quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Voltaire (Aventura Indiana Traduzida pelo Ignorante)

Durante a sua estada na Índia, Pitágoras aprendeu com os ginossofistas, como todos sabem, a linguagem dos animais e das plantas. Passeando um dia por um campo à beira-mar, ouviu estas palavras: “Que desgraça a minha ter nascido relva! Mal chego a duas polegadas de altura, vem logo um monstro devorador, um animal horrível, que me alastra com seus largos pé, a sua boca é armada com uma dupla fila de foices cortantes, com a qual me arranca, me tritura e me engole. Os homens, chamam a esse monstro de ovelha. Não creio que haja no mundo mais abominável criatura.”

Pitágoras avançou alguns passos e topou com uma ostra que bocejava sobre um rochedo. O filósofo ainda não havia adotado essa admirável lei que nos proíbe comer aos animais nossos semelhantes. Ia, pois, engolir a ostra, quando a pobre pronunciou estas comoventes palavras: “Ó Natureza! Como é feliz a relva, que é, como eu, obra tua! Ela, depois de cortada, renasce: é imortal. E nós, miseráveis ostras, em vão somos defendidas por uma dupla couraça, e uns celerados nos comem às dúzias, ao almoço, e tudo se acaba para sempre. Que terrível o destino de uma ostra, e como são bárbaros os homens!”

Pitágoras estremeceu. Sentiu a enormidade do crime que ia praticar: debulhado em pranto, pediu perdão à ostra e colocou-a cuidadosamente sobre o seu rochedo.

De regresso à cidade, a meditar profundamente sobre essa aventura, viu aranhas que comiam moscas, andorinhas que comiam aranhas, gaviões que comiam andorinhas. “Esse pessoal todo – dizia ele consigo – não tem a mínima filosofia”.

Ao entrar na cidade, foi Pitágoras atropelado, contundido, derrubado por uma multidão de cretinos e cretinas que corriam a gritar: “Bem feito! Bem feito! É mesmo merecido!”

— “Quem? O quê? Como!” – disse Pitágoras, erguendo-se do chão. E a gente sempre a correr, exclamando: “Ah! como não vai ser bom vê-los cozer!”

Pitágoras julgou que falavam de lentilhas ou quaisquer outros legumes; absolutamente: tratava-se de dois pobres hindus. “Ah, sem dúvida – pensou Pitágoras – são dois grandes filósofos que estão cansados da vida e querem renascer sob outra forma; é um prazer mudar de casa, embora se fique sempre mal alojado; de gostos não se discute.”

Avançou com a multidão até a praça pública e foi lá que viu uma grande pira acesa e, defronte a essa pira, um banco a que chamavam tribunal, e, nesse banco, uns juízes, e esses juízes seguravam todos uma cauda de vaca e usavam todos um barrete que se assemelhava perfeitamente às duas orelhas do animal que transportou Sileno, quando este veio outrora à Índia em companhia de Baco, depois de atravessarem a seco o mar Eritreu e terem feito parar o sol e a lua, como vem fielmente descrito nas Órficas.

Entre esses juízes havia um excelente homem conhecido de Pitágoras. O sábio da Índia explicou ao sábio de Samos em que consistia a festa que iam oferecer ao povo indiano.

“Os dois hindus” – disse ele – “não têm o mínimo desejo de ser queimados; os meus graves confrades condenaram ambos a esse suplício: um por haver dito que a substância de Xaca não é a substância de Brama; e o outro, por haver suspeitado que se podia agradar ao Ser Supremo pela simples virtude, sem que seja preciso, à hora da morte, segurar uma vaca pela cauda; pois que, dizia ele, a gente pode ser sempre virtuoso, mas nem sempre se encontra uma vaca à mão. De tal forma se horrorizaram as boas mulheres da cidade com tão heréticas proposições que não deram descanso aos juízes enquanto estes não mandaram os dois infelizes para a fogueira.”

Pitágoras considerou que, desde a relva até o homem, há sobejos motivos de aborrecimento. No entanto, fez que os juízes, e até mesmo os devotos, ouvissem a voz da razão; e foi essa a única vez em que tal coisa aconteceu.

Em seguida foi pregar tolerância em Crotona; mas um intolerante lhe ateou fogo à casa: e Pitágoras morreu queimado, ele que tirara dois hindus da fogueira…

Salve-se quem puder!

Carlos Zemek Receberá Prêmio Literarte


O Prêmio Literarte este ano será em Curitiba, é a festa mais importante do calendário LITERARTE e acontecerá nos dias 5,6 e 7 de Agosto/2016, em Curitiba, Paraná.

Na sexta-feira, no  jantar acontecerá o  lançamento Literário Coletivo, do Livro do Festival de Contos,  no Restaurante Madalosso. No sábado pela manhã o tradicional city Tour e a noite  evento de gala, a partir das 19 horas, no Memorial de Curitiba.

Entre os homenageados do ano 2016, está Carlos Zemek, artista plástico e curador. Carlos Zemek já realizou exposições na Patagônia (Argentina), em Buenos Aires (Argentina), e em Lisboa (Portugal), além do Brasil. Ele mora em Curitiba, e foi artista e curador de mostras coletivas no Museu Paranaense, Museu de Arte Sacra de Curitiba, Museu Histórico de Campo Largo, Instituto Cervantes de Curitiba, Solar do Rosário, e outros espaços de arte.

A LITERARTE- Associação Internacional de escritores e artistas foi fundada em 10 de julho de 2010, mas começou suas atividades propriamente dita em outubro deste mesmo ano. Trata-se de uma entidade cultural de tempo indeterminado, com foro jurídico na cidade de Cabo Frio, com sede na Avenida Nilo Peçanha, nº 360, Lj 106, Centro, Cabo Frio, RJ. Sem fins lucrativos, tem por objetivo principal associar, unir, promover e divulgar, a nível nacional e internacional, escritores e artistas plásticos, residentes ou não no Brasil.

Fonte:
Isabel Furini

Folclore Japonês (Hatschihime)

Hatschihime, a donzela protegida, popularmente conhecida como “A Donzela com Capacete de madeira” se passou há muito, muito tempo… Em uma pequena aldeia do Japão vivia um velho homem, sua esposa e filha. Por muitos anos eles foram felizes e prósperos, mas maus momentos vieram e, finalmente, nada lhes foi deixado, além da menina, que era tão bonita como o sol da manhã. Os vizinhos foram muito amáveis, e fizeram tudo o que podiam para ajudar seus pobres amigos, mas o velho casal sentiu que desde que tudo tinha mudado eles preferiam ir para outro lugar e recomeçar. Então um dia eles partiram adentrando o país, levando apenas sua única filha com eles…

A Lenda

Agora, a mãe e a filha tinha muito que fazer para manter a casa limpa e cuidar do jardim, mas o homem sentava-se por horas a fio olhando o infinito a pensar nas riquezas que antes possuíam. Cada dia que passava mais e mais miserável ele se sentia, até que finalmente, ele foi para sua cama e nunca mais se levantou. Sua esposa e filha choraram amargamente por sua perda, e passaram-se muitos meses sem que pudessem ter prazer em nada.

Então, certa manhã a mãe de repente olhou para a menina e percebeu que ela tinha crescido ainda mais encantadora do que antes. Seu coração teria ficado contente com a visão, mas agora que as duas estavam sós no mundo, ela temia que algum mal pudesse lhes acontecer. Então, como uma zelosa mãe, ela tentou ensinar sua filha tudo o que sabia, e, desta forma, mantê-la sempre ocupada, de modo que ela nunca iria ter tempo para pensar sobre si mesma ou no mundo lá fora. E a garota que era uma boa filha, ouviu todas as lições de sua mãe, e assim os anos se passaram.

Na última úmida primavera, a mãe pegou uma friagem, e embora no início ela não prestasse muita atenção, a enfermidade cresceu gradualmente, deixando-a mais e mais doente. A pobre mãe pressentiu que ela não tinha muito tempo de vida. Então chamou a filha e disse-lhe que muito em breve ela estaria sozinha no mundo, e que ela deveria cuidar de si mesma, pois dali em diante, não haveria ninguém para olhar por ela. E temerosa, sabendo que era mais difícil para as mulheres bonitas passar despercebidas do que para outros, ela mandou-lhe buscar um capacete de madeira para que fosse usado fora da casa. Ela deveria colocá-lo em sua cabeça, e puxá-lo para baixo sobre as sobrancelhas, de modo que quase todo o rosto deveria ser encoberto em sua sombra.

A menina fez o que lhe foi orientado, e sua beleza era tão escondida sob a aba de madeira, que cobria todo seu rosto e o cabelo, que ela poderia ter passado por toda a multidão, que ninguém teria olhado duas vezes para ela.

E quando viu isso, o coração da mãe que estava em repouso, finalmente sossegou, ela então deitou em sua cama e calmamente morreu.

A menina chorou por muitos dias. Mas, sentiu que estando sozinha no mundo, ela deveria partir e arranjar trabalho, pois agora só tinha que depender de si mesma. Não havia nada para ser obtido no lugar onde estava. Decidida, ela arrumou suas roupas em um saco, e caminhou sobre as colinas até que chegou à casa do homem que possuía a maioria dos campos nessa parte do país.

E a jovem conseguiu trabalho com ele, e trabalhou em suas terras de cedo à tarde. E todas as noites quando ia para a cama, sentia-se em paz, pois ela não tinha esquecido o que tinha prometido a sua mãe. E, mesmo estando sob o sol quente, ela sempre mantinha o capacete de madeira sobre a cabeça, ao que o povo da região deu-lhe o apelido de Hatschihime.

Porém, apesar de todos os seus cuidados, a fama de sua beleza se espalhou; muitos jovens insolentes iam atrás dela enquanto estava no trabalho e tentavam levantar o capacete de madeira. Mas a menina não tinha nada a dizer a eles, e apenas pedia-lhes que a deixassem; em seguida, eles insistiam em falar com ela, mas ela nunca respondia e continuava com o que estava fazendo.

E assim seus dias iam se passando, e embora seu salário fosse baixo e a comida não muito abundante, ainda assim, ela conseguia viver, e isso era suficiente.

Certa vez, aconteceu de seu mestre passar através do campo onde ela estava trabalhando, e, impressionado com o seu desempenho, parou para observá-la. Depois de um tempo ele lhe fez algumas perguntas, e, em seguida, levou-a para sua casa, e disse-lhe que doravante o seu único dever seria cuidar de sua esposa doente.

A partir deste momento a garota sentiu como se todos os seus problemas terminassem, mas o pior deles ainda estava por vir.

Não muito tempo depois, Hatschihime havia se tornado empregada da patroa doente, fazendo todo tipo de trabalho doméstico na casa. Por esse tempo, o filho mais velho da casa voltou de Kyoto, onde estava estudando. Ele estava cansado dos esplendores da cidade e seus prazeres, e alegrou-se o suficiente para estar de volta na terra verde, entre os pêssegos-flor e flores doces.

Um dia, passeando no início da manhã, ele avistou a garota com o capacete de madeira em sua cabeça. Curioso, imediatamente foi até sua mãe para perguntar quem era a jovem, de onde veio, e por que ela usava aquela coisa estranha sobre seu rosto. Sua mãe respondeu-lhe que era um capricho da menina, e ninguém conseguia convencê-la a colocá-lo de lado; o jovem riu, mas manteve seus pensamentos para si mesmo.

No entanto, em um dia quente, ele voltava para casa quando avistou a empregada de sua mãe em um pequeno riacho que corria pelo jardim, distraída, espirrava um pouco de água sobre seu rosto. O capacete foi empurrado de lado, e como o jovem ficou observando por trás de uma árvore, ele teve um vislumbre da grande beleza da moça. Deslumbrado com tamanho encanto determinou que, além daquela jovem, ninguém mais deveria ser sua esposa.

Mas quando ele contou a sua rica família sobre sua intenção de casar com a garota, ficaram todos muito irritados, fazendo todo tipo de maus comentários sobre ela. “Eu tenho apenas que permanecer firme”, pensou ele. “E eles terão que ceder”.

Porém, não ocorreu a ninguém que ela recusaria o jovem, mas assim foi. Apesar de corresponder aos sentimentos do belo rapaz, não seria certo, ela sentiu, provocar uma desavença na casa, e, embora em segredo, chorou amargamente por um longo tempo, nada a faria mudar de ideia.

Por fim, uma noite sua mãe lhe apareceu em sonho e ordenou-lhe que se casasse com o jovem. Então, da próxima vez que ele pediu a sua mão em casamento – como ele fazia quase todos os dias – para sua surpresa e alegria, a menina consentiu.

Os pais do jovem, em seguida, vendo que não restava nada a fazer, começaram a fazer os grandes preparativos adequados à ocasião. É claro que os vizinhos, contrariados com a ideia de ver um nobre que poderia desposar suas filhas, casar-se com uma miserável, disseram muita coisa ruim sobre a jovem de capacete de madeira, mas o noivo estava feliz demais para prestar atenção, e apenas riu deles.

Quando tudo estava pronto para a festa, e a noiva estava vestida com o mais belo vestido bordado encontrado no Japão, faltava retirar o capacete de madeira para arrumar-lhe os cabelos. Mas o capacete não saiu, e quanto mais eles puxavam, mais forte ele parecia prender, até que a pobre moça gritou de dor. Ao ouvir os gritos, o noivo correu e a acalmou, declarando que, já que ele não saia, ela deveria se casar com o capacete.

Em seguida, a cerimônia começou, e o casal de noivos juntos se sentou, e o copo de vinho lhes foi trazido, a partir da qual eles tinham que juntos beber. E quando eles tinham bebido tudo, e o copo estava vazio, uma coisa maravilhosa aconteceu.

O capacete, de repente, com um ruído alto se partiu e caiu em pedaços no chão, e como todos se viraram para olhar, eles encontraram o chão coberto com pedras preciosas que tinham caído dele. Mas os convidados estavam menos espantados com o brilho dos diamantes do que com a beleza da noiva, que foi além de qualquer coisa que já tinham visto ou ouvido falar. Seu rosto resplandecia à beleza e alegria.

A noite foi passada em meio a muita música e dança, e, em seguida, a noiva e o noivo foram para sua própria casa, onde viveram felizes até sua morte. Não antes de terem muitos filhos, que eram famosos por todo o Japão por sua bondade e beleza.

Fonte:
Adaptação do Livro: Japanese Fairy Tales unit. Story: The Violet Fairy Book by Andrew Lang and illustrated by H. J. Ford (1901), in Caçadores de Lendas

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 2

A casa ficava um pouco distante do portão de entrada, e até havia um caminho sombreado de pequenos pinheiros bravos, acácias e medronheiros, com pequenos mirantes de pedra, que se abriam sobre o mar. As apresentações foram simples e despidas de qualquer cerimonial, e Luís Carlos ficou encantado com os pais de Sandra Cristina, que eram educadas e simples. Ela esteve sempre presente, mas como a marcar uma ostensiva distância do pintor. Foi a única pessoa que destoou do ambiente de simpatia que o acolheu.

Luís: - Escute Sandra Cristina, eu vim pedir autorização a seus pais, para pintar o seu retrato, pois sem essa autorização, não me atreveria a pintá-la. Mas, se não quiser...

Sandra: - Bem sei, se eu não quiser deixar-me retratar, você ficaria muito satisfeito, porque se livraria de cumprir a sua promessa - não é assim?!

Luís: - Não é verdade, Sandra Cristina, se você não quiser, perco a grande oportunidade da minha vida de poder fazer uma obra de grande arte !

No tom de voz em que falara, transparecia sinceridade, o que impressionou todos os presentes. A mãe da pequena e o António das Ondas encararam-se num olhar de compreensão. O pai tossiu sobre o seu cachimbo, e Sandra Cristina, pareceu sacudida pela veemência com que o rapaz falara...

Sandra: - Se é assim... Se verdadeiramente, me quer pintar, mesmo depois de saber que eu não passo de uma coxa, agradeço-lhe que me tenha escolhido, para o seu quadro, pois sei que já tentou com algumas das mais bonitas raparigas de São Pedro de Moel.

Luís: -  Muito obrigado. Você não tem nada que me agradecer, antes pelo contrário!

André, pai de Sandra Cristina, interveio…

 André: - Vamos então festejar o acordo entre o pintor e o modelo, bebendo um copo do bom vinho da região de Leiria.

António: -  Que por sinal é um excelente vinho!

Luís Carlos vivia em pleno contentamento. Havia já quinze dias que começara a pintar a sua enorme tela, em que Sandra Cristina, aparecia tal como sempre a via diante de si: sentada num mirante que se debruçava sobre a poesia incomparável do Atlântico, e, sobretudo sobre São Pedro de Moel. À medida que o quadro se aproximava do fim, Luís Carlos, vivia intensamente essa estranha sensação que antecede a glória. Estava realizando uma autêntica obra-prima, na qual, para mais, eram evidentes os seus profundos sentimentos perante o modelo... Se o amor, o êxtase administrativo, tivesse traços ou cores próprios, decerto seriam aqueles que Luís Carlos traçara e coloria na sua tela. Por isso pretextara uma superstição sua, e assim ninguém ainda vira o quadro, pois ele declarava que sempre que trabalhava numa obra de responsabilidade, não gostava que a admirasse, antes de estar concluída. O contrário dava-lhe azar. Sandra Cristina permanecia tão desconcertante para ele, como no primeiro dia que a  conhecera. Havia dias que estava carinhosa e quase provocante, e outros em que era distante e fria, como um iceberg. Ela modificava-se de tal ordem, que ele voltava a nada entender dos seus verdadeiros sentimentos. Era certo que nunca dissera que lhe tinha amor, mas tinha sido tão evidentes e tão inequívocas as provas que lhe dera sucessivamente, dos quais, dos seus mais profundos anseios, que a rapariga não podia albergar a menor dúvida quanto a eles...

Apesar disso, ou por isso mesmo, a verdade é que o procedimento de Sandra Cristina seguia, era surpreendente e até inexplicável. Nessa manhã, ela perguntou-lhe:

Sandra: - Então, Luís Carlos, quando é que está pronto o meu retrato? ... E quando é que o posso ver?...

Luís: - Será amanhã, Sandra Cristina, e tenho muita pena...

Sandra: - Pena de quê?!...

Luís: -  De acabar o seu retrato...

Sandra: -  Não sei porquê?! 

Luís: - Porque... Porque depois não a poderei mais tê-la tantas horas sozinha comigo, com a tenho tido até agora ...

Sandra: - O que é que quer dizer com isso?!

Luís: - Quer dizer que gosto de estar sozinho com a Sandra Cristina.

Sandra: -  Duvido, pois sempre se comportou, digamos, como se não estivéssemos sozinhos!

Luís: - Não seja injusta, Sandra Cristina, pois eu...

Sandra: -  Você... Costuma beijar os seus modelos logo à segunda sessão. Ora, eu tenho posado para si há mais de três semanas, e você nunca tentou beijar-me...

Luís: -  É certo, mas deixe-me explicar...

Sandra: -  Ah, não tente agora convencer-me de que gosta de mim e por isso nem tentou fazê-lo!

Luís: - Por favor, Sandra Cristina...

Sandra: - Claro, se você gostasse de mim, um pouquinho que fosse já me teria beijado. Ou melhor, já teria tentado beijar-me, sim, porque eu não o consentiria que me beijasse. Porque você está aqui para me fazer o retrato, e não para me beijar!

Luís: - Mas que disparate vem a ser essa Sandra Cristina?!

Sandra: - Não é disparate nenhum, pois bem sei que beijou a Ana Maria, logo no segundo dia que ela pousou para si!

Luís: - Mas, Sandra...

Sandra: -  E a mim?! Sim, a mim... Porque é que nunca tentou beijar-me? ... Será que eu seja feia?... 

Luís: -  A Sandra não é nada feia, antes pelo contrário!

Sandra: - Então, é porque sou aleijada, porque sou uma coxa, não é verdade, Sr. Luís Carlos?!

Enquanto falava, fora caminhando, e já estava muito próximo dela, que, entretanto se levantara para impedir que ela visse o quadro.

Sandra: - Mas fale Luís Carlos, diga alguma coisa... É por eu ser aleijada, o motivo porque nunca me beijou? ... Estou a ver que para si também sou a coxa, ou por piedade, a coxinha!

Chegara-se tanto a ele, que Luís Carlos sentia as formas duras dos seios dela, comprimidos contra o seu peito arfante, e os braços de Sandra Cristina, envolveram-lhe o pescoço. E o rosto encantador de Sandra Cristina, como um grande primeiro plano de cinema, foi-se aproximando do dele... Até que Luís Carlos sentiu que a rapariga o abraçava e o beijava.

Luís: -  Por favor, Sandra Cristina... Por favor...

Sandra: -  Vê como você tem repugnância de mim?! Da aleijada... Da coxinha!

E disto isto, deu uma enorme gargalhada e afastou-se a correr, em direção a casa. Luís Carlos ficou emparvecido com aquele sabor delicioso a arde-lhe na boca, e uma estranha perplexidade a percorrer-lhe o corpo.  O seu primeiro impulso foi de deitar a correr atrás dela, entrar em casa onde a Sandra se refugiara como que envergonhada pelo seu gesto, e obrigá-la então a ser beijada realmente, beijada por ele, com ardor, para não mais se esquecer desses beijos que lhe desse. Mas, lembrou-se de que os pais dela tinham saído para a Marinha Grande, e não lhe pareceu correto corresponder assim, à total confiança que nele depositavam...

Luís: -  Ainda agora ela saiu de ao pé de mim, e já sinto saudades dela. Meu Deus, como eu a amo! Sandra Cristina, não me estás a ouvir, mas eu gosto muito de ti!

Embrulhou o quadro quase concluído na tela que sempre o protegia, e arrumou tudo sobre um alpendre próximo.  Pensativo, retirou-se a caminho do restaurante, onde habitualmente almoçava...

Luís: -  Ela gostará de mim? ... é tão linda, que pena ter aquele defeito. Mas ela gostará realmente de mim? ... Logo à tarde, na sessão final de acabamento, terei oportunidade de averiguar os verdadeiros motivos da atitude dela. Mas, Sandra Cristina gostará mesmo de mim?! ...

Nessa tarde, quando voltou a tocar à campainha do portão da família Mendes, a criada que ocorreu a abri-lo, parecia indecisa e quase trêmula. Luís Carlos, porque vinha preocupado com os seus pensamentos, nem o notou e apenas ouviu o que ela lhe dizia:

Criada: -  Os senhores estão neste momento recolhidos nos seus aposentos a descansar...

Luís: -  E a menina Sandra Cristina, está?...

Criada: -  A menina Sandra saiu... E disse-me se o Sr. Luís Carlos viesse, o prevenisse de que fora passear...

Luís Carlos encarou a criadinha, sem a ver, limitando-se a dizer-lhe depois, enquanto voltava as costas e começava a caminhar sobre os seus passos :"Voltarei mais tarde...". Era demais, era demasiado descaramento. Tanta pressa para ver o quadro acabado, tanta curiosidade e tanta ansiedade por conhecer a obra que ele estava realizando com ela, e agora, apetecera-lhe passear. E justamente no momento em que ele devia começar a sessão final...  Irritado, furioso, Luís Carlos, caminhava pela alameda atapetada de agulhas de pinheiro. Uma ruga vincava-lhe a testa. Com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, enfim, muito mal humorado. À sua esquerda, o terreno desvia abruptamente para o mar, numa sucessão irregular de rochas e árvores, que lá em baixo, eram beijadas pelas espumas brancas do oceano. Subitamente, o pintor estancou. Estava no local onde vira, pela primeira vez, a Sandra Cristina. E naquele momento estava novamente a vê-la novamente. A rapariga estava de pé, encostada à rocha, de onde ele a desenhara. Mas agora estava de pé e abraçada a um homem.! A sua cabeça quase que rebentava; ela estava ali, de pé e abraçada a um homem, um rapaz novo, vestido à moda da cidade, que a apertava desvairadamente nos braços, e os seus dois rostos confundiam-se num só, na violência daquele beijo interminável. Luís Carlos, pensou ainda que ele a estivesse forçando, mas era evidente que não. Desprenderam-se por instantes, e foi ela quem de novo a abraçou e colocou a sua boca à dele, tal como fizera nessa manhã com ele. Uma decepção cruel estampou-se no rosto do rapaz. Pensou ainda em chamá-la, apenas para a cumprimentá-la, mas teve pena dela... "Até parece impossível - que infeliz eu sou!". Regressou apressadamente, com os olhos a arderem-lhe, com se os tivesse queimado com aquela cena inesperada a que assistira. Lembrou-se confusamente de pormenores, de detalhes cruéis. O rapaz que abraçava e beijava a Sandra Cristina, era um desses "bonecos", que mesmo na praia, vestia como um galã, e não passava de um meninote, um pouco mais velho do que ela. Custava-lhe a acreditar naquilo que os seus olhos viram: a Sandra Cristina, a perfeita, a imaculada, que ele se habituara a respeitar e a adorar "Com certeza que sonhei... não, não é possível!".

Voltou pelo caminho que tinha percorrido. Tocou violentamente a campainha do portão, e apareceu-lhe outra vez aquela criadinha atarantada, como a quer dizer-lhe qualquer coisa, mas ele nem lhe deu tempo.   Dirigiu-se logo para o alpendre onde guardara os seus apetrechos de pintura. Uma vez aí, sobraçou-os todos, o cavalete e a tela, a caixa das tintas e a paleta, e voltou a sair com a sua preciosa carga. A criadinha ainda lhe perguntou: "O Sr. Luís Carlos vai-se embora?!".  Não lhe respondeu.

Mas o pintor não sabia que o coração da Sandra, tinha um segredo... Mortificada pela sua deficiência física, a rapariga conhecera nesse Inverno, na cidade do Porto, um tal Januário. O rapaz mostrara-se sensível à sua beleza, e fora amável com ela. Chegando a convidá-la para irem ao cinema. Esta simples prova de deferência ecoara estrondosamente no coração infeliz e retraído da Sandra, de modo quando os pais regressaram a São Pedro de Moel, ela acompanhara-os com tristeza, por se separar do único rapaz que tivera com ela, atenções que até aí nunca recebera. Por isso é que Luís Carlos a surpreendera naquele dia, sentada e solitária naquela rocha, pensando: "O meu "Sebastião" há de chegar numa manhã...". Januário prometera-lhe ir a São Pedro de Moel, passar dez dias de férias. Depois, conhecera Luís Carlos e nunca passara pela cabeça, que um homem tão viajado e tão querido das mulheres, já com perto de trinta anos, se pudesse interessar por ela. As intenções iniciais de Luís Carlos interpretara-os como sendo prelúdio, de um abuso que ele pacientemente preparava e que ela repeliria com violência. Depois, pouco a pouco, aquela permanente correção do pintor, acabara por irritá-la, e tomara-a como sendo um insulto: como se ela fosse capaz de excitar e apaixonar um homem como Luís Carlos...  Por isso, decidira naquela manhã, beijá-lo ostensivamente, para se aperceber da sua reação. E foi essa reação que compreendera em Luís Carlos, tremendo dos pés à cabeça, e tentando segurá-la quando lhe fugira, encantando-a e garantia-lhe que bem podia ser verdadeiro o amor que Januário lhe testemunhava nas suas cartas. Exatamente depois de fugir dos braços de Luís Carlos, nessa manhã, a criadinha que estava dentro do seu segredo, entregara-lhe uma carta procedente do Porto. E assim, Sandra Cristina, ficara, a saber, que nesse dia, ao princípio da tarde, no "expresso" do Norte, chegaria o seu amigo Januário... Acabado o almoço, logo que os seus pais foram descansar, aproveitara e correra à estação da Rodoviária, e lá encontrou o seu amigo, que, entretanto chegara. Durante mais de dois meses, sonhara com aquele momento em que voltaria a encontrá-lo. As cartas dele, cheias de promessas e projetos, tinha contribuído e significado aquele encontro. Caminhando ao acaso, a certa altura Januário, tomou-a nos braços e dera-lhe o seu primeiro beijo. Ela exaltara-se com a carícia inesperada, e repetira-a...

Foi nessa altura que Luís Carlos a surpreendera e decidira partir... No quarto que alugara Luís Carlos, disse à dona que recebera um telegrama com notícias que impunham a sua presença imediata, em Lisboa, e que para tal, ia-se partir para a Capital. Fez a sua mala em poucos minutos, e pediu que apresentasse as suas despedidas ao Sr. António das Ondas. Carregando os seus poucos haveres, entre os quais se contava um cavalete embrulhado numa tela cosida, o pintor embarcou no mesmo automóvel em que horas antes, desembarcara o Januário.

Quando António das Ondas foi prevenido do que acontecera, ou seja, a partida inesperada de Luís Carlos, já o "expresso" ia longe a caminho de Lisboa. O bondoso velhote coçou pensativamente o queixo, e ficou a refletir por alguns momentos, depois se dirigiu Estação dos Correios. Mercê das informações que ali obteve o bom do António, apressou-se a percorrer o caminho que o separava da casa dos Mendes. Numa curva da pequenina estrada, deparou-se com a Sandra Cristina, que era levada pela mão, por um jovem de feições viciosas e ar petulante. Parou, encarando ambos e com um olhar, que dirigiu à rapariga, como uma censura muda e pesada:

Januário: -  Sandra, tu conheces este homem? ...

Sandra: -  Conheço sim. É o Sr. António das Ondas, um grande amigo da minha família.

António: -  Olha lá Sandra, que fazes por aqui?!...

Sandra: -  Fui esperar este amigo que veio do Norte...

António: -  Este que te acompanha? ...

Sandra: -  Sim este... Amigo. Recebi, hoje, uma carta de ele a anunciar a sua chegada depois do almoço.

António: -   Estou a ver que esse teu amigo veio no mesmo automóvel que levou para Lisboa, o Luís Carlos, com o teu retrato inacabado!

Sandra: -  O quê?! O Luís Carlos foi-se embora?! ...

António: -  Sim, foi-se embora, e deixou-me um recado a dizer que recebera um telegrama de Lisboa, a reclamar a sua presença. Mas já sei que não é verdade, pois nos Correios informaram-me que não veio nenhum telegrama para ele. Sandra Cristina, como é que explicas isto? ...

continua
 
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terça-feira, 2 de agosto de 2016

Érico Veríssimo (Chico)

Chamava-se Chico. De quê? Ele mesmo não sabia…

– Gente pobre não tem nome… – costumava dizer.

Tinha sete anos. De dia vendia jornais, de noite apanhava bordoada do irmão mais velho, o Zico, que vivia embriagado.

A mãe havia muitos anos que estava atirada sobre um colchão velho, paralítica, cadavérica, tendo a todas as horas do dia, diante dos olhos baços e sem expressão, o mesmo quadro de miséria e desalento: as paredes sórdidas do quarto, donde pendiam molambos, o teto carcomido e cheio de teias de aranha, a janela sem batentes, eternamente escancarada, mostrando uma nesga de céu em que nas noites claras se vislumbrava, como uma esmola luminosa, a claridade fugidia de estrelas…

O pai – Chico mal se lembrava disto – morrera por um dia triste de inverno, de peste, e se fora, quase nu, dentro duma carroça velha que ia fazendo tóc-tóc-tóc-tóc..., aos solavancos, pela estrada barrenta e sinuosa que ia dar no cemitério.

Chico ouvia sempre dizer que havia lá em cima, no céu, um Deus muito bom e muito severo. que não queria que as crianças dissessem nomes feios nem desobedecessem aos mais velhos. Era um homem muito poderoso, que punha empenho em que todas as coisas na terra andassem direitas e bem feitas.

Surgia, então, na cabecinha do garoto um problema intrincado e insolúvel.

Chico via no mundo (mundo era a cidade em que ele, Chico, morava) gente feliz, rica, alegre; crianças que andavam bem vestidas, que tinham brinquedos surpreendentes e que comiam os doces mais saborosos desta vida. Via, ao mesmo tempo, de Outro lado, os infelizes, os desprotegidos da fortuna, os que rolam pão duro e andavam a ferir os pés descalços no pedregulho das ruas. E o pequeno não podia compreender a razão de tanta desigualdade de sorte no mundo. Como era que Deus, tão bom e tão justo, consentia em que existissem crianças felizes e protegidas, ao mesmo passo que existiam outras, desgraçadas e sós, que, pra ganhar alguns tostões, – magríssimos tostões –, tinham de andar vendendo jornais pelas ruas, à luz abrasiva do sol?…

E Chico não compreendia… Não compreendia e ficava pensando, pensando…

Mas não se detinha por muito tempo em tais cogitações, que adivinhava inúteis. A vida ensinara-o a ser prático. Bem sabia que com sonhos e elucubrações não ganharia o seu salário. Por isso se atirava ao trabalho.

– Óia o Correio da Manhã! O Correeeeio! - E assim ia vivendo…

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos)

Pedro é de Balneário Camboriú/SC
FORÇA E PODER

Na força
o desprezo
pelo arco em aliança

tenho no poder
a força que utilizo
em proveito

aproveito o esplendor
e me destaco perante
inimigos baratos e frágeis

no desprezo
a força do arco
sem aliança

a vista turva o alcance
do poder transferido em pedaços.

ABARCAR

         Abarco o todo
         em naufrágios
         menores de riachos
                             veios d'água
                             inundam imagens
                               (submersas)

- falamos sobre camisas, calças e roupas
  de baixo: que sustentam camisas
  e calças -

           a revista imagem
           sobre a pedra polida
           em acolhidos abraços.

NADA

O início
da temporada
     encerra
     a expectativa
     de que o ciclo
                 se renove
                  na permanência
                       da temporada
                       que conhecemos
                                           nova.

A novidade nos desconforta
em haveres desconhecidos

até
termos certeza
de que o início
continua o nada.

TEMPOS

Sufoco a vontade
afogada em prantos
disfarço a hora
                 partida

apátrida reconheço no espaço
a companheira: não me instalo.

afogo minha vontade
disfarçada no silêncio
sufocado da espera.
 
RECUAR

Recuo: a canção amadora
ressoa em vão

onde o som definido
na canção?

Canção da terra amarrada
em giros: a queda do anjo
sobre o prédio iluminado

receio não encontrar a terra prometida
ao profeta. Na insolação do corpo
revejo arestas ásperas
e do prédio menor
despenco lembranças.
 
AMANHÃS

Chamado não me apresento
ausente me faço distante
no amanhã repetido

inconsciente o preso se dirige
ao murmúrio inaudível:

escolho a pílula com que deito
e sonho silêncios
irrefletidos
dos amanhãs
nauseabundos
das canções: ofuscadas
clareiras dormentes
nos adormecimentos.

NATURAL

Na natureza decomposta
a dor exposta
em espécies
abatidas
cortadas
decepadas
depenadas
destocadas na força dos tratores
matrizes dos progressos: o homem
traz na aproximação a visão incolor do lucro
e a subsistência dos excluídos se defronta
com a terra ressecada após as passagens
a recomposição do solo exala
a acidez perpetrada
nos tempos desnecessários
das farturas: o homem
esquece o inconsentido passado
em projetos futuros inexequíveis
onde se debatem mortes
e avanços ao fim do mundo.

EFÊMEROS

A preocupação
decorre da memória
esmaecida no passar das horas
em que somos repostos
repetidos
recuperados
e apagados
nas lembranças

os que ficam para depois
devem se preocupar
com os deuses

retirantes iniciais
da efemeridade.

FOGO

Repetição do fogo: labareda e chama
                                ao encontro da terra.

Sobre a grama ressecada crepita:
decrépito senhor do fogo.

Queima o horizonte poente
e se desdobra em cores: repete o fogo
e derrete a terra. Calcina o corpo.

ESPERAR

o prédio inacabado, a estrada bloqueada,
o tempo encoberto: a espera reduz
                                     a vida
                                     ao mistério.

Ansiar o momento aventurado
e se realizar no átimo
da conquista.

Rever o terreno descoberto, o caminho
desbravado, o espaço brilhante das manhãs
de inverno. A luminosidade destaca
a contrariedade com que faz da espera
o toque de saudade.

CHAMAS

Candelabros acesos
janela aberta à noite: estranhos sentimentos
cruzando espaços. Na terra úmida a estrada
se desfaz em passos. A chama trêmula
se oferece ao vento. O ar se rarefaz
consumido pelo fogo. Fechada a janela
oferece a paisagem interior.

  AVISTAR
 

                  Avisto a terra
                             a mata
                             a tênue rede de fumaça

                                  longe o barulho
                                  multiplica a vida

(estou dentro do corpo,
tenso no desencontro. Estou
presente em mim mesmo).

QUEDAR

Assumo a responsabilidade
pela queda: os degraus
                       dobrados
                           aos pés
                              tropeçando.

O vento colocando o corpo
em descompasso

                           (dias concretados
                            em altares)

caio na leveza do traço
e invado a página; desço
os degraus e abaixo
reencontro o todo.

VISTAS

A estrada
   automóveis
   caminhões

morro recortado

no barulho da obra a nova
casa desconstruída no que contém
da paisagem

(Revisito os passos do homem
 na caminhada: não habitualidade).

DÚVIDAS

Dúvida anteposta em verdades.
O rumor do elevado momento
na concretização do nada: mal feito
                                           malfeitor.

Benefício e dúvida. A ordem artificializa
mundos inconstantes. Verdades ignoradas
em discursos. A mentira instila a dúvida
no descompasso.

PASSOS

Falo de passos cadenciados
na dança. Dos pares.
                 Digo do peso
                 das botas
                 desfilando
                 forças.

Evito a leveza em sapatilhas
de pés deformados na graça
entranhada em dores e saltos.

                  Conservo a imagem
                  singela da mulher
                  se fazendo eterna:
                              o descompasso
                              como tema.

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 1

Novela em 8 Capítulos.

Estávamos em princípios de Julho, na tarde de um dia muito quente.

A esplanada de São Pedro de Moel, estava apinhada de gente. “Sentadas numa mesa, duas senhoras brasileiras conversavam, fazendo renda ao mesmo tempo...

Lígia: - A que horas é que vais para a praia?

Ilda: - Lá mais para a tardinha, pois agora está um calor insuportável.

Lígia: -  Vá lá que aqui na esplanada, com este agradável ventinho, estamos bem.

Ilda: - O mar hoje está muito calmo, e esta beleza... Oh São Pedro de Moel, tu és de uma beleza  incomparável, és uma das "joias" deste velho Portugal!

Lígia: - Olha quem vem ali, é o Sr. António das Ondas... Boa tarde, Sr. António!

António das Ondas: -    Olá, minhas senhoras! Fizeram boa viagem desde o Sul desse belo país que é o Brasil? ... Posso sentar-me? É que estas minhas pernas já não são o que eram. 

Ilda: - Com certeza que se pode sentar, Sr. António das Ondas. Fizemos uma boa viagem. Combinámos encontro no aeroporto de São Paulo e só parámos em Lisboa; depois, ônibus até aqui à também nossa São Pedro de Moel. Senhor está com um ótimo aspecto, e cada vez parece mais novo!

António: - Ora, ora é muita gentileza vossa essa apreciação...

Olhando em redor, António das Ondas viu numa mesa afastada, um casal ainda jovem.

António - As senhoras, por acaso não conhecem aquele casalzinho que está ali sentado, junto daquela janela da esplanada? 

Ilda: - Eu só os conheço de vista. Ele é o célebre pintor Luís Carlos, e aquela moça será a sua esposa?...

António: - É sim. É a Sandra Cristina, uma moça natural cá de São Pedro de Moel. Casaram  vai para três anos…

Lígia: - Então o Sr. António das Ondas, conhece-os bem?

António: - Conheço-os muito bem mesmo... 

Ilda: - O Sr. António está hoje muito misterioso, que se passa, hoje, consigo?

Lígia: - E também não tira os olhos do pintor e da mulher. Vê-se que são seus amigos.

António: - Muito amigos, mesmo. E têm uma bela história de amor!

Ilda: - E o Sr. António tem cá um jeitinho para contar histórias...

António: - Concordo com as senhoras, mas esta é muito especial. É uma bela história de amor...

Lígia: - Senhor António das Ondas, conte-nos a história deles, a que diz que é uma bela "história de amor”.

António: - É uma história muito comprida, e dava bem para um mês...

Ilda: - Mas isso é formidável para nós, pois contamos ficar cá durante todo este mês.

Lígia: - Comece lá a contar a história, Sr. António das Ondas!

António: - Então, se me dão licença, começarei amanhã. De acordo?

Ilda: - Mas aqui está sempre muito barulho, se nós pudéssemos ir para outro lado...

António: -  De acordo. Então, por exemplo, podemos encontramos no café da Ladeira, amanhã pelas 10 horas. As senhoras concordam?

Lígia: - Estamos plenamente de acordo!

António: - Então, minhas senhoras, até amanhã!

Luís Carlos era um jovem pintor algarvio, a quem a crítica previa um futuro brilhante na arte, chegara três dias antes a São Pedro de Moel. A beleza da paisagem e das suas gentes haviam-no conquistado, e sendo assim, até se felicitava por ter escolhido aquele recanto privilegiado da Natureza... Não era ainda a época do ano em que os turistas desembarcavam em massa, vindos de "expressos" de todos os pontos do país, passeando e saboreando a sua curiosidade, pelos recantos de São Pedro. A antiga residência de veraneio de Afonso Lopes Vieira, hoje colônia de férias de crianças da Marinha Grande, é um atestado do requinte de vida, de alguns anos atrás, quando os "Algarves" ainda não tinham sido descobertos pelo grande turismo.

- Realmente - pensava Luís Carlos - os antigos sabiam viver.

Demorava horas e horas na contemplação daquele milagre de cores e tons, em que a vegetação e o mar, os acidentes do terreno e a luminosidade do céu, se conjugavam para tudo espiritualizar, emprestando à existência esse "quê" de evasão da vulgaridade que ela vai perdendo, cada vez mais nos nossos tempos de mecanização. Ao chegar à estação da Rodoviária, vindo no "expresso" que o trouxera de Lisboa, cidade onde residia, Luís Carlos teve a ajuda de uma encantadora rapariga, que o ajudou a transportar a sua bagagem até ao alto, para os lados da piscina, onde alugara um quarto.

Ana Maria: - O senhor é pintor?... 

Luís Carlos: - Sou sim, garota. Porque perguntas?

Ana: - Com estes aparelhos todos, só podia ser pintor!

A garota chamava-se Ana Maria e tinha 18 anos. Era uma tentação da carne morena rosada, algo tisnada pelo sol, de formas elegantes e graciosas. Todas as outras raparigas de São Pedro de Moel rivalizavam entre si em beleza e graciosidade, emprestando aquele recanto da Natureza, o atrativo da sua presença e da sua voz, dos seus corpos fibroses e jovens, que eram promessas de carinho, destino apetecido de todas as carícias dos homens.

Luís: - Um dia destes, pinto o teu retrato, queres, Ana Maria?

Ana: -  Não sei para quê, pois eu até nem sou bonita. Era bem capaz de lhe estragar a pintura!

Luís: - Vaidosa é que tu és garota!

Nesse dia, também conheceu um bondoso e interessante velhote: o António das Ondas. Antigo piloto do "bacalhau" e dos "paquetes" e por fim dos "petróis", como ele por graça dizia. Durante mais de quarenta e cinco anos, andou por cima das ondas, conhecendo todos os oceanos e "meio mundo". Ninguém em São Pedro de Moel tinha segredos para ele, e quase sempre sugeria a melhor maneira para qualquer situação, tal como tinha sempre a melhor palavra para cada um e, na sua vida, nunca tinha mentido. Luís Carlos gostava do bondoso velhote, especialmente pela sua bonomia e pela sua aguda inteligência, não isenta de fina e compreensiva ironia. Nessa tarde e depois de aceitar o convite do António das Ondas para tomar uma bica (café), no café da subida, perto do chafariz, Luís Carlos foi passear sozinho pela beira mar. Começara a pintar uma garota da terra, mas ela era tão apetecível, tão provocante, mesmo que involuntariamente, que o nosso pintor decidira espaçar as sessões, e andava enchendo os olhos por aquela paisagem de sonho, povoada de gente simples e bonita, gozando profundamente a paz daquelas encostas alcantiladas, que se erguiam sobre o Atlântico, azul e revolto, rebrilhante como uma imensa gema preciosa.

Subitamente, Luís Carlos estacou surpreendido: defronte dele, mas em plano inferior na encosta que descia para o mar, ali bem perto da varanda da esplanada, acabava de descobrir o vulto airoso de uma rapariga que olhava o oceano. Estava quase de costas para ele e, um lindíssimo cabelo alourado ondulava brandamente na aragem da manhã. Não podia ver-lhe as feições, mas a sua silhueta, desenhando-se com nitidez e elegância, sobre o mar, dava-lhe um ar de estátua proporcionada e delicada, assim sentada no alto daquela rocha, de tons escuros. Sem fazer qualquer ruído, Luís Carlos, foi-se aproximando da rapariga, desviando-se o suficiente para poder vê-la de perfil. Era lindíssima, e tinha as mãos entrelaçadas na ponta dos braços, onde prendia um dos joelhos.

Tirando da sua pasta, um lápis e papel, o pintor começou a fazer um esboço daquela beleza estranha, que parecia sofrer. Quando o esboço ia quase no fim, ela deu pela presença dele, e fitou-o com certa surpresa...

Luís: - Bom dia, menina. Peço-lhe desculpa... Não pretendia perturbar-lhe os seus pensamentos, mas a tentação foi maior…

Sandra Cristina: - Olá, bom dia! Parece que já o conheço, pois no outro dia encontrei-o junto da Ana Maria. O senhor também costuma conversar com o Sr. António das Ondas. Estou certa?

Luís: - Sim costumo e gosto de falar com o Sr. António. Pelos vistos também conhece esse senhor.

Sandra: - Toda a gente aqui o conhece. Mas, o Sr. Esteve a ocupar-se de mim? Pintou o meu retrato?!

Luís: - É verdade. A beleza que você dava a este quadro era tão forte, tão comunicativa que me permitiu fixá-la num pequeno esboço. Com o mar lá em baixo, era bem "A Deusa e o Mar!..." Não se ofendeu por isso, não é verdade?

Enquanto falava, Luís Carlos ia-se enfeitiçando com a impressão que lhe provocara aquela rapariga, tão estranha, de olhos claros e distantes, e cujo sortilégio, era fascinante e inquietante ao mesmo tempo.

Sandra: - Não, não me importo, Deixe-me ver esse esboço…

Luís Carlos entregou-lhe o papel e sentiu-se mais tranquilo, quando percebeu na expressão dela, uma verdadeira admiração pelo seu trabalho. Quando a rapariga levantou os olhos, ele mais pediu que perguntou:

Luís: - Deixa-me pintar um retrato seu?

Sandra: - Tem mesmo a certeza que me quer pintar?!

Luís: - Claro que tenho a certeza! Você é uma das raparigas mais belas que vi em toda a minha vida!

Um vago sorriso indefinível perpassou pelo da jovem. Um sorriso que queria ser trocista, mas era profundamente triste. Por fim disse apenas iludindo a resposta.

Sandra: - Ainda nem sei o seu nome...

Luís: - Chamo-me Luís Carlos, sou pintor de profissão e algarvio de nascimento.

Sandra: - Eu sou a Sandra Cristina Mendes e vivo com os meus pais, numa pequena quinta que possuímos aqui em São Pedro de Moel.

Luís: - Então se me permitir procurarei seus pais, para pedir-lhe licença para pintar o seu retrato.

Sandra: - Se achar que vale a pena, não me oponho. Mas creio que brevemente mudará de opinião!

E dizendo estas palavras, saiu de cima da rocha, e caminhou vagarosamente diante dele. Luís Carlos verificou então que uma das pernas daquela beldade era sensivelmente mais curta que a outra, e que o pé não pousava normalmente no chão. O seu andar não era cadenciado, e até as ancas apresentavam uma evidente assimetria. “A voz dela soou como uma chicotada:

Sandra: -  Vê!... eu bem o preveni que decerto mudaria de opinião...

Luís: -   Mas...

Não teve tempo para articular nem uma palavra, porque ela deitou a correr subindo o carreiro que ele antes descera, com uma agilidade muito notável para o seu defeito físico... Chegada lá a cima, parou e encarou-o, dizendo numa voz patética, em que não se adivinhava nem uma lágrima.

Sandra: - Será melhor pintar qualquer dessas raparigas sadias, que há em São Pedro de Moel, do que perder tempo com uma aleijada...

Luís Carlos encarava-a alcandorada lá em cima, na beira do caminho, e não encontrava qualquer palavra acertada para dizer, que lhe tivesse ocorrido a frase certa. Entretanto, mesmo que a disse-se, ela já não a teria ouvido, pois desaparecera dos seus olhos, como que misteriosamente. Verificou então que não encontrava a folha de papel, onde esboçara a sua airosa figurinha incrustada na rocha. E, como não havia vento, o desaparecimento do papel, apenas podia a explicação de ela o ter guardado. E esta hipótese confortou-o. Nessa tarde, encontrando o António das Ondas, numa esquina de São Pedro de Moel, o pintor Luís Carlos, dirigiu-se-lhe a ele precipitadamente. O bom velhote acolheu-o com um sorriso, e pareceu esperar quaisquer palavras, que, aliás, não demoraram:

Luís: - Diga-me, Sr. António das Ondas, conhece uma família Mendes, que tem uma Quinta aqui em São Pedro de Moel? 

António: -   Conheço sim, meu rapaz! Têm uma pequena Quinta, e uma filha linda como os amores, não é verdade?... Encontrei a Sandra Cristina, que levava o esboço que lhe fizeste sem ela dar por isso. É um encanto de menina, mas muito infeliz...

Luís: -  Estou a ver... Mas diga-me como lhe aconteceu aquilo...

António: -  Foi um acidente de automóvel, quando a pobre tinha doze anos. Se tivesse acontecido mais cedo, teria sido melhor, pois os pais eram (pode-se dizer ricos), mas há cerca de cinco anos, sofreram um terrível incêndio, e ficaram praticamente arruinados... e assim, na altura em que se deu o desastre, já eles não tinham posses para levar a pequena ao estrangeiro, e fazê-la operar por algum desses grandes especialistas.

Luís: - Mas... Quase não se nota!...

António: -  Isso dizes tu com o teu entusiasmo, mas a verdade é que toda a gente a trata por coxa, ou com mais ternura, pela coxinha. E repara, para uma rapariga formosa, de dezoito anos, é um drama que eu tenho tentado atenuar, na minha qualidade de "amigo de família". Mas é difícil e delicado, pois a Sandra Cristina, é de uma personalidade riquíssima, até excessivamente sensível... Diz-me lá uma coisa, Luís Carlos, sempre queres pintar o retrato dela? 

Luís: - Claro que quero. É o rosto de mulher mais belo que vi em toda a minha vida !

António: -  Mas mesmo sendo coxa?!

Luís: -  Pelos vistos, chamam-lhe assim, mas ela, não é bem coxa. E esse aspecto em nada vai alterar o meu propósito de pintar o seu retrato!

António: -  Estás a falar verdade, Luís Carlos?

Luís: -  É verdade, Sr. António das Ondas! Muito lhe agradecia que me dissesse aonde é que fica a quinta deles, para eu ir lá pedir aos pais autorização, para lhe fazer o retrato.

António: -  Sendo assim, até calha bem, porque eu vou agora a casa dos Mendes. Se quiseres, podes vir comigo.

Luís: -  Fico-lhe muito agradecido.

António: -  Espera aí, rapaz, não andes tão rápido ... Que pressa essa! Eu quero prevenir-te que aquela gente é muito boa, e que não deves brincar com o coração de Sandra Cristina, pois ela é uma pequena de uma sensibilidade fora do comum, e aquele acidente marcou-a para toda a vida. Por favor, não vás encher a cabeça da mocinha de coisas bonitas, para depois lhe dares um desengano - prometes?! ...

Luís: -  Mas eu só quero pintá-la!

António: -  Ora, ora... Estás em São Pedro de Moel há mais de uma semana, já começaste quatro ou cinco retratos de outras tantas raparigas, e ainda não acabaste nenhum.

Luís: -  Mas hei-de acabá-los. O Senhor Sabe bem que muitas vezes, ao iniciar uma pintura, estamos convencidos de qualquer coisa, mas por vezes essa mesma pintura nos afasta. Não sei explicar porquê ... Não sei expressar o que sinto...

António: -  Nem é preciso que expliques. São os teus vinte e oito anos, o teu anseio de beleza. Bem, eu não estou a censurar-te, de maneira nenhuma, o que tens feito. Estou só a pedir-te que não o repitas com a Sandra Cristina.

Luís: -  Se eu conseguir pintá-la prometo que acabarei o quadro, e ele será a grande obra-prima da minha vida!

António: -  Assim é que é falar! E olha que também não será preciso que beijes (de certa maneira...) o teu modelo, durante as sessões de pintura - percebes, não percebes?...

Luís: -  Eu só gostava de saber como é que o Sr. António das Ondas consegue saber tudo o que se passa cá na terra!

António: -  Não te esqueças que sou amigo de toda a gente! Sinceramente, gostava muito que tu e a Sandra Cristina se entendessem bem, até para lhe tirar ideias tontas que ela tem na cabecinha, e que só podem fazê-la infeliz. E tu talvez sejas um homem capaz disso...

Luís: - Pode crer que tudo farei para consegui-lo!

António: - E com esta conversa toda, chegámos a casa dos Mendes. Vamos entrar...

continua…

Fonte:
O Autor

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos)

CONSELHOS DE MÃE

Meu filho, a vida é dura e fere... e nos magoa...
mas, trata-a com respeito e guarda a dignidade.
Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
não permitas que o mal altere o que é verdade!

Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho
sem pressa de alcança-lo e tendo-o sempre à vista!
Cada dia que passa é um dia mais risonho,
quando o amanhã promete as glórias da conquista!

“Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
Os caminhos, verás, se abrirão à medida
que teu passo provar firmeza e, sem segredo,
revelar o sentido e o Ideal da tua vida!

Não temas opressões nem quedas. Persevera!
Se achares que ao final o saldo não convence,
reage, continua... a vida tens à espera!
Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!

DELIMITANDO SANTOS

Manhã de sol, luminosa,
Dourando as águas do mar...
Brisa mansa... onda morosa...
Um barquinho a balouçar...

Nesse barco pequenino,
Os sonhos do pescador
Compõem o próprio destino,
Vencendo frio e calor.

Ao fundo, o azul horizonte,
Ilha das Palmas! E alçado
À frente Itaipu no monte
E a Serra do Mar, ao lado.

Ao centro, a concha serena,
De tão sublimes encantos,
Guarda pérola pequena
E tão valiosa –Santos!

E essa concha de ternura,
Sempre cercada de flores,
Oferece a alma pura
Na gama de tantas cores!

De norte a sul, leste a oeste,
Há perfume de poesia,
De orquídeas de aroma agreste,
Mesclado de maresia.

No porto, grandes navios...
Nas praias, verdes jardins,
Palmeiras, troncos esguios
Das alturas sempre afins.

E o azul por cima de tudo!
No altar do Monte, a Padroeira,
Com seu olhar de veludo,
Abraça a cidade inteira!

Santos, o berço da História!
E de tão grandes poetas
Que honram a Pátria e a memória,
Traçando brilhantes metas!

Liberdade e Caridade
Santos traz no coração...
E em troca, levam Saudade
Os que de Santos se vão!

ESPERANÇA

Que falta faz a mão do “Poverello”,
mão chagada, que lembra o Salvador!
Mão que outras mãos unia, como um elo...
Elo de luz fraterna, elo de Amor!

Que falta faz o ardor do seu anelo,
quando tentava unir a um só Pastor
as ovelhas dispersas – sonho belo
que a vida se compraz em decompor!

E a vida o quanto vale?! – Um quase nada!
Por todo lado, há só gente empenhada
em fazer gente ser mais infeliz!

- Quem sabe ainda houvesse uma esperança,
se o mundo ouvisse a voz, humilde e mansa,
do bom Francisco... nosso Irmão de Assis!...

HOJE É UM DIA DE SOL!

Esquece a mágoa e a dor! Esquece a própria vida,
e esse afã de vivê-la, alheio aos seus porquês!
Hoje é um dia de sol! O amor é quem convida
para a festa triunfal, que é tua... e tu não vês!

Hoje é um dia de sol! Deixa a angústia esquecida!
Abre as janelas da alma... agora é tua vez!
Tão doce é a sensação de encontrar refletida
no brilho de um olhar a esperança em que crês!

Hoje é um dia de sol! Dia cheio de luz!
Tenta amar e sorrir... hás de ver como encanta
transformar em fulgor a sombra de uma cruz!

O céu faz-se aquarela! Às tintas do arrebol,
vão-se as nuvens embora... a natureza canta!
E canta o Amor com ela! – Hoje é um dia de sol!

NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
Lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
Vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
Depressa ia ampará-lo o meu carinho
E ansiosa eu via, com secreto gozo,
Meus sonhos desafiando os torvelinhos!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
Ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
Um a um, impiedoso, o mar levou!

O BEIJO DO HOMEM BOM

Eu era pequenina...eu era bem pequena...
três anos, nada mais... e o ver chegar sorrindo
aquele homem tão bom, de face alegre e amena,
aos seus braços corria! E com afeto infindo,

colava o rosto ao seu, na entrega pura e plena.
E aquele homem tão bom, o meu rosto cobrindo
de beijos, encantava a minha alma serena...
Era o sol de verão, que o céu fazia lindo!

E a Vilazinha triste, feia e tão modesta,
ganhava nova cor e animação de festa,
aureolada de luz e graças imprevistas!

O homem bom que, em criança, amigo me beijava,
era um grande Poeta, eu soube, e se chamava
Martins Fontes,“Tié-fogo” - orgulho dos santistas!

O IDEAL DE TIRADENTES

Sem ser fátuo ou falaz, tem permanência
o sonho que se apoia na bravura
e mostra o seu valor na persistência
com que defende, à luz, a ideia pura!

Há quantos anos vibra a Inconfidência
na emoção do Brasil! Sol que perdura!
E o nome -Tiradentes- na consciência
de gerações, se alenta de ternura!

O sonho libertário, esquartejado,
dos quatro cantos, ressurgiu mais forte!
E esse Ideal de Justiça, estrangulado,

ganhou força maior!... Força escondida
que não teme sequer carrasco e morte,
porque vale até mais que a própria vida!

REVERSO

Se um verso meu chegar onde tu estás, um dia,
Fácil de adivinhar, dirá tua vaidade:
- Ela pensa em mim, rimou, porque sentia
No coração o agudo espinho da saudade!

Não gosto de mentir, calar é mais seguro.
Não direi sim, nem não... e nem sequer, talvez!
Porém, ao ler meu verso, em troca, eu asseguro:
Tu pensarás em mim... ao menos, nessa vez!

TÃO PERTO... E TÃO LONGE...

Andaste bem pertinho de minha alma!
Tão perto, que cheguei a acreditar
Quem desta vez, alguém teria a palma,
De compreendê-la e dela se apossar!

Mas a aventura impôs-se em teu caminho,
Equívoca, a impelir-te em rumo incerto...
Partiste em busca de um banal carinho.
Restou a dor de um sonho mal desperto!

Chamei por ti!... E a brisa, com desgosto,
Murmurou confidente, ao meu ouvido:
- Esquece, tola, que eu te enxugo o rosto...
Deixa-o partir...o mais não tem sentido;

Se o adeus rouba o sorriso à tua boca,
A saudade e a ventura são rivais!
Deixa-o partir... Esquece... Esquece, louca!
Outro virá... e há de querer-te mais!

VELHO RIO...

Deslizas velho rio, amargo e silencioso,
A esconder, bem ao fundo, a injúria e a dor calada.
Cresceste manso, puro! E teu caudal piscoso
Refletia o esplendor da luz da madrugada!

Quantas milhas coleaste! Fértil, dadivoso,
Quantos lares supriste! E se a sede saciada
Afugentou a seca, esse fantasma odioso,
Tiveste, em paga injusta, a face maculada!

Hoje, segues tristonho... sujo... moribundo...
Tendo no seio o estigma e, na alma dolorida,
Toda a angústia de ser a lixeira do mundo!

Velho rio... depois de tanto desengano,
Entendo porque, enfim, protestas contra a vida
E afogas tua dor no abismo do oceano!

VILA DOS ANDRADAS
 

Nasci naquela vilazinha feia,
sem árvores nem flores nas calçadas.
Rua? Perdão se assim chamei-a,
era apenas a Vila dos Andradas.

Saí criança e não voltei. Lembrei-a,
saudosa das cirandas nas calçadas.
Foi lá, que eu aprendi que a lua cheia
era a Mansão dos Sonhos e das Fadas!

Não mais existe a minha velha Vila,
mas, pobre e triste, seu passado atesta
que nela havia luz que ainda cintila

a ultrapassar os sóbrios horizontes:
- Naquela Vila, plácida e modesta,
viveu, rimou o nosso Martins Fontes!

Raul Pompéia (Como Nasceu, Viveu e Morreu a Minha Inspiração)

Página arrancada ao livro de lembranças de um futuro Esculápio.

Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá... Ela desculparia.

Que noite ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...

Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava chique. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... O que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...

Eu passeava pelo meu quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis: aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramingas a entortar o queixo; a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toalete, quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar languidamente para o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...

Debrucei-me na janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era de jantar, (por tocar nisto... eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos bufetes da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta: - que fazer?...

Por fim foram esbarrar no frontispício da igreja... Começaram a subir... Brincaram nas janelas; contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no para-raios.

Estavam quase no céu. Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios no azul... Que fazer?

Ora... Enfim! Estava achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.

Os meus olhos estavam no céu.

Era uma tarde encantadora. Que cor a do firmamento nessa hora! Que abóbada incomparável a cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes. No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feito vapores tênues; como se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as curvas de esbelto corpozinho de donzela...

Oh! Do quarto para fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de vaporoso véu, tudo respirava poesia...

Eu achara a resposta. Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos... Qualquer coisa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros, entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios ardentes sobre a maciez de uma face. Um ideal realizado. Uma coisa assim como o contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...

- Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! Exclamei eu, notando a minha exaltação. Venha papel! Venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não brigueis desta vez como é de vosso costume... Somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel alguma coisa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco! Vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a imortalidade na memória dos homens!...

Nascera-me a inspiração! Ia metrificar alguma coisa que devia maravilhar os críticos... (aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um pouco acima de mim mesmo... Sem dúvida era essa sensação mística a que experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz qualquer produção sublime...

Molhei a pena, com um movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à casa do meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei a pena...

Oh! desgraça! A infame pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a violentamente... Foi a minha perdição...

Olhei triste para o meu punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo... Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... Então, com uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...

Pobre camisa!... Estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa era a única. Única! Triste verdade, cujas consequências me desesperavam.

- Adeus, meu anjo! disse eu, sem poder engolir um soluço.

Já não me era possível ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.

Aquele beijo que sonhei num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R. Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria ela?... Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe qualquer coisa...

- Quando, gritei eu, aí está o meu laço de fita de cinco mil réis...

Ainda mais. Um baile leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum dessas bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não encontra mel, vai buscá-lo acolá...

Momentos dolorosos os que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram brutalmente à primeira reflexão, foi que me lembrei do meu soneto...

- Soneto, para onde tu foste?...

Mais este golpe: - a minha inspiração morrera. Eu não sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!

Eu vi e jurá-lo-ei, se me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco...

Nessa mesma tarde, fui à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.

Em seguida avistei a maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a negrejada lembrança de poetar.

Para acabar. A desgraça de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava. Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na expectativa de um fim de ano esplêndido.

Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.

Folclore Japonês (Kinuhime: A Deusa da Seda)

Há um longo tempo, existia uma pitoresca aldeia japonesa famosa pelo cultivo da sericultura. Anualmente, durante a primavera, o local ficava lotado de trabalhadores que vinham de longe para a colheita dos casulos e o corte dos galhos das amoreiras. Consequentemente, nessa época, havia muitas festas na região. Entre os trabalhadores, destacava-se uma linda jovem chamada Kinu (seda).

Kinuhime: O Conto

No pequeno vilarejo, as pessoas eram muito unidas e todos trabalhavam felizes e com grande entusiasmo. Os bichos-da-seda alimentavam-se das folhas de amoreiras cortadas e colocadas nos barracões pelos trabalhadores, fazendo seus casulos nos galhos.

Quando terminavam os trabalhos de colheita dos casulos, os trabalhadores voltavam para suas províncias de origem e a aldeia voltava a ser pacata e até solitária.

A família de sericultores que acolheram temporariamente a jovem Kinu, percebeu que, em todos os anos em que ela trabalhou na cultura da seda em suas terras, os casulos eram maiores e mais brancos, sendo considerados pelo comprador da produção melhores até que os da China.

No final da temporada daquele ano, os sericultores fizeram grandiosa festa em agradecimento a boa colheita e serviram um delicioso banquete. Durante a festividade, tentaram descobrir de que região do Japão Kinu teria vindo, mas foi em vão. Ela nada contou, esquivando-se com respostas educadas.

Assim, ninguém ficou sabendo de onde ela veio, sobre sua família, nem para onde retornaria após a temporada de trabalho.

Na hora da partida, a família que a acolhera naquele ano pediu encarecidamente que Kinu voltasse no ano seguinte. Ela, educada, despediu-se de todos e deixou a aldeia por uma estrada estreita. Para assegurar que ela voltaria na próxima temporada, alguns aldeões a seguiram sorrateiramente no meio da mata, na tentativa de descobrir sobre sua origem.

Porém, poucas horas depois de sair da aldeia, ela desapareceu de repente. O local onde ela sumira, era na beira de um lago. Os aldeões vasculharam toda margem, mas nada encontraram. Um dos rapazes observou que no lago havia um ovo branco de serpente, fora isso, nada havia de diferente.

Na primavera seguinte, ela não apareceu, apesar de todos a esperarem ansiosamente. Alguns membros daquela família de sericultores viram várias vezes uma serpente branca andando na plantação de amora e próxima ao barracão da seda. Apesar da jovem Kinu não ter aparecido, mais uma vez os casulos colhidos naquele ano foram brancos e bonitos.

A família concluiu que aquela serpente branca que eles viram rondando a região, era Kinu. Misteriosamente transformada em serpente, ela estava protegendo os bichos-da-seda contra os ratos.

Baseado nessa crença, o povo da aldeia esculpiu uma estatueta com a forma da bela Kinu e a colocaram durante a primavera em um santuário Shintô, para que a partir de então, fosse reverenciada como a “deusa da seda”, protegendo sempre suas colheitas.

Após a temporada da seda, os aldeões, agradecidos, levaram a estatueta até um lago e a colocaram num pequeno barco, mandando-a de volta. Ainda hoje, em muitas aldeias de sericultores no Japão, esse ritual é praticado em reverência a “Kinuhime”, a zelosa deusa da seda.

Fonte: Myths and legends of ancient Japan, in Caçadores de Lendas