sábado, 30 de julho de 2016

Oscar Wilde (O Notável Foguete)

O filho do rei ia casar-se. Por isto o regozijo era geral. Tinha esperado um ano inteiro pela sua noiva, que afinal chegara. Era uma princesa russa que tinha feito a viagem desde a Finlândia num trenó puxado por seis renas. O trenó tinha a forma de um grande cisne de ouro e entre as asas do cisne jazia a pequena Princesa. O seu longo manto de arminho chegava-lhe diretamente aos pés, na cabeça trazia um pequeno boné de tecido de prata e era pálida como o Palácio de Neve em que sempre tinha vivido. Era tão pálida que, ao passar pelas ruas, enchia todo o povo de admiração.

- Parece uma rosa branca! - diziam e atiravam-lhe flores do alto dos balcões.

Na porta do castelo estava o Príncipe esperando para recebê-la. Ele tinha uns sonhadores olhos cor de violeta e os seus cabelos eram como ouro fino. Quando a viu, dobrou um joelho na terra e beijou-lhe a mão.

- O vosso retrato era belo - murmurou -, mas sois mais bela que o vosso retrato.

E a Princesinha ruborizou-se.

- Há pouco parecia uma rosa branca, - disse um jovem pajem ao seu vizinho - mas agora parece uma rosa vermelha.

E toda a corte ficou extasiada.

Durante os próximos três dias, toda a gente não cessou de repetir:

- Rosa branca, rosa vermelha, rosa vermelha, rosa branca!

E o rei ordenou que se pagasse salário duplo ao Pajem. Como este não recebia salário algum, a sua posição não melhorou muito com isto, mas todos consideraram aquilo uma grande honra e o decreto real foi devidamente publicado na Gazeta da Corte.

Transcorridos aqueles três dias, celebrou-se o casamento. Foi uma cerimônia magnífica. O noivo e a noiva desfilaram, de mãos dadas, sob um dossel de veludo cor de púrpura, bordado de pequenas pérolas. Depois celebrou-se um banquete oficial, que durou cinco horas. O Príncipe e a Princesa sentaram-se na extremidade do Grande Salão, bebendo de uma taça de cristal puríssimo. Apenas amantes verdadeiros podem beber nessas taças, pois se lábios falsos tocarem-nas, as taças se tornarão cinzas, escuras e embotadas.

- É perfeitamente claro que eles se amam – disse o pajenzinho -, tão claro como o cristal. E o rei dobrou-lhe o salário mais uma vez. - Que grande honra! - exclamaram os cortesãos.

Depois do banquete houve um baile. A noiva e o noivo deviam dançar juntos a Dança das Rosas e o rei prometera tocar flauta. Tocava-a muito mal, mas ninguém se havia jamais atrevido a dizer-lhe, porque ele era o rei. A verdade é que só sabia duas peças e nunca estava certo de qual das duas estivesse a tocar, mas isso não o preocupava, pois, fizesse o que fizesse, todos exclamavam “Encantador! Encantador!”

O último número do programa consistia numa grande exibição de fogos de artifício, que devia terminar exatamente à meia-noite. A Princesinha nunca vira na sua vida fogos de artifício, por isso o rei encarregou aos Pirotécnico reais de utilizar todos os recursos da sua arte para o dia do casamento.

- Com que se parecem os fogos de artifício? - perguntou ela uma manhã ao Príncipe, enquanto passeavam no terraço

- Parecem-se com a aurora boreal - disse o rei, que sempre respondia às perguntas dirigidas às outras pessoas. - Apenas são mais naturais. Prefiro-os às estrelas, porque sabe-se sempre quando vão começar a brilhar e são, além disso, tão agradáveis como a música da minha flauta. Havereis de vê-los.

Assim, ergueram um tablado no fundo do jardim real e, logo que os Pirotécnicos Reais acabaram de preparar tudo, começaram os fogos de artifício a conversar entre si.

- O mundo é seguramente muito bonito! - exclamou um pequeno busca-pé. - Reparem naquelas tulipas amarelas. Puxa! Se fossem petardos de verdade, não poderiam ser mais bonitas. Sinto-me muito satisfeito por ter viajado. As viagens desenvolvem o espírito de uma maneira assombrosa e acabam com todos os preconceitos que se possa ter.

- O jardim do rei não é o mundo, meu tolo Busca-pé - disse uma grossa Vela Romana - o mundo é um lugar enorme e precisarias de três dias para percorrê-lo todo.

- Todo lugar que amamos é para nós o mundo - exclamou a pensativa Roda Catarina, que, na sua infância, estivera ligada a um velho caixote de pinho e se orgulhava do seu coração destroçado. - Mas o amor não está em moda, os poetas mataram-no. Tanto escreveram sobre ele que ninguém lhes dá crédito, o que não me surpreende. O verdadeiro amor sofre e cala. Lembro-me de que eu mesma uma vez... Mas não se trata disto agora. O romantismo é coisa do passado.

- Bobagem! - exclamou a Vela Romana. - O romantismo nunca morre. É como a lua, que vive eternamente. A noiva e o noivo, por exemplo, amam-se muito ternamente. Inteirei-me de tudo quanto se refere a eles esta manhã, pela boca de um cartucho de papel escuro que estava na mesma gaveta que eu e que sabe as últimas notícias da corte.

Mas a Roda Catarina abanou a cabeça.

- O romantismo morreu, o romantismo morreu, o romantismo morreu! - murmurou. Era uma dessas pessoas que pensam que, repetindo uma coisa certo número de vezes, acabaria por se tornar realidade.

De repente, ouviu-se uma tosse forte e seca e todos olharam em redor.

Era um foguete de altivo porte, amarrado à ponta de uma comprida vara. Tossia sempre antes de fazer qualquer observação, como para chamar a atenção.

- Aham! Aham! - disse ele, e todos se dispuseram a ouvi-lo, exceto a pobre Roda Catarina, que continuava a abanar a cabeça e a murmurar: "O romantismo está morto".

- Ordem, ordem - gritou um Petardo. Tinha algo de um político e sempre tomara parte importante nas eleições locais, de modo que conhecia as frases empregadas no Parlamento.

- Completamente morto - murmurou a Roda Catarina, que voltou a dormir.

Tão logo se obteve completo silêncio, o Foguete tossiu uma terceira vez e começou. Falava com voz clara e muito lenta, como se estivesse ditando as suas memórias, e olhava sempre por cima do ombro às pessoas a quem se dirigia. Tinha na verdade modos muito polidos.

- Quão feliz é o filho do rei - observou - por casar-se no mesmo dia em que serei lançado. Na verdade, nem preparando-o previamente, poderia resultar melhor para ele. Mas o Príncipe têm muita sorte.

- Ah! Sim? - disse o pequeno Busca-pé. - Pensei que fosse precisamente o contrário e que iríamos ser lançados em honra do Príncipe.

- Talvez seja este o seu caso - respondeu ele. - De fato, não tenho dúvida de que seja, mas comigo é diferente. Sou um foguete notável e filho de pais notáveis. A minha mãe foi a Roda Catarina mais famosa do seu tempo, célebre pela graça da sua dança. Quando fez a sua grande aparição em público, deu dezenove voltas antes de apagar-se, lançando em cada volta sete estrelas vermelhas no ar. Tinha três pés e meio de diâmetro e estava fabricada com pólvora da melhor qualidade. O meu pai era foguete como eu e de procedência francesa. Voava tão alto, que o povo temia que não voltasse a descer. Descia, contudo, porque era de excelente constituição e realizou uma queda brilhante, em forma de chuva dourada. Os jornais escreveram, em termos muito lisonjeadores a respeito da sua façanha. Na verdade, a Gazeta da Corte chamou-o de "um triunfo da arte pilotécnica".

- Pirotécnica, pirotécnica, é o que quereis dizer! - disse um Fogo-de-Bengala. - Sei que é "pirotécnico", porque vi isso escrito no meu próprio tubo.

- Bem, mas eu digo pirotécnico - respondeu o Foguete, num severo tom de voz, e o Fogo-deBengala ficou tão diminuído que começou a ameaçar os pequenos Busca-pés
para demonstrar que ele também era uma pessoa de bastante importância.

- Eu estava a dizer - continuou o Foguete -, eu estava a dizer... Que estava eu a dizer?

- O senhor estava a falar a respeito de si mesmo - replicou a Vela Romana.

- Naturalmente. Sabia que estava a discutir algum assunto interessante, quando fui tão grosseiramente interrompido. Detesto as grosserias e os maus modos de toda espécie, porque sou extremamente sensível. Não há ninguém no mundo tão sensível como eu, estou perfeitamente seguro disto.

- Que é uma pessoa sensível? - perguntou o Petardo à Vela Romana.

- Uma pessoa que, porque tem calos, pisa sempre os pés dos outros - respondeu a Vela Romana, bem baixinho, e o Petardo quase explodiu a rir.

- Perdão! De que vos ris? - perguntou o Foguete. - Eu não estou a rir.

- Estou a rir porque sou feliz - replicou o Petardo.

- É esta uma razão muito egoísta - disse o Foguete, com raiva -, que direito tendes de ser feliz? Deveríeis pensar nos outros. Na verdade, deveríeis pensar em mim. Penso sempre em mim e espero que todos façam a mesma coisa. Isto é o que se chama simpatia. É uma bela virtude e eu possuo-a em alto grau. Suponhamos, por exemplo, que alguma coisa me acontece esta noite. Que desgraça para todo o mundo! O Príncipe e a Princesa não voltariam mais a ser felizes, toda a sua vida matrimonial ficaria estragada. Quanto ao rei sei que não poderia suportar isso. Na verdade, quando começo a refletir na importância da minha posição, comove-me até quase chorar.

- Se quereis agradar aos demais - exclamou a Vela Romana -, faríeis melhor mantendo-vos seco.

- Certamente - exclamou o Fogo-de-Bengala, que se achava agora em melhor disposição. – Isto é simplesmente o senso comum.

- Senso comum, ora essa! - disse o Foguete, indignado. - Esqueceis que não tenho nada de comum e que sou muito notável. Ora, toda a gente pode ter senso comum, conquanto careça de imaginação. Mas eu tenho imaginação, pois nunca penso nas coisas como são realmente, vejo-as sempre muito diferentes do que são. Quanto a isto de manter-me seco, é que não há aqui, com toda a segurança, ninguém que saiba apreciar a fundo um temperamento emotivo. Felizmente para mim, não me importo com isto. A única coisa que nos sustenta na vida é a convicção da imensa inferioridade dos nossos semelhantes e este é um sentimento que tenho sempre cultivado. Mas nenhum de vós tem coração. Gritais e regozijais-vos, como se o Príncipe e a Princesa não estivessem celebrando as suas bodas.

- Bem, de fato - exclamou um pequeno Balão-de-fogo -, por que não? É uma ocasião bastante alegre e quando eu estalar no ar, pretendo contar tudo às estrelas lá em cima. Vereis como brilharão, quando eu lhes falar a respeito da linda noiva.

- Oh! Que conceito vulgaríssimo da vida! - disse o Foguete. - Não esperava outra coisa. Não há nada em vós. Sois oco e vazio. Ora, talvez o Príncipe e a Princesa possam ir viver num país em que haja um rio profundo, talvez tenham só um filho, um menininho de cabelo louro e de olhos de violeta como o próprio Príncipe. Talvez algum dia saia ele a passear com a sua ama. Talvez a ama adormeça debaixo de um grande sabugueiro; talvez o menino caia no rio profundo e se afogue. Que desgraça terrível! Coitados! Perderem o único filho! É na verdade demasiado terrível! Jamais poderei suportar tal coisa!

- Mas eles não perderam o seu único filho - disse a Vela Romana. - Não lhes sucedeu nenhuma desgraça absolutamente.

- Não disse que lhes sucedeu - replicou o Foguete. - Disse que poderia suceder-lhes. Se tivessem perdido o seu único filho, seria inútil dizer alguma coisa a respeito do sucedido. Detesto as pessoas que choram por causa do leite derramado. Mas quando penso que possam perder o seu único filho, sinto-me verdadeiramente muitíssimo afetado.

- Está-se a ver! - exclamou o Fogo-de-Bengala. - De fato sois a pessoa mais afetada que já vi na minha vida.

- Vós sois a pessoa mais grosseira que já conheci - disse o Foguete -, e não podeis compreender a minha amizade pelo Príncipe.

- Ora! Vós nem sequer o conheceis - resmungou a Vela Romana.

- Eu nunca disse que o conhecia - respondeu o Foguete. - Atrevo-me a dizer que se o
conhecesse, não seria nunca amigo dele. É coisa muito perigosa conhecer-se os amigos.

- Melhor faríeis se vós vos mantivesseis seco - disse o Balão-de-fogo. - Isso é que importa.

- É o que muito importa para vós, não tenho dúvida - replicou o Foguete -, mas chorarei, se me der vontade de chorar.

E realmente rebentou em lágrimas, que correram pela sua vareta como gotas de chuva e quase afogaram dois pequenos besouros que pensavam precisamente em fundar uma família e procuravam um bonito lugar seco para nele instalar-se.

- Deve ele ter um temperamento verdadeiramente romântico - disse a Roda Catarina -, pois chora, quando não há motivo para chorar.

E lançando um profundo suspiro, pôs-se a pensar nna caixa de pinho.

Mas a Vela Romana e o Fogo-de-Bengala estavam indignadíssimos e continuavam a dizer: "Charlatão, charlatão!", a plenos pulmões. Eram muito práticos e, quando se opunham a alguma coisa, gritavam: Charlatão.

Então apareceu a lua como um maravilhoso escudo de prata e as estrelas começaram a brilhar e chegaram do palácio os sons de uma música.

O Príncipe e a Princesa dirigiam o baile. Dançavam tão bem, que os altos lírios brancos espreitavam pela janela e os contemplavam e as grandes papoulas vermelhas abanavam as suas cabeças, marcando o compasso. Naquele momento o relógio bateu as dez horas, e depois as onze, e por fim as doze, e à derradeira batida da meia-noite, todos saíram para o terraço e o rei mandou chamar o Pirotécnico Real.

- Começai a queimar os fogos de artifício - disse o rei.

E o Pirotécnico Real curvou-se numa profunda reverência e encaminhou-se para o fundo do jardim. Tinha seis ajudantes, cada um dos quais levava uma tocha acesa na ponta de uma longa vara. Foi realmente uma soberba exibição.

- Whizz! Whizz!- começou a Roda Catarina, à medida que girava.

- Bum! Bum! Bum! - começou a Vela Romana.

Depois os Busca-pés dançaram por todo lado e os Fogos-de-Bengala tornaram tudo de uma cor escarlate.

- Adeus - gritou o Balão-de-fogo, à medida que se elevava, fazendo chover pequenas faíscas azuis.

- Pum! Pum! - responderam os Petardos, que achavam tudo aquilo muito divertido.

Todos conseguiram um grande êxito, exceto o Notável Foguete. Estava tão úmido por ter chorado, que não pôde pegar fogo. O melhor que havia nele era a pólvora, mas esta estava tão molhada pelas lágrimas que não pôde ser lançado de forma alguma. Toda a sua parentela pobre, à qual não se dignava falar sem um sorriso desdenhoso, produziu grande alvoroço no céu, como se fossem maravilhosas flores de ouro, florescendo em fogo.

- Bravo! Bravo! - gritava a corte.

E a Princesinha ria de prazer.

- Creio que me estão a reservar para alguma grande ocasião - disse o Foguete. - É
indubitavelmente isso.

E olhava em redor com um ar mais orgulhoso do que nunca.

No dia seguinte chegaram os operários para colocar tudo de novo no seu lugar.

- Evidentemente é uma comissão - disse o Foguete. - Recebê-la-ei com tranqüila dignidade.

Assim ergueu o nariz para o ar e começou a franzir o cenho com severidade, como se estivesse a pensar num assunto importantíssimo. Mas os homens não lhe deram absolutamente atenção, até deixá-lo para trás. Então um deles avistou-o.

- Oh! - gritou ele. - Que foguete imprestável!

E atirou-o por cima de um muro para dentro do fosso.

- Foguete imprestável? Foguete imprestável? - disse ele, enquanto girava no ar. - impossível! Foguete notável, foi isto o que o homem disse. Imprestável e notável soam muito parecidos. Na verdade, muitas vezes são a mesma coisa.

E caiu dentro da lama.

- Não é confortável aqui - observou -, mas sem dúvida é uma estação de águas elegante e mandaram-me para cá, a fim de que recupere a minha saúde. Os meus nervos estão decerto bastante desgastados e necessito de descanso.

Então uma pequena Rã, de olhos brilhantes como joias e de pele mosqueada de verde, nadou para perto dele.

- Estou a ver que é um recém-chegado! - disse a Rã. - Bem, afinal não há nada como a lama. Dêem-me tempo chuvoso e um fosso e sinto-me completamente feliz. Acreditais que a tarde será úmida? Assim o espero, embora o céu esteja todo azul e sem nuvens. Que pena!

- Aham! Aham! - disse o Foguete, começando a tossir.

- Que deliciosa voz tendes! - exclamou a Rã. - Na verdade parece o coaxar de uma Rã e o coaxo é, sem dúvida, o som mais musical que existe no mundo. Ouvireis o nosso coral esta noite. Sentar-nos-emos no antigo tanque dos patos junto da casa do fazendeiro e assim que a lua se erguer, começaremos. É tão arrebatador que todos ficam acordados para ouvir-nos. De fato, ontem mesmo, ouvi a mulher do fazendeiro dizer à sua mãe que não podia pregar olho de noite por nossa causa. É coisa muito agradável saber-se que se é assim tão popular.

-Aham! Aham! - emitiu o Foguete, com raiva. Estava muito aborrecido porque não podia sair do seu mutismo.

- Uma voz deliciosa, deveras - continuou a Rã. - Espero que ireis ao tanque dos patos. Vou dar uma olhada nas minhas filhas. Tenho seis lindas filhas e receio que o Lúcio possa encontrá-las. Ele é um verdadeiro monstro e não hesitaria em almoçá-las todas. Bem, adeus. Gostei da sua conversa, acreditai-me.

- E chamais a isto conversa? - disse o Foguete. - A senhora falou o tempo todo. Isto não é conversa.

- Alguém tem de escutar - respondeu a Rã -, e eu gosto de falar o tempo todo de mim mesmo. Isto poupa tempo e evita discussões.

- Pois eu gosto de discussões - disse o Foguete.

- Não o creio - replicou a Rã, complacentemente. - As discussões são extremamente vulgares, porque na boa sociedade toda a gente tem exatamente as mesmas opiniões. Adeus pela segunda vez. Estou a ver as minhas filhas ali adiante.

E a pequena Rã afastou-se nadando.

- A senhora é uma criatura muito irritante - disse o Foguete -, e muito mal educada. Detesto pessoas que falam de si mesmas, como a senhora, quando alguém quer falar a seu respeito, como eu. Isto é que eu chamo de egoísmo e o egoísmo é uma coisa detestabilíssima, especialmente para alguém com o meu temperamento, pois sou bem conhecido pelo meu caráter simpático. Na verdade, a senhora deveria tomar-me como exemplo, não poderia ter melhor modelo. Agora que tem essa oportunidade, aproveite-a sem demora, porque vou voltar para a corte imediatamente. Sou um grande favorito na corte. De fato, o Príncipe e a Princesa casaram-se ontem em minha honra. Sem dúvida, a senhora nada sabe desses assuntos, pois é uma provinciana.

- Não se dê ao trabalho de falar-lhe - disse uma Libélula, que estava pousada no alto de um grande junco pardo. - Ela já se foi embora.

- Bem, a perda é dela e não minha - respondeu o Foguete. - Não vou deixar de falar-lhe, somente porque não me presta ela atenção. Gosto de ouvir-me falar. É um dos meus maiores prazeres. Mantenho frequentemente longas conversas comigo mesmo e mostro-me tão inteligente por vezes que não compreendo uma só palavra do que estou a dizer.

- Então deveis ser professor de filosofia - disse a Libélula, e abrindo as suas lindas asas de gaze ergueu-se para o céu.

- Como foi tola não querendo ficar aqui - disse o Foguete. - Estou certo de que não tem tantas vezes uma oportunidade igual de cultivar o espírito. Contudo não me importo nem um pouquinho. Um gênio como o meu tenho certeza de que será apreciado algum dia. E mergulhou um pouco mais profundamente na lama.

Depois de algum tempo uma grande Pata Branca nadou para o lado dele. Tinha as patas amarelas, pés em forma de palmas, sendo considerada uma grande beleza por causa do seu bamboleio.

- Quá, quá, quá - disse ela. - Que forma curiosa tem o senhor. Posso perguntar-lhe se o senhor nasceu assim, ou é isto resultado de algum acidente?

- É completamente evidente que a senhora viveu sempre no campo - respondeu o Foguete -, de outro modo saberia quem eu sou. Contudo, desculpo a sua ignorância. Seria fora de propósito querer que os outros fossem tão extraordinários como a gente é. Sem dúvida ficará a senhora surpreendida ao saber que posso voar para o céu e descer numa chuva dourada.

- Não acho isto grande coisa - disse a Pata -, uma vez que não posso ver nisso utilidade alguma, mas, se o senhor pudesse arar os campos como o boi, ou puxar uma carroça como o cavalo, ou vigiar os carneiros como o cão pastor, isso, sim, seria alguma coisa.

- Minha boa criatura - exclamou o Foguete, num tom de voz bastante altivo -, vejo que a senhora pertence à classe baixa. As pessoas da minha posição nunca servem para nada. Temos um encanto especial e isso é mais do que suficiente. Eu mesmo não sinto a menor inclinação por trabalho algum e menos ainda por esta espécie de trabalho que a senhora recomenda. De fato, sempre fui de opinião que o trabalho rude é simplesmente o refúgio de quem não tem outra coisa que fazer na vida.

- Bem, bem -, disse a Pata, que era de temperamento pacífico e não discutia nunca com ninguém -, cada qual tem gostos diferentes. De qualquer modo, desejo que o senhor venha estabelecer aqui a sua residência.

- Oh! nada disso - exclamou o Foguete. - Sou um mero visitante, um visitante distinto. O fato é que acho este lugar bastante tedioso. Não há aqui nem sociedade nem privacidade. Na verdade, é essencialmente suburbano. Voltarei provavelmente à corte, pois sei que estou destinado a causar sensação no mundo.

- Eu também pensei em entrar na vida pública - observou a Pata. - Há muitas coisas que precisam ser reformadas. Cheguei mesmo a presidir a um comício, faz algum tempo, quando votamos resoluções condenando tudo quanto não nos agradava. Não obstante, não produziram elas grande efeito. Agora ocupo-me de coisas domésticas e cuido da minha família.

- Nasci para a vida pública e nela figuram todos os meus parentes - disse o Foguete -, até mesmo os mais humildes. Quando aparecemos, excitamos grandemente a atenção. Desta vez não apareci pessoalmente; mas, quando o faço, o resultado é um espetáculo magnífico. Quanto às coisas domésticas, envelhecem-nos rapidamente e apartam o espírito de coisas mais altas.

- Ah! Como são belas as coisas altas da vida! - disse a Pata. - Isso lembra-me que estou com muita fome.

E desceu nadando a corrente, dizendo: quá, quá, quá.

- Volte! Volte! - gritou o Foguete. - Tenho muita coisa para dizer-lhe.

Mas a Pata não lhe deu atenção.

"- Fiquei satisfeito por ela ter ido embora" - disse a si mesmo, "não resta dúvida que o seu espírito é medíocre". E mergulhou um pouco mais profundamente na lama e começou a pensar na solidão do gênio, quando, de repente, dois meninos de blusas brancas desceram a correr a margem, com uma chaleira e alguns gravetos.

- Deve ser uma delegação - disse o Foguete, tentando mostrar-se muito respeitável.

- Oh! - gritou um dos meninos. - Olha aquela vareta estragada. É estranho que tenha vindo parar aqui.

E tirou o Foguete de dentro do fosso.

- Vareta estragada! - disse o Foguete - Impossível! Vareta dourada, foi o que ele disse. Vareta dourada é muito lisonjeiro. De fato, ele toma-me por um personagem da corte!

- Vamos pô-la no fogo! - disse o outro menino. - Ajudará a ferver a chaleira.

De modo que empilharam os gravetos e puseram o Foguete por cima e acenderam o fogo.

- Isto é magnífico! - exclamou o Foguete. - Vão soltar-me em plena luz do dia, de modo que todos possam ver-me.

- Iremos dormir agora - disseram eles -, e quando acordarmos, a chaleira já terá fervido.

E, deitando-se sobre a relva, fecharam os olhos.

O Foguete estava muito úmido, de modo que levou muito tempo para incendiar-se, afinal, porém, o fogo pegou.

- Agora vou partir! - gritou ele, e estirou-se e empertigou-se todo. - Sei que irei subir mais alto que as estrelas, mais alto do que a lua, mais alto do que o sol. De fato, subirei tão alto que...

Fizz! Fizz! Fizz! e ele subiu direto no ar.

- Delicioso! - exclamou - Continuarei a subir assim para sempre. Que triunfo eu sou!

Mas ninguém o viu.

Então começou a sentir uma estranha sensação de formigamento.

- Agora vou explodir - gritou. - Incendiarei o mundo inteiro e farei tal barulho que ninguém falará a respeito de qualquer outra coisa durante um ano inteiro.

E, ele explodiu com certeza.

Bang! Bang! Bang! fez a pólvora. Disso não resta a menor dúvida.

Mas ninguém o escutou, nem sequer os dois meninos que dormiam profundamente.

Então nada mais restou do Foguete senão a vareta e esta caiu nas costas de uma Gansa que estava dando um passeio ao lado do fosso.

- Céus! - exclamou a Gansa. - Está a chover varetas! E correu para dentro d'água.

- Eu sabia que haveria de causar grande sensação - arquejou o Foguete e expirou.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Nei Garcez (O Negrinho do Pastoreio)


Nas campinas do Rio Grande,
sem limites, sem porteiras,
quanto mais o gado expande
mais se afasta das cocheiras.

Entre veados e avestruzes,
a correr, na pradaria,
todo o gado... Nossa, cruzes!
Foge, longe, todo dia!

O estancieiro, um dos donos
de uma xucra criação,
era mau com os colonos
e a ninguém lhe dava a mão.

Seu escravo, um bom Negrinho, 
mas que era maltratado,
com o baio, bem cedinho,
campeava o desgarrado.

O Negrinho, escravizado,
por perder uma parelha,
apanhou, de guasca, atado,
e de relho, em sua orelha.

Sob o sol, na pradaria,
com o lombo todo inchado,
pastoreando a gadaria,
sofreu tanto o desgraçado.

Louco para ir embora,
entre os piados das corujas,
reza pra Nossa Senhora
e se benze com mãos sujas.

Põe-se o sol, dá um vento e chuva,
vem a noite, a fome, e enfim...
Na casinha da saúva,
dormitou sobre o cupim.

Sob o céu noturno, infindo,
atacou-lhe o graxaim,
cortando a guasca, e latindo,
soltou o gado por fim.

Noite adentro, o galo canta,
cerração e um tempo estranho,
o Negrinho, então, se espanta...
Perdeu todo o seu rebanho.

O estancieiro, novamente,
amarrou o bom Negrinho,
lhe batendo fortemente,
com a guasca... Coitadinho!

O Negrinho, em sua sina,
rezando a Nossa Senhora,
foi, de baio, na campina,
juntar o gado lá fora.

Pela centenária lenda,
Simões Lopes Neto, ensina
como encontrar uma Prenda
na vastidão da campina...

"Negrinho do Pastoreio,
com este coto de vela
luzindo a Virgem Madrinha,
peço a você, sem receio,
campeando a moça mais bela,
a encontrar a Prenda Minha!

Foi por aí que perdi...
Foi por aí que perdi..."

(Terceiro Lugar em Concurso Literário, em Porto Alegre, com tema sobre qualquer obra do Poeta João Simões Lopes Neto, em homenagem aos seus 150 anos de nascimento)

Fonte:
Enviado pelo poeta

Charles Baudelaire (Os Olhos dos Pobres)

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo, pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só. Sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.

De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estreia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados. Toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.

Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.

Os olhos do pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.” Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento. Mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

Folclore Japonês (Tsurara Onna: A Lenda da Mulher de Gelo)

Essa é mais uma velha história de fantasmas do Japão. Tsurara Onna ou “A Mulher sincelo”, conta sobre um homem que vivia solitário em meio a floresta e, numa noite fria de nevasca, encontra uma mulher fantasmagórica tão alva e esbelta como um pingente de gelo. O antigo conto popular japonês é semelhante à outra lenda famosa:  Yuki-Onna “A Mulher da neve”.

A Lenda

Há muito tempo no Japão existiu um homem que nunca havia se casado. Ele morava sozinho em uma pequena casa, numa região desértica dentro da espessa floresta. O homem era muito solitário e ansiava por alguém que pudesse passar a vida a seu lado.

Uma manhã de inverno, ele estava olhando para fora da janela, quando passou a perceber alguns sincelos pendurados sob o beiral de sua casa.

Ele disse para si mesmo: “Eu gostaria de ter uma mulher tão alva e bela como esses pingentes”.

Naquela mesma noite, houve uma batida na porta da frente de sua casa. Quando o homem atendeu, surpreso, viu uma mulher de uma beleza estranhamente sobrenatural parada bem em frente a sua porta. O seu corpo era elegantemente longo e delgado e seu rosto estava pálido como a neve. Ele a convidou a sair do frio.

A bela e estranha mulher acabou por ficar e, conforme o tempo passava, o casal se apaixonou. Eles decidiram viver na pequena cabana como marido e mulher.

Houve apenas um pequeno problema. O homem percebeu que sua bela esposa tinha um estranho habito, ela nunca tomava banho. Sempre que tentava falar sobre isso, ela se recusava a discutir o assunto.

Um dia, o marido já cansado da situação, agarrou a mulher e arrastou-a para o banheiro. Ela gritava e chorava, tentando se esquivar para longe dele. Decidido, jogou-a na banheira de água quente, deixando-a lá e batendo fortemente a porta atrás de si.

Uma hora se passou e tudo o que o homem pode ouvir foi o silêncio. Não havia sons de salpicos d’água vindo do banheiro, nem nada. Pensando o quanto isso era estranho, ele abriu a porta e olhou para dentro.

Ele estava vazio. Sua esposa tinha desaparecido. Tudo o que ele viu flutuando na água, foi o pente de cabelo que sua mulher sempre usava.

O homem estava com o coração partido. Ele imaginava que sua esposa, aborrecida com o acontecido, o havia deixado, fugindo. Então, depois de muito procurar, mesmo contrariado, decidiu seguir em frente com sua vida.

Poucos meses depois, ele conheceu uma nova mulher e decidiram se casar. Em pouco tempo, sua nova esposa veio morar em sua cabana, e felizes, passaram os meses seguintes juntos. Até que o inverno aproximou-se novamente.

Após uma noite de forte nevasca, o homem olhou pela janela e viu um enorme pingente sob o beiral do telhado de sua casa. Aborrecido com suas lembranças, decidiu  sair para derrubá-lo mas, havia uma mulher do lado de fora parada estranhamente sobre a neve. Um calafrio o percorreu ao sentir seu gélido olhar, ele a reconheceu…  Era sua antiga esposa.

Dentro da casa, a nova mulher ouviu um grito de agonia terrível. Ela correu para fora e encontrou o homem já sem vida deitado sobre a neve. Ao redor de sua cabeça, o sangue quente tingia de vermelho os brancos cristais. A seu lado, um único e grande pingente de gelo que havia perfurado seu olho penetrando profundamente seu cérebro. O frio sincelo o atingira matando-o instantaneamente.

Fonte:

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Nei Garcez (Pelo Centenário de Luiz Otávio)


Oscar Wilde (O Rouxinol e a Rosa)

- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas estamos no inverno e não há uma única rosa no jardim…

Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado…

- Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – disse o Estudante, com os olhos cheios de lágrimas. – Ah! Como a nossa felicidade depende de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça  da minha vida.

Eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Tenho cantado o Amor noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo… O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja, mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.

- Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Somente se lhe levar uma rosa vermelha… Ah… Como queria tê-la em meus braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim… e ficarei só. Ela apenas passará por mim… Passará por mim… e meu coração se despedaçará.

- Eis um verdadeiro apaixonado… – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. O que é dor para ele é alegria para mim. Grande maravilha, na verdade, é o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.

- Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe… – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.

- Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.

- É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.

- Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.

- Chora por causa de uma rosa vermelha, – informou o Rouxinol.

- Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E  o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.

Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.

Subitamente, abriu as asas pardas e voou. Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim. Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.

- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!

- Minhas rosas são brancas. Tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.

Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.

- Dá-me  uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.

A roseira sacudiu-se levemente.

- Minhas rosas são amarelas como as cabelos dourados das donzelas, ainda mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez ela possa te possa ajudar.

O Rouxinol então, dirigiu o vôo para  a roseira que crescia sob a janela do Estudante.

- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei a mais linda de minhas canções.

A roseira sacudiu-se levemente.

- Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno congelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.

- Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, – uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?

- Há, respondeu  a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.

- Dize. Não tenho medo.

- Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.

- A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa… É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol  em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola…O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de  um pássaro comparado ao coração de um homem?

Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.

O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.

- Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te! Terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia, mais poderoso que o poder. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.

O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.

Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.

- Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.

Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.

Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.

- Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa em cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que  pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!

Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.

Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais foi se enterrando em seu peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou…

Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina, e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os  pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.

Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol – exigiu a Roseira – senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.

O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.

E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.

Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.

- Mais ainda, Rouxinol. – clamou a Roseira – Raia o dia antes que eu finalize a rosa.

E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.

Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.

E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.

Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.

Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.

Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.

A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.

- Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.

Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.

- Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.

Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.

- Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, – lembrou o Estudante. – Aqui tens a rosa mais linda e vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre o coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá o quanto te amo.

A moça franziu a testa.

- Esta rosa não combina com o meu vestido, disse. Ademais, o Capitão da Guarda mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores…

- És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.

- Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante… não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o Capitão da Guarda… – e a moça levantou-se e entrou em casa.

- Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.

Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler…

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Folclore Japonês (Hagoromo: O Manto Celestial)

Essa é uma antiga lenda sobre “Hagoromo”, o manto de penas das donzelas celestiais, as “Tennyos”. Existem várias versões do conto que se passa em Miho-no-Matsubara em Shizuoka, um dos lugares mais paradisíacos do Japão.  O local é conhecido como o extenso litoral de verdes pinheiros espalhados ao longo de sete quilômetros e, ainda, com vista panorâmica do Monte Fuji. Devido à sua beleza é designado como uma das três mais belas vistas do país. Em suas praias, existe o “Hagoromo no Matsu”, um velho pinheiro com mais de 650 anos, que dizem ser a árvore onde a donzela celestial depositou seu manto.

A lenda

Era uma vez, em uma época passada, um jovem pescador de Miho chamado Hakuryō.  Hakuryō sempre saia para tentar a sorte na pesca perto dos pinheiros de Miho-no-Matsubara. Ele estava muito acostumado com a deslumbrante paisagem da praia de areias brancas cercada pelo magnífico bosque de pinheiros.  Mas naquela manhã, a visão do Fujisan subindo acima das águas da baía era especialmente bela. Vindo do nada, um perfume requintado encheu o ar.

O perfume chamou Hakuryō em direção às árvores, e próximo de um dos pinheiros de matsu, batendo suavemente na brisa, pendia um manto diferente de tudo que ele já tinha visto.

“Que lindo”, disse o pescador para si mesmo. “Vou levá-lo para casa.”

Enquanto recolhia o manto, ele ouviu uma voz. “Esse manto pertence a mim”.

Hakuryō, surpreso, virou-se e deparou com uma bela mulher que saia da sombra da árvore.

“Eu sou uma donzela do céu. Meu manto de penas não tem nenhuma utilidade para você. Por favor, devolve-o a mim, pois eu não posso voltar para o céu sem ele.”

Hakuryō ficou chocado ao pensar que ele tinha em suas mãos um dos mantos Divinos, mas uma vez que ele viu a expressão de sofrimento na donzela, decidiu devolver-lhe o precioso traje.

“Eu vou dar-lhe de volta, mas, primeiro, dança para mim a Dança do Céu”.

A donzela celestial sentiu um grande alívio e concordou com o termo do pescador, mas disse: “Eu não posso dançar sem o meu manto. Devolve-o para mim primeiro”.

Hakuryō ficou nervoso. “Se eu der o Manto de Plumas primeiro, você vai voltar para o Céu!”.

A jovem olhou para o homem bruscamente e disse: “mentiras e enganos são criações humanas. Elas não existem no Mundo Acima”.

Hakuryō sentiu vergonha por essas palavras, e estendeu o manto com as mãos trêmulas.

A donzela celestial envolveu-se em seu manto de penas, e as mangas começaram a se agitar, vibrando, então ela deu início a uma dança suave e elegante. Mais uma vez o cheiro do perfume de rosas encheu o ar, e com ele veio o som de apitos e tambores.

Hakuryō estupefato com tamanha beleza, olhava admirado a donzela que girava e girava, seus pés delicados deixaram de tocar a areia, subindo no ar, mais e mais, as penas brancas de seu manto reluziam, até que ela finalmente desapareceu nas brumas das águas ao redor do Fujisan, ascendendo finalmente ao céu.

Fonte
http://www.cacadoresdelendas.com.br/japao/hagoromo-o-manto-celestial/#more-5428

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Oscar Wilde (O Artista)

Um dia, despertou-lhe na alma o desejo de esculpir uma estátua do Prazer que dura um instante. E partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar o bronze. Mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e em nenhuma parte o metal seria encontrado, a não ser na estátua da Dor que é permanente.

E fora ele que, com as próprias mãos, fundira essa estátua, erigindo-a no túmulo de alguém a quem muito amara na vida. E na tumba da morta, que tanto amara, colocou a própria criação, como um símbolo do amor masculino, que é imortal, e a dor humana, que dura a vida inteira.

E em todo o mundo não havia bronze, a não ser o dessa estátua.

Ele, então, retirou a estátua que moldará, pô-la num grande forno, deixando-a derreter-se.

E com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.

Cecília Meireles (Poemas Escolhidos)

DESPEDIDA

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? - me perguntarão. -
Por não Ter palavras, por não ter imagem.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras ?
Tudo.
Que desejas ?
Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação ...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra ... )
Quero solidão.

DIA DE CHUVA

As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.

Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.

Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...

quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos...

Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios...

Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e com limo pela face,
ali ficasse batendo

- ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade...

Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...

E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.

Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.

É PRECISO NÃO ESQUECER NADA

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.

DOS CRAVOS ROXOS

Esta noite, quando, lá fora,
campanários tontos bateram
doze vezes o apelo da hora,
na minha jarra, onde a água chora,
meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos defuntos,
são como beijos que sofreram,
como beijos que enlouqueceram
porque nunca vibraram juntos...
São como a sombra dolorida
de olhos tristes, que se perderam
nas extremidades da vida...
Oh! miséria da despedida...
Meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos, fanados,
crepuscularam, faleceram,
como sonhos que se esqueceram,
alta noite, de olhos fechados...

Eu pensava numa criatura,
quando os campanários bateram...
Tudo agora se me afigura
irremediável desventura...
Irremediável desventura!
Meus dois cravos roxos morreram…

LAMENTO DO OFICIAL POR SEU CAVALO MORTO

Nós merecemos a morte,
porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?

Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

MULHER AO ESPELHO

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

MONÓLOGO

Para onde vão minhas palavras,
se já não me escutas?
Para onde iriam, quando me escutavas?
E quando me escutaste? - Nunca.

Perdido, perdido. Ai, tudo foi perdido!
Eu e tu perdemos tudo.
Suplicávamos o infinito.
Só nos deram o mundo.

De um lado das águas, de um lado da morte,
tua sede brilhou nas águas escuras.
E hoje, que barca te socorre?
Que deus te abraça? Com que deus lutas?

Eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,
com as minhas perguntas.
Para quê? Para quê? Rodas tontas,
em campos de areias longas
e de nuvens muitas.

PUS O MEU SONHO NUM NAVIO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
depois abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

SONHOS DA MENINA

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha de teia de aranha...

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

NOTURNO

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?

Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?

Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?

Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?

O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.

E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.

Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.

Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.

Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.

Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!

MURMÚRIO

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!