sábado, 19 de dezembro de 2015

Ana Maria Motta (Caderno de Trovas) 2



Adeus - expressão ingrata
que a vida um dia inventou,
e a gente, na mesma data,
sem querer, patenteou !
-
Agonia é ver teus passos
numa pressa que alucina,
e saber que, noutros braços,
a tua pressa termina !
-
Ao ver um índio passar
com seu cocar grandalhão,
pôs-se o pirralho a gritar:
- Olha, mãe... Que petecão!
-
A viúva, irreverente,
contava tanta piada,
que o “defunto” de repente
gritou bem alto: – CALADA!
-
Calçada do meu recanto,
se eu voltar a te pisar,
a saudade pesa tanto
que é capaz de te quebrar.
-
Com um ciúme tremendo,
o galo teve um desmaio,
porque a franga anda sofrendo
de bico-de-papagaio.
-
Confusa ficou Talita
ao perguntar ao filhinho:
– “Você sabe o que é tablita?”
E ele: – “É a mãe do tablitinho!”
-
Coração - Casa em ruínas,
onde a espera se instalou,
e o adeus rasgou as cortinas
que a saudade costurou!
-
Da tua ausência estou farta
(ensaio a mensagem breve)...
meu coração dita a carta,
mas o orgulho não escreve!
-
Dentro do armário, um gemido
eriçou tudo que é pelo...
Era um "fantasma" escondido
que batera o cotovelo!
-
De cama encontrei Maria
com Dengue. Como é que pode?
Até hoje eu não sabia
que Dengue usava bigode!…
-
De saudades andam fartas
as cartas que estou mandando,
não cabe nas mesmas cartas
o amor que está te esperando.
-
 Entre um suspiro e um lamento
é constante o meu sofrer,
pois morro a cada momento,
com medo de te perder.
-
É tão "fraco" o Xavier,
que ao chegar embriagado,
explicou para a mulher:
- foi trânsito "engarrafado"!...
-
É tão roxa por novela,
a mulher do Serafim,
que, se alguém chama por ela
ela responde: - Plim-plim !
-
É um poema à tarde breve
que agoniza em meu quintal:
– o teu jeans toca, de leve,
meu vestido no varal.
-
- Eu gostaria de ver
um fantasma - a sogra fala.
E o genro, sem se conter:
- Tem espelho ali na sala!
-
Fica um só momento ainda!
Não importam teus deslizes:
– afinal, é sempre linda
toda mentira que dizes.
-
Meus pecados reconheço,
meu São Francisco bendito:
– não me dês o que mereço,
mas sim o que necessito…
-
Modista das estações,
num traje verde-hortelã,
a flora prega botões
no vestido da manhã!
-
Não há vidas sem amores...
Noite não há sem o dia...
nem arco-íris sem cores...
nem Friburgo sem poesia.
-
Na porta o trinco a girar...
No peito, um sino em repique...
Não basta você chegar;
Deus queira que você fique!
-
Nas quedas, não desistir
Ter esperança. . . Tentar!.
- O pior não é cair,
mas não querer levantar!
-
O papagaio do Andrada
capricha no palavrão,
sempre que vê a empregada
pondo "louro' no feijão!
-
 O suspiro está perfeito,
mas é tão pequenininho
que deve ter sido feito
com ovos...de passarinho!
-
Planejo a carta e o maldoso
orgulho logo desponta
E caneta de orgulhoso
não tem tinta e não tem ponta!
-
Por capricho ou por maldade,
partiste... Não vais voltar...
E o que faço da saudade
que ficou no teu lugar?
-
Por duas frases trocadas
e um só orgulho depois,
estão todas as calçadas
estreitas para nós dois..
-
Pra barata foi bem chato
descobrir que a baratinha
anda curtindo um barato
pelos cantos da cozinha!
-
Prazer no vício... Onde a graça
de um destino mais ameno?
- Nada vale o ouro do taça
se o conteúdo é veneno !
-
 Qual poema improvisado,
nosso amor se transformou,
num verso de pé-quebrado
que o destino publicou.
-
Quando a mulher foi chegando,
o cara perdeu a fala,
pois trazia um "contrabando"
tossindo no porta-mala!
-
Quando vejo um tubarão,
eu me arrepio, me encolho.
Por isso é que o camarão
tem sempre as barbas de molho!
-
Se sofrer é, realmente,
tão ruim como se diz,
por que existe tanta gente
tentando ser infeliz?!…
-
Timidez, irmã do medo,
sabe tão bem me conter,
que me faz guardar segredo
do que mais quero dizer!...
-
Um caráter mal formado
em desculpas se resume :
– Faz do destino o culpado
dos erros que não assume.
-
 Vendo a caipira agitada
- "É carma" explica o guru.
E o caipira: – "É carma nada;
É nervosa prá chuchu !...”
-
Você nem sabe a ventura
que me traz seu bem-querer:
– se é paixão ou se é loucura,
eu não quero nem saber!
-
Volto a contemplar a esmo,
ao luar, o meu recanto,
o luar parece o mesmo,
mas o lugar mudou tanto!…
-
Vou dar-lhe um beijo amoroso,
mas, por favor, não se oponha!
- Se beijar é vergonhoso,
quero morrer de vergonha!

Contos Populares do Tibete (De como Asanga chegou a ver o Buda Futuro)

Asanga, o douto filósofo, de todo o coração decidido a realizar a sabedoria interior, meditou em solidão durante muitos anos. O objeto de sua meditação era Champa (Maitreya), o Buda do futuro, que reside no céu Tushita aguardando a sua descida à terra. Asanga sempre fora perseverante em seus esforços, mas, depois de tantos anos de fervorosa meditação, ele mesmo já começava a sentir-se frustrado em seu empenho por alcançar a sabedoria a que aspirava.

Certo dia, quando passeava pelo exterior de sua caverna, Asanga se fixou nuns quantos pássaros que pousavam numa rocha proeminente que ficava próxima. Justamente onde as asas dos pássaros, ao pousarem, roçavam a rocha, Asanga notou uma profunda fenda. Isto o levou a refletir sobre os incontáveis anos que deveriam ter sido necessários para que, pelo único efeito do roçar suave das asas dos pássaros, se produzisse uma cavidade como aquela.

Ao voltar à sua cova, Asanga, com os sentidos aguçados pela meditação profunda, ouviu o brando gotejar da água sobre a pedra. Examinando-o mais de perto, percebeu um pequenino regato que seguia rocha adentro: com os anos, o delicado gotejar da água havia aberto uma profunda passagem na rocha. "Se as asas dos pássaros e o gotejar da água podem perfurar a rocha — pensou Asanga —, então também eu, com a meditação, posso perfurar as distintas camadas da consciência, e alcançar, dessa maneira, a sabedoria."

E assim, Asanga continuou meditando, mas meditando sem resultado algum. Parecia-lhe que, quanto mais ardentemente buscava obter a sabedoria, e quanto mais apaixonadamente tratava de invocar a Champa, mais impossível isso se tornava.

Um dia, Asanga deixou sua caverna para ir à busca de comida. No caminho, encontrou um homem que esfregava uma barra de ferro maciço com um pedacinho de algodão. Asanga perguntou-lhe o que estava pretendendo obter com aquilo, e ele respondeu que ia fazer uma agulha. Asanga se surpreendeu muito por achar possível fazer uma agulha apenas esfregando uma grossa barra de ferro com um pouquinho de algodão macio; mas, quando expressou isso ao homem, este respondeu:

"Se alguém está realmente resolvido a fazer uma coisa, não fracassará em seu empenho, mesmo quando a tarefa possa parecer impossível."

Asanga recobrou novas forças, ao considerar que a sua tarefa não era mais difícil do que a daquele homem, e voltou à sua caverna animado a continuar a sua meditação.

Depois de haver estado meditando durante doze anos, Asanga decidiu-se, finalmente, a abandonar seu retiro e deixar de meditar sobre Champa, pois este não se lhe apresentara nunca, nem mesmo depois de tanto tempo de esforços.

Ao deixar seu retiro, Asanga encontrou um cachorro ganindo de dor por causa de uma ferida no dorso — um dorso infestado de vermes. Asanga sentiu uma grande compaixão pelo cachorro e desejou aliviar-lhe os sofrimentos. Sabia, porém, que se lhe tirasse os vermes, estes iriam morrer, pois não teriam de onde comer. Para salvar o cão, Asanga decidiu tirar-lhe os vermes, e, quanto a estes, iria colocá-los em sua própria carne, para que pudessem continuar vivendo. Asanga já se dispunha a retirar os vermes com a mão, mas deteve-se e pensou: "Se os tirar com os dedos, poderia esmagá-los". De modo que, fechando os olhos, inclinou-se para retirar os vermes lambendo a ferida. No mesmo instante em que a sua língua tocava o cachorro, este desapareceu, e, em seu lugar submerso numa bolsa de deslumbrante luz, apareceu Champa, o Buda futuro.

Tomado de emoção, Asanga assim falou a Champa:

— Durante tantos anos e de tantas formas, tentei vê-lo, sem que o senhor se mostrasse a mim, e agora, quando meu anseio desapareceu, por que se mostra diante de mim?

Champa respondeu:

— Porque somente agora é que, através do seu grande ato de compaixão, a sua mente está realmente pura e, portanto, apta para ver-me. Na verdade, eu sempre estive aqui.

Então, Champa ordenou a Asanga que o levasse sobre os ombros até a cidade para que outras pessoas pudessem vê-lo. Assim o fez Asanga, mas o povo, com a consciência obscurecida por pensamentos impuros, não pôde ver a Champa, e acreditou que Asanga estivesse louco quando proclamava que levava Champa sobre seus ombros. Mas uma anciã conseguiu ver um cachorrinho sobre as costas de Asanga, e foi imediatamente acumulada de riquezas. E um pobre carroceiro de mulas chegou a entrever os dedos do pé de Champa, e, desde aquele momento, teve poder e paz interior.

Champa levou, então, a Asanga ao céu Tushita, onde pôde receber o ensinamento e obter a sabedoria que, durante tantos anos, o havia evitado.

Nota
1. Asanga natural de Purusapura (a atual Peshawâr, no Paquistão), não tibetano, pois, mas hindu, é um dos maiores filósofos do budismo. É considerado o criador, junto com seu irmão Vasudandhu, do sistema Vijnânavâda ou Vijnâptimâtra, base doutrinai da escola Yogâcâra (Hossô, no Japão); e, também, junto com o sistema Mâdhyamika, de todo o budismo mahâyâna.
Tradicionalmente, o seu ensinamento é considerado como sendo "o samadhi (a meditação criativa) de Maitreya", e assim, seu suposto irmão, Maitreyanâtha ("nâtha" significa "senhor"), não seria senão o próprio Buda futuro, como fica claro em nosso relato.
Maitreya, em tibetano Champa (Byams-pa), é o nome que recebe o bodhisattva que aparecerá, um dia, como o novo Buda em nosso mundo, e que, da mesma forma que Sâkyamuni, "fará girar a roda do Dharma, quando esta se houver detido".
É considerado uma emanação do Dhyâni Budda Amoghasiddhi, e seu nome deriva de maitrí, que significa a simpatia universal para com todos, a infinita benevolência e o amor.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte IX

A partir do Renascimento, em âmbito literário, percebe-se que a mulher começou a ser vista sob um novo prisma, porém, em nível social, ela continuou a ser mero objeto, passiva e obediente a atitudes paternais. Aliás, essa visão social e, diga-se generalizada, ultrapassa a Antiguidade e prolonga-se até fins da Idade Média. E somente com a chegada do Renascimento é que a mulher principia a renascer, transformando-se em sujeito da ação. Novaes Coelho sustenta que:

É só compararmos o registro histórico com o registro literário das relações Homem/Mulher, nas cortes medievais, e compreendermos a enorme distância que ia da realidade dos fatos à idealização dos valores. Ao nível da História, vê-se tais relações marcadas pela violência e pela promiscuidade mais rude, mostrando que o respeito pela mulher era  praticamente nulo, pois ela era apenas uma peça útil ou inútil no jogo dos interesses pelo poder. Enquanto, ao nível literário, se impunha a idealização mais absoluta, que transformava a Mulher, do ser inferior e dominado que era na vida real, em um valor superior e precioso a ser atingido por todo homem que procurasse sua realização humana integral [...] (COELHO,1991, p. 50, grifos da autora)
                     
De outro modo, no século XX, Marina Warner destaca que a personagem feminina, outrora passiva, transformou-se em sujeito de ações más. De certa forma, inclusive Walt Disney, através dos filmes Branca de neve e os sete anões e Cinderela, contribuiu para que a crueldade feminina se acentuasse através da madrasta e da bruxa má, as quais roubaram a cena dos protagonistas príncipes e princesas. Tem-se a impressão de que quem assiste a essas produções artísticas mal pode esperar o momento para que a maldade entre em ação.

Os dois filmes [Branca de Neve e os sete anões e Cinderela] se concentram com prazer exuberante na madrasta perversa e violenta, com seus cabelos negros como as penas de um corvo e as garras de uma ave de rapina; nem mesmo os poderes inventivos de Disney conseguiram salvar os príncipes de uma banalidade sem expressão e as heroínas de um sentimentalismo açucarado. O poder autêntico emana das mulheres más, e a fada-madrinha gorducha e simpática, em Cinderela, parece não ser páreo para elas. A visão de Disney afetou a idéia que todos faziam dos próprios contos de fadas: até que escritores e antologistas reabrissem os olhos, heroínas passivas e infelizes e mulheres mais velhas, vigorosas e perversas,pareciam características genéricas [...] (WARNER, 1999, p. 239)

Em consonância com o aspecto estereotipado da figura feminina, presente nos contos, a mulher era descrita, enquanto malvada, feia, poderosa e representada pela bruxa, pela fada ruim, pelas irmãs invejosas, pela rainha má. Enquanto bondosa, obediente, irresoluta, angelical, bela, era caracterizada como princesa, filha órfã, fada.

Atualmente, as características más da mulher são amplamente discutidas, tanto que o assunto mereceu uma reportagem da revista Época (2004). Nessa reportagem é apresentada a obra de Shelley Klein, uma vez que a autora desvendou o universo das más, perfilando as quinze mulheres mais cruéis do ponto de vista histórico e não ficcional.

Martha Mendonça, a profissional responsável pela reportagem, introduz a temática em questão afirmando que:

Antinatural    ou não, a ficção    está    lotada de vilãs assustadoras,  definitivamente mais marcantes que os homens. Elas povoam os contos de fadas, novelas e clássicos do cinema. As madrastas de Branca de Neve e Cinderela são ícones dessa idéia: aquelas que deveriam estar no lugar da mãe, mas, ao contrário, são perversas e competitivas com suas pobres enteadas. (MENDONÇA, 2004, p. 68-69)

De certa forma, é necessária uma análise mais detalhada quando Martha Mendonça afirma que as vilãs são mais marcantes que os homens na ficção, visto que há narrativas repletas de homens incomparavelmente cruéis, e o Barba-Azul, já citado anteriormente, é um deles.

Mendonça cita ainda o que o psicanalista Lindenberg Rocha salienta sobre a questão:“A madrasta da Branca de neve, linda de um lado e bruxa do outro, é um símbolo fortíssimo desse poder de vida e morte da mulher, essa matriz da humanidade” (2004, p. 69). Além disso, Martha Mendonça acrescenta a visão do Mauro Alencar, uma vez que este acredita que “as más enfeitiçam as platéias, são a mola propulsora da trama, mais que as mocinhas” (2004, p. 70).

De acordo com Marina Warner, o ódio da mulher mais velha em relação à mais jovem – outra característica negativa da mulher - presente nos contos, representa a sua fragilidade e dependência quanto aos cuidados e atenção que a família poderia lhe proporcionar:

o ódio da mulher mais velha e a disputa entre gerações podem ser frutos não apenas da rivalidade, mas também da culpa diante dos fracos e dependentes. O retrato da sogra ou madrasta tirana pode esconder sua própria vulnerabilidade, pode oferecer uma desculpa para os maus-tratos que receberia. (WARNER, 1999, p. 260)
                     
(Nota: Como exemplo, observa-se o retrato apresentado pela França, após a Revolução, uma vez que a sociedade não era nada propícia à mulher que perdia todos os bens após a morte de seu esposo, falecido principalmente em combate na guerra, tendo ela que viver à custa de parentes. Devido a isso, criava-se uma acentuada rivalidade entre mulheres jovens e mais velhas, sendo que as viúvas é que enfrentavam perigos reais, uma vez que se tornavam vulneráveis ao estarem desacompanhadas. A presença masculina era fundamental e indispensável para a constituição familiar e, mais especificamente, para a própria sobrevivência feminina.)

No conto A Bela e a Fera, provavelmente originário de Amor e Psiquê, obra de Apuleio, a figura feminina é testada em sua confiança e obediência, assim como em Barba-Azul, de Perrault. Sendo assim, faz-se pertinente ressaltar que a maldade estava presente, num primeiro momento, na mente masculina, parecendo que qualquer ato feminino era digno de desconfiança. E os contos realmente identificam o que as mulheres vivenciavam em sociedade, ou seja, seus companheiros consideravam-se donos de suas vidas e corpos e as tratavam como suas escravas, tornando-se, às vezes, verdadeiros monstros para elas. Essa temática é evidenciada nas obras de madame d’Aulnoy, Murat e Jeanne-Marie Beaumont, escritoras que vivenciaram esses tempos difíceis, em que essa posição masculina era dominante.

Na versão apresentada pela Walt Disney, a Fera é representada de uma forma mais humana e suas atitudes com a Bela são bastante carinhosas e prestativas. Evidentemente que esse homem-animal mostrou-se impiedoso e cruel ao exigir a filha do mercador como pagamento de dívida.

Por sua vez, o pai de Bela (assim como de Cinderela, de Bela adormecida e de Branca de neve) fez-se ausente, fraco, incapaz de assumir a sua verdadeira paternidade, a ponto de entregar a própria filha à Fera. Nessa situação, tanto a Fera quanto o pai de Bela apresentaram atitudes inquestionáveis quanto à crueldade. De outro modo, até mesmo as figuras femininas assemelham-se em Cinderela e Branca de neve. As heroínas, representadas por mulheres mais novas, são vítimas de inveja e de crueldade de madrastas de mais idade, que ora figuram como bruxas.

Além disso, comprovando-se “a malignidade masculina”, naturalmente traço cultural, observa-se, no conto Pele de asno, de Perrault, que o pai é bastante presente, embora no sentido de assediar sua filha. Tanto que a princesa, vestida de mendiga e usando uma pele de asno, foge das garras do mesmo. É sabido que em povos antigos, que viveram antes da Idade Média, o incesto era permitido, uma vez que a filha mais velha deveria assumir as obrigações do lar e com seu pai, desde que sua mãe tivesse falecido. A partir da Idade Média esse conto passou a revelar e, até certo ponto, condenar, a atitude do pai incestuoso.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (A flor na montanha)

O rapaz amava aquela flor. Tanto que, dia após dia, subia a montanha mais alta do vilarejo onde morava, só para regá-la e dar a ela os cuidados que o Pequeno Príncipe dava a sua rosa.
 
Fizesse sol, fizesse chuva, de sua flor mais cara cuidava. Dava gosto àquele jovem a textura das pétalas, o verdinho das folhas, o pólen mais fresco da flor na montanha, sua amada flor.
 
Sua família o criticava ao vê-lo chegar do trabalho e correr para o alto da montanha em que a flor, calada, sem aparente expressão, esperava seu doce jardineiro, seus carinhos.

Quando ficava bem tarde, dava um beijo em sua flor e, sozinho, ligeiro (pois, para baixo, todo santo ajuda), voltava para casa e, em sua cama, sob as cobertas, sonhava com sua querida.
No sonho, era um pé de flor ao lado da sua e, quando o vento batia, encostava-se na amada e, contente, vertia seu pólen sobre ela, que, sorrindo, ficava mais linda e mais cheirosa, viva.

Sua rotina vinha de muito. Era menino quando, com o pai, subiram a montanha e, de repente, lá estava ela: uma flor arroxeada, de pétalas viçosas, tão bonita que o encantou.

Tudo estaria bem se não fosse um triste fato que ele vinha percebendo. Sua amada vinha murchando, ficando sem cor e sem o mesmo perfume de outrora. Não sabia o que lhe faltava.

Certo dia, ao voltar para casa, vindo do trabalho, trocou de roupa e sentiu uma dor. Não sabia o que era. Ficou sem graça, sem jeito, sem ânimo, mas, como sempre, subiu a montanha.

Durante a subida, foi ficando mais velho, e os fios de barba em seu rosto foram miraculosamente crescendo, suas costas se envergando um pouco, era um homem. Sua flor morrera.

Fontes:
O Autor
Imagem - http://www.horoscopovirtual.uol.com.br

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Cecy Barbosa Campos (Poemas Escolhidos)



MENINO DE RUA
 .
Asfalto. Pés descalços, sorrateiros,
deslizando no frio da calçada
procuram abrigo, no canto se escondendo
da chuva de verão, que é traiçoeira.
Com molhados braços nus e pernas finas,
a criança que nunca teve infância,
vai esperando do sol o surgimento
enquanto sonha com amanhãs que nunca chegam
sem esquecer os ontens que perduram.
O menino, adulto prematuro,
contempla palavras de neon relampejando
nos céus dos edifícios que o cercam,
sem compreender aquilo que elas dizem.
Olha, então, as vitrines reluzentes -
adornos natalinos, brilhos, árvores, presentes,
os símbolos de uma vida que não vive.
 .
 CENA CREPUSCULAR
.
O céu, ensanguentado,
derramava-se no horizonte
enquanto pequenos raios
brincavam de esconde-esconde
atrás dos montes.
As árvores se vestiam de sombras
qual amantes fugitivas.
A noite acendia suas velas
e iluminava o firmamento.
 .
CENA FINAL
 .
Não quero escutar a tua despedida
nem receber teu olhar indiferente.
Prefiro assistir tua partida silenciosa
sem palavras inúteis ou falsas desculpas.
Não quero teu abraço desprovido de emoção
e cheio de mentiras.
Não quero que me olhes da fotografia
fazendo-me lembrar o que já não existe.
As molduras vazias do meu porta-retrato
são menos dolorosas que a saudade
de ver o teu sorriso, a cada noite,
iluminando a penumbra do meu quarto.
 .
CENA FUGAZ
 .
O meu corpo mergulha no teu corpo
e busca o ancoradouro dos teus braços.
Engalhados os dois, em semeadura
de flores que transbordam em nossos beijos,
percorremos distâncias infinitas.
Do silêncio da noite que nos cerca,
ouvimos sons de alegrias inaudíveis,
até que trevas espessas nos encubram
e este frenesi louco se dissipe.
A morte pouco a pouco se aproxima
transformando nosso afã em letargia
e da fugacidade de um momento,
só resta o tédio, desamor e nostalgia.
 .
CENA INDIFERENTE
 .
Minha alma nada vê.
De olhos vazios
contemplo o nada.
Meu coração nada sente
nas profundezas do ser,
pulsando inerte.
 .
CENA MATINAL
 .
A lua tentava escapar
do mar que, impetuoso,
lançava-se sobre ela
e inundava de azul
as montanhas atrevidas.
A cerração encobria o vale
escondendo as casas
e os pensamentos dos homens.
As árvores brotavam das nuvens
e se despiam da névoa
soltando suas longas cabeleiras verdes.
O sol as beijava,
lascivamente,
escorregando, afoito,
por seus membros molhados de orvalho.
Aquele êxtase se transmitia por toda a natureza
no surgimento do dia que nascia.
 .
CENA MELANCÓLICA
 .
Quando olho o meu retrato
vejo o que resta de mim.
Lembro sonhos antigos que se tornaram
passado.
Lembro coisas que já não existem
e pessoas que não são mais.
Tento reacender, inutilmente,
a chama da vela
que se esvai dentro de mim.
Sinto um vento gelado que sopra
penetrando em minha alma,
exaurindo pouco a pouco
fragmentos de um ser que quase não é.
 .
CENA MUDA
 .
Você olhou pra mim
e lançou um sorriso complacente.
Complacente… ou indiferente?
Olhei pra você
e mandei de volta o mesmo sorriso.
Como é triste não ter o que dizer…
 .
CENA NATALINA
 .
Na mesa adornada,
iguarias perfumadas
aguçam o apetite
para a festa gastronômica.
Fitas vermelhas
enfeitam presentes
em embalagens prateadas.
Garrafas de champanhe
espocam nas salas
misturadas aos risos
e aos abraços.
Na árvore natalina
com bolas coloridas,
sininhos dourados
tintinabulam a cada instante.
Na efusividade do momento,
ninguém se lembra
do aniversariante.
 .
CENA TRISTE
 .
O sol frio
colore o silêncio
através da janela
de olhos vazios.
Lembranças
preenchem espaços
indevassáveis.
Sonhos,
compulsórios, necessários,
harmonizam os tons
na desarmonia da vida.

Poemas obtidos no livro da poetisa, “Cenas”. Juiz de Fora: Editar Editora Associada, 2010.