhagem feminina: o diário íntimo - ficcional, sim, mas quem sabe também autobiográfico? - em que o eu se encontra diante de si mesmo; e a correspondência ou carta, em que o eu se dirige a um outro supostamente ausente. Qual a razão dessa desenfreada interlocução, no sentido de sempre querer mobilizar alguém? De sempre querer atingir esse ponto, do eu, do outro, esticando a malha poética até as últimas consequências? E tal ponto extremo lhe chega, mesmo, sob a forma do suicídio.

A PROSA DE CLARICE LISPECTOR

Antecedendo a contundência extrema de Ana Cristina César, Clarice Lispector tenta também levar às últimas consequências a capacidade de resistência da linguagem, numa arte ‘suicida’. Desmancha a realidade feita, assim, de capas, de invólucros, de máscaras. E reconstrói, do caos primitivo, ou dos cacos de um caos primitivo, restos de uma civilização falida, um jeito novo de ver, ao  mesmo tempo enviesado, perscrutrador, dirigido a profundidades remotas e arcaicas, mas reconhecidas na realidade de superfície em que se desnudam, ou simplesmente aparecem, por um olhar também loucamente direto.

Sob este aspecto, a literatura de Clarice pode ser considerada como um corajoso processo de desconstrução, pela via da linguagem, ela também, a todo momento, questionada, inserindo-se, assim, na fértil linhagem de literatura metalinguística do nosso século. A novidade dessa literatura reside, talvez, no fato de submeter o discurso a essa prova de resistência, elasticizando o movimento de tensão até um ponto determinado que, no seu caso, é o do encontro de si consigo mesmo, que é, ao mesmo tempo, um outro, que é o outro também social, e que, a certa altura, se transfigura em nada.

No decorrer do percurso, a certa altura, sob a figura do paradoxo, Inferno e Paraíso se equivalem. E por um instante, não há senão silêncio. Aí, “a vida se me é”, como afirma em A Paixão segundo G.H.[77], após os difíceis passos de uma via-sacra que levam a personagem a se aproximar do pior e melhor de si mesma - a barata - até se reconhecer aí como essa matéria reles, arcaica, matéria viva pulsando.

O jogo de alteridade, praticado sob diferentes configurações em quase toda a obra de Clarice Lispector, desde os primeiros contos dos anos 40, encontra uma equivalência metafórica de caráter social no seu último romance publicado em vida, A Hora da Estrela.[78] Neste, o “drama em linguagem” - para usar expressão do crítico Benedito Nunes[79] - , faz-se pelo desdobramento já típico dessa autora: o indivíduo que, ao reconhecer-se como tal, aparece já desdobrável num eu e num outro, cada um desdobrando-se, por si, em mais dois, e assim sucessivamente.

Dessa forma, Clarice assina seu nome de autora sobre os treze títulos que dá ao romance. E cria um outro, Rodrigo, que irá escrever o romance, criando, por sua vez, uma outra, a Macabéa, que tem nome de origem judia e é nordestina pobre - como, aliás, a própria Clarice. A experiência individual - a mulher em busca de seu outro criando esse outro em que se espelha - faz-se em vários níveis: autora que vira narrador que vira personagem de si mesma, personagem que também é o narrador e também é a autora.

Numa das cenas que representam tal acoplagem o escritor Rodrigo vê a nordestina ao espelho e “no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos”.[80] Termo eficaz, este, o da intertroca, para traduzir a montagem dessa construção de imagens/personagens que se desdobram ao longo da obra que se faz.

Numa outra cena é Macabéa que, após receber a notícia de que seria despedida do emprego, vai ao banheiro “para ficar sozinha porque estava toda atordoada” e lá se vê jogada em duplo, enxergando-se ora como ‘ninguém’, ora com a ‘deformação’: “Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem”.[81]

O espelhamento de eus faz-se não só no campo das classes sociais, mas no de gêneros e de culturas. A autora Clarice é a que supomos que conhecemos: muito pobre, enquanto imigrante judia passando fome no nordeste, até os seus doze anos - ou vivendo também miseravelmente quando chega ao Rio de Janeiro, onde vive dos 12 aos 23; ou não digo rica, mas de classe alta, enquanto casada com diplomata, vivendo no exterior, primeiro na Itália, depois na Suíça, Inglaterra, Estados Unidos. E é a Clarice novamente bem pobre, mas sobrevivendo por atividade artística, precisando escrever crônicas para jornal e livro por encomenda para cuidar dos dois filhos com quem vive depois da separação do marido, já de volta ao Rio de Janeiro. Passa, pois, por três situações de vida - econômicas e culturais - diferentes. Foi as três. E carregou, pelos menos, as três, ao escrever este seu último romance publicado, no seu último ano de vida.

O narrador Rodrigo também vive a pressão de três classes sociais: é o escritor que é estranho para a classe alta, temido pela média e simplesmente desconhecido pela baixa. Afirma esse narrador Rodrigo a respeito de si mesmo: “A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”.[82]

E Macabéa é tão só a classe baixa, miserável, no seu generalizado ‘nada ter’, numa sociedade marcada pelos bens de consumo. E é ‘sem classe’, se considerada do ponto-de-vista do que ela encarna: milagre de vida inexplicável desde que, apesar de tudo, sobrevive, inconsciente, como verdade de um não-saber, na insignificância e no anonimato.

Paralelamente às classes, as respectivas culturas: a escritora Clarice e o escritor Rodrigo têm o bem cultural da escrita. São autores. E, além disso, pertencem à linhagem dos autores que questionam essa cultura, metalinguisticamente, com sofisticações refinadas. Ao criar, com prazer e dor, desdobram-se num outro, nas suas criaturas, como Macabéa. Esta, como datilógrafa, copia apenas. Não só suja o papel, com dedos de unhas curtas demais e maltratadas, como copia errado, sem saber o que significam as palavras. Escreve “desiguinar”. E pergunta o que é “cultura”. Vive de cultura de massa e de sucata: ouve músicas sentimentais pelo rádio, aprende coisas de almanaque (que, por exemplo, uma mosca leva 28 dias para dar volta ao mundo, caso voe em linha reta) e recorta anúncios das revistas que outros leem.

Também sucedem-se, em cadeia, os gêneros. O feminino de Clarice cria o masculino de Rodrigo que, por sua vez, cria o neutro de Macabéa, que não se descobre socialmente localizado: marginal, não é mulher nem homem, é coisa. Assim, tanto pode ser ‘lida’ como força positiva, quanto negativa, ou seja, nela tudo cabe porque ela nada é. Paira, superior, acima das mesquinharias de uma sociedade como a nossa, regulada pelo império das aparências falsas e enganosas, e aí paira sem nem ter consciência de que representa ‘isso’, esse milagre de resistência, digna de um macabeu, que sobrevive, apesar de tudo e de todos, emitindo, na voz fraca e na morte na sarjeta, o grito mudo de reivindicação de um lugar onde possa sonhar - e se casar com o loiro estrangeiro, bonito e rico. Enfim, onde possa tornar-se sujeito de uma história, até então manipulada pelos outros donos do saber, inclusive pelo seu proprietário intelectual, o escritor, que vive às custas dessa personagem que não pode viver ao seu lado, numa sociedade onde ele também, poderoso, vive escrevendo, criando e...matando Macabéas.

A história de amor do romance também se desdobra, em tantas outras: é a história de amor de Clarice por Rodrigo, este narrador do seu romance, criatura sua, modelada para essa função de contar a história. É a história de amor de Rodrigo por sua personagem Macabéa, criatura sua, modelada  para essa função de contar de quanta miséria -  e, ao mesmo tempo, quanta grandeza - se faz a condição humana. E é a história de amor de Macabéa por Olímpico, o bandido que quer ser deputado. Ou por Hans, o moço bonito anunciado pela cartomante.

Dificilmente, na história da nossa literatura - de homens e de mulheres - houve um questionamento do intelectual de tal envergadura e coragem. Capítulo subsequente dos romances sociais dos anos 30, esse romance de Clarice Lispector desmitifica, ou desconstrói também, a figura do intelectual, do escritor, do artista, que é um dos que têm, em contraste com o seu objeto de arte, ou personagem, o que não tem. Numa experiência da diferença que se faz por dentro - há os que cosem por fora, eu coso para dentro, afirmava Clarice - . a ‘verdade’ dessa injustiça social surge não por teorias, nem por plataformas revolucionárias. Surge por experiência desmitificadora: desmonta o que está feito. E é assim também que cada um conquista a sua hora da estrela, em momento de extrema grandeza e miséria.

O desejo - como manifestação de um querer, que é simultaneamente configurado como individual e coletivo - , traduz-se, também em Clarice, tal como o foi no início do século com Júlia Lopes de Almeida, por um ardoroso apego ao detalhe e por uma aparente ligeireza e banalidade, como se aí nada fosse importante, mas num tom descompromissado que esconde, perversamente, sob a forma da máscara, uma outra realidade.

Nesse espelhamento a mulher, de lá para cá, mudou muito. Sempre em estado de solidão e, por vezes, de insatisfação, tais estados de desejo são elaborados literariamente sob diferentes olhares, por essas mulheres. Um passeio pela ligeireza do cotidiano, como traço quase caricaturesco de uma sociedade em miúda festa da banalidade, com Júlia Lopes de Almeida. Uma reflexão da condição social com aparelhamento ideológico marxista, mediante experimentações modernistas, com Pagu-Mara Lobo; sensível, com aberturas para experiências da fantasia, em Rachel de Queiroz; estritamente familiar, a partir do peso da estrutura conservadora, em Lúcia Miguel Pereira. E metalinguisticamente, em etapas sucessivas, gradativas, ritualisticamente, num processo desconstrutor radical, em Clarice Lispector.

Até essa Hora de Estrela, a Mulher teve de percorrer um longo e penoso caminho. Afinal, não é fácil reconhecer-se, a partir do tudo com que nos deparamos, no extremo nada de que todos, homens e mulheres, somos feitos. E em que, paradoxalmente, a mulher encontra seu brilho próprio. Nessa altura, no entanto, já não se vê mais, pois está feito o percurso necessário “para desaprender o seu nome”, conforme expressão minha para parodiar, à moda de Clarice Lispector, o verso de Cecília Meireles. Sem espelho, sem imagem, sem reflexo, na conquista de si mesma, a mulher-personagem já pode pairar, anônima, no silêncio, enquanto simplesmente um ser.

A descoberta de que o verdadeiro nome está na ausência dele – ser nada e ninguém – por um fluxo narrativo que escava, em profundidade, os invólucros ou artifícios culturais que abafam a selvageria instintiva, pode ser considerada como uma nova etapa de nossa antropofagia cultural. O mundo da privacidade recalcada e até mórbida da mulher, no seu espaço familiar de que se vê na maioria das vezes prisioneira, e a dimensão coletiva em que a mulher descortina a consciência de seu não-espaço, marginal e massacrado, será assunto de outros romances femininos, como os de Lygia Fagundes Telles e Lya Luft, por exemplo.[83] Mas o que se sobressai nesse último romance de Clarice Lispector é o grau de questionamento que leva a mulher até o extremo limite de sua capacidade desconstrutora.

Até o presente momento, é o grito de Macabéa na sua hora de agonia e morte, quando conquista a grandeza da dimensão humana pelo poder de resistência num contexto adverso, que ainda ecoa, forte, como música de fundo de toda uma história da mulher na literatura brasileira.
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NOTAS

[70] Tais propostas encontram-se desenvolvidase em: Nádia Battella Gotlib, “Nem ausência, nem desventura: ser poeta”. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 53: Imagens da Mulher (Org.: Benjamin Abdala Júnior), jan.-dez.1995, p.115-122.

[71] Amadeu Amaral, “Cecília Meireles”. Em: O Elogio da Mediocridade. São Paulo-Hucitec, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1976, p. 159-164.

[72] Mário de Andrade, “Viagem.” Em: O Empalhador de Passarinho. 3. ed. São Paulo, Martins, 1972, p.161-164.

[73] Mário de Andrade, ob. cit., p. 163.

[74] Mário de Andrade, ob. cit., p. 164.

[75] Tal tendência anuncia-se desde seus primeiros livros publicados, Bagagem e O coração disparado, que surgiram pela Editora Nova Fronteira em 1977 e 1978, respectivamente.

[76] A tendência é patente não só nos seus poemas reunidos em, por exemplo, A teus pés (São Paulo, Brasiliense, 1987; esta edição traz, além dos poemas de A teus pés, também os poemas de Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica). Aparece também em outros textos da autora, como em Escritos  da Inglaterra  (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Escritos no Rio (São Paulo-Rio de Janeiro, Brasiliense-Ed. da UFRJ, 1993).

[77] Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H. (1964) 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1974, p. 217.

[78] Clarice Lispector, A Hora da Estrela  (1977) 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1978.

[79] Benedito Nunes, O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1989.

[80] Clarice Lispector, ob. cit., p. 28.

[81] Clarice Lispector, ob. cit., p. 32.

[82] Clarice Lispector, ob. cit., p. 24.

[83] Tais escritoras têm sido privilegiadas pela crítica, ao lado de – apenas para citar alguns exemplos - Nélida Piñon, Zulmira Ribeiro Tavares, Rachel Jardim. Dentre as poetas, Hilda Hilst e Orides Fontella. E dentre as mais jovens, Ana Miranda e Marilene Felinto. Além de trabalhos acadêmicos e livros que têm como assunto a leitura analítica e crítica da obra de cada escritora, têm sido publicados volumes de ensaios e artigos referentes a várias escritoras.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Aparecido Raimundo de Souza (As Eternas Bagagens)

(Recontado de uma mensagem recebida)

QUANDO A NOSSA vida começa, temos apenas uma pequena sacolinha de mão. Na medida em que os anos vão passando, a bagagem vai aumentando, aumentando... Indefinidamente...

Por conta disso, somos obrigados a deixar de lado a sacolinha e arranjar uma mochila, por exemplo, um pouco mais robusta. Que caibam mais tralhas. Os anos seguem passando, e com eles, a tendência desta bagulhada recolhida é crescer de tamanho, de intensidade e volume. Num piscar de olhos, se tornar uma torre de babel.

Geralmente isto ocorre porque existem muitas coisas que vamos catamos pelas diversas sendas que percorremos. Chega num determinado ponto da jornada, o peso da bagagem começa a ficar pesada, a ponto de fazer doer as costas, as pernas e, no mesmo norte, a atingir as raias do insuportável.

Nesta hora, precisamos parar. Estancar os passos, pensar, repensar, meditar e, depois de tudo, escolher: voltar atrás, ou abortar os passos seguintes e ficar à espera que alguma alma caridosa nos ajude. Ou seguir em frente, suportando, sozinho, o peso do fardo que nos foi imposto pelo destino, pelas adversidades da vida e o pior de todos aquele causado pela inconsequência de nossa insana imbecilidade de recolher e guardar velhas quinquilharias imprestáveis.

Todos nós, seres humanos, sem exceção, juntamos coisas de que não precisamos. Colecionamos porcarias que nunca faremos uso. Todavia, há, em contrapartida, outra alternativa: a do desapego. Isto quer dizer o seguinte. Abrir a mala e jogar fora o que julgar não ser essencial. Mas, nesta altura, pelo andar da carruagem, um outro problema vem à baila. O que dispensar a velha lata de lixo? O que seria válido largar de lado e o que não seria? É neste momento angustioso, que surge a dúvida cruel. A mais difícil de todas. O que deixar de vez grosso modo, abandonado definitivamente pelas calçadas?!

O Amor? A Amizade? Amor ou Amizade? Os dois?

Momentos bons, coisas más, lembranças inesquecíveis? Difícil escolha. Meu Deus! Espere... Existe algo mais pesado que pode e deve ser largado para sempre: a raiva. A raiva é como uma pedra enorme que obstrui. Tem a incompreensão que apavora; o medo que desalenta; o pessimismo que entristece; a fúria que aflora de forma maligna, como também a discórdia e a insegurança que, a semelhança dos demais, deixam na alma desalentada marcas indeléveis... Para sempre…

Neste momento, em linha paralela, surgem as lutas. Primeiro a do desânimo que pinta do nada e puxa o coração na ânsia de prendê-lo dentro da mala.

Tem inicio, pois, uma peleja insana, quase irreal, para não nos deixarmos ser vencidos. De repente, eis que entra em cena o Sorriso. Bonito, largo, aberto, atraente, bem apessoado, enlevado numa paz tão imensa que parece mudar o quadro desolador.

De mãos dadas com ele, de roldão, vem a Felicidade. A Felicidade por sua vez traz a Paciência, e, então, por alguns momentos, a gente se sente envolto numa onda gigantesca de tranquilidade indescritível.

Buscamos, às carreiras, o restante das coisas dentro da mala repleta: E se nos deparamos com a Força, com a Coragem, com a Responsabilidade, com a Tolerância, e com o Bom Humor.

Pronto. Problema resolvido. Não há mais nada a ser retirado de dentro da mala. Pois bem! E agora? Pinta o inverso. O que guardar novamente para seguir a viagem em direção ao amanhã?!

Enquanto a gente não se decide, ficamos a olhar ao redor e espiar o futuro. O futuro é longo. Mas igualmente incerto, escuro, solitário, vazio, oco sem nada para se pegar, como a mente conturbada, que não deixa nosso anjo do bem pensar direito: pelo menos no sentido de se saber o que realmente jogar de volta dentro da mala, tranca-la a sete chaves e se pôr, ato contínuo, em marcha.

E uma vez mais na estrada, seguir em frente, cabeça erguida, confiante, dono de nossa vida, do nosso nariz. Temos que seguir, bem sabemos, sem olhar para trás, sem medo de, num leve tropeçar nos passos, metros à frente, voltarmos a cair no mais estúpido dos buracos. O da nossa própria desgraça anunciada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 9


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Mavutsinim

MAVUTSINIM - O PRIMEIRO HOMEM

No principio existia apenas Mavutsinim, que vivia sozinho na região do Morená. Não tendo família nem parentes, possuía apenas para si o paraíso inteiro. Um dia sentiu-se muito, muito só. Usou então de seus poderes sobrenaturais, transformando uma concha da lagoa em uma linda mulher e casou-se com ela. Tempos depois, nasceu seu filho. Mavutsinim, sem nada explicar, levou a criança à mata, de onde não mais retornaram. A mãe, desconsolada, voltou para a lagoa, transformando-se novamente em concha. Apesar de ninguém haver visto a criança, os índios acreditam que do filho de Mavutsinim tenham se originado todos os povos indígenas. Foi também Mavutsinim que criou de um tronco de árvore a mãe dos gêmeos Sol (Kuát) e Lua ( Iaê,) responsáveis por vários acontecimentos importantes na vida dos Xinguanos, antes de se tomarem astros.

MAVUTSINIM  E O XINGU - A FORMAÇÃO DAS TRIBOS


Foi Mavutsinim quem tudo criou; fez as primeiras panelas de barro e as primeiras armas; a borduna, o arco preto, o arco branco e a espingarda. Tomando quatro pedaços de tronco, resolveu crias as tribos Kamayurá, Kuikuro, Waurá e Txukahamãe. Cada uma delas escolheu uma arma, ficando a tribo Waurá com a panela de barro. Mavutsinim pediu à Kamayurá que tomasse a espingarda, mas esta preferiu o arco preto. Os Kuikuros ficaram com o arco branco e os Txukahamães preferiram a borduna. A espingarda sobrou para os homens brancos. A população aumentou em demasia e Mavutsinim resolveu separar os grupos. Mandou que os Txukahamães fossem para bem longe, pois eram muito bravos. Os homens foram para as cidades, bem distantes das aldeias, pois tinham muitas doenças e com as armas de fogo viviam a ameaçar a vida dos outros grupos. Desta forma, as tribos puderam viver em paz.

MAVUTSINIM - O PRIMEIRO KUARUP, A FESTA DOS MORTOS

Mavutsinim, o grande pajé, desejava fazer com que os mortos revivessem e voltassem ao convívio de seus familiares. Cortou dois troncos e deu-lhes a forma de um homem e de uma mulher, pintando-os e adornando-os com colares, penachos e braçadeiras de plumas. Cravou-os no centro da aldeia. Preparou então uma festa e distribuiu alimentos a todos os índios, para que esta não fosse interrompida. Pediu aos membros da tribo que cobrissem seus corpos com uma pintura que expressasse apenas alegria, pois aquela seria uma cerimônia em que, ao som do canto dos maracá-êp, os mortos iriam reviver: os Kuarups criariam vida. No outro dia a festa continuava; os índios deveriam cantar e dançar, embora proibidos pelos pajé de olharem para os troncos. Aguardariam de olhos cerrados a grande transformação. Naquela mesma noite, as toras começaram a mover-se, tentando sair das covas onde foram colocadas. Ao amanhecer já eram metade humanos, modificando-se constantemente. Mavutsinim pediu então aos índios que se aproximassem dos Kuarups sem parar de festejar, cantando, rindo e dançando. Apenas os que haviam passado a noite com mulheres não poderiam se integrar à cerimônia, permanecendo afastados do local. Um destes, porém, com irresistível curiosidade, desobedeceu às ordens do pajé e aproximou-se, quebrando o encanto do ritual. E os Kuarups voltaram à sua forma original de troncos. Contrariado, Mavutsinim declarou que, a partir daquele instante, os mortos não mais reviveriam no ritual do Kuarup! Haveria somente a festa. Ordenou que os troncos fossem retirados da terra e lançados ao findo das águas, onde permaneceriam para sempre.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Helena Sacadura Cabral (O que serei eu? Afrolatino, Afrotuga ou AfroLemos)

Desde que os americanos se lembraram de começar a chamar aos pretos 'afro-americanos', com vista a acabar com as raças por via gramatical, isto tem sido fartamente empregado!

As criadas dos anos 70 passaram a 'empregadas domésticas' e preparam-se agora para receber a menção de 'auxiliares de apoio doméstico' .

De igual modo, extinguiram-se nas escolas os 'contínuos' que passaram todos a 'auxiliares da ação educativa'.

Os vendedores de medicamentos, com alguma presunção, tratam-se por 'delegados de informação médica'.

E pelo mesmo processo transmutaram-se os caixeiros-viajantes em 'técnicos de vendas '.

O aborto eufemizou-se em 'interrupção voluntária da gravidez';

Os gangs étnicos são 'grupos de jovens'

Os operários fizeram-se de repente 'colaboradores';

As fábricas, essas, vistas de dentro são 'unidades produtivas' e vistos de estrangeiros são 'centros de decisão nacionais'.

O analfabetismo desapareceu da crosta portuguesa, cedendo o passo à 'iliteracia' galopante.

Desapareceram dos comboios as 1.ª e 2.ª classes, para não ferir a susceptibilidade social das massas hierarquizadas, mas por imperscrutáveis necessidades de tesouraria continuam a cobrar-se preços distintos nas classes 'Conforto' e 'Turística'.

A Ágata, rainha do pimba, cantava chorosa: «Sou mãe solteira...» ; agora, se quiser acompanhar os novos tempos, deve alterar a letra da pungente melodia: «Tenho uma família monoparental...» - eis o novo verso da cançoneta, se quiser fazer jus à modernidade em voga.

Aquietadas pela televisão, já se não veem por aí aos pinotes crianças irrequietas e «terroristas»; diz-se modernamente que têm um 'comportamento disfuncional hiperativo'

Do mesmo modo, e para felicidade dos 'encarregados de educação' , os brilhantes programas escolares extinguiram os alunos cabuladores; tais estudantes serão, quando muito, 'crianças de desenvolvimento instável'.

Ainda há cegos, infelizmente. Mas como a palavra fosse considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado 'invisual'. (O termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos - mas o 'politicamente correto' marimba-se para as regras gramaticais...)

Para compor o ramalhete e se darem ares, as pessoas cultas da praça desbocam-se em 'implementações', 'posturas pró-ativas', 'políticas fraturantes' e outros barbarismos da linguagem.

E assim linguajamos o Português, vagueando perdidos entre a «correção política» e o novo-riquismo linguístico.

Estamos lixados com este 'novo português'; não admira que o pessoal tenha cada vez mais esgotamentos e stress. Já não se diz o que se pensa, tem de se pensar o que se diz de forma 'politicamente correta'.

E falta ainda esclarecer que os tradicionais "anões" estão em vias de passar a "cidadãos verticalmente desfavorecidos"...

Os idiotas e imbecis passam a designar-se por "indivíduos com atitude não vinculativa"

Os pretos passaram a ser pessoas de cor.

O mongolismo passou a designar-se síndrome do cromossomo 21.

Os gordos e os magros passaram a ser pessoas com disfunção alimentar.

Os mentirosos passam a ser "pessoas com muita imaginação"

Os que fazem desfalques nas empresas e são descobertos são "pessoas com grande visão empresarial mas que estão rodeados de invejosos"

Para autarquias e políticos, afirmar que "eu tenho impunidade judicial", foi substituído por "estar de consciência tranquila".

O conceito de corrupção organizada foi substituído pela palavra "sistema".

Difícil, dramático, desastroso, congestionado, problemático, etc., passou a ser sinônimo de complicado. 
 
Fonte:
http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/1003840.html, 24 ago 2013.

Paulo Mendes Campos (Poemas Escolhidos)

EPITÁFIO

Se a treva fui, por pouco fui feliz.
Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.
Se Deus foi a doença, fui a saúde.
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.

Se a luz era visível, me enganei.
Se eu era o só, o só então amei.
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.

Se Deus era de pedra, em vão sofri.
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.

Para que me reflitas e me fites
estas turvas pupilas de cimento:
se devo a vida à morte, estamos quites.

NESTE SONETO

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.

Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.

Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto

Dentro da forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

O VISIONÁRIO

Debaixo dos lençóis, a carne unida,
Outro alarme mais forte nos separa.
Vai ficar grande e feia a mesma cara
Com que surgimos cegos para a vida.

Vemos o que não vemos. Quando, erguida
A parede invisível, o olhar pára
De olhar, abre-se além uma seara
Muito real porém desconhecida.

São dois mundos. Um deles não tem jeito:
Cheio de gente, é só como o deserto,
Duro e real, parece imaginário.

Também dois corações temos no peito
Mas não sei se o que bate triste e certo
Vai reunir-se além ao visionário.

PROJETO

De papel e nanquim é um brinquedo
Perigoso, ideal, nossa morada.
Das suas dimensões nos é vedada
A quarta, que, torcida pelo medo,

Dos projetos humanos faz perguntas.
São reentrantes estas duas plantas:
Na planta alta vão chorar infantas,
Na planta baixa vão sorrir defuntas.

Este diedro geme como um cão.
Mas das arestas miarás à lua.
Para abrir ou fechar a tua rua,

Estes dois riscos tramam teu portão:
Regressa horizontal das paralelas
Quem vertical, gentil, entrou por elas.

REI DA ILHA

No fim da rua, um pônei rubro, rubro,
No fim da tarde, um muro escuro, um muro.
Descubro alguma coisa mais? Descubro:
Um coração impuro, tão impuro.

Querer guardar este sinal (querer)
De que minh'alma não morreu? Morreu.
Ser ou não ser como esta tarde (ser)
Que apareceu e desapareceu?

Ser como a tarde que voltou, voltou
Além de meus enganos, muito além...
Eu vou por um país, por onde eu vou,

Onde existe uma ilha, a minha ilha.
Ali não há ninguém. Ninguém? Alguém
Regressará por mim, ó minha filha.

SONETO DE PAZ


Cismando, o campo em flor, eu vi que a terra
Pode ser outra terra, de outra gente,
Para o prazer armada e competente
E desarmada para a voz da guerra.

No chão, olhando o céu que nos desterra,
Sem terminar falei, presente, ausente,
Ó vento desatado da vertente,
Ó doce laranjal sem fim da serra!

Mais tarde me esqueci, mas esse instante
De muito antiga perfeição campestre
Fez-me constante um pensamento errante:

Era o sem tempo, a paz da eternidade
Unindo a luz celeste à luz terrestre
Sem solução de amor e de unidade.

TEMPO-ETERNIDADE

O instante é tudo para mim que ausente
Do segredo que os dias encadeia
Me abismo na canção que pastoreia
As íntimas nuvens do presente.

Pobre do tempo, fico transparente
A luz desta canção que me rodeia
Como se a carne se fizesse alheia
À nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
E a minha eternidade uma bandeira
Aberta em céu azul de solidões.

Sem margens, sem destino, sem história,
O tempo que se esvai é minha glória
E o susto de minh'alma sem razões.

Felipe Daiello (Dublin de Oscar Wilde)

Monumento Oscar Wilde, Parque Merrion/Dublin
Nascido em Dublin, Oscar Fingal O’ Fhahertie Wills Wilde, escritor irlandês, autor de “O Retrato de Dorian Gray, torna-se um dos maiores dramaturgos em Londres ao final do século XIX.

“A vida é muito importante para ser levada a sério.”

Circular pela atual Dublin é recordar as frases do grande pensador. Tarefa agradável, mas exige tempo e paciência.

“A ambição é o último recurso do fracassado.”

A Irlanda sempre foi berço para grandes literatos e produziu quatro prêmios Nobel de Literatura. Apesar do prestígio mundial, Oscar Wilde e James Joyce não receberam o galardão em Estocolmo. Circular à noite pelos pubs, seguindo a velha tradição, degustando a Guiness escura, contagiado pela alegria da música e da dança irlandesa, possibilita recriar e imaginar a atmosfera de velha Dublin que tanto inspirou Oscar Wilde.

“A melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada. De terminar com ela, também.”

Os goles da amiga, Guiness, ouvindo a alegre música irlandesa, intercalando os pratos onde a batata é a resistência, recordam o poeta:

“Devem-se escolher os amigos pela beleza, os conhecidos pelo caráter e os inimigos pela inteligência.”

Educado no “Trinity College”, local onde o famoso manuscrito de Kell está exposto, o dramaturgo teve pai médico e mãe poeta, e desde cedo, apaixonou-se pelos escritos gregos e romanos.

Em Londres, vive com amigo e retratista popular da época, Frank Miles, convivência que lhe trará problemas no futuro. O relacionamento homossexual não era aceito pela rígida sociedade vitoriana.

Em 1881, ao realizar palestras pelos Estados Unidos, conhece Henry Longfellow, Oliver Holmes e Walt Whitmann. Começa a desenvolver a teoria da beleza que deve ser o foco absoluto na arte e na literatura.

Casado, precisando sustentar dois filhos trabalha em Revistas e Magazines; publica histórias infantis. “Quando eu era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje tenho certeza.”

A importância de ser Ernesto será outra obra para recordar o gênio irlandês. Mas, o retrato de Dorian Gray é o seu clássico.

Única novela, “O Retrato de Dorian Gray”, de 1890 provoca uma torrente de protestos. Necessário adaptações. Surge um best seller.

“As mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos”.

Oscar Wilde, que já tivera relações homoafetivas, com o pintor Frank Miles, quando estava em Oxford, ao se relacionar com Lord Inglês provoca escândalo que o leva à prisão.

Sua esposa troca o nome de família e Oscar Wilde, após sair da prisão, nunca mais recupera o seu brilho e prestígio. Durante os seus últimos três anos de vida, pobre, miserável, circula pela Europa, vivendo em hotéis baratos e do apoio dos amigos.

“Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria da pessoa apenas existe.”

Não podemos esquecer que após a ruptura do Império Romano, a cultura ocidental foi preservada em locais ermos e escondidos dessa Terra Verde. Em mosteiros, centro de formação cultural, monges e pessoas de todo o mundo encontravam local para estudar, para ler, para traduzir e para produzir livros. Diversas línguas e culturas tinha aqui local de abrigo e de desenvolvimento. As raízes das futuras universidades estavam lançadas. Será essa a razão da Irlanda produzir nomes como: Bernard Shaw, W.B. Yeats, Swift, James Joyce, Samuel Becket, Oscar Wilde e tantos outros. Títulos de livros clássicos aparecem na memória. ‘Viagens de Gulliver’, ‘ Esperando Godot’, “Ulisses”, “O Retrato de Dorian Gray”.

“Ser grande significa ser Incompreendido.”

As frases de Oscar Wilde surgem no improviso:

“O pessimista é uma pessoa que, podendo escolher entre dois males prefere ambos.”

A arquitetura Georgiana dos prédios as pontes cercando o rio Liffey, os parques e jardins, a alegria contagiante da noite, tudo nos leva a parte antiga de Dublin. Entre ruelas estreitas e bares centenários, o Temple Bar nos aguarda. Oportunidade de esquecer por momentos a literatura e entrar direto e na gastronomia irlandesa e na magnífica escura Guiness. As canções em irlandês, difíceis de entender, serão companheiras de outras lembranças. Oscar Wilde ainda presente.

“Hoje em dia, conhecemos o preço de tudo e o valor de nada”.

“Ah! Não me diga que concorda comigo! Quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão que estou errado”.

“Aqueles que não fazem nada estão sempre dispostos a criticar os que fazem algo”.

Dorian Gray, o seu retrato espelha a visão de Dublin e de Londres na época em que Oscar Wilde viveu e escreveu. Duas versões para o Retrato de Dorian Gray refletem a censura imposta, o preconceito, as críticas, a necessidade de escapar das alfinetadas. De tornar a obra mais aceitável, mesmo em desfavor de critérios literários.

Visitar a casa onde o poeta viveu, relembrar frases bem articuladas, cheias de vida, circular pelos locais onde ele andou, absorvendo detalhes, guardando minúcias é tentar entender o gênio. Difícil!

No parque ao lado, estátua em mármore apresenta o escritor em pose característica. Parece rir de quem chega. Algumas das suas frases estão bem a mão:

“Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morreu os peixes e Oscar Wilde”.

 “Crer é muito monótono, a dúvida é apaixonante”

“Se soubéssemos quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria mais silêncio neste mundo”.

“Escolho os meus amigos pela cara lavada e alma exposta”:

Junto ao mármore de sua estátua, em Dublin, além do sorriso irônico o que nos encanta são as suas expressões gravadas na negra pedra, para a eternidade:
Nos assuntos muito sérios, o essencial é o estilo, não a sinceridade.
Uma ideia que não é perigosa, não merece nem mesmo ser chamada de ideia.
A verdade pura e simples é raramente pura e nunca simples.
Não há outro jeito de livrar-se de uma tentação à não ser sucumbindo a ela.
Se você resistir, a sua alma adoecerá desejando aquelas coisas que lhe foram recusadas.
As mulheres estragam qualquer romance, com essa mania de querer que eles durem para sempre.


Fonte:
O Autor

Ana Rosenrot (O Relógio de Parede)

As batidas compassadas do relógio a marcar as horas, tão vigorosas e constantes, contrastam com as de meu coração que a cada minuto se torna mais fraco, alertando que meu fim será breve.

Nesta triste cama de hospital, o melancólico relógio que se destaca negro e acusador na cama a minha frente, infelizmente e minha única companhia nestes tristes instantes de agonia e dor.

Abandonado por todos que falsamente diziam me amar, deixei-me abater pelos problemas, ficando a mercê de conflitos e desafios que pouco a pouco flagelaram meu corpo e minha alma. Logo já não conseguia me alimentar e em menos de um mês meu coração demonstrava indícios de parada prematura; nao me importei devido ao enfraquecido estado de espírito em que me encontrava e também não fui capaz de admitir que houvesse me tornado um viciado, não conseguia enxergar meu estado mental confuso nem meu corpo cadavérico. Hoje, largado nesta cama de hospital, sinto falta do nada que deixei para trás, anos e anos de vida inútil, pessimamente aproveitada; estou agora prestes a terminar na solidão total de um leito; somente as batidas do relógio acompanham meu sofrimento e vigiam meu sono perturbado.

As horas vão passando, a morte esta cada vez mais perto, posso senti-la em meu sangue; sei que tudo estará terminado antes das doze badaladas e já está aqui, como um ser palpável, o sopro frio e as garras afiadas da dama das trevas a tocar minhas carnes, o fim vazio que tanto temi durante a vida se concretiza e eu estou sozinho, lamentando o triste destino que busquei para mim mesmo, tantos anos perdidos na desesperada busca por dinheiro, fama e poder. Obtive tudo o que ambicionei passando por cima de todos que cruzaram meu caminho, roubando, enganando e sempre mentindo.

Mas de tudo o que consegui, só me restou o suficiente para pagar um tratamento digno de um mendigo; queria tanto me curar para ter outra chance, para poder fazer tudo diferente...

As badaladas parecem aumentar seu ritmo a cada segundo, ou será meu coração galopando em direção ao fim? Desesperado grito por socorro, mas parece não existir no mundo alguém que possa me ouvir, meus sentidos estão se tornando lentos, meu cérebro lateja, não consigo respirar, sei que meu corpo miserável está partindo.

No medo sufocante que sinto nesses minutos finais e sem perspectiva de salvação, sinto um aperto no peito e uma dor dilacerante, minhas ilusões se acabam neste instante de completo desespero, um turbilhão de visões bizarras habitam minha mente e lentamente somente a imagem do relógio de parede permanece, enquanto minha alma esta prestes a abandonar sua sofrida morada, ele soa em funestas badaladas.

Banhado de suor, com a sensação de morte ainda presente, acordo assustado, o coração aos pulos, minha cabeça esta doendo horrivelmente, meu estômago se revira em náuseas, chego a esquecer que tudo foi somente um sonho e fico um bom tempo imóvel, com medo de sair da cama, um estranho pavor de estar realmente morto neste quarto tão escuro, onde só posso ouvir o badalar do relógio. Respiro fundo e procuro abrir bem os olhos, percebendo que o dia amanhecera já há algum tempo, levantei-me rápido, cambaleando, resolvido a dedicar este e todos os dias que restam de minha vida a efetuar mudanças radicais e evitar a qualquer custo que este terrível sonho – ou premonição, ou pesadelo – possa tornar-se realidade, para minha total desgraça.

Sonhos podem ser tão reveladores, que mudam nossas vidas completamente.

Fonte:
Jacqueline Aisenman (org.). Revista Varal do Brasil n. 27 b – fev 2014 ano 5 – Ed. Especial – Sonhar ainda pode
(Conto publicado na Antologia “O Sonho” da Casa do Novo Auto Editora em 1999.)

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) I

O Canto do Guerreiro

I

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
- Ouvi-me, Guerreiros.
- Ouvi meu cantar.

II

Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
- Guerreiros, ouvi-me;
- Quem há, como eu sou?

III

Quem guia nos ares
A frecha imprumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
- Guerreiros, ouvi-me,
- Ouvi meu cantar.

IV

Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
- Guerreiros, ouvi-me:
- Quem há, como eu sou?

V

Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
- Quem há mais valente,
- Mais destro do que eu?

VI

Se as matas estrujo
Co os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
- Quem é mais valente,
- Mais forte quem é?

VII

Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as malas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles - guerreiros,
Que faço avançar.

VIII

E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.

IX

E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
- Guerreiros, dizei-me,
- Tão forte quem é?

O Canto do Piaga

I

Ó GUERREIROS da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribu Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite - era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitus! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitus já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribu Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser?

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitus já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

O Canto do Índio

Quando o sol vai dentro d’água
Seus ardores sepultar,
Quando os pássaros nos bosques
Principiam a trinar;
Eu a vi, que se banhava...
Era bela, ó Deuses, bela,
Como a fonte cristalina,
Como luz de meiga estrela.

Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
Calcara agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.

O tacape fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim somente ver teu rosto
Nas águas, como a lua, retratado.

Eis que os seus loiros cabelos
Pelas águas se espalhavam,
Pelas águas, que de vê-los
Tão loiros se enamoravam.

Ela erguia o colo ebúrneo,
Por que melhor os colhesse;
Níveo colo, quem te visse,
Que de amores não morresse!

Passara a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita à guerra
Me infiltrasse o valor que m’hás roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.
As vezes, quando um sorriso
Os lábios seus entreabria,
Era bela, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.
Outra vez - dentre os seus lábios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.
Que importa? Esse falar deixou-me n’alma
Sentir d’amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeu, vontade e força
Ah! que não queiras tu viver comigo,
Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!

Sobre a areia, já mais tarde,
Ela surgiu toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua!?

Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flor mimosa,
Do seu corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.

Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus, como te adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.

Ary Franco (Insensatez Materna)

         
http://gregoriojr.com
   Nem sempre somos bem sucedidos na tentativa de prestarmos uma ajuda. Não pensem que seja fácil auxiliar aqueles que não querem ser ajudados.

            Todas as quartas-feiras, cumpro minha prazerosa penitência de esperar na pracinha que minha esposa e filha terminem suas compras no supermercado em frente. Dizem que eu atrapalharia mais do que ajudaria se fosse com elas, assim, aguardo pelo celular uma ligação avisando que já estão no caixa tal (são numerados de 1 a 10) pagando as compras efetuadas.

            Normalmente, levo alpiste e miolos de pão para dar aos pombos e, sentado em um dos bancos, aprecio a frenética comilança daqueles columbídeos livres e alados, com todo o espaço do Universo ao seu dispor. Alguns deles parece que já me conhecem, pois logo que chego, de mim se acercam com seus arrulhos e rodopios, como que a cobrar-me o alimento por eles esperado. Alguns são por mim reconhecidos, destacando-se o “guloso”  que enquanto come, tenta não deixar os outros comerem distribuindo bicadas nos mais próximos. Os fones em meus ouvidos dão o arremate musical à minha aprazível espera.

            Em torno, sempre observo as pessoas passantes, aqueles também sentados à sombra em outros bancos ou até mesmo os deitados no gramado, todos vencidos pelo calor. Despertou-me curiosidade um menino sozinho orbitando uns seis aninhos, que acabara de sentar-se ao meu lado, atraído pela coreografia que os pássaros faziam durante seu ávido repasto. Parecia-me ter acabado de chorar; seus olhinhos estavam marejados e havia marcas do caminho ressecado de lágrimas em seu rostinho não muito limpo. Retirei os fones dos ouvidos e dirigi-me a ele.

–  Olá! Bonitos esses pombinhos, né?! (não houve resposta, mas mantive meu monólogo).

– Você tá triste? Fica não! Quando você chora, papai do céu também chora, sabia?

– Não tenho pai! (respondeu-me, sem tirar os olhos dos pombos).

– Você é que pensa! Todo mundo tem um pai e Ele mora lá no céu e vê tudo que acontece com a gente. Se a gente merecer, ele ajuda a gente, sabia? Cadê sua mamãe?

– Ela tá pedindo esmola e eu não quis ficar com ela. Preferi vir pra cá sentar na praça pra ver os pombos. Aí ela me deu um beliscão e eu corri pra cá. Ela diz que ganha mais se eu ficar do lado dela.

– E agora? Como é que ela vai te achar?

– Tomara que ela não ache eu!

– Olha... Papai do céu tá vendo tua má-criação e vai ficar muito triste!

– Ih! Aquele pombo tá batendo nos outros! Vou chutar ele! (e fez menção de se levantar do banco).

– Não faz isso, não! Ele é o chefe do bando e tá botando ordem nos  bagunceiros. Vamos jogar mais comida pra eles e vai acabar a briga. Quer ver?!
– Quero!

Acabei de virar o vidro de maionese que tinha trazido com o petisco das aves e a calma voltou a reinar. Nisso lembrei-me de umas moedas que trazia espalhadas na minha capanga e resolvi fazer uma brincadeira com o menino. Sem que ele percebesse, fechei em meu punho uma meia dúzia aleatória de níqueis de valores variados. O menino permanecia embevecido com o espetáculo proporcionado pelos pombos.

– Meu nome é Ary e o seu?

– É “Duardo”.  Me chamam de Duda, mas eu não gosto!

– Então vou te chamar de Eduardo, combinado?

– Combinado!

– Pera aí! O que é que você tem na sua orelha?

– Nada! (ele passou a mão na orelha e nada encontrou).

– Tem sim! Eu tô vendo! Posso tirar?

– Pode!

            Como que num passe de mágica, retirei detrás do lóbulo de sua orelha uma moeda de cinquenta centavos e entreguei pra ele. O tamanho dos olhos que ele abriu quase foi o mesmo que o de sua boca aberta.

– Pôxa, você falou que não tinha nada! Olha aí! (disse-lhe eu)

            Ele ficou apalpando a moeda uns segundos e começou a querer ver se tinha outras. Quase arrancou o lóbulo da orelha. Aí eu ri e ele também. Existe coisa mais divinamente bela que o sorriso de uma criança, mormente quando esse sorriso substitui lágrimas antes choradas?! Hein?

Responda-me você que está pacientemente me lendo até aqui!!! Sucessivamente continuei a tirar outras moedas. Duas de um real, vinte centavos, cinquenta centavos... Ele sopesava os níqueis, maravilhado e apertando-os em sua mãozinha. Foi a forma que encontrei de ajudá-lo, sem que ele sofresse mais tarde dizendo que na infância tinha sido um esmoleiro. Afinal, aquelas moedas eram dele. Ninguém as deu!

– Você quer escutar música?

– Quero!

            Encostei um dos fones no ouvido dele (na mesma orelha milagrosa que fabricava moedas) e ele ficou extasiado. Minha alegria, de repente foi bruscamente interrompida. Eduardo viu a mãe no início da praça, parada, com as mãos nas cadeiras e olhando-o. Ele imediatamente saiu correndo ao seu encontro. Gritei um tchau que não foi retribuído.

            A mãe sacudiu-o pelo braço e deu um cascudo na cabeça dele. Aí, chorei quando o menino mostrava pra mãe as moedas e apontava para sua orelhinha. Não dava pra escutar nada por causa da distância e pelo barulho das águas dançantes do chafariz ao meu lado. Ela pegou os níqueis, colocou-os em um saco encardido e empurrou o Eduardo, obrigando-o a seguir na frente dela.

            Num ímpeto, levantei-me do banco disposto a admoestar aquela megera que estava transformando um anjo em demônio. Com esse meu gesto brusco, os pombos debandaram em revoada e o vidro de maionese que estava esquecido no meu colo caiu ao chão espatifando-se. Procurei catar rapidamente os cacos e coloquei-os na lixeirinha. Ainda dava tempo de alcançá-los!

            Nisso, toca meu celular.

– Pai, pode vir, estamos no caixa 5.

            Olhei para o céu e disse: Está bem, meu Divino Pai! Já entendi Tua mensagem. Não queres que eu interfira na vida daquela mulher desnaturada. Que guarde para mim as palavras desagradáveis que iria dizer-lhe... E caminhei resignado para o supermercado, onde eu era aguardado.

– Mãe, aconteceu alguma coisa com o papai. Ele andou chorando. (disse minha filha)

– Claro que chorei! Na pressa de vir ajudar vocês, dei uma topada no meio-fio e machuquei o dedão...

– Quando chegarmos em casa, vou esfregar um pouco de arnica. (disse minha esposa)

– Não precisa não, a dor já está passando!

Fonte:
O Autor