domingo, 11 de dezembro de 2016

Augusto dos Anjos (Poemas Escolhidos)


A AERONAVE

Cindindo a vastidão do Azul profundo,
Sulcando o espaço, devassando a terra,
A Aeronave que um mistério encerra
Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera
Ei-la embalada n'amplidão dos ares,
Fitando o abismo sepulcral dos mares
Vencendo o azul que ante si s'erguera.

Voa, se eleva em busca do Infinito,
É como um despertar de estranho mito,
Auroreando a humana consciência.

Cheia da luz do cintilar de um astro,
Deixa ver na fulgência do seu rastro
A trajetória augusta da Ciência.

A ESMOLA DE DULCE

E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem amada
A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada:
- Senhora dai-me u'a esmola - e estertorada
A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.

A FLORESTA

Em vão com o mundo da floresta privas!.
- Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieróglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!

Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!

Há uma força vencida nesse mundo!
Todo o organismo florestal profundo
E dor viva, trancada num disfarce...

Vivem só, nele, os elementos broncos,
As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!

IDEIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica.

À MESA

Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!

Como porções de carne morta... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!...

Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.

A UM MASCARADO

Rasga essa máscara ótima de seda
E atira-a á arca ancestral dos palimpsestos..
É noite, e, á noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda!

Sem que te arranquem da garganta queda
A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda!

A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo primitivo...

E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,
Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!

AMOR E RELIGIÃO

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! Quantos

Ouviram dele frases de candura
Que d'infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!

No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su'alma livre para o céu se alara.

E Deus lhe disse: "És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto".

CÍTARA MÍSTICA

Cantas... E eu ouço etérea cavatina!
Há nos teus lábios - dois sangrentos círios -
A gêmea florescência de dois lírios
Entrelaçados numa unção divina.

Como o santo levita dos Martírios,
Rendo piedosa dúlia peregrina
À tua doce voz que me fascina,
- Harpa virgem brandindo mil delírios!

Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,
E a Noite afeia corno num sarcasmo
E agora a sombra vesperal morreu...

Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,
Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,
É a música de Deus que vem do Céu!

CONTRASTES

A antítese do novo e do obsoleto,
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

Às alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...

CRAVO DE NOIVA

Cravo de noiva. A nívea cor de cera
Que o seu seio branqueja, é como os prantos
Níveos, que a virgem chora, entre os encantos
Dum noivado risonho em primavera.

Flor de mistérios d'alma, sacrossantos,
Guarda segredos divinais que eu dera
Duas vidas, se duas eu tivera
Pra desvendar os seus segredos santos.

E tudo quer que nessa flor se enleve
O poeta. E que dessa concha armínea,
Da lactescência angélica da neve,

Se evolam castos, virginais aromas
De essência estranha; olências de virgínea
Carne fremindo num langor de pomas.

DEBAIXO DO TAMARINDO

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilissimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

MÁGOAS

Quando nasci, num mês de tantas flores,
Todas murcharam, tristes, langorosas,
Tristes fanaram redolentes rosas,
Morreram todas, todas sem olores.

Mais tarde da existência nos verdores
Da infância nunca tive as venturosas
Alegrias que passam bonançosas,
Oh! Minha infância nunca tive flores!

Volvendo à quadra azul da mocidade,
Minh'alma levo aflita à Eternidade,
Quando a morte matar meus dissabores.

Cansado de chorar pelas estradas,
Exausto de pisar mágoas pisadas,
Hoje eu carrego a cruz de minhas dores!

NOIVADO

Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia?!
Quando há de ser?! O noivo então dizia
E a noiva e ambos d'amores s'embriagavam.

E a mesma frase o noivo repetia;
Fora no campo pássaros trinavam.
Quando há de ser?! E os pássaros falavam,
Há de chegar, a brisa respondia.

Vinha rompendo a aurora majestosa,
Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.

Chegara enfim o dia desejado,
Ambos unidos, soluçara um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!

O LAMENTO DAS COISAS

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

E a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

O MAR

O mar é triste como um cemitério;
Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num alvor etéreo.

Ah! dessas vagas no bramir funéreo
Jamais vibrou a sinfonia pura
Do Amor; lá, só descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,
Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma,

Reflete a luz do sol que já não arde,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a Saudade envolta nesta espuma!

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no engenho "Pau d'Arco", na Paraíba, a 20 de abril de 1884, filho do Dr. Alexandre Rodrigues dos Anjos e D. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos. Seus estudos foram ministrados pelo pai, no Engenho, deslocando-se à capital, apenas para prestar os exames no Lyceu.
         Em 1900 compõe o seu primeiro soneto, “Saudade” e em 1901 publica um soneto no jornal O Comércio, no qual passará a colaborar.
Bacharelou-se em Direito na Faculdade do Recife, em 1907, quando retornou à Paraíba. Não querendo seguir a carreira jurídica, dedicou-se ao magistério lecionando Literatura Brasileira no Lyceu Paraibano e orientando alunos para os cursos preparatórios e, consequente ingresso em escolas superiores.
         Em 1909, no A União publica “Budismo moderno” e numerosos poemas. Profere, no Teatro Santa Rosa, um discurso nas comemorações do 13 de maio, chocando a platéia por seu léxico incompreensível e bizarro.
         Em 1910 casa-se com a professora Ester Fialho, nascendo dessa união, os filhos Glória e Guilherme. No final desse mesmo ano, viajou com a esposa ao Rio de Janeiro pretendendo editar o seu livro de poemas. Exerceu durante algum tempo o magistério. Do Rio, transferiu-se para Leopoldina, por ter sido nomeado para o cargo de diretor de um grupo escolar.
         Em 1911 é nomeado professor de Geografia, Corografia e Cosmografia no Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II).
         Em 1912, com a ajuda do irmão Odilon dos Anjos conseguiu publicar o EU, seu único livro, obra que viria a imortalizá-lo apesar de não ter obtido boa acolhida pela crítica carioca por não se enquadrar nos padrões convencionais da época.
         Augusto dos Anjos foi um poeta singular. Colaborava, todos os anos, na edição do jornal NONEVAR, que circulava na Festa das Neves, padroeira da cidade de João Pessoa. Também compunha versos carnavalescos, sob o pseudônimo de Chico das Couves, fazia anúncios comerciais, perfilava, com humorismo, rapazes e jovens senhorinhas da sociedade.
         Faleceu no dia 12 de novembro de 1914, em Leopoldina/MG, causada por uma pneumonia e não por tuberculose como afirmam alguns dos seus biógrafos; seu corpo foi sepultado no cemitério de Leopoldina. D. Ester, a viúva, atendendo ao pedido que o poeta fizera antes de morrer, voltou à Paraíba, juntamente com os filhos, mas infelizmente, não conseguiu o emprego de professora que precisava para garantir a sobrevivência da família; retornou à cidade de Leopoldina onde obteve o apoio e as condições para o sustento e a educação dos filhos.
         No ano 2001, foi eleito, em votação popular, o Paraibano do Século.
         O seu livro foi depois enriquecido com outras poesias esparsas do autor e tem sido publicado em diversas edições, com o título Eu e Outros Poemas. São versos que transportam a dor humana ao reino dos fenômenos sobrenaturais. Suas composições são testemunhos de uma primorosa originalidade.