quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXI

Em A corte do Sr. Lyon, de Angela Carter, o príncipe tinha a “cabeça de leão; juba e fortes patas de leão; erguia-se nas patas traseiras como um leão furioso, mas vestia um smoking de veludo vermelho-escuro e era dono dessa casa maravilhosa e das colunas que a rodeavam” (CARTER, 1999, p. 68). Percebe-se que a descrição de Carter em nada representa o estereótipo de homem perfeito e ideal. Aliás, nem sequer é homem, na verdade é um animal, aparentemente feroz, mas a aparência de nada importa se o mesmo veste-se elegantemente e possui muitos bens. Estes são os valores sociais cultuados pela humanidade.

Carter, em A corte do Sr. Lyon, aproveitou a descrição de Branca de neve para compor sua personagem que, na verdade, chamou-se Bela, uma vez que a escritora utilizou-se do enredo de A Bela e a Fera e, além disso, rememorou um trecho de As aventuras de Alice no país das maravilhas para estruturar a sua narrativa.

Esta linda moça, com uma pele que tinha a mesma luz interior, como se ela, também, fosse toda feita de neve [...] (CARTER, 1999, p. 63) Nem sequer dinheiro teve para comprar para a sua Bela, para a sua menina, para a sua querida, a rosa branca que ela tinha pedido; a única prenda que ela queria, sem se importar com o que pudesse vir a acontecer, sem se importar com ele poder vir a ser de novo muito rico [...] (CARTER, 1999, p. 64)

[...] Em cima da mesa, uma travessa de prata; no gargalo de uma garrafa de uísque, uma placa com a inscrição BEBA-ME, e a tampa da travessa de prata tinha gravado COMA-ME em letra cursiva [...] (CARTER, 1999, p. 66)
                     
A corte do Sr. Lyon também é “um conto de fadas”, desse modo havia sinais de encantamento nos portões e nas portas do castelo, que facilitaram a passagem do viajante, pai de Bela. Isso faz lembrar Rosinha dos espinhos, de Grimm e A Bela dormindo no bosque, de Perrault, uma vez que ambos os príncipes embrenharam-se em cercas-vivas para entrar no castelo e, como magia, elas se abriam, fechando-se após eles passarem.

Bela gostava muito de ler e era uma moça humilde. Na verdade, seu pai já tinha sido rico, mas perdeu tudo em jogos de cartas. A partir dessa atitude inconsequente do pai e de muitas outras mostradas no decorrer da história, percebe-se o seu espírito fraco e inexpressivo.

Bela não presenciou a riqueza e nem viveu nela, pois ainda não havia nascido. Sua mãe falecera ao dar à luz a menina. Assim como a personagem Bela de Beaumont, a Bela de Carter também era dotada de sentimentos nobres e, talvez por ser órfã de mãe, tinha real adoração pelo pai. Em consequência disso, faria qualquer coisa para ajudá-lo e vê-lo feliz: “Não que ela não tivesse vontade própria; mas tinha um invulgar senso de obrigação e, além disso, era capaz de ir até os confins do mundo pelo pai, a quem amava profundamente” (CARTER, 1999, p. 70).
Nesse conto, a história original (hipotexto) e a recriada (hipertexto), como é de se esperar, cruzam-se incessantemente, contudo, o surpreendente no conto recriado é a Fera tornar-se uma herbívora, pois perdeu a coragem de caçar animais para se alimentar.

- Estou morrendo, Bela - disse ele, num murmúrio fendido do antigo ronronar. - Tenho estado doente desde que você foi embora. Já não conseguia caçar, vi que já não tinha coragem de matar aqueles delicados animais, já não conseguia comer. Estou doente e vou morrer, mas morro feliz, porque você me veio dizer adeus. (CARTER, 1999, p. 78-79)                     
E, no final, como no conto original, a metamorfose acontece, o encanto que o havia tornado animal acaba. De outro modo, o encanto poderia ter se iniciado, uma vez que a Fera se tornou num belo homem e, a partir daí, poderia se sugerir um novo recomeço para a história.

Segundo Maria Tatar, em versões subsequentes à original nem sempre se encontra a explicação sobre o príncipe ter sofrido tal encantamento que o transformou em uma fera, mas no conto de Beaumont, menciona-se que uma fada má o havia enfeitiçado e o transformado em animal.

[...] Poucas versões da história explicam por que o príncipe sofreu encantamento. Em algumas delas, a razão é sua arrogância, ou sua falta de caridade para com uma mulher. (TATAR, 2004, p. 82)

Uma fada má condenou-me a viver sob essa forma até que uma bela moça consentisse em me desposar [...]. (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 82)
                     
Já em A noiva do tigre, Carter situa o conflito do conto em sua frase inicial: “Meu pai perdeu-me num jogo de cartas para a Fera” (1999, p. 83). Na verdade, ambos os contos, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, abordam a história de A Bela e a Fera. Desse modo, o nome da personagem-protagonista é o mesmo, além de ambas serem órfãs de mãe.

Em A noiva do tigre, a razão da morte da mãe de Bela foi o vício do pai, sendo que ele perdeu tudo em jogo, até mesmo o dote recebido pela família da noiva, quando se uniram em casamento. Neste caso, a escritora revive um antigo costume, estipulado por preceitos patriarcais, em que o casamento se efetivava mediante pagamento.

Assim como Barba-Azul, a Fera de A noiva do tigre disfarçava-se de humano, usando máscara e peruca. Desse modo, Carter ironiza a representação dos papéis masculinos, mascarados em falsos príncipes, porém perceptíveis aos olhos femininos.

[...] Ah! Sim, uma linda cara; mas com demasiada simetria para ser inteiramente humana: o perfil da máscara é a imagem perfeita do outro lado, demasiado perfeita, misteriosa. Usa também uma peruca, de cabelos não verdadeiros, atada na nuca por um grampo, uma cabeleira como as que se vêem em retratos antigos. Um lenço de seda pura preso por uma pérola esconde-lhe o pescoço. E luvas de pelica castanha, tão grandes, todavia, que não parecem esconder mãos. (CARTER, 1999, p. 86-87)                     
Já a personagem Bela, em A noiva do tigre, desde a infância se mostrava diferente, ou melhor, não se portava como as demais meninas. Era bastante vivaz e rebelde, o que incomodava suas babás. Além disso, apreciava boas leituras. Segundo Maria Tatar, tratando-se de Bela, não era nada comum apresentar-se personagens de contos de fadas como leitores.

[...] É inusitado para personagens de contos de fadas aperfeiçoarem-se através da leitura. A maioria deles é relegada a trabalhos servis em casa, ou parte em viagens pelo mundo. (TATAR, 2004, p. 66)                     
No conto de Beaumont, Bela é desmedidamente nobre de coração, a ponto de se sentir feliz por trocar a sua vida pela de seu pai, acrescentando que nunca foi muito apegada à mesma e seria uma forma de provar a sua afeição por ele. Ainda, no conto de Beaumont, Bela tem duas irmãs. Já no conto contemporâneo de Carter a protagonista é filha única. No entanto, em Beaumont, a atitude de Bela em relação às irmãs que só a maltrataram é surpreendente, uma vez que ela as perdoa sem nenhum ressentimento. A respeito disso, Tatar menciona:

[...] Como algumas Cinderelas (a de Perrault, para citar um exemplo), Bela estava pronta a perdoar as irmãs, por mais perversas que tivessem sido. Nos contos populares orais, Belas e Cinderelas tendem a ser menos magnânimas. (TATAR, 2004, p. 74)                     
Em A noiva do tigre, com o passar do tempo, a menina Bela cresceu e as suas características percebidas na infância afloraram em uma personalidade forte, decidida, inviolável, virgem. Tanto que Bela não aceitava a situação de ter sido vendida, trocada em jogo para a Fera. Dessa forma, a escritora aborda os temas como prostituição, dinheiro, casamentos negociáveis e desprovidos de sentimentos.

Muitas passagens presentes no conto A noiva do tigre são reminiscências do conto original, o hipotexto, como a visão do pai de Bela pelo espelho; a eclosão do fogo dentro e fora da lareira; o oferecimento da roupa para cavalgar ou a roupa limpa, pronta para ser usada; o desejo de Bela ver seu pai, entre outras.

Em A garota da neve, Carter seguiu seu estilo próprio, recortando passagens de outros contos de fadas e inserido-as em sua recriação, tais como Branca de Neve (de Jacob e Wilhelm Grimm), de que a autora aproveitou o título também para compor sua obra, além de Sole, Luna e Talia (de Giambattista Basile).

Em Grimm, o conto se inicia com o desejo de a rainha ter um filho, seguindo características determinadas pela futura mãe. Em Carter, o conde deseja ter uma garota conforme caracterizações semelhantes às da rainha do conto de Grimm. No entanto, o conde não deseja uma filha, mas uma amante, pois ele se apresentava cavalgando com a esposa ao lado.

[...] ela estava sentada a costurar, junto de uma janela com uma moldura de ébano. Enquanto costurava, olhou para a neve e espetou o dedo com a agulha. Três gotas de sangue caíram sobre a neve. O vermelho pareceu tão bonito contra a neve branca que ela pensou: “Ah, se eu tivesse um filhinho branco como a neve, vermelho como o sangue e tão negro como a madeira da moldura da janela” [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 86)
- Gostaria de ter uma garota branca como a neve - diz o conde.
Continuam a cavalgar. Chegam a um buraco na neve, cheio de sangue. Ele diz:
- Gostaria de ter uma garota vermelha como o sangue.
Continuam a cavalgar; um corvo está pousado num galho nu.
- Gostaria de ter uma garota negra como as penas de corvo. (CARTER, 1999, p. 161)
                     
Ao final das falas, o conde obteve o objeto de seu desejo, a garota da neve. Assim como a rainha que, pouco tempo depois, deu à luz a uma menina. No entanto, a garota da neve, tal qual Cinderela, sofre provações advindas não da madrasta, mas da condessa, esposa do conde.

Em A garota da neve, a moça perece em uma das provas impostas pela condessa. Como em Sole, Luna e Tália, a garota da neve, espeta o dedo em uma roseira e morre e, mesmo estando morta, ela é abusada sexualmente pelo conde, na presença de sua esposa. Em seguida, ambos partem. Cena semelhante é narrada em Sole, Luna e Tália, uma vez que a princesa havia espetado “uma lasca de linho debaixo da unha” (BASILE, 1996, p. 53) e se encontrava adormecida. O rei, que também era casado, entrou no castelo e, encontrando-a sozinha e encantada, estuprou-a, posteriormente, esquecendo-se do ocorrido.

No primeiro conto, O quarto do Barba-Azul, há a presença marcante da mãe da protagonista. Nos dois subseqüentes, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, as protagonistas eram órfãs de mãe e, no último conto, A garota da neve, não se faz menção aos pais da moça.    Maria Tatar, a respeito disso, comenta que muitas narrativas enfocam essa temática, visando enaltecer a benevolência de uma mãe morta, em contrapartida vê-se uma madrasta cruel que se encontra viva.

[...] Os contos de fadas muitas vezes cindem a figura materna em dois componentes: uma mãe boa, morta, e uma madrasta malévola, viva. Isso permite às crianças preservar uma imagem positiva da mãe ao mesmo tempo em que se entregam a fantasias sobre a maldade materna. (TATAR, 2004, p. 96)                     
De acordo com o que já foi visto, é possível afirmar que o texto literário é o reflexo social e histórico da humanidade, uma vez que perpassam nele situações isoladas, somando-as, arrematando-as em um único contexto, o próprio texto, que nada mais é que um processo intertextual. E o interessante é que nesses dois últimos séculos as mulheres não escreveram somente contos de fadas, mas a história social, a sua trajetória de vida. E, mais especificamente, quanto aos contos analisados de Carter, percebe-se a verdadeira identidade feminina.

Carter comprovou que não é mais concebível considerar as mulheres como “cidadãs de segunda classe”, uma vez que suas personagens protagonizam seus papéis na ficção e na vida real. Além disso, a escritora desconstruiu a velha imagem da figura feminina, recriando a mulher contemporânea. Essa não é princesa e nem admite parecer-se como tal. É uma mulher normal que deseja tomar as rédeas de seu destino, buscando a felicidade.

Na verdade, a escritora emancipou a figura feminina de um longo período de dependência masculina. E, agora, considerada independente, a mulher quer desfrutar de seus direitos. Junto a Carter, as escritoras Drabble e Extrebarría também engajaram-se  no processo de composição da identidade feminina, o que será visto no subcapítulo seguinte.

continua…

Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Coisa de amigo)

No bar aonde nunca vou, um amigo me espera. Tem olhos que me entendem como eu sou, mãos que apertam como se deve as minhas. Esse bar é muito longe de onde moro. Não sei sequer onde fica. Fico de olho nas ruas onde passo de ônibus. Não fica lá. Longe, deve estar mais perto do céu que da terra onde estamos.

Conta coisas meio bobas, passadas há muito, quando nem nos conhecíamos. Logo que enche o bar, felizes por estarmos bem, paramos tudo e cantamos alto as canções mais belas daqui, onde canta o sabiá. Se eu fosse um passarinho, voava para perto desse bar, que se esconde numa nuvem qualquer, "às barbas" de Noé.

De vez em quando, se essa vida fica feia, chora baixo, em frente a mim, que o reconforto com palavras de esperança, como um velho missionário, sem saber que sou aquele que professa a própria fé: coisa de amigo. Minha fé, como todo credo, nasce das lágrimas de Deus, das páginas dos homens, das máximas de mim, que sou autor de minha história (mesmo que até a página dois...). Depois, mais firme, com um sorriso em seus olhos, fala de tanta coisa de que se havia esquecido, tanta coisa importante que deixara de lado, com propósito, sendo adulto, de voltar a menino.

Na poeira de meus tênis surrados, de meus olhos cansados, de meus lábios silentes, tem um pouco da poeira do chão, dos móveis e da eterna despensa daquele bar aonde nunca vou. Nele, um amigo, o amigo me espera. Falamos de versos, de Bossa e de Vinicius, sem vontade de sair de lá, de deixar que esse pó nos cubra e nos descubra como seres que se afinam nos acordes da memória, que, falha, fura a fila da existência e bebe um pouco desse álcool, desse etílico da amnésia. Esquecer, muitas vezes, é o único remédio: coisa de amigo. Amigo, anônimo, num bar, meu lar.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://paposdebar.blogspot.com.br/

Jorge Luis Borges (Sereias)

Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsódio do décimo segundo livro da Odisséia, não nos diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica) "metade mulheres, metade peixes". Não menos discutível é sua categoria; o dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ilha do poente, perto da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que periodicamente eram celebrados para honrar sua memória.

A Odisséia conta que as sereias atraíam e faziam naufragar os navegantes e que Ulisses, para ouvir seu canto e não perecer, tapou com cera os ouvidos dos remadores e ordenou que o amarrassem ao mastro. Para tentá-lo, as sereias lhe ofereceram o conhecimento de todas as coisas do mundo:

Jamais alguém por aqui passou, em nau escura, que não escutasse a melíflua voz que sai de nossas bocas; mas só partiu, depois de se ter deleitado com ela e de ficar a saber mais coisas, pois conhecemos tudo quanto, por vontade dos deuses, Aegivos e Troianos sofreram na vasta Tróia, bem como o que sucede na terra fecunda.
____________
(Odisséia, XII)*

Uma tradição recolhida pelo mitólogo Apolodoro, em seu Biblioteca, conta que Orfeu, da nave dos argonautas, cantou com mais doçura que as sereias e que estas se precipitaram ao mar e se transformaram em rochas, porque sua lei era morrer quando alguém não sentisse seu feitiço. Também a esfinge se precipitou do alto quando decifraram seu enigma.

No século Vl, uma sereia foi capturada e batizada no norte de Cales, e figurou como uma santa em certos almanaques antigos, sob o nome de Murgen. Outra, em 1403, passou por uma brecha de um dique e viveu em Haarlem até ao dia de sua morte. Ninguém a compreendia, porém ensinaram-na a fiar e venerava como por instinto a cruz. Um cronista do século XVI argumentou que não era um peixe porque sabia fiar, e que não era uma mulher porque podia viver na água.

O idioma inglês distingue a sereia clássica (siren) das que têm cauda de peixe (mermaids). Na formação desta última imagem teriam influído por analogia os tritões, divindades do cortejo de Posêidon.

No décimo livro da República, oito sereias presidem a revolução dos oito céus concêntricos.

Sereia: suposto animal marinho, lemos num dicionário brutal.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XX

É sabido que a feminista Simone de Beauvoir, com a obra Le deuxième sexe (O segundo sexo), escrita em 1949, já se mostrava a “nova mulher”, uma vez que silenciou o mundo para que ouvissem que essa ideia de dominação patriarcal devia ser abolida da sociedade. Além disso, o seu apelo se estendeu pela abolição do mito do “eterno feminino”, assim como ela o denominava. Assim como Beauvoir, Angela Carter também aderiu ao Movimento Feminista, e suas ideias eram bastante transparentes em suas obras. De acordo com Vivian Wyler, Carter explicava a sua adesão ao movimento desta forma:

Se o louco persiste em sua loucura, ele se torna sábio. Eu imagino que seja desta maneira que eu tenha alcançado o feminismo, ao analisar a sensação de que sempre havia algo que ficava do lado de fora do quadro, e descobrir que era uma coisa bem importante, afinal, porque todo o tempo que eu pensara que as coisas estavam indo muito bem, estava sendo considerada uma cidadã de segunda classe. (CARTER apud WYLER, 1999, p. xiii)
                     
Carter não só se desfez do tradicional início dos contos de fadas, como também relativizou o “sempre”, em “eles viveram felizes para sempre”,  comprovando o contrário, pois nem sempre os casamentos são duradouros, nem sempre se vive feliz em um único relacionamento e nem sempre a mulher tem que assumir o papel de eterna vítima em uma união, ou sofrer calada nas mãos de um algoz. De certo modo, Murat já havia questionado, não o início como Carter, mas a frase final dos contos de fadas, ainda no século XVII.

Em A Bela e a Fera, como já foi visto, Beaumont também mostrava indignação pela mulher ter que seguir um roteiro pré-estabelecido para sua vida, uma vez que esse não permitia outras escolhas à mulher, além do casamento e da maternidade. Beaumont ainda também se mostrava contrária a casamentos escolhidos e impostos pela família dos noivos, sendo que os familiares geralmente visavam o somatório de bens financeiros. Tratava-se de negócios e não de relacionamentos amorosos.

Ao longo do conto, percebe-se que a personagem de Carter em momento algum deixou transparecer ingenuidade ao narrar os momentos íntimos que teve com seu marido. De forma realista, consciente percebeu que aqueles momentos vividos, para ela não apresentavam nada de magicidade. Ironicamente, evidenciava-se a dura realidade, ou seja, o seu casamento era um negócio, onde ela era a mercadoria e o Barba-Azul, o comprador.

Além disso, o casamento, para a personagem, em O quarto de Barba-Azul, não significava amarrá-la ao monstro para sempre ou por toda vida. A autora mostra que a mulher não se atrela única e exclusivamente àquele homem específico por ter tido relacionamentos íntimos com o mesmo. Percebe-se ainda nesse conto que a personagem, herdeira de medos e culpas do passado, está soltando as suas amarras. Desse modo, a protagonista de Carter é a nova personagem que também retrata a nova mulher na esfera social, ou seja, é uma mulher autêntica, bem informada, inteligente, de personalidade forte assim como a mãe. É aquela que mostra a sua intelectualidade e é capaz de, senão conduzir na medida certa o seu sentimentalismo, saber muito bem que a excitação pode ser sentida sem estar acompanhada de amor.

E comecei a tremer como cavalo antes da corrida, ainda com uma espécie de medo, porque sentia excitação a um tempo estranha e impessoal de amor e repugnância, excitação que eu não era capaz de sufocar, por sua carne branca e pesada [...] (CARTER, 1999, p. 17)

Estava deitada sozinha na cama. E desejava-o e ele repugnava-me. (CARTER, 1999, p. 28)

                     
Já no século XVII, Julie Murat, em Le palais de la vengeance havia defendido sutilmente a ideia de que o amor com o tempo podia se esvair. Evidentemente que, para aquela época, contestar a verdade consagrada do discurso masculino não era tarefa fácil, por isso o que se pensava era escrito implicitamente.

Felizmente, os novos tempos e a coragem de escritoras do passado propiciaram que mulheres como Carter não mandassem recados e, sim, escrevessem sobre a transparência dos sentimentos femininos. Evidentemente que, ao contrário de Perrault, Carter não direcionou as suas obras ao público infantil, pois percebe-se que o erotismo explícito é mostrado constantemente em suas narrativas. Na verdade, Carter retoma a sexualidade feminina, sufocada ainda em um passado não muito distante. Tanto que a escritora descreve a sexualidade à flor da pele, em contrapartida com a decadência do amor.

[...] Senti-me tonta, como à beira do precipício; tive medo, não tanto dele, da sua presença monstruosa, pesada, como se ao nascer lhe tivessem dado o dom de uma gravidade maior que a de todos nós, presença que, mesmo quando eu me sentia mais apaixonada por ele, mesmo quando ela me oprimia sutilmente... Não, eu não tinha medo dele; mas de mim. (CARTER, 1999, p. 25-26)
De outro modo, a personagem-protagonista de Carter queria algo mais em um relacionamento, além de somente ser objeto de desejo sexual. Em O quarto do Barba-Azul, a protagonista, quando se deparou com a partida inesperada do marido, confessou (lamentando o único momento de intimidade que teve com o Barba-Azul): “E tive de me contentar com isso” (CARTER, 1999, p. 23).

Situação semelhante ocorre em A noiva do tigre, uma vez que Bela não consegue entender as atitudes da Fera, visto que ela o deseja sexualmente, no entanto, ele somente quer vê-la nua: “Julguei que a Fera tinha desejado muito pouco perto do que eu estava preparada para lhe oferecer [...]” (CARTER, 1999, p. 108).

É sabido que, em tempos precedentes, jamais se discutia quanto à vontade sexual da mulher, tanto que a virgindade era um fator essencial para que a mesma se casasse e fosse aceita pela sociedade, uma vez que a moça considerada impura era posta fora de seu lar e não mais era aceita no convívio familiar. Tanto que para homens como o Barba-Azul, ignorantes ogros, a castidade feminina era motivo de orgulho. O Barba-Azul, em Carter, comparou sua recente esposa casta às demais, que possuíam vida pública e, com isso, sentiu-se enaltecido em sua virilidade masculina em desposar uma menina nessa situação.

- A criada já deve ter trocado as roupas de cama - ele anunciou. - Não penduramos na janela os lençóis ensanguentados para que toda a Bretanha soubesse que você era virgem, porque isso já não se faz nestes tempos civilizados. Mas devo dizer que teria sido a primeira vez que em meus vários casamentos que poderia ostentar tal bandeira. (CARTER, 1999, p. 23)                     
Em O quarto do Barba-Azul, Carter desnuda a fêmea para mostrar o seu corpo e seus desejos que em nada diferem dos masculinos, como em: “Minha pele arrepiava-se quando ele me tocava” (CARTER, 1999, p. 9). Sendo assim, Carter evidencia que o corpo da mulher possui uma linguagem que deve ser ouvida, tanto que a autora desvincula o amor de sexo, ideal imposto às mulheres. Em relação a isso Vivian Wyler (1999) menciona que o conto do Barba-Azul:

[...] propõe uma mulher que escolhe o lugar certo de colocar seu desejo, que desvincula sexo de amor, que pode até aceitar o sadomasoquismo se esta for uma troca negociada entre os parceiros. No decorrer da década de 8O, Carter seria apelidada de “sacerdotisa da pornografia pós-graduada”. (WYLER, 1999, p. xv)
Angela Carter mostra que hoje a virgindade não é considerada tema em voga para a figura feminina, visto que a mulher se desfez dos espartilhos e de vestimentas físicas e morais que a amordaçam e a escondam dos conturbados olhos masculinos.

Em O quarto do Barba-Azul, a escritora criou um personagem cego, o afinador de pianos e, com isso, comprovou aquele antigo ditado popular “cego é aquele que não quer ver”, uma vez que esse personagem enxergou além do que os olhos humanos são capazes de ver, ou seja, ele desvendou o mistério de Barba-Azul com o auxílio da personagem-protagonista.

Possivelmente, a partir dessa situação, enxergar o que os olhos não veem, a escritora quisesse mostrar aos leitores que as características humanas, não somente as femininas, são inatas, uma vez que, por um determinado tempo, essas podem ser escondidas, abafadas, mas, em um certo momento, o inevitável acontece, elas afloram, é uma situação normal à natureza humana. Por exemplo, em contos precedentes, as mães das heroínas assumiam posturas submissas. Enquanto em Branca de neve se tem uma mãe pensativa quanto à cor de cabelo e de pele de seu futuro bebê, em Bela adormecida e Cinderela a figura materna se fez ausente, em O quarto do Barba-Azul, de Carter, a figura materna foi descrita em um cenário digno de filme de faroeste, ou seja, ela vinha cortando os ventos, montada em um cavalo, com a saia erguida até a cintura e trazendo consigo uma pistola. A mãe, neste conto, é uma heroína, que chega velozmente tal qual uma fera para proteger sua amada cria, matando o agressor da mesma. No entanto, a valentia dessa mulher não tomou forma somente neste momento, segundo sua filha, a coragem já há muito acompanhava sua mãe:

Ao completar 18 anos, minha mãe abatera um tigre que estava devorando um homem e que tinha atacado as aldeias montesinas a norte de Hanói. Agora, sem hesitar um momento, levantou a pistola de meu pai, apontando-a e disparou uma única e impecável bala, que atravessou a cabeça de meu marido. (CARTER, 1999, p. 58)                     
Percebe-se que Carter, além de narrar a cena da chegada da mãe da protagonista de forma bem humorada, deseja algo mais, ou seja, as palavras da autora ditam novas ideias que se configuram em atitudes revolucionárias, impressionantes. Na verdade, essa cena recompõe outra cena, a tradicional dos contos de fadas, em que o príncipe chega, montado em seu cavalo, para salvar a princesa.

Além disso, a mãe não era uma personagem ingênua que veio salvar a filha, auxiliada por uma fada madrinha. Nada disso aconteceu, a mãe, mulher decidida, forte e inteligente, trouxe consigo um revólver e, pelo jeito, sabia muito bem usá-lo. E o homem rendeu-se diante do poder desta mulher.

Ironicamente este personagem reconstrói a nova imagem feminina que não inutiliza o velho. A imagem já bem conhecida de que a mulher é mãe e zelosa pelo seu filho permanece, mas a partir daí se propõe uma figura recém-criada, saída do forno, que extrapola os limites impostos para a figura feminina, uma vez que ela se mostra aguerrida, corajosa e dotada de um sentido a mais em relação aos homens, a sensibilidade,    caracterizando a mulher, hoje e sempre. Somando-se a isso, a autora brinca, ironiza com a imagem masculina consagrada em contos passados, ou seja, a mãe resolve o caso com as suas próprias mãos, enquanto o homem que a acompanhou durante o trajeto até o castelo só era um mero espectador, um adorno imóvel que nada acresceu à situação.

continua...

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

domingo, 17 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Papel de pão)

O presente vinha embrulhado num papel de pão. Ao lado dele, um menino, do alto de seus oito anos, aguardava o pai, que entrou na venda do Nhô Chico, voltar com as compras.

A família de Toquito, o menino ao lado do presente, era pobre e morava num casebre à beira da estrada que ligava Serrania com Adonai, duas cidades vizinhas. Família de respeito.

"Não abre o presente, Toco!", disse o pai ao menino um pouco antes de ir à venda. Ai, a curiosidade infantil lhe comia as pontas dos dedos, que formigavam para abrir o pacote pardo!

Toquito fora sempre um bom menino. Já sabia ler e escrever que era uma coisa! O pai e a mãe, analfabetos, sem letras na mão, mal podiam crer que o filho realmente aprendera a ler.

Hum... E se Toquito espiasse o presente pelas dobras mal feitas do pacote sem técnica de embrulho? Ninguém saberia. Mas seu anjo da guarda, que usava chapéu e tudo, estava lá.

O pai demorava muito. Meu Deus, que presente era aquele? O que seu pai comprara que precisou ser embrulhado em papel de pão? Seria pão mesmo? Mas pão era um presente?

Aquele menino sonhava em ter um mero relógio de pulso. Achava lindo ter as horas no corpo e, fazendo pose, como se tivesse mesmo um relógio, dava as horas para os porcos afinal.

Uma vez, com a caneta que a professora emprestou à turma para a aula de Arte, pintou um relógio no pulso e, na hora do banho, noites e noites, não o lavava bem, para não sair.

Finalmente o pai saiu da venda. Pedindo ajuda para o filho, quase se esquecera do presente devidamente embrulhado em papel de pão. Não lhe daria o presente mais não? Ora!…

Chegando à velha casa, pacote na mesa, o pai pediu, Toquito atendeu. Desembrulhava o presente com afoita avidez, como quem quer a fruta mais doce do galho mais alto e sadio.

Papel de pão já no chão, sem serventia, e, na caixa, o presente: um caderno com pauta, um lápis com ponta e a branca borracha. O pai pediu a ele que escrevesse o que pensou durante toda a tarde sobre o que seria o presente que vinha embrulhado num papel de pão, corriqueiro papel. Oh, escrevinhador!
 
Fontes:
O Autor
Imagem = www.maggnificas.com.br

Contos Populares Portugueses (O Ouriço-Caixeiro)

Era uma vez um rapaz que apanhou uma cobrazinha pequenina. Meteu-a dentro de um tanque e todos os dias lhe ia dar de comer. Assobiava à cobra e ela vinha.

A cobra foi crescendo e o rapaz todos os dias lhe ia sempre dando de comer, de modo que a cobra já estava muito acostumada com ele e não lhe fazia mal.

O rapaz foi crescendo, e veio para a cidade servir. Esteve muitos anos na cidade e um dia foi com uns amigos à terra dele. Quando iam a passar a cavalo por pé do tanque onde estava a cobra, quando ele era criança, disse para os amigos:

- Quando eu era pequeno, tinha aqui uma cobra a quem assobiava, e ela vinha para eu lhe dar de comer. Deixa-me ver se ainda me lembro do assobio e se ela ainda será viva.

E assobiou-lhe. Imediatamente lhe saltou uma cobra muito grande e muito grossa, enrolando-se-lhe à volta do pescoço para o matar.

O rapaz, aflito, queixou-se:

- É esta então a paga que tu me dás de eu te ter tratado tão bem quando era pequeno?

A cobra respondeu:

- Sim! Do bem fazer, mal haver. O rapaz disse-lhe:

- Espera aí! Não me mates sem eu encontrar três animais que digam «por bem fazer, mal haver».

A cobra:

- Pois sim!

Foram andando e daí a bocado encontraram um cavalo muito magro e coxo de uma perna, que mal se podia arrastar. O rapaz voltou-se para ele.

- Ó cavalo, de bem fazer, mal haver?

O cavalo respondeu:

- Sim! O meu amo, enquanto eu pude trabalhar, tratava-me bem. Hoje, que estou velho e aleijado e não posso trabalhar, manda-me para a esfola e já não quer saber de mim.

O rapaz, muito desconsolado, foi andando mais para diante e encontrou um cão encostado a uma parede, quase a morrer. Chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:

- Ó cão, por bem fazer, mal haver? O cão respondeu:

- Sim! O meu dono, enquanto eu ia à caça com ele, tratava-me bem, mesmo muito bem, e agora, que estou velho e já não posso caçar, deixa-me no meio da rua e não quer saber de mim. Morrerei à fome!

O rapaz estava cada vez mais triste porque a cobra já o queria matar, mas observou-lhe que ainda faltava um.

E foram andando mais para diante. Encontraram um ouriço-caixeiro. O rapaz chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:

- Ó ouriço, de bem fazer, mal haver? O ouriço não deu resposta.

O rapaz tornou outra vez: - Ó ouriço, de bem fazer, mal haver? O ouriço, nada, não lhe dava resposta nenhuma. Então o rapaz, zangado, exclamou:

- Ó ouriço, responde, senão esta cobra mata-me! E o ouriço:

- Qual é o tolo de um cavaleiro que espera a resposta do ouriço-caixeiro?

A cobra, assim que o ouviu dizer isto, desenrolou-se do pescoço do rapaz e saltou contra o ouriço. O rapaz, assim que se viu livre, meteu esporas ao cavalo e fugiu a galope.

O ouriço enrolou-se e a cobra matou-se nos espinhos.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIX

Nessas passagens há menções claras, embora parodiadas, da história original que está inserida na obra de Carter. No caso do hipertexto, em O quarto do Barba-Azul, a história original foi alterada, por mais que algumas ações sejam revividas, percebe-se que essas se apresentam com novas perspectivas. Sendo assim, o texto re-elaborado, re-escrito, torna-se um hipertexto, uma vez que a escritora buscou a narrativa primeira e a adaptou, segundo a ótica feminina.

É pertinente salientar que Carter, em O quarto do Barba-Azul, respeita o discurso de Perrault e de Beaumont, da forma como foi elaborado, porém a escritora apresenta um diferencial, ou seja, o discurso de Carter age dentro do discurso já constituído pelos escritores em questão.

O discurso de Carter, inserido em um contexto já existente, apresenta variações em relação ao estilo narrativo, além da abolição da frase inicial e tradicional em contos de fadas, ou seja, a escritora utiliza o narrador autodiegético, uma vez que, no conto O quarto do Barba-Azul, a personagem narradora é a própria protagonista da história e, sendo assim, direciona os rumos da narrativa de acordo com seus anseios.

Lembro que aquela noite eu estava deitada, acordada, no vagão-leito, imersa num suave e delicioso êxtase de excitação, com a face em brasa comprimida na impecável fronha do travesseiro e o bater do coração a imitar o bater dos grandes pistões que incessantemente impeliam o trem que me afastava de Paris, da mocidade, da quietude branca e fechada do apartamento de minha mãe, em direção ao país inimaginável do casamento [...] (CARTER, 1999, p. 3)                     
Quanto à organização do tempo e à manipulação de distância, percebe-se, no exemplo acima, que a narradora-personagem-protagonista vive no tempo presente, mas busca na memória fatos passados, apresentando dessa forma um hiato temporal, característica própria do narrador autodiegético.

Segundo Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998), narrador autodiegético configura a expressão [...], introduzida nos estudos narratológicos por Genette [...], designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história. Essa atitude narrativa arrasta importantes conseqüências semânticas e pragmáticas, decorrentes do modo como o narrador autodiegético estrutura a perspectiva narrativa, organiza o tempo, manipula diversos tipos de distância, etc. (p.118, grifo dos autores)
                     
Além de os narradores diferirem em Carter, em relação a Perrault e a Beaumont, há também outro desvio no conto de Carter, acima citado, o eu que narra e o eu narrado. Já nos contos de Perrault, Barba-Azul, e de Beaumont, A Bela e a Fera, o papel de narrador não é exercido por nenhuma personagem, uma vez que o narrador relata a história de forma impessoal, alheio aos fatos. Consoante a isso, nos contos de Perrault e de Beaumont, percebe-se a presença do narrador heterodiegético, observado nos exemplos que seguem:
                                                                                  
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de ouro e de prata, móveis de madeira lavrada e carruagens douradas. Mas, para sua infelicidade, esse homem tinha a barba azul, e isso o tornava tão feio e tão assustador que não havia nenhuma mulher e nenhuma moça que não fugisse da sua presença [...] (PERRAULT, 1999, p. 189).
Era uma vez um rico negociante que vivia com seus seis filhos, três rapazes e três moças. Sendo um homem inteligente, não poupou despesas na educação dos filhos, dando-lhes excelente instrução. Suas filhas eram muito bonitas, mas a caçula principalmente despertava grande admiração [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 66).                     
De acordo com Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, narrador heterodiegético é a expressão [...], introduzida no domínio da narratologia por Genette [...], designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão [...] (1998, p. 121).
                     
Além de a obra de Carter apresentar diferenças estruturais em sua narrativa em relação às obras originais, percebe-se ainda que, através de sua obra, Carter procurou inserir uma nova mulher em seu contexto. A autora ainda contemplou o universo e os sentidos femininos, utilizando-se “fartamente” de descrições de cheiros, sensações, roupas, jóias, comidas, acompanhadas de metáforas, em O quarto do Barba-Azul.

Ao adequar a figura feminina ao seu real contexto, Carter, na verdade, mostrou a verdadeira face feminina, enquanto mulher, que há muito se escondia atrás de caricaturas rabiscadas por homens. Além disso, Carter descreveu a mulher exatamente como ela é, de cara limpa, ou seja, aquela que, apesar de estar mais independente, procura se encontrar, entender-se, imergindo frequentemente e tão ferozmente em seus conflitos interiores que se mostram impregnados de fragmentos de heranças passadas, como a insegurança, a falta de confiança em si mesma.

Três vezes casado no breve espaço da minha vida com três graças diferentes, convidava-me agora, como para demonstrar o ecletismo do seu gosto, a juntar-me a essa galeria de mulheres bonitas, eu, filha de pobre viúva, eu, de cabelos cor de rato que ainda tinham as marcas das tranças que deixara de usar tão pouco tempo antes, eu, de cadeiras ossudas e nervosos dedos de pianista. (CARTER, 1999, p. 9)                                                                                  
Observando-se o conto A Bela e a Fera (La Belle et la Bete, 1757) (*), de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, a personagem Fera, o noivo de Bela, causava repulsa, aversão à mesma. Já em A noiva do tigre, de Carter, o oposto aconteceu, uma vez que Bela sentiu desejo sexual pela Fera, ainda mais quando essa exalava seu cheiro natural de macho no cio.

Na verdade, na recomposição dos papéis femininos, Carter invadiu os espaços    pertencentes    aos    personagens    masculinos,    visto    que,    quando    a transformação contempla um dos gêneros, conseqüentemente todo o contexto sofre modificações. Com isso, torna-se perceptível que a mitificação do homem-príncipe e rei não tem mais valia numa relação em que a mulher entende o seu papel, o seu espaço, o seu valor, desvendando ou permitindo transparecer as imperfeições masculinas e o desejo destas:

Quando pensava que a partir de então iria compartilhar os lençóis com um homem cuja pele, como a dele ou a dos sapos, continha uma sugestão viscosa e úmida, sentia vaga desolação por haver despertado dentro de mim, agora, que já estava sarada a ferida de mulher, certo anseio repugnante por suas carícias, como o anseio de mulheres grávidas pelo gosto do carvão, da cal ou de comida estragada. (CARTER, 1999, p. 28)                     
A nova mulher (que na verdade não é tão recente assim, mas somente nestas últimas décadas ela pôde se mostrar em sua essência) vê o homem como um ser, dotado de muitas imperfeições, tanto que ela é sutil o bastante para discernir os verdadeiros discursos, não admitindo as falsas promessas masculinas.

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(*) Coincidentemente ou não, Clarice Lispector também re-escreve esse mesmo conto de fadas, denominado A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais, direcionando a temática para as diferenças sociais e humanas entre as pessoas. A Fera, de Lispector, é um mendigo desdentado que possui uma chaga sangrando em sua perna. Por sua vez, a Bela é uma senhora da alta sociedade que possuía uma vida alienada. Ela, na verdade é uma fera letrada, porém fútil, prostrada em valores consumistas. Para Bela, o ser ainda era um processo latente, algo obscuro para sua compreensão.
_________________________________

continua...
 
Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sábado, 16 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (O Próximo Livro)

Ana Lúcia estava na onda dos livros de vampiros românticos e "surfava" nas tramas à moda de Edward e Bella, Crepúsculo e afins. Sonhava que um deles, bem bonito e adolescente, pousaria no beiral da grande janela de seu quarto e a levaria para o alto do mundo, de onde os sonhos chovem sobre os homens. Não, nem se lembrava de que estava no Brasil e, via de regra, Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, criado por Chico Anísio, era um de nossos maiores representantes do Conde Drácula no Brasil. Aliás, sendo jovem e, além disso, sabendo pouco de nossa história televisiva, sequer sabia que havia existido um tal de Bento Carneiro na tevê. O tempo voa…

Havia criado um fã-clube para cultuar como se deve sua mais recente paixão, uma saga de cinco livros sobre um casal de adolescentes que se conhecem e se apaixonam perdidamente um pelo outro e têm de lidar com uma dúvida cruel: seriam eles irmãos? O nome da saga era "Amor de sangue", uma epopeia meio épica, meio pop, que encantara jovens e adultos no mundo todo e, para desespero de Ana Lúcia e de seus amigos, demorava a chegar ao Brasil o próximo livro da história. Nem pelo mercado negro se conseguia comprá-lo. Enlouquecida, chegava a sonhar todas as noites que era uma das belas da trama e se deixava chegar ao fim com seu amado.

A notícia de que o próximo livro da série vampírica entraria no mercado o próximo fim de semana deixou Ana Lúcia em polvorosa. Não bastava comprar e ler o exemplar, mas também tinha que ser a primeira de todos os fãs no Brasil a lê-lo e a descobrir se a mocinha ou era, ou não era irmã do mocinho vampiro. Se não fosse, se renderia ao beijo eterno do galã e se entregaria ad aeternum ao amado. "Venha me beijar / Meu doce vampiro / Ou Ouuuuu / Na luz do luar" ouvia pelos fones de ouvido a jovem que era louca pelo amor sem nunca ter amado e nem se dado à experiência de ser abduzida pelo monstro da paixão. "Ou Ouuuuu"...

Uma amiga da Aninha cujo pai viajava muito para o exterior a trabalho tinha conseguido o tal livro, em Espanhol, e trazido para a filha. Quando Ana Lúcia soube disso, quis morrer. Ainda era quarta-feira, e o livro só seria lançado oficialmente no Brasil sábado. Descontente, vendo o Face para matar o tempo, sem querer leu a postagem de sua amiga com pai viajante: Os dois não eram irmãos kkkkk!!! Nem preciso falar que Ana Lúcia, primeiro, gritou um palavrão e, em seguida, chorou de raiva por meia hora, sozinha. Que vampira que nada! O sangue de Ana Lúcia era quente e... e... nada. Esfriou. A sangue frio, jogara todos os livros da saga no lixo.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.livrosdefantasia.com.br

Contos Populares do Tibete (O Homem Bom)

Era uma vez um homem muito bom e generoso. Suas obras faziam-no querido e admirado por todos. Certo dia, chegou a seu povoado um lama muito famoso. O homem pediu para falar com o famoso lama, e quando este desejo lhe foi concedido, prostrou-se aos pés do santo homem e lhe falou assim:

— Queria chegar a ser um iluminado, cheio de compaixão e sabedoria, para poder ajudar a todos os seres vivos e dedicar a minha vida ao ensinamento de Buda. Que devo fazer?

O lama viu que o homem era sincero em suas intenções. Recomendou-lhe, então, que fosse às montanhas e que passasse a sua vida orando e meditando. Deu ao bom homem uma oração especial para invocar e lhe explicou que se assim procedesse continuamente e com grande devoção, então, poderia estar certo de que se converteria num iluminado, capaz de ajudar a todos os demais com sua sabedoria e compaixão.

O homem fez tal como o lama lhe havia recomendado. Partiu para as montanhas que rodeavam o povoado, entrou numa caverna e se pôs a meditar com o maior fervor. Durante muitos anos, foi perseverante, mas, apesar disso, não obteve a iluminação.

Passados vinte anos, o famoso lama visitou novamente o povoado. O homem bom soube da sua chegada e desceu da sua caverna nas montanhas para obter uma audiência com ele.

Teve de esperar muitos dias, pois muita gente fazia fila para ver o famoso lama e obter a sua bênção. Finalmente, lhe foi concedido ver o santo homem. Depois de lhe ter rendido homenagem prostrando-se três vezes aos seus pés, e de ter-lhe oferecido uma echarpe branca, o bom homem contou ao lama a sua situação:

— Tenho estado há vinte anos orando e meditando como o senhor me recomendou — disse —, mas ainda não obtive a iluminação. Devo estar fazendo algo errado. O lama adotou um porte solene e perguntou ao homem:

— O que eu lhe disse que fizesse?

O homem bom contou-lhe tudo o que havia estado fazendo durante os vinte anos.

— Oh! — disse o lama — temo que isso não tenha servido para nada. Foi errado o que eu lhe disse, e agora nunca mais obterá a iluminação.

O homem bom ficou desesperado, e, lançando-se aos pés do lama, chorou.

— Sinto muito, disse o lama, mas não posso fazer nada por você.

O homem bom, que já estava muito velho, sentiu que havia perdido vinte anos de sua vida. De volta à sua caverna, perguntava-se: "Que vou fazer? Durante todos estes anos, acreditei que poderia obter a iluminação e agora devo abandonar toda a esperança de alcançar esse objetivo.

Sentou-se sobre a laje que, durante vinte anos, tinha sido seu travesseiro, sua cama e sua mesa, cruzou as pernas, fechou os olhos e pensou: "Vou continuar com a minha oração e com a minha meditação, porque, que outra coisa, se não isso, poderia fazer agora?"

Assim, pois, sem nenhuma esperança de obter a iluminação, pôs-se a meditar e a invocar as orações que se haviam tornado tão familiares a ele, durante todo aquele seu longo retiro. E, imediatamente, obteve a iluminação. Viu o mundo em toda a sua realidade. Tudo estava claro. Compreendeu, por fim, que havia sido apenas a sua ânsia por obter a iluminação que o impedira de alcançá-la. Agora, poderia ajudar a todos os seres vivos a encontrarem a paz, graças a sua sabedoria e sua compaixão. Agora, abandonaria a sua caverna e voltaria ao mundo para espalhar os ensinamentos de Buda.

Saiu da sua caverna e contemplou o povo lá embaixo. Tantas vezes o havia visto antes, mas nunca com tanta claridade como agora. Por um momento, acreditou ouvir o doce riso do famoso lama, enquanto levantava os olhos para o céu e contemplava o imenso arco-íris que se estendia sobre os picos nevados.1
_______________________________________

Nota
1. Neste relato vemos um exemplo da colocação de prática, por parte do lama, de uma das virtudes (ou perfeições: paramitâ-s) do bodhisattva: a upâya-kausalva ou "habilidade nos meios".

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVIII

4.2 Releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de Beaumont

What happened to the mother
who looked at the snow? I don’t say
(you don’t know this grammar yet)
how mothers and stepmothers change,
looking, and being looked at.
It takes a long time...
Sinister twinkling animals,
Hollywood ikons, modern Greek style:
a basket of images, poison at work
in the woodland no Cretan child
ever sees. Closer to home
I’ve seen a loved girl turn feral.
These pages lurk in the mind,
speak of your sister,
her mother, and me. Perhaps,
PADEL apud WARNER, 1999, p. 233.


O que aconteceu à mãe/ que olhava para a neve? Não digo/ (você ainda não sabe essa gramática)/ como mães e madrastas mudam, // olhando e sendo olhadas./ Leva muito tempo.../ Animais sinistros e cintilantes,/ Ícones hollywoodianos, estilo grego moderno:// uma cesta de imagens, veneno em ação/ no bosque que nenhuma criança cretense/ jamais vê. Mais perto de casa/ Vi uma menina amada tornar-se feroz.// Essas páginas escondem-se na mente,/ falam de sua irmã,/ de sua mãe e de mim. Talvez,/ já, de você.

 Segundo Sylvia Paixão (1997), “quando se olha a cultura e a literatura sob o ponto de vista feminino, nada mais pode continuar igual a antes: nem a sociedade, nem a arte, nem a história” (p.72).

Na verdade, o que a escritura com identidade feminina realizou nestas últimas décadas foi um trabalho árduo de reelaboração de uma estrutura social decadente, não mais representativa do contexto presente. Desse modo, o que se observa é que a velha estrutura asfixiante e machista perdeu prazo de validade diante da evolução feminina e feminista.

Consequentemente, ao se reestruturar a sociedade, compõe-se também uma nova história que passa a ser escrita assim como a arte que absorve os novos ares, renovando-se.

Tendo-se como referência que as primeiras versões dos contos de fadas foram redigidas por homens, visando atender aspirações contextuais daquele tempo próprio, atualmente, tanto re-escrituras quanto paródias existem e se tornam necessárias, uma vez que essas se    adaptam a uma realidade    distinta, principalmente porque os valores sociais, morais, intelectuais já não são mais os mesmos, comparados a tempos longínquos. Dwight Macdonald, citado por Linda Hutcheon, tão bem argumentou, quando definiu a paródia, afirmando que “somos exploradores que olhamos para o passado e a paródia é a expressão central do nosso tempo” (mcDONALD apud HUTCHEON, 1989, p.11).

De acordo com o exposto, torna-se acertado afirmar que a paródia é a nova forma de escrever o já existente, com um diferencial, o irônico, que objetiva mostrar que os tempos mudaram e os antigos escritos não mais correspondem ao modo de viver, pensar e agir da humanidade. Segundo Linda Hutcheon:
 
A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no “vaivém” intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E. M. Forster, entre cumplicidade e distanciamento. (HUTCHEON, 1989, p. 48, grifos da autora)
                     
Alba Olmi (2006) acrescenta que, na atualidade, por exemplo, “o conto tradicional é re-contextualizado e re-adaptado às novas exigências sociais femininas, para tornar-se a expressão de um outro ponto de vista, longe da mitificação da imagem da mulher, típica da cultura patriarcal” (OLMI, 2006, p. 10).

Esta breve exposição a respeito da paródia se fez necessária para que se passasse a analisar alguns contos tradicionais do passado, re-escritos por Angela Carter.
                                                                                  
Evidentemente que, como já foi mencionado no capítulo anterior, escritores como Monteiro Lobato colaboraram para a desmistificação da inferioridade feminina, mas, apesar de sua importante contribuição à literatura, ainda faltava a sensibilidade, o sexto sentido, a visão de mulheres inseridas no processo de composição da nova identidade da figura feminina. Dessa forma, contos infanto– juvenis foram revistos na contemporaneidade, como A Bela e a Fera, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1757), uma vez que nesse se observou a personagem Bela comparando-a à mulher contemporânea de Angela Carter. Além dessas escritoras, verificar-se-á o estudo realizado pelas teóricas Maria Tatar e Marina Warner a respeito dos contos de fadas. E, ainda, os tipos de discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão vistos de acordo com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).

No entanto, o estudo da postura da figura feminina deter-se-á na obra O quarto do Barba-Azul, de Angela Carter, sendo nesta obra selecionados os contos O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do Tigre e A garota de neve para serem    analisados, tendo, como contraponto, os textos-origem de Perrault e de Beaumont.

Angela Olive Stalker nasceu em 7 de maio de 1940 e assumiu o sobrenome Carter após casar-se com Paul Carter, em 1960. A sua vida profissional dividiu-se entre ser professora universitária e escritora, sendo que inúmeras obras ela escreveu, consagrando-se como escritora, inclusive recebendo premiações por seu segundo romance The magic toyshop (1967) e pelo terceiro também Several perceptions (1968). De acordo com Vivian Wyler (em nota de prefácio), além desses dois romances,    Carter    escreveu ainda o romance Shadow dance (1966), o romance surrealista Love (1969-72),    a coletânea Fireworks: nine profane pieces (1974), o romance A paixão da Nova Eva (1977), em 1979 o ensaio The Sadeian woman e a coletânea de contos O quarto do Barba-Azul.    Carter publica ainda Noites no circo (1984), sendo premiada por esta obra, a coletânea Black Vênus (1985), Wise Children (1991) e, em 1993, acontece a publicação póstuma dos contos de American ghosts and old world wonders, pois ela vem a falecer de câncer em 1992.

Ainda segundo Wyler, Angela Carter começou a sua carreira literária na década de 60, “quando se especializou em literatura inglesa do período medieval na Universidade de Bristol” (1999, p. x) e o que realmente a destacou foi a sua forma original de compor suas obras, ou seja, a releitura de contos de fadas já há muito conhecidos,    narrados pela boca do povo. Visto que Carter possuía um gosto literário bastante eclético, parece que ela absorveu o que de melhor leu em diversos períodos da história para constituir suas obras.

Seguindo a receita que ela dá [...] para os contos de fadas, “feitos de pedaços de histórias perdidas, misturadas com outras e adaptadas pessoalmente pelo contador ao gosto da platéia”, ela foi fazendo acréscimos a esse caldo básico, em que giravam Chaucer e um certo tom farsesco. Um pouco de tudo. Simbolismo francês, leituras de Barthes e Foucault, surrealistas, filmes de Godard e Buñuel, Mary Shelley, Swift, Blake (favorito, desde a infância), Poe, Lewis Carroll e os filmes de horror B, da Hammer. (WYLER, 1999, p. x-xi)
                     
É bem verdade que Angela Carter colocou em prática a teoria parodística ao escrever O quarto do Barba-Azul, uma vez que ela redistribuiu ironicamente os papéis dos personagens em seus contos, visto que, histórica e tradicionalmente, esses eram acostumados a assumirem funções determinadas de acordo com preceitos sociais masculinos.

Em O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon e A Noiva do Tigre e A garota de neve; Carter recriou textos célebres, como os contos de fadas e acrescentou aos mesmos caráter crítico e satírico, narrando-os de acordo com a visão do que realmente interessa ao universo feminino. Processo esse que se constitui como um novo percurso realizado a partir do que já existe, ou seja, do hipotexto.

Além de Carter reescrever os contos de fadas, de acordo com a visão feminina, ela também mostrou-se diferente ao descartar a frase introdutória dos contos “era uma vez”, apresentando uma recente proposta narrativa que não consagra a cópia de um parágrafo introdutório típico da construção masculina.

Em O quarto do Barba-Azul (1999), por exemplo, os intertextos também são perceptíveis em inúmeros momentos, como quando o personagem Barba-Azul decide afastar-se temporariamente do castelo, devido a negócios e entrega o molho de chaves à sua atual esposa, ressalvando que uma das chaves não deveria ser usada. Os textos de Perrault, Barba-Azul (1999), e de Carter(1999) se cruzam e, em um certo ponto, as semelhanças se mostram mais acentuadas entre ambos. Inclusive, a inglesa Carter cita a França como localização do castelo de Barba-Azul em seu conto, origem do escritor Perrault e da publicação do conto.

- Esta é a chave do armário da louça... Não ria, querida; nele se encontra um resgate de rei em Sévres e de rainha em Limoges. E a chave do quarto trancado onde se guardam cinco gerações de prata.
[...] estava quase na hora de partir. Só lhe faltava falar de uma chave, e ele hesitou um pouco; por um instante pensei que a fosse separar para pôr nobolso e levar.
- Que chave é essa? - perguntei, uma vez que a troça que tinha feito de mim me imbuíra de certa ousadia. - A chave do seu coração! Dê-me! [...]
- Oh! - disse ele. - Não é a chave do meu coração. É antes a chave do meu inferno.
[...] Trata-se apenas da chave de um quartinho na base da torre ocidental, atrás da destilaria, no fundo de um corredorzinho escuro cheio de horríveis teias de aranha que lhe ficariam grudadas no cabelo e a assustariam se você se aventurasse a ir lá. Ah! E iria achar o quartinho muito sem graça!
Mas tem de me prometer, se me ama de verdade, manter-se afastada dele. [...] (CARTER, 1999, p. 26-27)

“Aqui estão as chaves dos dois grandes armários”, disse ele, “e estas aqui são as das baixelas de ouro e de prata, que não são usadas todos os dias [...]. Quanto a esta chavezinha aqui, é a do quarto que fica no final da grande galeria do andar inferior. Você pode abrir tudo, ir a toda parte, mas nesse pequeno cômodo está proibida de entrar. E é uma proibição tão rigorosa que, se você se aventurar a abri-lo, não há nada que não deva esperar da minha cólera”. (PERRAULT, 1999, p. 190)
O interessante, no estilo de Carter, é que ela usa as sutilezas para rememorar contextos pertencentes ao passado, como ao referir-se à chave do armário da louça que pertencera ao rei, em Sévres, e à rainha, em Limoges, uma vez que essas louças são delicadíssimas em sua estrutura. O irônico é justamente isso, o grotesco Barba-Azul em contraste com tais preciosidades. Inegavelmente, a sutileza é uma característica própria do sexo feminino, e o discurso de Carter se choca com o discurso autoritário, direto, incontestável de Perrault, perceptível nos exemplos acima.

Em outro momento, quando a personagem-protagonista se detém em observar o quarto dos horrores, deixa cair de sua mão a chave da porta, sendo que esta fica manchada de sangue (*) que escorre no local.

Com os dedos trêmulos, abri a frente do caixão vertical, que tinha a face esculpida num ricto de dor. Depois, subjugada, deixei cair a chave que ainda retinha na outra mão. Caiu no charco que seu sangue formava. (CARTER, 1999, p. 40)

[...] Após alguns instantes começou a ver que o chão estava todo coberto de sangue coagulado, no qual se refletiam os corpos de várias mulheres mortas, ao longo das paredes. Eram todas as mulheres que Barba-Azul havia desposado e às quais havia cortado o pescoço, uma após a outra. Ela pensou morrer de pavor, e a chave do quarto, que tinha acabado de tirar da fechadura, cai-lhe da mão. (PERRAULT, 1999, p. 193-4)
                     
O diferencial no discurso de Carter pode ser percebido na voz da personagem, que narra a situação conflitante em que está envolvida e, ao mesmo tempo, protagoniza a cena. Já no discurso de Perrault, o narrador conta os fatos acontecidos, como se fosse um observador, alheio à situação em que a esposa do Barba-Azul está enfrentando.

Ainda em outra situação, quando o Barba-Azul de Carter chama sua esposa para ser decapitada, instantaneamente vem à tona o conto de Perrault, Barba-Azul, uma vez que até os títulos (**) das obras se assemelham. No entanto, a escritora criou dois recursos ainda inexistentes para o escritor francês, ou seja, o uso do telefone, uma vez que o chamamento para a execução da protagonista veio através de uma ordem pelo telefone, além do telégrafo que o ogro utilizou como justificativa, ou melhor, o recebimento de uma correspondência telegráfica permitiu o retorno do mesmo antecipadamente.
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(*) Segundo Carter e Perrault a chave é encantada (detalhe esse que caracteriza os contos como de fadas), sendo assim o sangue impregnado na mesma mostra que a violação da regra da obediência não foi cumprida.
(**) No conto Alice-lobo, segundo Vivian Wyler, Carter fez “uma homenagem a Lewis Carrol” (1999, p. xviii), talvez seja através da adoção do nome de Alice para a menina-lobo, personagem-protagonista, como também para o título da obra. Além disso, neste mesmo conto, quando Alice descobre o espelho e o investiga de tal forma que acaba se ferindo nele (p. 224), pode ser só coincidência ou talvez a autora quisesse se referir à obra Alice através dos espelhos e o que Alice encontrou lá (1872), de Lewis Carrol.
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continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (O Sol)

José só sairia se houvesse sol. Ele, um rapaz de vinte e poucos anos, branco, não se exporia ao sol, sem proteção. O câncer de pele estava/está em alta, e os raios UVA, UVB, UVC (e até mesmo o "UVZ") não o pegariam por nada. Tinha medo até de ver injeção. Sua mãe lhe dissera que compraria um frasco novo, mas se esquecera totalmente e, em vez disso, lhe trouxera um creme de barbear. Assim, seu rosto estava limpo, liso como o de um bebê, mas a pele, sem nenhuma proteção. Não, não sairia. O sol, convidativo, sedutor, com seus raios multicores, o chamava, e nada. José não sairia de casa até que sua mãe providenciasse um frasco novo de protetor. Entendeu?

Seu amigo mais caro o chamou, mas José, de dentro do quarto, nem se dignou a responder. Estava exausto, morto de calor. Parecia uma lagartixa sobre uma pedra ao sol a pino, largado. Tomara suco, "refri", água de coco, água mesmo, leite gelado e, ainda assim, sentia-se mal. Com aquele sol todo, nem pensar em sair. Sua mãe, de vestido florido, fresquinho e um bom par de óculos escuros e chapéu de abas largas, tipo praieiro, o convidou para um banho de piscina no clube, mas qual! José não queria se arriscar. A mãe, nada egoísta, chegou a cogitar uma possível divisão do protetor solar com o filho caçula, sem sucesso. José, irredutível, calou-se.

Cansado, quis relaxar e, para isso, pôs música. Tocaram O sol nascerá, do Cartola, O segundo sol, do Nando Reis, com a quente Cássia Eller, e mais uma porção de músicas ensolaradas, tipo Samba de Verão, do Marcos e do Paulo Sérgio Valle. Inconformado, estava mais para Banho de lua, com a Celly Campello, e ficou em silêncio. Já eram quase seis da tarde. Aquele dia tinha sido triste. O sol já ia se pôr. Seria outro dia no Japão. José dormiu, mas, em sobressalto, acordou, preocupado. Seu sonho? Ele estava na praia, de calção, e o amor de sua vida havia passado. Teria dinheiro no porquinho? Compraria protetor (#partiupraia). E agora, José? Agora, com ou sem Cartola, "o sol nasceria". 

Fontes:
O Autor
Imagem = www.educacao.uol.com.br

Jorge Luis Borges (Um teólogo na morte)

Os anjos me disseram que quando Melanchton morreu, lhe foi oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o abandonaram.

Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu porque eram feitas sem convicção.

Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a cal; às vezes isso acontecia um pouco antes.

As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos homens sem rosto o levaram até às dunas e que agora ele é como que um criado dos demônios.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVII

4. RELEITURA E RE-ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO FEMININO

É sabido que as noções de intertextualidade, bem como outros conceitos que permeiam e orientam as discussões na esfera literária, são ainda relativamente  recentes, mas ainda muito em pauta na atualidade. A presença efetiva feminina em âmbito literário também é um dado recente, e os intertextos utilizados por algumas escritoras em suas obras remontam a textos calcados em estruturas arcaicas, machistas e patriarcais.

Desse modo, o primeiro momento deste capítulo fará uma breve abordagem intertextual, conforme alguns teóricos da área, o que introduzirá o subcapítulo seguinte, ao se observar o hipotexto, bem como os demais hipertextos que serão apresentados.

Posteriormente, uma breve exposição sobre paródia antecederá a análise de algumas releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de Beaumont. Dentre os inúmeros contos destes escritores, foram selecionados Barba– Azul (1999), de Perrault, A Bela e a Fera, de Beaumont (2004) e as releituras de Carter, contidas na obra O quarto do Barba-Azul (1999), abrangendo os contos O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do tigre e A garota da neve.

A análise da figura feminina, enquanto personagem, será realizada nos contos escolhidos. Além disso, o estudo se enriquecerá com os comentários das teóricas Marina Warner e Maria Tatar a respeito de contos de fadas. Ainda, os tipos de discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão analisados, de acordo com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).

Por último, serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras Margaret Drabble e Lucía Extrebarría, além de Carter que, através de suas releituras e re-escrituras de romances, engajaram-se na composição da personagem feminina. A teórica Marie-Louise von Franz será citada também, de acordo com seus estudos realizados nesta área.

4.1 Abordagem intertextual

Os contos variam infinitamente, mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai dispondo-os diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade. CASCUDO, 2004, p. 22.                                                                 
Sabe-se que toda literatura passa por uma renovação na medida em que mudam os tempos e os autores. Por isso, os contos tradicionais da antiguidade têm sido alvo de releituras como modo de adaptação a uma realidade diferenciada. Assim, Angela Carter, por exemplo, “re-aproveitando” o já conhecido, insere-o em sua narrativa, dando a ela características originais, uma vez que nova tessitura e novas expectativas são acrescidas à mesma. Esse processo de constituição de um texto denomina-se intertextualidade.

Julia Kristeva, apoiando-se em Bakhtin, afirma que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (1974, p. 64). Além disso, Kristeva sustenta que “em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (1974, p. 64). Nessa duplicidade de leituras, há presença de vozes de vários autores de diferentes épocas, constituindo uma única obra.

Alba Olmi, citando Kristeva (2003), salienta que o texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto. A ciência paragramática deve, pois, levar em conta uma ambivalência: a linguagem poética é um diálogo de dois discursos. Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve segundo leis específicas que estão por descobrir. Assim, no paragrama de um texto, funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor. (KRISTEVA apud OLMI, 2003, p. 266)
                     
Olmi ainda afirma que, na própria etimologia da palavra texto, do latim textus, tem-se o que é “tecido entrelaçado”: “Nessa afirmativa está implícita a idéia de algo que resulta da relação de elementos pré-existentes ao texto, o que evidencia a presença intertextual” (OLMI, 2003, p. 265).

Por sua vez, Koch conceitua intertextualidade “como aquilo que diz respeito aos modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona” (KOCH, 2000, p. 46).

Marly Amarilha salienta que o processo intertextual é o de revitalizar o passado, revivendo novamente, sob novos ângulos, algo já conhecido: “[...] Ao retomar na história contemporânea os ecos do passado, o leitor tem a oportunidade de despertar todo um sistema vital que estava resguardado no texto” (AMARILHA, 1997, p. 89).

De certa forma, intertextualidade é a desconstrução, a renovação e a ampliação do já existente no campo literário. Provavelmente, não exista nada totalmente original, pois o que se constrói no presente aborda reminiscências advindas de outros tempos. Seria, então, acertado afirmar que os textos são “solidários” entre si, ou seja, comunicam-se, entrelaçando e ressaltando culturas, ideologias, valores, crenças e a história vivida pela humanidade em cada época.

No encontro do leitor com o texto é bem possível que se incite um impacto de desconstruções, releituras, construções, uma vez que quem está lendo traz consigo a sua bagagem cultural-ideológica-social que esbarra ou desliza ou se põe na tangente em meio ao que o autor evoca. Nesse momento surgem desconstruções que se dividem em dois mundos, o do leitor e o do autor. O processo posterior é a releitura, o buscar o que já se conhece e compará-lo com o que está sendo lido, vivenciado. Por sua vez, quando o leitor consegue encontrar os encaixes das partes desmontadas, desfiguradas, naturalmente assimila dois universos diferentes, o do autor e o do leitor, formando um único universo, que se faz enriquecido, novo, único, consistente, resultando em uma real construção, no entendimento, no conhecimento do que foi lido.

Quanto à inserção de um texto em outro, resultando na construção de uma nova obra literária, Olmi sustenta que o espaço literário é aberto para a apropriação, o surgimento e o “re-surgimento” de novas idéias:
                                                                                  
Essa apropriação, [...] foi e deverá ser um lugar, um espaço de proliferação, de disseminação capaz de produzir e re-produzir idéias, formas, conceitos e conteúdos e de ser aceita como fenômeno absolutamente natural, despreocupado de citação de fontes, influências e referências, de acordo com os postulados mais recentes dos estudos em Literatura Comparada. (OLMI, 1998, p. 7)                     
Entretanto, segundo Nitrini:
             
Intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas, mas sua instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente apresenta resultados satisfatórios, pois estas dependem muito da erudição do leitor. (NITRINI, 1997, p.167)
                     
É possível afirmar, observando a citação de Nitrini, que os elementos intertextuais que compõem uma obra só podem ser observados pelo leitor que os conhece, uma vez que o implícito torna-se explícito. De outro modo, se esse jamais leu ou ouviu um determinado conto de fadas, ou um romance, não encontrará a presença intertextual presente nele.

Consoante a isso, Peônia Guedes menciona a citação de Margaret Drabble, uma vez que Drabble explicita como lida com o processo intertextual em suas obras, ou melhor, as adaptações que ela realiza de acordo com os diferentes leitores:

O problema de alguém com um background como o meu é que tenho uma sobrecarga de alusões literárias. E para me comunicar com pessoas que não têm essa carga, tenho de tentar esconder e esquecer coisas, ou assegurar-me de que estão vindo das profundezas e não da superfície do texto. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 40)
                     
Quando se trata de intertextualidade e quando as mulheres decidem enveredar pelo caminho dos intertextos em suas obras, Jean Franco pensa o seguinte:

Todo escritor - tanto homens como mulheres - enfrenta o problema da autoridade textual ou da voz poética já que, desde o momento em que inicia a sua produção, estabelece relações de afiliação ou de diferença para com os mestres do passado. Este confronto tem um interesse especial quando se trata de uma mulher escrevendo “contra” o poder asfixiante de uma voz patriarcal, assim, continua Franco, a intertextualidade é um terreno de luta onde a mulher se enfrenta com as exclusões e com a marginalização do passado. (FRANCO apud NAVARRO, 1997, p. 46)
                                                                                  
Na verdade, o que Jean Franco percebe é o confronto entre autores historicamente conhecidos ou cânones que conquistaram o público e, com isso, adquiriram voz de autoridade em relação aos escritores mais recentes. E se essa batalha pelo espaço literário acontece entre homens escritores, imagine-se onde se pode encontrar uma lacuna para a inserção da autoria feminina. Além de a mulher lutar pelo seu espaço contra valores ultrapassados, excludentes, impostos pelo sistema patriarcal, ainda tem que enfrentar uma batalha maior, ou seja, concorrer no campo literário com homens que já traçaram a literatura conforme seus moldes.

Nessa perspectiva, depreende-se que a literatura escreve a sua própria releitura, ou seja, o escritor produz a partir do embasamento literário que constitui a própria literatura e, assim, no recém-criado, o antigo renasce. Dessa forma, seria acertado afirmar que a intertextualidade desencadeia um processo triplo na mente de quem a percebe, ou seja, observando-se a obra primeira, a obra é reconstruída e o material é absorvido e reconstruído na mente do leitor.

O curioso nesse processo de apropriações, já referido por Olmi, é como um texto A pode se relacionar com um texto B, e o que entre ambos, de acordo com as relevantes diferenças, pode ser apresentado efetivamente    como evidência intertextual?

Quando se percebe a presença de hipertextos (é a inclusão e/ou modificação de um ou vários textos em outro, uma vez que o surgimento do novo texto pode ser a soma de vários outros textos e/ou sua alteração parcial ou total.), verificando-se o uso de referências, diálogos, na verdade, o que se busca é desvendar as semelhanças e/ou diferenças em relação ao hipotexto (É o texto-origem.).

Segundo Olmi observa, Genette “prefere o conceito de transtextualidade (*) –  ou transcendência textual do texto definida como tudo aquilo que coloca o texto, explícita ou implicitamente, em relação com outros textos” (OLMI, 2003, p. 267).
                                                                                  
Segundo Genette, intertextualidade “é uma relação de co-presença entre dois ou mais textos [...] como a presença efetiva de um texto noutro” (GENETTE apud OLMI, 2003, p. 267). Essa “relação de co-presença entre textos”, é que será analisada a seguir nas re-escrituras de alguns contos de fadas.

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(*) Genette divide o processo em cinco categorias: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade e a arquitextualidade (cf. Olmi, 2003).
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continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009