quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Luiz Máximo de Souza (Caderno de Trovas)



A gente mesmo procura,
a gente mesmo perfaz,
o caminho da amargura,
ou o caminho da paz.
 -
Ame o bem!  O amor estude!
Seja justo, honesto e honrado!
Quem não vive de virtude,
pode morrer de pecado!
-
As lágrimas e os sorrisos
dão-nos a prova evidente
dos caminhos indecisos
porque anda a vida da gente.
-
Colhendo rosas, vi Rosa
entre as rosas do jardim;
era a rosa mais formosa
que sorria para mim…
-
Crianças abandonadas
nas nossas grandes cidades,
tristes fotos estampadas
do abandono das bondades.
-
Do teu carinho, querida,
eu preciso inteiramente;
como preciso da vida,
como preciso ser gente.
-

É bem possível que eu seja
um indiscreto qualquer...
Mas, quem é que não deseja
um carinho de mulher?
-
Levando sempre no "papo"
quase toda secretária,
o patrão pegou um "guapo",
disfarçado de Rosária…
-
Não cruzemos nossos braços
pelos caminhos da vida!
Se os frutos estão escassos,
a lavoura está florida!
-
Não quero ser emotivo,
porém, percebo e adivinho:
– sem teu carinho não vivo,
não vives sem meu carinho.
-
Nariz espetacular...
é o nariz do seu Diniz:
– quando se põe a roncar,
todo mundo pede... bis!
-
Neste abandono em que estamos
destruindo nosso amor,
nós próprios alimentamos
as chamas de nossa dor.
-

O abandono desabona,
desacredita e degrada
mais aquela que abandona
que a pessoa abandonada.
-
O amor, quando é verdadeiro,
neste lema se resume:
- não existe por dinheiro,
não se agrada com perfume.
-
O desamor dos humanos
é realmente o culpado
da existência dos tiranos,
da obstinação do pecado.
-
Olhe o nariz da Ermengarda
e observe que narigão!
É, perto de uma espingarda,
um verdadeiro canhão!
-
Os caminhos da amargura
e os caminhos da esperança,
você mesmo é que os procura,
você mesmo é que os alcança…
-
Pelos caminhos da vida
encontrei você, meu bem,
sem esse encontro, querida,
eu não seria ninguém.
 -

Perfumes, como atitudes,
ninguém pode avaliar...
Que as suas totais virtudes
não irá, nunca, encontrar…
-
Se eu tiver os teus carinhos
e tu tiveres os meus,
viveremos mais juntinhos
e bem mais perto de Deus.
-
Sejamos todos irmãos,
bons amigos, bons vizinhos;
estendamos nossas mãos,
ao cruzarmos os caminhos.
 -
Se não queres que o abandono
te envileça e te degrade,
não subas tanto no trono
da desumana vaidade.
-
Se te amar pecado fosse,
se é pecado ainda te amar,
esse pecado é tão doce
que vale a pena pecar.
-
Se te contemplo a me olhar,
bem nos meus olhos, sorrindo,
é o mesmo que contemplar
botões de rosas se abrindo…
-

Se te fechas no egoísmo,
se abandonas pais e irmãos,
forjando estás teu abismo,
com as tuas próprias mãos.
-
Seu salário era curtíssimo,
e o remédio pro Correia
foi pedir ao Meritíssimo
para dormir.. na cadeia…
-
Simplesmente não me atinge
o abandono inconsequente
do amor que somente finge,
do amor que odeia somente.
-
Sobre o nariz discutiam
sua posição funesta...
E, ao final, se divertiam:
- E se ele fosse na testa?
-
Tens, minha deusa formosa,
nos teus lábios de carmim,
todo o perfume da rosa
mais bela que há no jardim.
-
Todo excesso de requinte
não surte bom resultado;
carinho, por conseguinte,
também tem que ser dosado.
-
Todo perfume é um poema,
cujas estrofes floridas
cantam a essência suprema
das flores de nossas vidas.
-
Vou lhe dizer a verdade,
a verdade, nua e crua:
– sem carinho a sociedade
conjugal não continua...

Olivaldo Júnior (A última carta)

Aquele homem pegou suas últimas palavras e juntou numa carta para seu amigo. Não, não se matou. Pensou que iria ficar para semente e plantou uma carta, uma última carta. Mais que tão só expressão, a última carta daquele homem era cheia de estrelas que caíram do céu e viraram poesia. Poesia é a lua que hiberna.

Não sabia de onde vinha, nem para onde ia, mas tinha um amigo. Dizia na carta o quão importante tinha sido encontrar alguém para as horas de morte, em que a vida renasce nos olhos de quem nos entende. Tanto a dizer, e nada se diz. Tanto a fazer, e pouco se faz. Será que a vida é assim, um eterno externo a fazer? Será?

Gostava do amigo a seu lado, dizendo de coisas que os dois compreendiam. Não se podia prever o fim da amizade. Tudo tem fim? Começa de novo a canção, e uma nova emoção nasce em nós. Cada ponto cruzado da trama, do acorde, do acordo, enrodilha-se em nós como um elo com a vida, que, mesmo de morte, avoa.

A última carta jamais chegaria ao destino. Com milhões de versos, muitos de pé quebrado, ela dormiria para sempre na gaveta da escura mesinha. Seu violão, de vez em quando, tarde da noite, clamava em silêncio por ele, que o ninava nos braços como quem nina um bebê, um filho, "Pinóquio" a quem dava uma vida.

Bem no fim de tanta escrita, mal assinava seu nome. Não carecia, porque a carência das letras o denunciava nos verbos usados: queria, precisava, gostaria... O som da última carta vinha pleno de noites sem lua, em que se pode ouvir o som do peito e dos roucos soluços na fronha de outrora. Nunca enviaria tal carta, a última, a primeira, a seguinte, igual a tantas e inédita carta.

Fontes
O Autor
Imagem = www.eltrendelavida.mx

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (Felicidade)

Sim, ele está feliz. Um homem que esteve com alguém que ama só pode mesmo estar feliz. "Mas o que é felicidade?", perguntou ele ao psicólogo, dia desses, durante a sessão, que, prontamente, assim lhe disse: "Felicidade é a realização de seus desejos". Ah, então era isso?! Não era algo palpável, nem vendável, nem comprável. A realização de seus desejos... Hum... Isso é difícil! Mas, de sol a sol, de chuva a chuva, ele tentava, e juro que sim.

Lembro-me dele quando criança, era tão belo, tão puro, não sabia nada do mundo. Não, não acredito que o mundo seja feio, há muita beleza no mundo. Mas, para aquele menino, o mundo era uma coisa, sei lá, uma coisa que é feita do eterno com o de repente, uma coisa perene. Não, ele não via que o mundo gira, e gira tão rápido que, se não tomarmos cuidado, ele nos pega, derruba e, depois, só Deus sabe o trabalho que dá ficar em pé.

Aquele homem estava muito feliz. Logo, talvez, a tristeza se achegaria novamente a ele e o abraçaria com suas mãos delicadas que sufocam o peito, com sua voz bem macia que nos faz derramar um rio de lágrimas densas, há muito guardadas. Porém, por ora, estava feliz. Não sabia onde pôr as mãos, e seus pés tinham vontade de andar. As mãos, ele as poria no teclado e escreveria mais um texto; e os pés, ele os cruzaria bem debaixo da mesa.

Felicidade... Como diria Clarice, a Lispector, "que palavra mais doida"! Mas, sem ela, vivemos em busca de nós sem promessa de um campo bem vasto de girassóis, ainda que seja tão só em vã metáfora. Todos querem seu lote na terra prometida, na terra de Oz, na América dos velhos tempos, quando não tinha caído nenhum "cogumelo" em lugar nenhum. Algum trocado, por favor, que aquele homem está muito feliz. Felicidade é gostar de estar.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.frasesdobem.com.br

Contos Populares Portugueses (A Gaita Milagrosa)

Havia numa terra um indivíduo que possuía uma gaita com a virtude de fazer bailar os ouvintes quando tocava. De uma ocasião, passava um sujeito com um jumento carregado de louça e o dono da gaita pôs-se a tocá-la.

Tanto o dono do jumento como este puseram-se logo a bailar, e com tantos saltos, que em pouco tempo toda a louça se fez em cacos.

Gritava o dono da louça ao tocador da gaita que não tocasse, mas este só tirou a gaita dos lábios quando já não havia uma única peça de louça inteira. Exasperado, o pobre homem foi queixar-se ao juiz e o tocador foi chamado à sua presença.

- És acusado de ter quebrado a louça deste homem - disse o juiz ao gaiteiro.

- Eu não sou culpado. Toquei a minha gaita, e esse senhor e o seu jumento puseram-se a dançar.

- Tens contigo a gaita? - Tenho.

- Toca - ordenou o juiz, sentado na sua poltrona.

O gaiteiro tirou a gaita do bolso e pôs-se a tocar. O dono da louça, que a esse tempo estava encostado a uma cadeira, pegou na cadeira e bailou com ela. O juiz, qui ia tomar uma pitada de rapé da sua caixa de ébano, começou a pular, batendo com os dedos na tampa à maneira de castanholas. A mãe do juiz, que estava entrevada na cama, no quarto próximo, levantou-se imediatamente, bailando, batendo as palmas e cantando:

Vá de folia,
Vá de folia,
Que há sete anos
Me não mexia!

E assim se converteu o escritório do juiz numa animada sala de baile, pois que até as cadeiras, os tinteiros e todos os mais móveis se puseram a saltar e a bailar.

Passados momentos, pediu o juiz ao tocador que cessasse de tocar a gaita, e o homem obedeceu imediatamente, pois viu que tanto o dono da louça como o juiz e a mãe suavam com abundância.

O juiz, depois de limpar o suor disse para o tocador:

- Podes-te ir embora sem culpa nem pena, porque és um homem que até curou a minha mãe, que há muitos anos se não podia mexer na cama.

E o tocador saiu da presença do juiz muito contente e satisfeito.

Não diz a história se a mãe do juiz voltou para a cama.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIII

L’Héritier utilizou-se dos contos de fadas para unir as diferentes classes sociais, babás e literatas, mostrando a realidade deprimente em que a mulher vivia, independendo da classe a que pertencia. Estilo também adotado por d’Aulnoy, porém essa escritora distanciava-se de Marie–Jeanne L’Héritier quanto ao uso do linguajar, e também quanto à expressão de sentimentos e de valores adotados.

      L’Héritier, pertencente à tradição francesa, através da língua culta, redigia contos elegantes, os quais eram considerados excessivamente rebuscados para o entendimento popular. Pelo contrário, d’Aulnoy não possuía “papas na língua” como já foi visto, uma vez que essa escritora retratava o vulgar e o mundano, bem como amores bestiais. Enquanto L’Héritier recolhia os contos populares e os lapidava, acrescentando a eles valores e sentimentos superiores, d’Aulnoy os escancarava, sem censura ou pudor.

      Marina Warner cita o posicionamento de L’Héritier quanto às histórias vindas diretamente da boca do povo:

                       Essas histórias se encheram de impurezas ao passarem pela boca da gente comum, assim como a água pura se polui com lixo ao passar por um bueiro sujo. Quando as pessoas são simples, são também grosseiras: não sabem o que é apropriado. Se um evento licencioso e escandaloso é mencionado ligeiramente, a história que contarão depois se encherá com todos os detalhes. Esses atos criminosos são relatados com um bom propósito, mostrar que eram sempre punidos, mas o povo, de quem os recebemos, relatam-nos sem cobri-los com nenhum véu, e de fato os vinculam tão firmemente às questões que revelam que fica difícil contar as mesmas aventuras e mantê-los ocultos do público. (WARNER, 1999, p. 206)
                     
      Convém salientar mais uma diferença entre d’Aulnoy e L’Héritier, ou seja, a primeira compunha seu enredo com metamorfoses de animais; a segunda não inseria seres animalescos em suas narrativas, mas sim, propunha às suas heroínas desafios até então considerados masculinos. Isso acontece em Marmoisan ou L’innocent tromperie, uma vez que a heroína disfarça-se de homem e vai para a guerra. A garota se faz passar pelo irmão gêmeo que havia morrido de forma inusitada.

Marmoisan, assim a heroína se chamava, destacou-se pela bravura entre os demais guerreiros e, como a escritora abominava a linguagem inculta e mundana, transferiu, então, essa aversão a sua personagem. A heroína jamais participava de um círculo de conversa masculina, onde o assunto principal era a conduta feminina. Afinal, a heroína cai nas graças de um príncipe que, após descobrir sua verdadeira identidade, casa-se com ela.

Faz-se interessante ressaltar que, já nessa época, século XVII, L’Héritier assim como d’Aulnoy, mostravam uma nova identidade da personagem feminina: mulheres inteligentes que podiam muito bem direcionar suas vidas, bem como assumir funções masculinas e desempenhá-las da melhor forma possível. Tanto que, em Marmoisan, o príncipe valoriza a mulher, primeiramente, pela sua bravura como soldado, e, após, pela sua beleza.

      Além de Marmoisan, L’Héritier escreveu La robe de sincerité, uma vez que a heroína é uma tecelã chamada de Hermínia que auxilia o pai, o falso mago Misandro, em uma cômica e ardilosa mentira. Misandro afirma ao rei de Creta que há um manto capaz de denunciar se as mulheres são fiéis ou infiéis, quando usado pelas mesmas. Assim, sob a ordem do rei, a filha do mago, Hermínia, e sua mãe, passaram a tecê-lo. Logo após o manto estar pronto, os homens exigiram que as mulheres o usassem, com isso a confusão começou, pois o referido vestuário deveria mostrar em seu bordado a situação da mulher, porém nada se via, o que deixava o sexo masculino enlouquecido. No entanto, quando os homens saem do estado de insanidade, vêem que foram enganados. Hermínia, procurando salvar a vida do pai, assume a culpa pela invenção do fato e, por isso, é perdoada.

Nesse conto, percebe-se nitidamente a amplitude da ingenuidade masculina, que se faz grotesca ao acreditar que um manto pode transparecer o interior humano. Além disso, torna-se evidente a sabedoria, a humildade feminina e a generosidade em que a filha assume a culpa para salvar a vida de seu pai.

De certo modo esse conto apresenta versão semelhante, criada em 1837, por Hans Andersen, A roupa nova do rei. Ambos, L’Héritier e Andersen, criam artefatos que, supostamente, quando usados, podem refletir o interior, as virtudes ou os vícios humanos.

Referindo-se ao conto La robe de sincerité, de L’Héritier, Warner salienta que:
      
Os adultérios e outros crimes que os homens fantasiavam, quando não viam nada no manto, representam as calúnias atiradas sobre mulheres inocentes; a colaboração de Hermínia com o pai revela a teia de fidelidades conflitantes em que as mulheres são presas; os contos e imagens que teceu, como os escritos da própria L’Héritier, representam seu protesto – a história diferente, a versão feminina [...] (WARNER, 1999, p. 211)
                     
      Soma-se ao círculo de escritoras de contos de fadas, bem como, ao das preciosas, Julie-Henriette de Castelnau de Murat. A escritora, nascida em 1670, na Bretanha, deixou-a para casar-se com o conde de Murat e residir em Paris.

      A poetisa esteve exilada, após redigir textos acusatórios sobre o rei Luis XIV e a suposta amante do mesmo. Durante seu período de reclusão, inúmeros boatos sobre sua postura “insana” disseminaram-se. Nesse tempo, Murat escreveu contos e novelas, o que fez transparecer o seu amargor em relação aos convencionalismos sociais e, até mesmo, em relação ao amor. Julie Murat só foi libertada após a morte do rei, tendo assim permissão para retornar a Paris.

      Em Le palais de la vengeance, Murat aborda o desgaste de sentimentos com o passar do tempo, como o amor. No conto, narra-se a história de uma feiticeira má que, no apogeu de sua crueldade, enclausura dois jovens amantes em um palácio de cristal. Durante o confinamento, ao invés de o casal fortificar os seus sentimentos virtuosos, acontece o contrário, eles descobrem que não mais se amam.

      Murat, em Le palais de la vengeance, coloca em xeque a conhecida frase final dos contos de fadas “e eles viveram felizes para sempre”. A escritora mostra que nem todo relacionamento afetivo é eterno e que o amor, se não for verdadeiro, pode se desgastar com o tempo. Dessa forma, a escritora, sutilmente, suger e que os casamentos podem ser desfeitos, caso não mais se tenha sentimentos de afeição entre ambos.

Les lutins du château de Kernosyra consiste de três contos interpolados. Novamente, narra-se a história de um confinamento, mas, desta vez, é o de duas irmãs órfãs que estão sob a tutela de uma tia má e interesseira. Com a chegada de dois jovens galantes, essa rotina entediante modifica-se: bailes e inúmeros divertimentos acontecem, acompanhados pela escritura de histórias de acordo com os festejos.

      No entanto, esse período feliz já possui tempo delimitado, condicionado pela vinda de um pretendente para uma das meninas, escolhido pela tia, sendo que esse é tão tolo e inculto a ponto de não saber diferenciar o que é um animal de caça de uma vaca leiteira. Dessa forma, Murat denuncia a clausura e os relacionamentos detestáveis que as mulheres de sua época eram condicionadas a viver e, mais uma vez, retoma a questão da ignorância masculina.

Em Peau d’ours, o conto desenrola-se a partir do momento em que um ogro, o Rinoceronte, deseja casar-se com a princesa Hawthorn. A cerimônia acontece, porém, em uma vacilada do ogro que sai da caverna para caçar ursos para a ceia, a serva da princesa costura a mesma em uma pele de urso. Hawthorn, ao cobrir-se com essa pele, percebe que é encantada, pois ela tornou-se uma linda ursa. Quando, ao fugir, é capturada por um príncipe, seu mistério é desvendado.

Murat, em Peau d’ours, denuncia, além da clausura feminina, outra contravenção a que ela é submetida, ou seja, a mulher precisava disfarçar ou anular os seus anseios mais íntimos para poder sobreviver em uma esfera em que a sociedade e as leis eram regidas somente por homens e somente a eles era permitida a totalidade de direitos. Além disso, a escritora ressalta a falta na esperteza do homem-ogro, uma vez que em um “cochilo” deste a mulher o supera em sua sabedoria e agilidade.

Aos nomes de L’Héritier, d’Aulnoy e Murat acresce-se Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. A escritora francesa Beaumont, nascida em 1711, tornou-se notável durante o século XVIII ao sugerir que as suas meninas, as quais cuidava como governanta, eram inteligentes e capazes de refletir e opinar sobre a qualidade das obras que lhes eram oferecidas para leitura. Warner cita a afirmativa de Beaumont quanto a isso:

elas dirão com muita gravidade sobre um livro que estão lendo: “O autor se desviou do assunto; diz coisas muito fracas. Seu princípio é falso; suas inferências também devem ser.” E mais ainda: minhas meninas provarão o que dizem. Não julgamos de forma correta a capacidade das crianças; nada está fora do alcance delas [...] Hoje em dia as damas lêem todo tipo de livros: de história, política, filosofia, e até mesmo os que tratam de religião [...] Portanto devem ser [...] capazes de discernir entre verdade e falsidade. (WARNER,1999, p. 328)
                     
      Jeanne-Marie Leprince de Beaumont foi uma das tantas mulheres de sua época que manteve por dois anos um casamento arranjado por sua família. Posteriormente, contraiu uma segunda união e teve vários filhos.
                     
      Beaumont escreveu mais de setenta obras, dentre essas Le magasin des enfants, em 1757. Sua obra se canonizou com o conto A Bela e a Fera. Várias de suas obras têm caráter didático, e a autora escreve de acordo com a ideologia cristã, ou seja, atribuindo castigos e recompensas às ações do homem, bem como abordando os valores humanos, porém o que a tornou realmente inovadora foi a utilização dos contos de fada como medida educadora para crianças e jovens. Entre seus contos está La Belle et la Bete (A Bela e a Fera).    Neste, a heroína Bela submete-se a casar com um homem-animal para salvar a vida de seu pai. O que não poderia se esperar é que o monstro se revelasse um verdadeiro cortesão, assim conquistando Bela, que consegue salvá-lo da morte, afirmando amá-lo e que com ele deseja ficar eternamente.
                      
      A moral dessa narrativa assemelha-se à do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, ou seja, o que é essencial é invisível aos olhos. A beleza da Fera escondia-se em seu interior, o que poderia torná-lo realmente belo eram as suas virtudes. E, quanto à heroína, ela deveria enxergar o invisível    e sacrificar-se sempre, em prol da felicidade de seus familiares.

      O conto A Bela e a Fera de Beaumont foi baseado no já existente, escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot Gallon, madame de Villeneuve (1695-1755), inserido na novela denominada Les contes Marins ou La jeune américaine, em 1740.

continua…

Fonte: Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (Roupa de missa)

Minha professora de canto sempre nos dizia: Amanhã tem apresentação, quero todos bonitos, com a "roupa de missa"! E sabíamos que era para estarmos "na estica", muito elegantes, com a melhor roupa que tivéssemos para cantarmos.

Que importância damos à roupa que vestimos? É verdade que tem uma para cada ocasião (e até mesmo sua falta, no momento certo, pode ser bela); mas que importância você dá para a forma como se apresenta às pessoas? Há quem não ligue para isso e se vista ou como pode, ou como consegue, ou como a bolso permite. Manoelito se preocupava com sua roupa. Gostava de estar bem vestido, nos "trinques".

O rapaz de que lhe falo morava com sua mãe e gostava de andar na moda. Não saía de casa sem perfume, nem seu sagrado gel no cabelo, tomando o cuidado de aplicá-lo pouco e com cuidado, para não lambuzar a cuca e parecer mané. Quando apontava na esquina, comentavam que ele era o mais bem vestido da vila e, quem sabe, da cidade, que não era grande, mas na medida para os casos amorosos do caro Manoelito. Entre um beijinho e outro, pedia à mãe que passasse bem sua camisa, pois tinha que impressionar. Só não usava uma roupa: um conjunto de calça e camisa, muito finos, herdados de um tio bastante rico que não os visitava quase nunca.

"Pois esta vida não está sopa / E eu pergunto com que roupa / Com que roupa eu vou / Pro samba que você me convidou"... Ah, Manoelito amava essa música! Iria com qualquer roupa para todo samba que houvesse, menos com "aquela", o conjunto de calça cinza e camisa branca, de manga comprida e gola alta, que eram seu love. Se fosse mulher, poderia imitar aquela mãe do poema de Drummond em que ele fala do "caso do vestido" e pendurar camisa e calça na parede, como se pendura um quadro, objeto de recordação, adoração, admiração. Mas não. Era fanático pela roupa, que guardava a sete chaves no guarda-roupa, tão bem fechado que as baratas da casa tinham desistido de tentar profaná-la, roendo os punhos de qualquer outra peça, menos "importante" para Manoelito.

Certo dia, houve um casamento na família e sua mãe, dona Eudóxia, queria porque queria que o filho desencantasse aquela roupa e a estreasse no casório, pois seria convidado de honra. Nada! Ele se negava a dar esse gosto à senhora. Desesperado, disse que não iria mais ao casamento, que não adiantava brigar. Nunca a usaria. O que fazer? Assim foi por muito tempo. Tinha se afeiçoado tanto àquelas duas peças de fino linho, jamais as teria sobre o corpo. Jamais?!

Aquela roupa tão linda, tão bem preservada, com tanto carinho e com tanto capricho, sem traços de traça, sem rastros de rato, foi usada por ele, sim. A famosa "roupa de missa" coube como uma luva em nosso amigo no dia de sua passagem para o Céu, em que São Pedro, numa túnica bem pomposa, o recebera. Lindo, Manoelito, com sua roupa mais cara, chegou na hora da ceia e, ao lado de Noel Rosa, ceou feliz. A roupa lhe caíra bem.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.bandsc.com.br

Contos Populares do Tibete (O Castelo do Lago)

Na terra do Tibete havia um belo lago rodeado de colinas e montanhas. Era tão belo e de águas tão claras, que os que passavam perto dele ficavam boquiabertos de admiração. Alguns diziam que, quando o sol estava alto e projetava sobre a tranquila massa de água as sombras dos picos das montanhas, parecia como se houvesse um castelo no lago, um castelo de proporções tão enormes que tomava toda a água. Assim, pois, o lago passou a ser conhecido como "o lago do castelo".

Criaram-se muitas histórias sobre o lago e seu castelo. Às vezes se dizia que, quando a lua tremeluzia e as estrelas refulgiam como diamantes na água, se podia ver uma estranha gente sair do lago, gente com olhos de fogo e cabelos soltos que caíam como folhas molhadas ao redor de seus rostos. Ou, então, dizia-se, também, apareciam ferozes cães, que estraçalhavam as carnes dos viajantes solitários que caminhavam incautamente por suas praias.

Mas, como costuma ocorrer com as lendas, o pai conta à filha e a mãe ao filho, e, assim, durante gerações e gerações, até que as histórias se ampliam cada vez mais e mais, e acabam por dizer muito mais do que pretendeu quem as contou pela primeira vez. E aconteceu que, logo, foi aceito por todos que havia, mesmo, um castelo no lago, e que o castelo tinha um rei. Este rei, dizia-se, possuía muitos servidores, homens que, por alguma desgraça, haviam caído no lago, ou que haviam sido capturados enquanto caminhavam sozinhos por suas margens, e que depois, foram obrigados a permanecer a serviço do rei.

Certo dia, um jovem pastor estava guardando seus iaques no lado oriental do lago, quando sentiu vontade de comer algo; por isso, deixou o seu rebanho e desceu até a margem do lago. Depois de ter molhado o rosto com água fresca, sentou-se apoiado contra uma grande rocha; tirou um queijo e um pão de cevada do surrão, acendeu um pequeno fogo para esquentar seu chá com manteiga, e se pôs a comer.

Enquanto comia, Rinchen — que assim se chamava, o pastor começou a pensar em sua vida. Sua mãe era uma mulher cruel, que sempre o havia forçado a trabalhar muito, a fim de que ela pudesse comprar vestidos novos e comer bem. E, quanto a ele, tinha de contentar-se com uns poucos farrapos e com as sobras de comida que a mãe não queria mais. Considerando a vida que levava, Rinchen se pôs a chorar. As lágrimas lhe escorriam pela face e os soluços agitavam todo o seu corpo. Não conseguiria trabalhar mais do que já vinha fazendo, e, entretanto, sua mãe continuaria a querer mais e mais.

O jovem pastor já começava a guardar as suas coisas, quando, ao levantar os olhos, viu um homem de pé junto à margem do lago. Era um homem alto e vestia uma chuba1 negra da qual jorrava água — o que dava a impressão de que havia acabado de sair do lago. Recordando as histórias que tinha ouvido sobre o lago do castelo e os servidores do rei, Rinchen se sentiu tomado de pânico, e já se ia embora correndo, quando o homem falou:

— Por que você estava chorando daquele modo?

Rinchen se voltou para o homem e percebeu que ele possuía uma expressão bondosa e afável. A sua voz era doce e melodiosa. Todo o medo que o pastor sentira antes pareceu abandoná-lo, e ele se aproximou do homem alto, de chuba negra, que estava na margem do lago. Este repetiu a pergunta. Rinchen contou-lhe, então, sobre sua mãe e sobre como esta o obrigava a trabalhar cada vez mais para mantê-la e seus gostos exigentes.

— Entre comigo no lago — disse o homem —, pois o rei é um homem bom e talvez possa ajudá-lo a resolver o seu problema.

O jovem pastor sentiu que o medo lhe voltava, pois estava certo de que se entrasse no lago jamais poderia sair dele. O homem alto percebeu o medo do rapaz e, num tom suave, que era como música para os ouvidos, convenceu-o de que não havia nada a temer.

— Sou um dos servidores do rei — disse o homem. Eu vou levá-lo diante do rei e cuidarei para que aqui volte são e salvo.

O jovem pastor pensou por um momento: "Que posso eu perder? Minha mãe é tão cruel, que até a morte me seria melhor do que passar o resto da minha vida como o seu escravo". E, assim, afastando o medo, Rinchen seguiu o servidor do rei e entrou no lago.

A água era morna e acolhedora, e o rapaz se surpreendeu de que pudesse respirar com a mais completa liberdade. O servidor do rei pediu-lhe que fechasse os olhos enquanto o conduzia pela água até o castelo. Quando pararam e Rinchen abriu os olhos, viu que se encontrava numa grande sala, primorosamente enfeitada com ouro, prata reluzente e madrepérola. No fundo da sala havia um trono, e, neste, estava um homem: o rei.

O rei fez sinal ao jovem pastor para que se aproximasse. Ao fazê-lo, Rinchen percebeu que não estava sozinho, na sala, com o servidor e o rei, mas que a cada lado do trono havia mais servidores, todos eles vestidos com chubas negras como a do homem alto que lhe havia falado à beira do lago. Quando chegou aos pés do trono do rei, um dos servidores se aproximou e colocou um tamborete baixo diante do trono, para que o rapaz se sentasse nele. Timidamente, Rinchen se sentou e ficou observando os lacrimejantes olhos azuis do rei.

— Por que você está aqui? perguntou o rei com uma voz profunda que mais parecia o distante reboar de um trovão. O pastor contou, então, a sua história, tal como a relatara ao servidor, à beira do lago.

O rei foi escutando o que o jovem lhe contava e, quando Rinchen terminou o seu relato, voltou-se para o seu corpo de servidores e fez sinal a um deles para que se aproximasse. O servidor se aproximou do rei e se inclinou diante dele, enquanto este lhe sussurrava algumas instruções. O jovem pastor aguçou o ouvido, mas não pôde ouvir o que o rei dizia. O servidor abandonou a sala e voltou depois de alguns minutos trazendo um cão.

— Tome este cão — disse o rei ao pastor —, mas cuide para sempre dar-lhe de comer antes que você mesmo o faça. Isto é muito importante.

Rinchen pegou o cão e, com os olhos fechados, deixou-se conduzir até a beira do lago. Quando abriu os olhos, estava sozinho com o animal.

O jovem pastor foi embora para casa e com ele seguiu o cão. A partir daquele dia, tudo o que Rinchen desejava sempre aparecia diante dele. Ao despertar pela manhã, descobria que havia posto cevada na caixa da cevada, manteiga na caixa da manteiga, e dinheiro na caixa do dinheiro. Inclusive, apareciam roupas novas em seu guarda-roupa. Era muito feliz e sempre cuidava muito bem do cão, seguindo as instruções do rei de dar de comer ao animal antes que ele mesmo comesse.

A mãe de Rinchen, que andava muito intrigada com a súbita e inexplicável riqueza do filho resolveu, um dia, sair ela mesma com o rebanho de iaques, para ver se podia descobrir a fonte de tanta fartura. E enquanto a mãe se achava fora, o jovem pastor decidiu observar o cão, pois também estava curioso por saber como o animal conseguia obter o dinheiro e a comida. Escondendo-se na casa, observou o cão: este entrou, aproximou-se da lareira e, depois, se pôs a sacudir-se violentamente.

Imediatamente, a pele do cão caiu ao chão, deixando a descoberto uma formosa mulher a quem Rinchen jamais havia visto. Ela andou até a caixa da cevada, levantou a tampa e pôs dentro a cevada, que não se via de onde saía. Depois, fez o mesmo com a gaveta da manteiga, a do chá e a do dinheiro, tirando do nada tudo o que o rapaz e a mãe necessitavam.

Rinchen não se pôde conter. Agarrou a pele do cão e a lançou ao fogo. A formosa mulher tentou impedir que o fizesse, mas já era tarde, pois a pele ardeu rapidamente e logo não foi mais do que um grande monte de cinzas.

Temeroso de que o filho do chefe visse a mulher e a quisesse por esposa, para ocultar a sua beleza, Rinchen cobriu o rosto dela com fuligem e a reteve em casa, longe dos olhares do povo.

Em pouco tempo, o jovem pastor tornou-se muito rico, e a sua riqueza foi-o deixando excessivamente ousado. "Por que me preocupo? — perguntou-se. Tenho muito dinheiro, e o filho do chefe não se atreverá a roubar-me esta mulher, pois posso pagar-me armas e homens". Pensando desse modo, Rinchen limpou a fuligem do rosto da bela mulher e a levou à cidade para mostrá-la ao povo, pois se orgulhava da sua beleza.

O filho do chefe estava na cidade e viu a mulher. Cativado por ela, tomou a firme determinação de fazê-la sua esposa e enviou homens para buscá-la. Muito aflito, o jovem pastor pediu ajuda aos homens da cidade, mas nem um só quis atendê-lo.

Muito triste, Rinchen foi à margem do lago, sentou-se junto à grande rocha e se pôs a chorar. Como na vez anterior, apareceu o servidor do rei.

— Por que está chorando desta vez? — perguntou.

— Porque perdi a minha mulher —, respondeu o rapaz. E contou ao servidor toda a história de como havia lançado ao fogo a pele do cão e mantido escondida dos olhares do povo a formosura da mulher.

Contou, também, que, por se ter tornado imprudente e demasiado seguro, havia lavado o rosto da jovem, descobrindo-lhe, assim, a beleza para o filho do chefe; e, com isso, a havia perdido para sempre.

O servidor pediu a Rinchen que o seguisse de novo ao lago, pois o rei tinha de conhecer essa história.

— Talvez o rei possa ajudá-lo outra vez, disse ao jovem pastor, e este logo se encontrou ante o trono e aos pés do rei do lago.

Depois de escutar a história de como Rinchen havia perdido a bela mulher, o rei estendeu-lhe uma caixinha e disse:

— Leve esta caixa — e o pastor a pegou. Agora, vá ao alto de uma colina e chame à guerra o filho do chefe. Quando este tiver congregado as suas tropas na base da colina, abra a caixa e grite: A luta!

Assim fez o pastor. E quando abriu a caixa e gritou:

— À luta! —, milhares de homens saíram dela e avançaram sobre os soldados do filho do chefe e os derrotaram.

Rinchen recuperou sua bela mulher e a tomou por esposa. Enriqueceu ainda mais com a metade das terras do chefe e se converteu num chefe rico e benévolo. O jovem pastor devolveu a caixa ao rei do lago, agradecendo-lhe, e viveu em proveitoso contato com ele pelo resto de sua vida.
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Nota
1. A chuba, palavra da mesma origem que as espanholas "juba", "jubón" ou "chupa" (e o francês "jupe" recebidas do árabe, é a roupa típica dos povos tibetanos. É um roupão de lã, como uma espécie de túnica ou toda cruzada, de cor ver-melho-escura, que se amarra na cintura, formando uma bolsa (ambac) sobre o peito, na qual se transportam os objetos mínimos necessários aos deslocamentos de lugares. As mangas da chuba, quando não são levadas recolhidas, ultrapassam as mãos pelo menos um palmo.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

domingo, 27 de dezembro de 2015

Aparecido Raimundo de Souza (Achei você no Jardim do meu Olhar...)

Você era a flor mais bonita, a que se destacava das outras, como em alvíssaras, a que sobressaia e brilhava com uma intensidade que nenhum poeta saberia descrever.

Havia um beija flor que pairava (lembrava um helicóptero em miniatura) elegante, numa espécie de dança cadenciada. Enquanto batia freneticamente as asas, com o bico, beijava a maciez que lhe envolvia, numa suavidade perene.Depois dava uma volta curta em torno das outras plantas e sumia, de vez, junto com o vento.

De repente, de repente você murchou. Ficou abandonada, esquecida. Seu brilho, faiscante de pura magia, se quedou ofuscado. A sensação de bem estar que emanava do seu aroma perdeu o magnetismo. Ninguém mais parou para lhe contemplar, nem o passarinho que vinha de longe ousou se aproximar. Sua elegância ímpar, num dado momento, se despojou completamente do viço. Você se apagou, por inteira, se fez toda em tristeza, se trancou sem explicação, se enclausurou sem motivos aparentes numa redoma escura. Toda você virou desespero, largada
à sorte, ruína de si mesma.

Foi ai que me veio à cabeça a ideia maluca de lhe roubar. Você estava estiolada, definhada, o coração partido e sem forças. Movido por esse plano meio doido, levei você pra mim, escondida, como um bandido que age desonestamente e não quer ser pilhado em flagrante. Cuidei, então, de você, no aconchego da minha casa. Seu corpo, cheio de feridas abertas, se decompunha coberto por chagas e espinhos pontiagudos. Durante meses, reguei com paciência, joguei água limpa, podei as dores e os dissabores. Afastei as lembranças que lhe magoavam. Por um longo tempo, só tive olhos para você. A sua solidão doía, não só em seu coração, mas, igualmente no meu. A dor que castigava sua alma, eu sentia a danada aqui dentro do peito. O receio de morrer só e abandonada, tanto machucava você, quanto enlutava a minha existência.

Com o passar do tempo, fui lhe avivando, lhe realçando, lhe revigorando. Moldei, sem pressa, seu novo eu. Fundi sua imagem numa escala ascendente, até que, sem querer, me vi recompensado pelo esforço do seu retorno à vida. De joelhos no chão e o espírito voltado em direção ao céu, agradeci a Deus não ter sido em vão o seu tempo de cativeiro passado ao meu lado. Aos poucos, com a nossa convivência diária, com as nossas relações íntimas, você foi me envolvendo, me prendendo, me enlaçando, me abrangendo, de tal forma, que acabei por me quedar vencido, atenuado, entrelaçado pela sua beleza, inebriado pelo seu porte de princesa, e pior, enfeitiçado pelo seu jeito nobre de me fazer cada dia, cada minuto, mais e mais feliz. E foi a partir daí, desse querer cada vez mais forte, que passei a dividir, também com você, meus dias, minhas horas, meus segredos, meus mistérios, minhas causas secretas e confidências. Como um garoto imaturo e sem a experiência de um homem de verdade, lhe expus meus ilusórios. Desenhei meus medos e falei dos meus fantasmas. De contrapeso, listei meus pontos
fracos e sem vigor, sem a robustez necessária de pensar e de agir com os pés no chão. Abri a alma inteira e me deixei ser levado pela magnificência da lealdade que brotava do fundo do seu coração. Falei do meu hoje, do meu presente. Exibi pra você as minhas incertezas e desconfortos para com o futuro. E, em paralelo a tudo, ensinei você, de pouquinho, aos goles escassos, a acreditar no amanhã. Fiz você voltar a crer novamente na vida. A aceitar seu destino sem temer os percalços que ainda estavam por vir. Mostrei a você que se fazia necessário gostar primeiramente de si mesma, se amar, ter esperanças e persistência sempre, houvesse o que houvesse, acontecesse o que acontecesse.

Por fim, deixei pra você uma herança. Na verdade, leguei um pedaço de mim em forma de experiência transformada em carinho, sedimentada em nacos de quimeras imorredouras. Transferi a você, o amor que nasceu em mim, recheado por porções enormes de sentimentos fortes que brotaram do fundo da minha alma e me fizeram ver o mundo por outro ângulo. Através desse amor e da sua ânsia de querer ser feliz, quando eu não mais me fizer presente, você se agigantará. Prosperará, na sua altaneria e será uma benção por onde passar. Sinto, pois, que a minha dedicação lhe trouxe tranquilidade e confiança plenas. Igualmente garra e determinação, para encarar os desafios que ainda estão a horizontes incertos.

Hoje, Meu Deus! Hoje, quando lhe vejo no jardim dos meus olhos, pressinto alguma coisa diferente ao redor de tudo o que me cerca. Parece que o sol foi areado de novo, pelo Criador, com suas mãos de ternura. Talvez seja por isso que eu sinta o astro rei derramar sobre nós, e sobre você, em especial, um grande jorro de luz. Por tudo o que passamos, por tudo o que vivemos, e pelo que nos tornamos, tenho plena convicção de que você também se recorda, sem nenhuma tristeza, ou magoa, dos fora propositais que a vida nos deu, dos desencontros pelos quais ela nos fez e nos obrigou a passar...

Com certeza, você e eu, agora sabemos: a vida... A vida, meu amor, só estava juntando EU E VOCÊ para sermos UM SÓ!

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP : Ed. Sucesso, 2012.

Olivaldo Júnior (Conto dialógico)

    Um casal de adolescentes numa sala de espera do dentista. Ele, de aparelho azul, fingia que lia uma revista de esportes radicais, que estava de ponta-cabeça. Ela, de aparelho rosa, fingia que lia uma revista tipo Capricho, que também estava de ponta-cabeça. Ambos repararam um no outro quando entraram na antessala do consultório do dentista.

Calados, depois de darem o ar da graça com a secretária do lugar, sentaram-se e, sem dizer nenhuma frase, nenhuma oração, nem mesmo um "Oi", puseram-se a fingir que liam qualquer revista do famoso revisteiro de consultório, com as edições de dez anos atrás de qualquer publicação popular. Não liam nada. Antes, dialogavam. O diálogo é na mente e não precisa de palavras concretas para ser diálogo. Conversando consigo mesmo se fabrica uma porção de diálogos. Saberiam disso aqueles dois adolescentes? Não sei, mas já se diziam mentalmente uma porção de coisas.

Será que ele é de Peixes?", "Será que ela é da hora?", "Será que ele é romântico?", "Será que ela curte rock?", e ensaiavam a aproximação. "Oi, meu nome é Lia. E o seu?", "Oi, sou o Lucas. Seu nome também começa com L. Legal!".

Próximo!, chamou a secretária, e Lucas entrou para ver o doutor. Lia, mal se continha e desenvolvia todo um diálogo sem ele, que não tinha lhe dado nenhuma palavra até então. O amor pode nascer do silêncio? Acho que o amor nasce até do vácuo. Se ele resiste, se ganha fôlego e se sustenta por si mesmo é outra história.

Lucas saiu. Próximo!, chamou a secretária, mas queria dizer próxima, pois seria Lia a entrar. Nervoso, Lucas debruçou-se no balcão para marcar o retorno. Lia, com andar de tartaruga, não sabia se entrava, nem se inventava alguma coisa para perguntar à secretária, só para aproveitar mais um pouco a presença do jovem.

Próximo!, chamou, dessa vez, o próprio dentista. Lia, sem saber o que fazer, com mil coisas na cabeça e nenhuma sílaba na boca, de repente, pouco antes de entrar na sala onde o doutor a esperava, disse ao Lucas: "Oi...". Pra quê! Uma série de possíveis diálogos se formaram na mente do moço que, sem jeito, mas alegre, respondeu: "Oi...".

Ela marcaria seu retorno no mesmo dia do dele. Até lá, milhões de diálogos nasceriam, cresceriam e se desenvolveriam sem que nenhuma palavra mais fosse dita. A vida é dentro? Não sei, mas dialoga.

Próximo!

Fontes:
O Autor
Imagem : http://www.sunflowerjoias.com.br

Jorge Luis Borges (A Casa de Asterion)

Para Marta Mosquera Eastman

E a rainha deu à luz um
filho que se chamou Asterion.
APOLODORO: Biblioteca, III, I.


Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei na rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O sol já se tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns se encarapitavam na estilóbata do templo das Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar. Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira minha modéstia.

O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.

Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta de um corredor e divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até ensanguentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os olhos cerrados e a respiração contida. (às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referências, lhe digo "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria este pequeno canal" ou "Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia" ou "Já vais ver como o porão se bifurca". Às vezes me engano e rimo-nos os dois, amavelmente.

Não tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que também são catorze (infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.

A cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? — me pergunto. Será um touro, ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?

O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze, já não restava qualquer vestígio de sangue.

— Acreditarás, Ariadne? — disse Teseu. — O minotauro apenas se defendeu.
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* O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterion, esse adjetivo numeral valha por infinitos.

Fonte: Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.