segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Jorge Luiz Borges (O Livro)

Aula proferida na Universidade de Belgrano 1978

Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone uma extensão da voz e finalmente temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. O livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria , os livros são descritos como a memória da humanidade. O livro é isto e muito mais, é também a imaginação. O que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Afinal que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado ? A função do livro é recordar.

Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro, não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente - sobretudo as coleções dos bibliófilos, em geral imensas -, mas sim como eles podem ser avaliados ao longo do tempo. Splenger me antecipou, em seu livro "Decadência do Ocidente" onde têm páginas preciosas sobre o livro. Com alguma pitada pessoal penso ater-me aqui ao que disse Splenger

Os antigos não professavam nosso culto ao livro - coisa que me surpreende. Para eles o livro é um sucedâneo da palavra oral. A frase latina "Scripta manet, Verba volans" não quer dizer que a palavra oral seja volátil, mas sim que a palavra escrita permanecerá e está morta. Por sua vez a palavra oral tem algo de sutil, volátil, sublime e sagrado, como disse Platão. Todos os mestres da humanidade foram, curiosamente, mestres orais .

Vejamos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Pitágoras não escreveu porque não quis. Não escreveu porque não desejava limitar-se à palavra escrita. Sentiu sem dúvida que a letra mata mas o espírito vivifica; o que, mais tarde, será citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isto, e não quiz limitar-se à palavra escrita, por isto Aristóteles nunca fala de Pitágoras, mas sim dos Pitagóricos. Nos disse por exemplo que os pitagóricos professavam a crença, o dogma, do eterno retorno, que mais tarde foi redescoberto por Nietzsche. Ou seja, a idéia do tempo cíclico, que foi refutada por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Santo Agostinho nos diz, através de uma linda metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos. A idéia de um tempo cíclico também foi revista por Hume, Blanqui e tantos outros.

Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo além de sua morte física, na mente de seus discípulos. Daqui veio aquele ditado (eu não sei grego, tratarei de dizê-lo em Latim) "Magister dixit" (o mestre assim disse ). Isto não significa que estivessem limitados ao que o mestre havia dito, ao contrário, afirmavam a liberdade de continuarem refletindo o pensamento original do mestre.

Não sabemos se Pitágoras foi o iniciador da doutrina do tempo cíclico, porém sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre fisicamente e eles, por um tipo de transmigração - e isto teria agradado a Pitágoras - seguem pensando e repensando seu pensamento, e quando se reprovam ao dizer algo novo, se refugiam naquela fórmula: "assim disse o Mestre - Magister Dixit."

Porém temos outros exemplos. Platão, em um exemplo ilustre, disse que os livros são como esfinges (pode ter pensado em esculturas ou em quadros), que nós cremos que estão vivas, porém se lhes perguntamos sobre alguma coisa elas nada respondem. Então para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Digamos que Platão multiplica-se em vários personagens: Sócrates, Gorgias e os demais. Também podemos pensar que Platão queria consolar-se da morte de Sócrates imaginando que este seguiria vivendo em seus Diálogos. Frente a qualquer questão Platão perguntava-se: "O que Sócrates pensaria a respeito disto?". Deste modo Platão imortalizou Sócrates, que também não deixou nada escrito e foi um mestre oral.

Sabemos que Cristo escreveu uma única vez algumas palavras na areia que o vento acabou apagando. Ao que se saiba não escreveu mais nada. Buda também foi um mestre oral e só ficaram suas prédicas. Temos uma frase de Santo Anselmo "um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança" . Isto é o que se pensava dos livros.

No Oriente existe ainda um conceito de que um livro não deve revelar as coisas, um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las. Apesar de minha ignorância do Hebraico, estudei algo da Cabala. Li as versões inglesas e alemãs do Zohar (O Livro do Esplendor), El Sefer Yezira (O Livro das Relações). Sei que estes livros não estão escritos para serem entendidos, porém para serem interpretados , são desafios para que o leitor continue a pensar.

A antiguidade clássica não teve este nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, em baixo do travesseiro, a Ilíada e a espada, estas duas armas. Havia grande respeito por Homero, porém não era considerado um escritor sagrado no sentido que temos hoje pela palavra. Não se pensava na Ilíada e na Odisséia como textos sagrados, eram livros respeitados, porém podiam ser criticados. Platão pode expulsar os poetas de sua República sem cair em suspeita de heresia.

Do testemunho dos antigos contra os livros podemos apontar um muito curioso de Sêneca. Em suas admiráveis cartas a Lucílio, tem uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, de quem se diz que tem uma biblioteca de cem volumes; e quem - pergunta Sêneca - pode ter tempo para ler cem volumes ?. Por outro lado hoje se apreciam bibliotecas grandes.

Na antiguidade tem uma coisa de difícil compreensão, que não se parece com nosso culto ao livro. O livro sempre é visto como uma extensão da palavra oral, porém surge no Oriente um conceito novo, de todo estranho à antiguidade clássica: a do livro sagrado . Vamos tomar dois exemplos, começando pelo mais recente: os muçulmanos. Eles pensam que o Alcorão [Do ár. al-qurAYn, 'o que deve ser lido.] é anterior à criação, anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não é uma obra de Deus, é como se fosse sua misericórdia ou sua justiça. No Alcorão se fala de uma forma muito estranha do livro original. Este livro é um exemplar do Alcorão escrito no céu. Talvez venha a ser o arquétipo ideal de Platão do Alcorão, e este mesmo livro, nos diz o Alcorão, que está escrito no céu, que é o atributo de Deus e anterior à criação. Assim nos dizem os suleimans, os doutores muçulmanos.

Temos outros exemplos mais próximos de nós: A Bíblia, ou mais precisamente o Tora ou o Pentateuco. Acredita-se que estes livros foram ditados pelo Espírito Santo. Isto é um fato interessante: atribuir a livros de diversos autores e épocas diferentes a um único espírito, porém a própria Bíblia diz que o Espírito sopra de onde quer. Os hebreus tiveram a ideia de juntar obras literárias de diversas épocas e formar com elas um único livro, cujo título é Tora,ou Bíblia em Grego. A todos estes livros atribuem a um único autor: O Espírito A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito. Eu acrescento: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito.

Vale dizer, um livro tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, porém o livro tem que ir além. Don Quijote por exemplo, é mais do que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto absoluto em que nada é improvisado. Pensemos nas consequências desta idéia. Por exemplo se digo:

Correntes águas, puras, cristalinas,
árvores que estais refletindo nelas
verde prado, cheio de frescas sombras.

É evidente que os três versos são de onze sílabas. Foi proposta pelo autor, assim o quis.

Porém o que é isto comparado com uma obra escrita pelo Espírito, o que é isto comparado com o conceito de Divindade, que se curva frente à literatura e dita um livro. Neste livro nada poderia ser ao acaso, tudo teria que estar justificado, letra a letra. Entende-se, por exemplo que o início da Bíblia: Bereshit bara Elohim, começa com a letra B, porque isto corresponde a bendizer. Trata-se de um livro em que nada é ao acaso, absolutamente nada. Isto nos leva à Cabala, nos leva ao estudo das letras de um livro sagrado ditado por uma divindade, que vem a ser o contrário do que pensavam os antigos. Estes pensavam na musa de um modo bastante vago. "Canta, musa, a cólera de Aquiles" diz Homero no princípio da Ilíada. A musa tem, aqui, o seu correspondente à inspiração. Por outro lado pensar no Espírito é pensar em coisa mais concreta, mais forte: Deus, que nos condescende a literatura. É Deus que escreve um livro; e neste livro nada é ao acaso, nem o número de letras nem a quantidade de sílabas de cada versículo, nem o fato de que possamos fazer jogos de palavras com as letras, de que possamos considerar o valor numérico das letras. Tudo foi previsto. O segundo grande conceito dos livros - repito - é que ele pode ser uma obra divina. Talvez isto esteja mais próximo daquilo que agora sentimos do que da ideia que os antigos tinham dos livros, quer dizer, o livro é um mero sucedâneo da palavra oral.

Logo que cai a crença do livro sagrado ela é substituída por outras crenças. Por exemplo a de que cada país está representado por um livro. Recordemos que os muçulmanos dominam aos judeus, o povo do livro; recordemos a frase de Heinrich Heine sobre uma nação cuja pátria era um livro: a Bíblia dos judeus. Temos então um novo conceito, o de que cada país tem pode ser representado por um livro, ou ao menos por um autor, que pode ser autor de muitos livros.

É curioso, não creio que isto tenha sido observado antes, que os países elejam para seus representantes autores que não se parecem com eles. Alguém poderia pensar, por exemplo, que a Inglaterra poderia escolher Doutor Johnson como seu representante. Porém não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o Understatement, que significa dizer um pouco menos sobre as coisas. Ao contrário, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora e não nos surpreenderia que Shakespeare tivesse sido, por exemplo, italiano ou judeu. Outro caso é o da Alemanha. Um país admirável, tão facilmente fanático, que elege precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem o conceito de pátria não é demasiadamente importante, elege Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.

Na França não se elege um autor, porém temos Victor Hugo. Desde logo, sinto uma grande admiração por Hugo, porém Hugo não é tipicamente francês. Hugo é estrangeiro na França, com este estilo decorativo, com estas vastas metáforas, não é típico da França.

Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, Calderón, por Quevedo, porém a Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, porém é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis. É como se cada país pensasse ser representado por alguém diferente dele mesmo, por alguém que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de "triaca" , um antídoto contra seus defeitos.

Nós, os argentinos, poderíamos ter escolhido Facundo de Sarmiento, que é nosso livro, porém não; nós com nossa história militar, nossa história de espada, elegemos como livro a crônica de um desertor, elegemos el Martín Fierro, que bem merece ser eleito como livro. Como pensar que nossa história está representada por um desertor da conquista do deserto? Porém, assim é, como se cada país sentisse esta necessidade. Vários escritores escreveram de modo brilhante sobre os livros. Quero referir-me a uns poucos. Primeiro me concentrarei em Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Neste ensaio tem uma frase memorável: Não faço nada sem alegria. Montaigne mostra que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar uma passagem difícil em um livro, deixa-o: porque vê na leitura uma forma de felicidade.

Recordo-me que há muitos anos realizou-se uma pesquisa sobre o que é a pintura. Perguntaram à minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de mostrar com alegria as formas e as cores. Eu diria que a literatura também é uma forma de alegria. Se lemos alguma coisa com dificuldade, o autor fracassou. Por isto considero que um escritor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra requer esforço para ser lida. Uma leitura, um livro, não deve demandar esforços pois a felicidade não demanda sacrifícios. Penso que Montaigne está certo. Montaigne enumera os livros de que gosta. Citando Virgílio, ele diz preferir as Geórgicas à Eneida porém isto não é importante. Montaigne fala dos livros com paixão, diz que, embora os livros sejam uma forma de felicidade, são contudo um lânguido prazer.

Emerson o contradiz. Eis um outro grande trabalho sobre o livro. Nesta conferência Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de salão mágico. Neste salão estão presos os melhores espíritos da humanidade, porém esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais.

Emerson diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais. Fui professor de literatura inglesa durante vinte anos, na Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Sempre digo aos meus alunos que tenham pouca bibliografia, que não leiam as críticas, que leiam diretamente os livros. Talvez entendam pouco, porém sempre terão o gozo de ouvir a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é sua entonação, o mais importante de um livro é a voz do autor, esta voz que chega até nós. Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que a leitura é uma forma de felicidade. Outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou aquilo a que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson concorda com Montaigne sobre o fato de que devemos ler somente aquilo que nos agrada e que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Eu procuro mais reler do que ler. Creio que reler é mais importante, embora para se reler seja necessário ter lido uma primeira vez.

Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo tolo e não quero ser tolo, quero que seja uma confidência que faça a cada um de vocês, não a todos, porém a cada um, pois todos é uma abstração e cada um é concreto. Continuo achando que não sou cego pois prossigo comprando livros e enchendo minha casa deles. Outro dia presentearam-me com uma edição de 1966 da Enzyklopadie Brockhaus e eu senti a presença deste livro em minha casa, senti-a como uma forma de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, apesar disto, o livro estava ali. Eu o sentia como uma atração amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, humanos, temos.

Dizem que o livro desaparecerá, eu creio que é impossível. Perguntam: que diferença pode haver entre um livro e uma revista ou um disco? A diferença é que uma revista é para ser lida e esquecida, um disco se ouve, e mesmo assim, para o esquecimento, é uma coisa mecânica e portanto frívola. Um livro se lê para a memória. O conceito de livro sagrado, do Alcorão, da Bíblia e dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criaram o mundo - pode estar ultrapassado, porém o livro tem uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca. Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. Quais são as palavras inseridas no livro? O que são estes símbolos mortos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas. Porém se o lermos ocorre uma coisa rara, creio que ele muda a cada momento. Heráclito disse (e tenho repetido isto em demasia) que nada se banha duas vezes no mesmo rio. Nada se baixa duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam porém, o mais terrível, é que nós mesmos não somos menos fluídos que um rio.

Cada vez que lemos um livro, o livro se modifica, a conotação das palavras é outra. Além disto, os livros estão carregados de passado. Tenho falado contra a crítica e vou aqui ser contraditório (porém o que me importa ser contraditório). Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no início do século 17. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. O mesmo se passa com o Quijote. Igual se sucede com Lugones e Martínez Estrada, o Martin Fierro já não é o mesmo. Os leitores acabam enriquecendo o livro. Se lemos um livro antigo, é como se o tivéssemos lido durante todo o tempo transcorrido entre o dia que foi escrito e o nosso tempo. Por isto convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas, podemos não concordar com as opiniões do autor, porém ele conserva algo de sagrado, de divino, não de modo supersticioso, mas com o desejo de encontrar a felicidade, de encontrar a sabedoria. Isto é o que queria dizer-lhes hoje.
 Buenos Aires, 24/05/1978

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (O Violão Primaveril)

Para o jovem homem, sobrara "apenas" o violão. Não sabia bem de quem tinha sido, mas não isso não lhe importava. Sem casa, sem pouso, onde desse, parava e tocava, encantando quem o ouvia.

Seu velho chapéu, já meio puído, curtido pelo sol e pela chuva que o moldavam a seu modo, seu terno chapéu lhe servia de caixa e, dentro dele, tilintavam as moedas que o povo lhe dava. "Dim-dim"…

Um dia tivera uma casa com pessoas a quem chamou de família. Hoje, com seu jeans surrado e sua camisa meio aberta, faltando alguns botões, botas de couro falso e o já famoso chapéu, tocava.

Dormia em hotéis, comia em botecos, mas era muito feliz. De carona em carona, corria o mundo e, de vez em quando, olhava o azul e pensava na história infantil A festa no céu. Seria aquele sapinho?

Tinha pensado em se casar, ter mulher e filhos, mas vivia para as cordas do violão, que o amarraram à música de um jeito que nem ele mesmo podia explicar. Era amante dos sons, tocador ao léu.

Um dia, numa crise de "público" pagante, passando fome, quase pensou em vender o violão para comer, mas, contando com a caridade de um velho mendigo, almoçou com ele e não vendeu nada.

O dono das cordas era ele. Ninguém o tiraria de si. Tocava e cantava onde, quando, como e para quem o quisesse ouvir. Se não tivessem dinheiro, tocaria também. Não tinha "frescura", mas frescor.

De uns tempos para cá, notou que seu violão já não era o mesmo. Crescia em torno dele um musgo bem verde e, de dentro da caixa de ressonância do amigo, saíam ramos que ameaçavam florir.

Desesperado, foi até o luthier mais próximo, que morava na cidade vizinha. Não teve jeito. Seu violão primaverava numa velocidade incrível. O luthier dera o caso como impossível. O que faria ele?

Voltando para o hotel em que estava, de volta à cidade provisoriamente sua, decidiu-se pelo sensato e, num belo canteiro da praça central, deixou seu violão florido. Duas semanas depois, cadê? Não se via mais o violão que fora deixado lá. Completamente em flor, encoberto para sempre, o violão ficou sem dono, e o dono das cordas acordou. Arrancou algumas flores da boca do pinho, agora encantado e, cheirando-as bem, resolveu voltar para sua casa.

Chegando a ela, viu que todos o abraçavam, comovidos. Ele estava de volta. Mais velho, mas belo, primaverava também. Seu violão já era um sonho que ficou para trás, Porém, de vez em quando, naquela praça de uma cidade de que o nome sequer se lembrava, alguém escutava uns acordes que vinham do jardim. Primavera.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://elidebemcomavida.blogspot.com

Contos Populares do Tibete (O Tesouro Perdido)

O sol poente se afundava detrás dos picos gelados das montanhas, tornando-os vermelhos como brasas. Nos terraços das casas de Lhasa, os meninos faziam subir seus papagaios de vivas cores, presos a fios polvilhados de pó de vidro. Corriam e saltavam, entrecruzando-se — e os papagaios iam seguindo seus movimentos —, e riam, em alvoroço, tentando cortarem-se, uns dos outros, os fios dos papagaios. Um menino de uns seis anos estava sentado junto ao tio, um monge vestido de hábito marrom. Observavam o papagaio do menino subindo cada vez mais no céu. Mantido pelo vento, estava tão alto, que parecia que não se movia. Sem deixar de olhar o papagaio, o menino disse:

— Me conte um conto, tio.

O monge sorriu ternamente.

— Uma história antiga, vamos!

E o monge começou, então:

"Um pai disse a seu filho:

— Vou morrer logo, meu filho. Leve o meu ouro para a sua casa. É seu. Mas lembre-se de que não deve confiar em ninguém. Nem sequer na sua esposa.

O pai acreditava que o filho — cujo nome era Sonam — soubesse seguir seu conselho e que compreendesse como acontecem as coisas no mundo.

Sonam tinha um grande amigo, de nome Tamchu. Quando crianças, tinham ido junto à escola, e, todas as tardes, brincavam do jogo de volante com o pé. Tamchu vivia na aldeia próxima, com a mulher e dois filhos pequenos.

Certo dia, Sonam decidiu sair em peregrinação ao mosteiro santo. Antes de partir, lembrou-se de que, quando vivo, o pai lhe havia dito que não confiasse em ninguém. Mas, ao pensar no amigo Tamchu, não pôde admitir que as palavras do pai devessem ser aplicadas também a este. Não, a Tamchu, não. E assim, levou suas duas bolsas de pepitas de ouro à casa do amigo e lhe disse:

— Tamchu, por favor, guarde-me o ouro enquanto eu estiver fora. Este é o ouro que meu pai me deixou, ao morrer.

Tamchu respondeu:

— Oh, sim, naturalmente. Guardarei o seu ouro com muito cuidado, e, quando voltar de sua peregrinação, você aqui o encontrará. Você não tem por que se preocupar. Somos bons amigos, não somos?

— E assim — continuou o monge —, passou-se um ano e Sonam voltou da sua peregrinação. Foi à casa de Tamchu e pediu ao amigo:

— Você pode me devolver o ouro, Tamchu?

— Oh, eu sinto tanto, Sonam! Aconteceu uma desgraça, uma grande desgraça! O ouro se converteu em areia! — respondeu Tamchu, olhando o amigo com cara de quem estava desesperado.

Mas, Sonam, enquanto o amigo lhe contava o estranho acontecimento, não pareceu surpreso e, depois de alguns minutos de silêncio, disse:

— Está bem, Tamchu, não se preocupe. Você fez tudo o que pôde para vigiar o meu ouro.

E os dois amigos comeram juntos em paz, como se a perda do ouro tivesse sido esquecida por completo. Ao entardecer, Sonam disse ao amigo:

— Tamchu, eu gostaria de cuidar dos seus filhos durante uns meses, já que não tenho minha própria família. Gostaria de dar-lhes boa comida e boa roupa. Eles seriam muito felizes em minha casa.

— Muito boa idéia, Sonam!, disse Tamchu, pensando:

"Embora ele tenha perdido todo o seu ouro nas minhas mãos, ainda quer cuidar de meus filhos. Sem dúvida, é uma ótima pessoa". E, assim, acrescentou: Naturalmente, Sonam. Você pode levar meus filhos pelo tempo que quiser.

Sonam levou as crianças para a sua casa e tratou deles muito bem. Mas comprou dois macaquinhos e pôs neles os nomes dos meninos. Durante os dias que se seguiram, adestrou os monos para que, quando ele chamasse: "Tendzin, venha aqui!", o macaquinho maior corresse para ele; e, quando chamasse: "Thupten, venha aqui!", o macaquinho menor também fosse em direção a ele. Os macaquinhos entenderam muito bem e aprenderam muito rapidamente.

Passado o tempo, quando Tamchu foi buscar os filhos, Sonam mostrou uma cara muito triste ao amigo:

— Oh, eu sinto tanto, Tamchu — disse. Aconteceu uma desgraça, uma grande desgraça! Seus filhos se converteram em macacos!

Tamchu ficou muito triste e chamou os filhos por seus nomes. Imediatamente, apareceram os dois macaquinhos e correram para ele. Tomaram a mão de Tamchu e dançaram à sua volta, como se fossem menininhos. Tamchu ficou desolado e perguntou ao amigo:

— Sonam, que podemos fazer? Como podemos fazer com que estes macacos se convertam de novo em meus filhos?

Sonam mostrou-se pensativo por uns instantes e depois respondeu:

— Isso é fácil, meu amigo, mas vamos precisar de muito ouro,

— De quanto? — perguntou Tamchu.

— De umas duas bolsas de pepitas de ouro, pelo menos,

— Tão logo possa, trarei as bolsas de ouro — disse Tamchu, e saiu correndo para sua casa.

Mais tarde, voltou e deu o ouro ao amigo. Sonam o pegou e disse a Tamchu que esperasse enquanto ele subia ao andar de cima.. No fim de alguns momentos, desceu.

— Aqui estão, Tamchu.. Transformei os macacos em sereshumanos de novo, em seus filhos..

Tamchu ficou encantado por recobrar seus filhos, mas olhou com vergonha para Somam. Logo depois, porem, os dois amigos caíram no riso.'"

Ao terminar a história, o próprio monge começou a rir, ao ver como o fio do papagaio de seu sobrinho havia sido cortado enquanto escutava o relato. Ambos contemplaram o papagaio que flutuava sobre o vale e voava para os dourados telhados de Potala

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

sábado, 30 de janeiro de 2016

Contos Populares Portugueses (Os Dois Soldados)

Havia dois rapazes que eram muito amigos. Um era um ano mais velho do que o outro, de modo que, quando o mais novo sentou praça, já o mais velho tinha um ano de serviço militar. Eram muito bem comportados e andavam sempre juntos. Saiu o mais velho da praça, e voltou passados treze meses a visitar o amigo. Era um dia em que este estava de serviço ao quartel. O soldado pediu ao seu capitão dispensa do serviço, e logo que este soube que era para acompanhar o seu velho amigo e patrício dispensou-o do serviço, mas não o dispensou de recolher a certas horas.

Foram os dois amigos passear e entraram numa casa de comidas e bebidas. Conversaram, conversaram, até que foram avisados pelo dono da casa de que eram horas de fechar o estabelecimento.

- Pois que horas são?

- Meia-noite.

Ficou o soldado muito aflito: era a primeira vez que apanhava um castigo. Saiu da casa e o seu amigo ficou.

Próximo do quartel viu ele um sujeito montado num cavalo e notou que o cavalo trazia as patas enroladas em trapos. Espreitou.

O sujeito aproximou-se de uma casa alta, de cuja janela desceram pequenos fardos, mas muito pesados, e, no fim, uma senhora, que desceu por uma escada de corda. Em seguida, ela montou com o sujeito no cavalo, e este partiu a grande galope. O soldado trazia consigo a baioneta e foi seguindo o cavalo. A curta distância parou o cavalo, e o cavaleiro ordenou à senhora que se apeasse. Ela assim fez.

- Faça o ato de contrição, porque vai morrer - disse ele.

- Eu não fiz mal nenhum, por que razão me quer matar?

- Pois supunha que eu casasse consigo? Eu só queria o seu dinheiro. Agora estou governado, mas é preciso que morra aqui!

E, dizendo estas palavras, avançou para a senhora. A este tempo estava próximo o soldado, que arrancou a sua baioneta e matou o indivíduo, que era um terrível ladrão.

Em seguida, o soldado montou no cavalo a senhora e as malas e foi levar tudo à casa da infeliz. Esta deu ao soldado um lenço com moedas de ouro e pediu-lhe que todos os dias às onze horas lhe passasse defronte da casa. Ora a menina era filha de um mercador muito rico.

Dirigiu-se o soldado para o quartel ao romper da manhã e logo foi avisado pela sentinela de que o capitão estava muito zangado por ele faltar à hora do recolher.

Apresentou-se o soldado ao capitão, e tais foram as desculpas e tão bom era o seu comportamento, que não foi castigado.

No dia seguinte, pelas onze horas, passou o soldado defronte da janela do mercador, e a filha deste atirou-lhe outra bolsa de dinheiro, que ele apanhou. Repetiu-se isto mais vezes, até que o soldado entendeu que fazia um pecado em receber aquele dinheiro. Dirigiu-se a uma igreja e encontrou um cardeal, a quem pediu que o ouvisse de confissão, e nesta contou tudo. O cardeal aconselhou-o a que apanhasse o dinheiro, visto que a senhora lho dava. No outro dia, passou o soldado defronte da loja do mercador e viu lá o cardeal, que o chamou. Estiveram conversando por algum tempo, o suficiente para o soldado ficar a saber que o cardeal era irmão do mercador, e portanto tio da senhora que ele salvara da morte.

Logo que foram horas de jantar, foi o soldado convidado a jantar, convite que aceitou.

No fim do jantar, disse o cardeal para o irmão:

- Se a tua filha fosse salva por um homem, que farias tu?

O mercador respondeu:

- Se esse homem fosse solteiro, dava-lhe a minha filha em casamento.

Então o cardeal pediu ao irmão que desse a sua filha em casamento ao soldado.

Deram-se todas as explicações que o caso exigia e o nosso soldado casou com a filha do mercador.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXIII, final

Angela Lago (2000) retrata o já conhecido em um novo contexto. Na verdade, a escritora não reescreveu nenhum conto de fadas, mas a forma com que os personagens, até então perenizados em seus papéis e posturas sociais, assumem papéis inesperados é surpreendente. Tanto que o futuro príncipe, chamado Seinão, é considerado um menino zonzo, indeciso e que não sabe o que realmente quer da vida. Além disso, não possui sangue real, mas apaixona-se pela princesa.

A princesa não é nada convencional em suas atitudes, ou seja, é uma jovem independente, inteligente e debochada. E, por não levar a sério o amor de Seinão, propõe a ele uma tarefa impossível em troca de sua mão em casamento. Nessa tarefa não há dragões e nem ao menos princesas que dormem sonos seculares.

Seinão deveria ir não sei onde e buscar não sei o quê. De acordo com a determinação dessa prova, a princesa não queria se casar com o moço, aliás, ela escolheria quem seria seu marido. Decisões impossíveis há séculos atrás, uma vez que a mulher era condicionada a aceitar as ações do destino, as quais significavam as decisões da sociedade patriarcal.

O futuro príncipe foi submetido a uma missão que exigia coragem, situação semelhante imposta aos demais príncipes de contos precedentes, que, na verdade, representavam a coragem de forma simbólica, ou seja, eram os homens certos para um certo momento. Assim, ele, o Seinão, andou em inúmeras direções e foi até o inferno. Chegando lá, começou a trabalhar como atualizador dos arquivos e pastas de pecados e pecadores. Em troca, receberia a encomenda da princesa, que ele mesmo não sabia o que era.

De certa forma, essa obra retoma a ideia de que os príncipes do passado também foram até o inferno para conquistar o amor da princesa. No entanto, um certo dia, o diabo dispensou o garoto com um embrulho nas mãos, assim dizendo: “É não sei o quê, mas você não pode abrir, pois se abrir deixa de ser” (2000, p. 18).
 
O menino chegou vitorioso ao palácio entregando o “não sei o quê” à princesa, uma vez que a sua tarefa era ir buscá-lo. Agora, Seinão está muito bem casado com a princesa que não o queria, e o embrulho segue embrulhado.

Nessa história, o ambiente é o mesmo das narrativas já conhecidas, uma vez que havia um palácio e os sábios, conselheiros da princesa. Além disso, apesar de o pretendente da jovem ser desorientado e não possuir sangue real, ele agiu como os demais príncipes, sendo vitorioso em sua missão. Contudo, o diferencial está na atuação da personagem feminina, a qual tem muito em comum com a mulher contemporânea, pois ela se tornou independente, decidida, uma vez que é de sua escolha optar pelo matrimônio ou não. E essa decisão era única e exclusiva da jovem, sendo que os pais dela participaram da narrativa, porém jamais opinaram quanto a sua escolha. Somando-se a isso, a missão atribuída ao futuro príncipe de ir buscar um embrulho era somente um teste para se medir as suas virtudes e talvez, a curiosidade deste, visto que em Amor e psiquê, a personagem feminina não conseguiu ser mais forte que o seu ímpeto curioso e, por isso, ela não foi bem em sua aventura, inicialmente. Seinão mostra-se diferente, tanto que o embrulho que ele traz segue da mesma forma.

A imagem do príncipe Seinão de Angela Lago é bastante parecida com a figura proposta por Liz Lochhead, citada por Izabel Brandão, isto é, a imagem do príncipe que deveria simbolizar a perfeição, a completude e a força do sexo masculino, é massacrada e ironizada pela princesa. Depois de anos a fio reclusa, a princesa passou a se conhecer melhor e a questionar todas as coisas que não entende ou que não preenchem seus pré-requisitos. (LOCHHEAD apud BRANDÃO, 1997, p. 201)                     
Mais de cinquenta anos se passaram desde o grito de basta das feministas que não mais aceitam papéis submissos na ficção e na vida real. Aliás, Laura Cavalcante Padilha tão bem expressou essa ideia, citando em seu artigo a fala de Paula Tavares, escritora angolana: “Eu sinto-me melhor quando grito” (TAVARES apud PADILHA, 1997, p. 67). Laura Padilha ainda afirma que o grito recalcado das mulheres escritoras foram silenciados no passado pelos cordéis da dominação e que Paula Tavares é um exemplo dessa repressão machista contra a escritura e publicação de livros.

Franz já afirmava que “homens e mulheres não poderão reencontrar sua natureza    profunda    senão    no    reconhecimento    e    no    respeito de    sua complementaridade” (1995, p. 262). De acordo com essa visão, os tempos já se mostram renovados, uma vez que hoje, a mulher, a Bela adormecida do passado, não necessita mais de um beijo para acordar. Mas, talvez, de um beijo para dormir, após muito tempo estar acordada, escrevendo ou re-escrevendo sua história, numa trajetória histórica em que assumiu inúmeros papéis, que variaram desde o de bruxa até o de fada. No entanto, o mais importante no momento é escrever de próprio punho a narrativa de sua vida e nela mostrar que a Bela não se encontra mais em sono profundo e que papéis assumidos em remotos tempos não mais condizem com sua postura contemporânea. É evidente que nesse contexto a emancipação feminina não diz respeito somente à mulher, mas à libertação de um sistema histórico de dominação masculina.

Foi graças a mulheres de diferentes épocas como Beaumont, Carter, Atwood, Drabble, Etxebarría, Lago, Warner, Tatar, Lochhead, Franz, entre outras que, pensando a personagem feminina ao longo de uma incessante caminhada de sacrifícios e lutas, conseguiram desmistificar a representação determinada pelos preceitos masculinos. Tanto que na atualidade vêem-se a Julie, as Angelas, as Margarets, a Lucía, a Marina, a Maria, a Liz, a Marie-Louise, filhas, irmãs ou mulheres de quem? A ninguém interessa responder esta questão porque elas possuem as suas próprias sombras, não precisam representar que são sombras de figuras masculinas. Elas representam o novo feminino que se abstraiu de modelos passados. A imagem de donzela reprimida, a menina ignorante ou ingênua (como em A bela adormecida) ou o extremo, a bruxa perversa, não se encaixa mais em cenários contemporâneos. Visto que ao longo deste percurso, que pode ser caracterizado como feminino, muitas transformações aconteceram, especialmente relacionadas à postura ingênua da mulher. E essa mudança gradativa e contínua pode ser muito bem representada pelas personagens de Carter, Drabble e Etxebarría, entre outras.

Hoje, fruto de reivindicações, lutas, guerras, conquistas são colhidas. Sendo acertado afirmar que a emancipação da figura feminina, enquanto escritora, personagem e membro social, é parte da emancipação humana, o que deve resultar no equilíbrio almejado de saberes por ambos os sexos. Desse modo, homens e mulheres podem viver em harmonia os seus verdadeiros papéis em contos de fadas ou na vida real, retratando os novos tempos, desde que saibam respeitar os seus espaços e as suas próprias individualidades.

                           CONSIDERAÇÕES FINAIS
                            
É sabido que os contos existem desde o surgimento da humanidade, contribuindo para moldar a sociedade em seu tempo e valores. O curioso é a influência que estas narrativas exercem sobre a estrutura psicológica e social das pessoas. Tanto que, ainda hoje, muitos sonham em ser príncipes e princesas, reis e rainhas, além de desejarem viver em um conto de fadas, por mais que seja através de outros meios. Como exemplo disso, há os concursos de beleza em que a mulher vive um conto de fadas na contemporaneidade.

No entanto, o que se observa na constituição desses desejos é que as características dos personagens sofreram profundas transformações. Narrativas que correspondem a modelos alinhavados e costurados em séculos antes de Cristo, ainda circulam, no entanto percebe-se que moldes de príncipes-heróis e princesas– indefesas desatualizaram-se em meio à evolução da humanidade.

É bem verdade que a mulher ainda sonha em ser princesa ou rainha, mas com uma condição: ser normal. Nada de incorporar uma Madre Tereza de Calcutá. Aliás, essa exigência fazia parte do passado, em que a mulher deveria ter uma boa formação religiosa, que se estendia a ser uma boa filha, esposa, mãe, mulher devota. Essa formação já não consta mais dos manuais de conduta feminina.

Desde os séculos IX a XIII, com a obra Sendebar, de Sendabad, a figura da mulher permaneceu inerte, sem personalidade própria, em seus papéis, enquanto bruxa, madrasta, fada, princesa ou rainha, e essa perspectiva feminina foi disseminada também no século XIX pelos contos dos Irmãos Grimm, vindo somente a ser repensada em meados do século XX, quando a recomposição da personagem feminina passou a ser estruturada sob um novo enfoque, consoante com a ótica feminista.

Percebe-se, realmente, com a obra Sendebar, ou também chamada de O livro dos enganos das mulheres que a mulher passou a ser lograda, enganada em seu papel, como traiçoeira, falsa, má. E, para desfazer esses enganos, há muito registrados e disseminados através da cultura e entre as culturas, Bettelheim e Clarissa Pinkola Estés comprovaram que todo ser humano pode ser bom e mau, sendo que essa variação torna-se comum quando o mesmo interage no meio em que vive, uma vez que estes dois pólos opostos habitam o consciente humano.

Anteriormente a Bettelheim e Pinkola Estés, escritores como Basile, Perrault, Grimm, Romero divulgaram e persistiram na velha imagem do mito feminino, anjo ou demônio, que, na verdade, eles, como homens escritores, desejavam perpetuar, uma vez que a sociedade feminina era moldada de acordo com os ditames masculinos.

No entanto, movimentos começaram a se formar contra a discriminação feminina, ainda quando os folhetins estiveram em voga e os contos ultrapassaram a oralidade dos lares para alcançarem as ruas. Na verdade, as mulheres que começaram a se reunir contra o poder asfixiante patriarcal, viram-se como soldados que tomavam a frente e se prostravam diante de um pelotão extremamente armado com valores excludentes e preconceituosos.

Nessa batalha, muitas mulheres morreram, outras foram presas ou internadas em hospícios, mas foram raríssimas as que conseguiram driblar a vigilância masculina. Seguiram redigindo seus contos, suas histórias anônimas ou registradas com pseudônimos. Infelizmente, a história mostra que escrever contra a voz patriarcal é como se a princesa lutasse de mãos vazias contra o dragão.

Mesmo contrariando a situação adversa, um movimento se formou. As preciosas somaram forças, registrando as suas vivências, amarguras, desejos nos contos de fadas. Inicialmente, as escritoras divulgavam suas obras a um grupo seleto no interior de seus quartos ou salões.

Essas mulheres ousaram inserir-se em um universo de homens escritores. Algumas iniciaram seus trabalhos auxiliando escritores na redação de livros. Outras traduziram obras de homens, é claro!

Seguidoras de Mme d’Aulnoy continuaram a sua luta em favor das conquistas femininas, apesar de sofrerem constantes humilhações, maus-tratos. Nesse movimento de adesão literária, formado pelas preciosas, mulheres de muitas partes do mundo irmanaram-se a esta causa.

Posteriormente, mulheres de coragem redobrada surgiram, as escritoras que comprovaram que o estereótipo da figura feminina criada pelos homens em nada condizia com a sua realidade. Elas estavam cansadas de usarem máscaras que representavam papéis dissimulados no contexto literário e social.

Obras belíssimas surgiram, à luz da célula-mater oriental Calila e Dimna. Evidentemente que as mulheres escreveram usando pseudônimos, principalmente masculinos, para se protegerem e se inserirem em uma sociedade em que a condição da figura feminina estava subjugada por longo do tempo ao poderio masculino/patriarcalista.

Tristes realidades registradas em Marmoisan ou L’innocent tromperie, Peau d’ours, Le magasin des enfants. Nessas narrativas, as escritoras vestiram suas personagens de homens, soldados, em peles de urso, para serem vistas, valorizadas ou fugirem de freqüentes maus-tratos. Nessas estão os registros de tempos difíceis em que as mulheres eram condenadas a viver na segunda classe, como diria Angela Carter.

No Brasil, em meados do século XIX e XX, escritoras como Júlia Lopes de Almeida, Zalina Rolim, Francisca Júlia da Silva Munster e Alexina de Magalhães Pinto começaram a despertar para o mundo literário, escrevendo para o público infantil.

De outro modo, o reinado das mulheres começou sem mesmo elas se tornarem princesas, sob novo perfil, com Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Mundialmente, Alice e Dorothy já tinham mostrado a nova face feminina.

Essas personagens-protagonistas criadas por Lobato, Carrol e Baum possibilitaram à mulher, na ficção, mostrar a sua real identidade e seu espírito de liderança. Assim, percebiam-se novos rumos quanto ao destino da mulher, enquanto personagem e membro social.

Visto que, em meados dos anos 50, o Movimento Feminista se firmou, em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, convém salientar a presença de Presciliana Duarte, dentre as escritoras brasileiras, que foi uma figura de destaque, em âmbito literário e educacional, enquanto mulher e também feminista.

Dessa forma, com a disseminação do feminismo, sistemas sociais foram revistos e, consequentemente, a literatura se inseriu nesta reavaliação. Marina Warner já havia afirmado que os contos de fadas possuem poder perene, ou seja, a essência desses são sempre iguais, o que há de diferencial são os interesses e as necessidades do povo que determinam a sua moldura: “São histórias que possuem um poder permanente, como mostra sua Antiguidade, porque os significados que geram estão, eles mesmos, sempre mudando de forma e dançando segundo a necessidade do público” (1999, p. 22). E os interesses do povo mudaram, tanto que ritmos diferentes exigem novos movimentos, embasados em leituras representativas de sua realidade.

De certo modo, os dolorosos anseios e apelos femininos do passado se tornaram realidade. Essas solicitações já tinham sido escritas nas linhas e entrelinhas dos contos. Assim, as novas conquistas das mulheres, na verdade, não passam de antigas reivindicações femininas. Na verdade, a militância política feminista associada ao grupo restrito de escritoras transformaram a história social da humanidade. Tanto que hoje a mulher pode optar pela carreira militar e concorrer a patentes com os demais, homens e mulheres.

Conquistas as mulheres realmente tiveram, após uma longa caminhada de escravidão, medo, obediência. Adquiriram sim, o direito ao voto, à educação, à liberdade, à sexualidade, de optar ou não pelo casamento, de concorrer a cargos públicos, de participar da esfera política e administrativa de seu país, de controle da natalidade, de disputar vagas de trabalho em igualdade com homens, de conquistar seu espaço profissional fora de casa (com isso, somando, infelizmente, uma dupla jornada), mas o que se faz importante é que, através do trabalho, principalmente literário, a distância entre homens e mulheres se fez menor.

Carter, Atwood, Lago, Drabble, Etxebarría, Lochhead, são escritoras que, através de seus trabalhos, desmistificaram a personagem feminina, identificando a nova mulher, que é decidida, corajosa, inteligente, sutil, esclarecida, trabalhadeira, sensual, longe de endeusamentos, tanto que ela ainda sente momentos de insegurança, medo e vazio existencial.

E, nessa releitura dos papéis femininos, as paródias, os intertextos se fizeram mais que pertinentes, uma vez que o resultado foi o nascimento da mulher contemporânea, que não admite mais estar constantemente sob o jugo masculino.

É bastante sugestivo o título usado por Pinkola Estes (Mulheres que correm com os lobos), pois as mulheres correm com os lobos e não mais correm dos lobos. E, segundo Marina Warner, as mulheres variam de fera à loira, de acordo com seu bel-prazer. Agem como feras se querem lutar por seus ideais, seus filhos, sua família. Quando querem mostrar-se femininas, as feras transformam-se em morenas, ruivas, loiras, dependendo de seu estado de espírito.

As escritoras feministas adequaram seus personagens às atuais estruturas sociais, bem como diria Rita Terezinha Schmidt (Mulheres e literatura: (trans) formando identidades). Angela Carter permitiu que a Fera tirasse sua máscara e vestimentas seculares,    transformando-o,  senão em um príncipe, em um animal bonzinho. A personagem Bela, que há muito vinha sofrendo, pensando em morrer, na época de Beaumont, em Carter, deseja mais é viver e ser feliz. O ogro Barba-Azul, de Perrault, tem um páreo duro para enfrentar, a sogra, personagem de Carter.

A história das protagonistas mulheres na literatura de autoria feminina registra sua trajetória ao longo de séculos em que buscavam conquistar seu espaço. Além disso, as obras escritas por mulheres assumem grande importância para o público feminino, uma vez que contribuem para a composição da identidade da mulher em tempo presente e futuro, quer seja na ficção ou na vida real.

Segundo Guedes, “a reinterpretação dos contos de fadas por escritoras contemporâneas fornece textos mais positivos para as mulheres, em que os estereótipos são rompidos e as possibilidades de desenvolvimento feminino são reexaminadas e expandidas” (GUEDES, 1997, p. 78-79).

Contrariamente ao que Chaucer mencionou a respeito do sexo feminino, ou seja, que só quer mandar (ALMEIDA, 2003, p. 20), é possível afirmar que a mulher, enquanto escritora e personagem, não quer representar papéis, mas quer sim viver o seu papel em um espaço já conquistado, em um território não mais somente masculino.

Comprova-se, através da história que páginas e páginas foram escritas pelos homens. Agora, novas páginas estão construindo ou reconstruindo o percurso literário feminino, prenunciando novos tempos de igualdade.

A partir dessas observações, verifica-se a necessidade de se buscar possíveis respostas ou alternativas que contribuam para o campo literário, resultando em projetos novos relacionados à evolução da figura feminina nos contos de fadas, através dos tempos, e também na ficção, seja ela assinada por mulheres ou homens.

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Carolina Ramos (Crônica Poética à Cidade Amada: Santos – Terra da Liberdade e da Caridade)

Vem, forasteiro! Desce comigo a Serra. Olha lá para baixo. Não...não é miragem!

Há de fato, uma linda cidade escondida por detrás da neblina. A minha cidade! E com que orgulho digo que esta cidade, que é minha, é também encantamento, história e tradição!

Um dos mais importantes pedaços do nosso Brasil! Por que? A ti, que vens de fora, evito falar dos seus encantos. Hás de travar contato com eles, daqui a um nada!

Disse-te que a minha cidade é História. Sim, foi lá que muita coisa começou! Muita coisa de suma relevância para o destino da nacionalidade.  Para o meu...e para o teu destino!

Minha terra natal tem sangue índio – Enguaguaçu era chamada, antes que lhe dessem o nome protetor de Todos os Santos. Por fim, sei que adivinhaste, chamaram-na simplesmente Santos – A Princesa do Mar! Desse mar que se amansa e que lhe beija os pés de areia, cobrindo-os de rendas, enciumado do abraço do sol que lhe manda, lá de cima, o seu carinho ardente!

Santos! Berço augusto de tanta gente ilustre! Não, não citarei nomes, cujo rol transcende os limites desta folha - filhos insígnes que carregam consigo a nobreza do berço!

Ninho de poesia, minha Santos gerou poetas da mais alta inspiração! Que menos não lhe permitiria o festival de mago encantamento que a Musa lhes oferecia e, até hoje, ainda oferece.

Ah! As auroras rosadas desta linda Santos, prenúncio dos mais cálidos e luminosos dias! E os crepúsculos incomparáveis?! E as noites?! Veludosas noites refulgentes de joias! Noites feitas para os idílios, para os sonhos! Noites feitas para o amor! 

Santos! Terra excelsa dos Andradas! Que fidalgo lugar te reservam os anais da História! Basta lembrar que em teu seio germinou a semente da liberdade, cujo grito eclodiu à beira do Ipiranga e o eco estendeu-se aos quatro cantos do nosso imenso Brasil! Santos abolicionista, empenhada em quebrar algemas e a secar o pranto de uma raça valorosa e sofrida!

“Porta aberta para o mar...” Braços amplos, escancaradamente abertos a quantos adentrem seus limites, em busca de abrigo ou, simplesmente de descontração, nas horas preguiçosas que o leito morno e amplo de suas praias lhes oferece. Lá no alto, a Senhora do Monte Serrat abençoa a paisagem, emoldurada de jardins floridos! E abençoa, também, a todos que desfrutam dessas benesses e as respeitam, como merecem!

O porto de Santos? Turbulento, embora, é nada mais nada menos, o primeiro e maior porto da América Latina! Colo amigo onde os navios encostam seus cansaços, após a faina incessante de transportar sonhos que alimentam esperanças de um povo raçudo e laborioso, de alma sempre empenhada em vencer!

Nosso brasão, afirma convicto: “À Pátria ensinei Caridade e Liberdade”.

Pode haver mais nobre tema, para pautar a conduta dos filhos desta terra, agora e sempre, muito especial?!

Fecha os olhos, forasteiro... Fecha os olhos a tudo que te pareça de algum modo negativo. Perfeito mesmo, só Deus! E entre Deus e os admiráveis encantos que nos legou, impossível evitar a ação de criaturas, por Ele mesmo criadas, nem sempre corretas, nem sempre santistas e, não raro, nefastas. Esquece-as, por favor! Assim é em qualquer canto da Terra!

Creio que basta, Se abusei das exclamações admirativas, perdoa-me, também.  Hás de convir, leitor amigo, que não poderia ser diferente. E não me chames de piegas, peço-te. O excesso de amor pode, sim, conduzir a pieguismos, mas, põe-te no meu lugar. Farias certamente o mesmo! Duvidas? Então vem comigo. Desçamos a Serra juntos. Terás certeza de que não exagero.

Minha Santos pode não ser a “Cidade Maravilhosa”, contudo, que maravilhosa cidade é a minha Santos!

Vem!... Mas pisa com respeito este chão santista! E, principalmente, pisa com muito ... muito Amor!

 Vem!...

Fonte:
A Autora

Jorge Luis Borges (Emma Zunz)

No dia catorze de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch & Loewenthal, achou no fundo do saguão uma carta, datada no Brasil, pela qual soube que seu pai havia morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o carimbo e o envelope; logo, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas rabiscadas queriam tomar a folha; Emma leu que o senhor Maier havia ingerido por erro uma forte dose de veronal e havia falecido no dia três do corrente mês no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, do Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto.

Emma deixou cair o papel. Sua primeira impressão foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; logo de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; logo, quis já estar no dia seguinte. Ato contínuo compreendeu que essa vontade era inútil porque a morte de seu pai era a única coisa que havia acontecido no mundo, e continuaria acontecendo sem fim. Recolheu o papel e foi a seu quarto. Furtivamente guardou-o em uma gaveta, como se de algum modo já conhecesse os fatos posteriores. Já havia começado a vislumbra-los, talvez já era o que seria.

Na crescente escuridão, Emma chorou até ao fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos antigos dias felizes foi Emanuel Zunz. Recordou verões em uma chácara, perto de Gualeguay, recordou (tratou de recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanús que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o carro de prisão, o vexame, recordou os anônimos com o artigo sobre "o desfalque do caixa", recordou (porém isso jamais esquecia) que seu pai, na última noite, lhe havia jurado que o ladrão era Loewenthal. Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o havia revelado, nem mesmo à sua melhor amiga, Elsa Urstein. Talvez evitava a profana incredulidade; talvez acreditava que o segredo era um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz derivava desse fato ínfimo um sentimento de poder.

Não dormiu naquela noite, e quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito o seu plano. Procurou que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma se declarou, como sempre, contra toda a violência. Às seis horas, concluído o trabalho, foi com Elsa a um clube para mulheres, que tem academia e piscina. Inscreveram-se; teve que repetir e soletrar seu nome e seu sobrenome, teve que rir das piadas vulgares que comentam na revisão médica. Com Elsa e com a menor das Kronfuss discutiu a que cinematógrafo iriam no domingo à tarde. Logo, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Em abril, faria dezenove anos, mas os homens lhe inspiravam, ainda, um temor quase patológico... De volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sexta-feira quinze, a véspera.

No sábado, a impaciência a despertou. A impaciência, não a inquietude, e o singular alívio de estar naquele dia, finalmente. Já não tinha mais o que tramar e o que imaginar; dentro de algumas horas bastaria a simplicidade dos fatos. Leu em A Imprensa que o Nordstjärnan, de Malmö, zarparia essa noite do dique três; telefonou para Loewenthal, insinuou que desejava comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao escurecer. Sua voz tremia; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu essa manhã. Emma trabalhou até às doze e combinou com Elsa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio do domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que havia tramado. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe depararia, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. Logo, alarmada, se levantou e correu à gaveta da cômoda. Abriu; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a havia deixado a noite passada, estava a carta de Fain. Ninguém podia havê-la visto; começou a lê-la e a rasgou.

Referir-se com alguma realidade aos fatos dessa tarde seria difícil e talvez improcedente. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece mitigar seus terrores e que os agrava talvez. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória de Emma Zunz repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que essa tarde foi ao porto. Por acaso no infame Passeio de Julho viu-se multiplicada em espelhos, publicada por luzes e desnudada pelos olhos famintos, porém mais racional é conjeturar que ao princípio errou, inadvertida, pela indiferente recova... Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou o procedimento de outras mulheres. Encontrou por fim homens do Nordstjärnan. De um, muito jovem, temeu que lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, para que a pureza do horror não fosse mitigada. O homem a conduziu a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (no qual havia uma janela com losângulos idênticos aos da casa em Lanús) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, já porque neles o passado imediato fica meio truncado pelo porvir, já porque não parecem consecutivas as partes que os formam.

Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem perplexa de sensações inconexas e atrozes, pensou Emma Zunz uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Eu tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento perigou seu desesperado propósito. Pensou (não pôde não pensar) que seu pai havia feito à sua mãe a coisa horrível que a ela lhe faziam agora. Pensou isso com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi uma ferramenta para Emma assim como esta foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça.

Quando ficou só, Emma não abriu em seguida os olhos. No criado-mudo estava o dinheiro que o homem havia deixado: Emma voltou a si e o rasgou como antes havia rasgado a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma se arrependeu, apenas fez um ato de soberba e naquele dia... O temor se perdeu na tristeza de seu corpo, no nojo. O nojo e a tristeza a encadeavam, mas Emma lentamente se levantou e começou a se vestir. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se agravava. Emma pôde sair sem que a notassem; na esquina subiu a um Lacroze, que ia ao oeste. Escolheu, conforme seu plano, o assento mais dianteiro, para que não vissem sua cara. Talvez lhe confortou verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não havia contaminado as coisas. Viajou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e os esquecendo no ato, e desceu em uma das embocaduras de Warnes. Paradoxalmente a sua fatiga vinha a ser uma força, pois a obrigava a se concentrar nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim.

Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica, sozinho. Estabelecido no desmantelado subúrbio, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cão e na gaveta de sua mesa, ninguém ignorava, um revólver. Havia chorado com decoro, no ano anterior, a inesperada morte de sua mulher — uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! — mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntimo rubor sabia que era menos apto para ganhá-lo do que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de obrar bem, a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos esfumaçados e barba loira, esperava de pé, perto da janela, o relatório confidencial da operária Zunz.

Viu-a empurrar a grade (que ele havia entreaberto de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a fazer um pequeno rodeio quando o cão atado ladrou. Os lábios de Emma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer.

As coisas não aconteceram como havia previsto Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, ela havia sonhado muitas vezes, manejando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o intrépido estratagema que permitiria à Justiça de Deus triunfar sobre a justiça humana. (Não por temor, mas por ser um instrumento da Justiça, ela não queria ser castigada). Logo, um só balaço na metade do peito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim.

Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar seu pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje padecido por tudo isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Também não tinha tempo a perder em teatralidades. Sentada, tímida, pediu desculpas a Loewenthal, invocou (na qualidade de delatora) as obrigações da lealdade, pronunciou alguns nomes, deu a entender outros e se interrompeu como se a vencesse o temor. Conseguiu que Loewenthal saísse para buscar um copo de água. Quando este, incrédulo de tais espaventos, porém indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já havia tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo se desmoronou como se os estampidos e a fumaça o tivessem quebrado, o copo de água quebrou-se, a cara olhou-a com assombro e cólera, a boca da cara a injuriou em espanhol e em idisch. As más palavras não recuavam; Emma teve que dar fogo outra vez. No pátio, o cão acorrentado desatou a ladrar, e uma efusão de brusco sangue emanou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada ("Vinguei meu pai e não poderão me castigar...") mas não a acabou, porque o senhor Loewenthal já tinha morrido. Não soube nunca nem chegou a entender.

Os latidos tensos lhe recordaram que não podia, ainda, descansar. Desarrumou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Logo pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: Aconteceu uma coisa que é incrível... O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve... Abusou de mim, matei-o...

A história era incrível, de fato, mas se impôs a todos, porque substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que havia padecido; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXII

4.3 Escritoras engajadas no processo de composição da identidade feminina

Hoje, os estudos sobre a literatura feminina, feitos quase sempre pela própria mulher, buscam uma leitura engajada com o social, mostrando como as obras escritas por homens construíram a estereotipia do feminino, através da passividade, da história, ou do caráter fraco e maléfico das personagens femininas. PAIXÃO, 1997, p.73.                                                  
Neste subcapítulo serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras Margaret Drabble e Lucía Extrebarría que, através de suas releituras e re-escrituras, engajaram-se na composição da personagem feminina em suas obras, embora não sejam autoras de contos infantis. Será citada ainda a teórica Marie-Louise von Franz, de acordo com seus estudos realizados nesta área.

Margaret Drabble também adotou o mesmo processo de Carter. Apesar de escrever romances e não contos, a escritora criou personagens e roteiros concernentes aos novos tempos. Além disso, Drabble salienta a importância dos romances e de suas personagens femininas, quando mostram a realidade vivida pela mulher em âmbito mundial, visto que essas narrativas contribuem para a composição da identidade social e psicológica feminina, em tempo presente e também para uma perspectiva futura.

Muitas pessoas leem romances a fim de encontrar padrões ou imagens para futuras possibilidades – para saber como se comportarem, o que podem esperar ser mais tarde. Não queremos nos parecer com as mulheres do passado, mas onde está nosso futuro? É isso, exatamente, o que muitos romances escritos por mulheres estão tentando responder; alguns em termos cômicos, outros de forma trágica e outros, ainda, de maneira especulativa. Vivemos num mundo sem coordenadas, no que se refere ao modo de viver e à moral; estamos tendo que criar nossa própria moralidade, à medida que avançamos. Nosso campo é vastíssimo, há padrões totalmente novos a serem criados... os que sentem a necessidade de fazê-lo estão ativamente empenhados em criar um novo padrão, um novo esquema. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 8)                     
Assim como Drabble,    Angela Carter também se enquadra nesta busca e criação de um novo padrão a ser seguido pela mulher, em observância às suas personagens femininas, ou seja, ambas mostram que nem tudo está perfeito ou é aceitável do modo como se encontra. Desse modo, Drabble propõe ajustes ou afrouxamentos para situações que se relacionam ao contexto feminino. E, tratando– se da composição da identidade da mulher, principalmente em sua integridade psicológica, quer na vida real ou na ficção, nada melhor que a própria mulher realizar o seu auto-retrato e apresentá-lo à sociedade para que seja difundido.

Além disso, mais uma coincidência remete às obras de Drabble e Carter, as referências intertextuais. Os romances de Drabble estão repletos de intertextos, assim considera Guedes, comentando o estilo narrativo da escritora:

Seria impossível listar aqui todas as alusões e citações explícitas ou os ecos sutis que entrelaçam as obras de Shakespeare, Austen, Dickens, Eliot, Lawrence e outros com a trilogia de Drabble. Os textos de Drabble sempre foram repletos de referências intertextuais. A intertextualidade é um aspecto significativo de seu estilo narrativo e delineia a sua relação com um sentido de tradição literária em permanente mudança e evolução. (GUEDES, 1997, p. 60)                     
No entanto, nas obras de Drabble os intertextos acontecem também com as personagens que se repetem em obras sequenciais, consequentemente as suas narrativas não apresentam final. Dessa forma, a escritora incita o leitor a buscar a continuidade do texto que não se finda na última linha.

Provavelmente, Drabble tenha adotado esse estilo, abolindo o final de suas narrativas, deixando as últimas linhas “entreabertas” à imaginação para salientar um anseio feminino, a busca de uma “brecha”, um espaço no mundo dos homens, para que a mulher possa mostrar o quanto é capaz, determinada em seus objetivos pessoais e profissionais.

Desse modo, ela aproxima a ficção da vida real, uma vez que a vida é um processo contínuo, que se desenrola cotidianamente. Provavelmente, essa nova construção seja uma característica tipicamente feminina.

Nesse    ponto, Angela Carter,    Margaret Drabble    e Lucía Etxebarría assemelham-se, ou seja, suas personagens vivem conflitos psicológicos comuns a qualquer mulher quando se encontra num processo de descobrimento e composição de sua própria identidade.

“Eu gostaria”, disse Liz Ablewhite , após a meia-noite, com o olhar fixo nas colunas flamejantes esbranquiçadas, irregulares, brilhantes e incertas da lareira à gás, “de entender o sentido das coisas”. “Coisas” aí significava ela própria. Ou pelo menos era assim que ela pensava. “Eu gostaria”, disse Alix, “de mudar as coisas”. “Coisas” não significava ela mesma. Ou pelo menos ela achava que não. “Vocês querem chegar muito alto”; dizia Esther, “eu quero obter informações interessantes. Só isso”. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 22)
[...] No ha merecido la pena esforzarme en demostrar que soy una buena chica. Antonio se ha muerto y no me importa. Borja está vivo y no me importa. Lo único que me importaba, lo único que ha importado siempre, era limpiar una mancha. Pero eso tampoco importa ya. Al fin y al cabo, la limpieza ya no me obsesiona. Anita organizó una revancha de opereta y Ana duerme con un extraño, confinada en una casa que ha demostrado no necesitarla, recluida en un calabozo que ella misma ha decorado. Y yo me siento vacía como una mujer burbuja. (ETXEBARRÍA apud ALMEIDA, 2003, p. 35)                     
Essas três escritoras apresentam em suas obras o novo perfil da personagem feminina. Além disso, Carter acresceu às suas personagens uma característica comum ao sexo feminino na vida real, o sexto sentido. Já Etxebarría, utilizando-se das personagens, irmãs Gaena, mostra o conflito psicológico vivido por três mulheres (Cristina, Rosa e Ana), percebido através do vazio de suas vidas e das escolhas erradas que fizeram, seguindo critérios medíocres, arraigados em falsos valores.

[...] yo era la tonta de la casa, una buena chica sin más, pero me temo que no era tan tonta, que soy demasiado lista, lo suficientemente lista, al menos, para darme cuenta de que esta vida que llevo no me dice nada, y que lo que yo querría es ser como tú, pero lo suficientemente tonta para no saber cómo arreglar este desaguisado en que yo misma me he metido. (ETXEBARRÍA apud ALMEIDA, 2003, p. 35)                     
De certa forma, essa procura contínua da mulher vem ao encontro das ideias de Beauvoir, citadas por Zahidé Lupinacci Muzart. O que falta essencialmente à mulher de hoje, para fazer grandes coisas, é o esquecimento de si: para se esquecer é preciso primeiramente que o indivíduo esteja solidamente certo, desde logo, de que se encontrou. Recém-chegada ao mundo dos homens, e mal sustentada por eles, a mulher está ainda ocupada com se achar. (BEAUVOIR apud MUZART, 1997, p. 89)                     
A mulher pode ainda não ter se achado no “mundo dos homens”, como Beauvoir fez menção, e talvez, um dos motivos para que ela se depare com esse período de desencontro seja porque, durante muito tempo, tenha sido obrigada a se esconder do mundo, omitindo seus pensamentos e a sua própria identidade. No entanto, percebe-se que muito do que a mulher sentia, tornava-se explícito na composição das narrativas aqui trabalhadas.

Visto que Carter e Drabble, entre outras, inovaram em seus estilos narrativos, relativizando palavras e contextos autoritários, bem como, atribuindo diferentes interpretações para as últimas linhas de seus textos, percebe-se, desse modo, que as escritoras contemporâneas estão modificando os finais de suas obras, objetivando aproximá-los à nova postura feminina que se distancia de antigos encargos patriarcais, como o casamento e a maternidade. A esse respeito, Guedes menciona que:

[...] As escritoras do século XX têm tentado modificar os finais dos romances – habitualmente episódios de casamento ou morte – criando narrativas que oferecem uma série diferente de opções à heroína, questionando assim as imagens tradicionais da socialização da mulher [...] (GUEDES, 1997, p. 18)                     
Convém mencionar aqui, novamente, Margaret Drabble, citada por Peônia Guedes (1997), uma vez que a escritora de romances como The Radiant Way, A Natural Curiosity e The Gates of Ivory utiliza-se destes para apresentar ao público, em especial feminino, a nova imagem da Cinderela contemporânea. Na verdade, as personagens de seus romances, Liz, Alix e Esther, são Cinderelas ao avesso, ou seja, mulheres que não admitem seguir o roteiro original desse conto de fadas. Na verdade, a imagem de uma Cinderela sofredora, humilhada e sonhadora elas decidem não viver, pois desejam ser felizes, compondo as suas próprias histórias, desvinculadas de um passado marcado por preconceitos e censuras.

Desse    modo,    torna-se    também    impossível    deixar    de    comparar as personagens princesas de contos passados (de Basile, Perrault e Grimm) com a princesa de Angela Lago, uma vez, apesar do distanciamento temporal dessas narrativas, há elementos intertextuais que as interligam deixando-as com um “ar de semelhança”. Além disso, as personagens criadas por Angela Lago surpreendem em adotar posturas nada convencionais, ou seja, personagens decididas e donas de seus destinos, se comparadas às personagens de narrativas historicamente disseminadas no meio cultural da humanidade, sendo que o papel feminino de suas histórias está realmente condizente com o assumido pela mulher hoje, enquanto personagem, mulher e escritora.

De outro modo, segundo a escritora chilena Guerra, citada por Navarro, a produção feminina, mais especificamente, latino-americana, seria uma “proliferação de sombras, a apropriação estratégica de modelos masculinos” (1997, p. 48). No entanto, verifica-se que as obras das escritoras latino-americanas, como Angela Lago e Lucía Etxebarría se contrapõem ao que Guerra afirma. Talvez, se Guerra mencionasse que há algumas e belíssimas exceções, fosse mais acertada a sua colocação.

continua…

Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Contos Populares do Tibete (O Transformador do Tempo)

Era uma vez um homem sábio. Viajava por toda a vasta terra do Tibete, e se detinha nos povoados e cidades onde quer que se requeressem seus serviços. Podia predizer o futuro, podia vaticinar a uma família os dias mais favoráveis para viajar ou comerciar, e podia, inclusive, mudar o tempo. O homem sábio era muito admirado e as pessoas lhe pagavam muito bem os seus serviços.

A julgar por seu aspecto, dever-se-ia desculpar a quem pensasse que era pobre. Os que o conheciam sabiam muito bem que não era assim. Ouvindo-o falar, podia-se tomá-lo facilmente por um homem de cabeça louca, mas aqueles que iam lhe pedir ajuda, tinham, sem dúvida, outra ideia. Esse homem estranho, com sua chuba andrajosa, um tamboril duplo e uma conca feita de um crânio pendurados no cinturão,1 não era nem pobre nem estúpido. Possuía, segundo diziam alguns, poderes mágicos. Ele usava estes poderes para o bem de todos os seres, mas — e isto era o essencial do caso — se alguém ousasse criar-lhe dificuldades, ele podia desviar seus poderes mágicos para outros usos, e acabar, assim, com qualquer oposição. Era conhecido por todo o mundo como o "transformador do tempo".

Se alguém tivesse podido ver, por acaso, o que continham a chuba e o surrão do transformador do tempo, teria descoberto muitos tesouros, pois, ao não ter residência fixa, ele viajava com todos os seus pertences de um povoado a outro. Vê-lo celebrar uma cerimônia era algo que ensinava muito, e o povo se congregava para observar quando o transformador do tempo parecia entrar num estado de transe, golpeando o seu tambor com ritmos sempre cambiantes e fazendo gestos com a mão livre2 para invocar o poder dos deuses. Sentava-se horas cantando em oração com uma voz grave e profunda que parecia provir das próprias entranhas da terra, pedindo aos deuses que derramassem seu poder e sua bênção sobre os que assistiam à cerimônia. O sorriso do transformador do tempo era como o sol. Todo o seu rosto se iluminava e seus olhos refletiam um calor que ninguém podia deixar de perceber.

Certo dia, depois de terminar uma cerimônia de bênçãos sobre uma família, o transformador do tempo apanhou os obséquios de comida que a família lhe ofereceu e se dispôs a dirigir-se para outro povoado situado a várias jornadas de marcha. Enquanto isso acontecia, o transformador do tempo era observado por uma lebre muito grande, a qual, com os olhos cheios de avidez e o estômago protestando de fome, contemplava o homem e a sua comida com inveja.

"Vou encontrar um modo — pensou — de roubar a comida desse trapaceiro esfarrapado". E, assim, com a cabeça ocupada em elaborar um plano, a lebre seguiu o transformador do tempo em sua viagem.

Não haviam chegado muito longe ainda, quando a lebre ouviu um bater de asas e sentiu umas delicadas patas pousarem-se nas suas costas. Era uma urraca.

— Olá, lebre, disse a urraca. Você tem podido achar comida?

— Não, respondeu a lebre, e estou fraca e faminta. A comida anda muito escassa.

— Sei disso muito bem, minha amiga — disse a urraca. Vamos viajar juntas; quem sabe, assim, a nossa sorte muda.

Dito isso, a urraca levantou vôo e seguiu a lebre em sua viagem.

No dia seguinte, a lebre e a urraca se encontraram com um raposo. A urraca se perturbou e ficou subindo e baixando pelo ar.

— Este raposo me está parecendo muito fraco — disse a urraca à lebre. Se ele morrer, poderemos nos dar um banquete de carne de raposo.

— Olá, raposo! — disse a lebre. Aonde você vai?

O raposo levantou a cabeça e falou assim à lebre:

— Tenho muita fome e meus filhos também.

Ando buscando comida.

— Venha conosco — disse a lebre —, se formos juntos a situação pode melhorar.

E assim, a lebre, a urraca e o raposo caminharam juntos, mas somente a lebre sabia que estavam seguindo os passos do transformador do tempo.

Por fim, chegaram a um bosque, cuja sombra das árvores foi um alívio para os três animais. A urraca se deteve para pegar algumas bagas de um arbusto, mas estas não foram do agrado da lebre e do raposo, que afastaram seus focinhos com repugnância.

Foi aí que, atrás de uma grande árvore, enxergaram a imponente figura de um lobo. Petrificados de terror, a lebre e o raposo permaneceram totalmente imóveis; quanto à urraca, guinchando atemorizada, levantou voo e foi pousar-se no ramo mais alto de uma árvore. O lobo, perturbado pelo barulho da urraca, virou-se e ficou diante do olhar assustado dos outros dois animais.

— Não se assustem — grunhiu o lobo —, sou demasiado velho para caçar.

A lebre avançou cautelosamente, pouco a pouco:

— Como você come se não pode caçar?, perguntou.

— Esse é o problema — respondeu o lobo —, pois tenho filhotes para alimentar. E baixando os olhos tristemente, acrescentou: Já não sou tão forte e veloz como era.

— Venha conosco — disse a lebre, com seus grandes olhos brilhando de emoção —, tenho um plano que pode ser de ajuda para todos nós.

— E qual é o plano? — perguntou a urraca, que tinha abandonado seu lugar seguro para participar da conversa.

— Vocês vão ver — disse a lebre. Na nossa frente está indo um transformador do tempo.

— Um transformador do tempo! — repetiram em coro os demais animais. E de que modo ele pode ser de ajuda para nós?

— O transformador do tempo não é um homem pobre — prosseguiu a lebre. Já o tenho visto guardar muita comida nas suas bolsas.

Ao ouvirem isto, os demais animais experimentaram um súbito interesse.

— Pois bem, o que eu sugiro é que você, amigo — disse indicando o raposo —, se deite numa vala e finja estar morto. A urraca fará ruído para atrair o transformador do tempo para você. Quando ele deixar suas coisas para ir ver você, o lobo e eu, que somos os mais fortes, lhe tiraremos as coisas e escaparemos.

— Mas, que acontecerá se ele me apanhar e me matar? — perguntou o raposo, que preferia não ser quem iria ficar na vala.

— Ele não vai apanhar — piou a urraca. Você pode saltar por cima das suas costas e escapar.

De má vontade, o raposo concordou com o plano:

— Mas, primeiro, disse, temos que alcançar o transformador do tempo, e nenhum de nós está podendo ir tão depressa, devido à nossa fraqueza por falta de comida.

A lebre esteve um momento pensativa e logo disse:

— O transformador do tempo se dirige a um povoado próximo. Pois bem, se formos pelo rio, o alcançaremos antes que ele chegue ali.

Os animais se dirigiram ao rio e, por sorte, encontram um grande tronco que boiava perto da margem. A lebre, o raposo e o lobo subiram ao tronco e logo deslizaram pela água em velocidade crescente, enquanto a urraca voava sobre suas cabeças, pronta para avisá-los quando divisasse o transformador do tempo.

Quando a urraca viu que já haviam passado na frente do transformador do tempo um trecho considerável, fez sinal aos animais para que descessem à terra. Isto não foi nada fácil, pois se viram obrigados a abandonai" o tronco e a alcançar, nadando à margem — uma experiência da qual a lebre poderia muito bem ter-se poupado.

Tal como a lebre havia planejado, o transformador do tempo, ao ouvir os gritos da urraca e ao vê-la voando sobre uma vala, deixou suas coisas e se aproximou para investigar. Quando viu o raposo esticado no fundo da vala, pensou que devia estar morto. "Tem um bonito pelo — pensou o transformador do tempo —, vou esfolá-lo". Mas, justo no instante em que introduzia a mão em sua chuba para pegar a faca, o raposo, incapaz de permanecer quieto um minuto mais, saltou fora da vala e escapou.

E, quando o transformador do tempo, surpreso, se virou para ver o raposo fugindo, pôde ver, também, rapidamente, o lobo e a lebre que desapareciam ao longe, levando as coisas dele, e eram seguidos nisso pelo raposo e pela urraca, afogueados.

Quando os animais se sentiram seguros, detive-ram-se para repartir os pertencentes do transformador do tempo. A astuta lebre se encarregou dos trâmites. À urraca deu o chapéu do transformador do tempo. Ao lobo deu as botas; e ao raposo, o grande tambor ritual. Para si mesma, deu-se toda a comida.

Os animais ficaram tão contentes com suas novas posses, que nem perceberam que haviam sido enganados pela astuta lebre, e todos partiram alegres, cada qual segurando firmemente seus mal-ad-quiridos lucros.

Mas, nem tudo saiu bem para os animais. O lobo, com suas botas novas, saiu para caçar ovelhas. Mas, impossibilitado por seu pesado calçado de correr ligeiro, tropeçou, e quase acaba morto ao ser pisoteado pelas ovelhas.

A urraca, com o enorme chapéu que quase lhe cobria o corpo inteiro, sentou-se embaixo de um iaque. Este lhe soltou um "bolo" enorme em cima do chapéu, apanhando a urraca e causando-lhe quase a morte por asfixia.

O raposo foi para a sua casa a reunir-se com a família, que esperava ansiosamente o seu regresso. Sua mulher e seus filhos se encontravam numa ponte que passava por cima de um impetuoso rio, esperando para dar-lhe boas-vindas. Ao aproximar-se da ponte e ver a família esperando-o ali, o raposo se pôs a golpear o seu tambor ritual tão fortemente, que seus filhos, assustados, se atiraram ao rio e se afogaram.

  Pouco tempo depois, todos os animais voltaram a se reunir. O raposo, a urraca e o lobo contaram seus infortúnios, mas a lebre permanecia sentada em silêncio, à sombra de uma grande árvore. Depois que os animais contaram suas histórias, todos eles se voltaram com ansiedade para a lebre. Esta falou assim:

— Amigos meus, cometemos um erro grave. O transformador do tempo tem poderes mágicos e, ao roubarmos seus pertences, atraímos a desgraça sobre nossas próprias cabeças. Vocês todos pensaram que saíram prejudicados, mas, olhem só para mim. E, dizendo isto, a lebre saiu da sombra da árvore que a havia mantido oculta até então. Também eu saí prejudicada, disse, pois. enquanto comia a comida do transformador do tempo, parti o lábio.

Os animais ficaram sem fala ao verem a rachadura no lábio da lebre, que chegava até o nariz. E a lebre continuou:

— Assim, todos os seres, humanos ou animais, quando me virem, saberão que fazer o mal somente traz sofrimentos para aquele que o faz.

E até hoje, passadas tantas gerações, a lebre leva ainda no lábio o sinal herdado de sua astuta antepassada.
________________________
Notas
1. Trata-se, respectivamente, do damaru (palavra da mesma origem que "tambor", e o kapâla (aparentada com o grego kephalé, "cabeça"). O primeiro é um objeto ritual, que reproduz o "som da imortalidade". O kapâla (tibetano, thod pá) é o crânio de libações que contém a água da vida, objeto simbólico que vemos, na iconografia tibetana, acompanhando figuras como Padmasambhava ou Naropa, o mestre de Marpa, ou divindades terroríficas como Mahâkâla ou Cakra-samvara. 2. Trata-se de mudrás (tibetano, phyag-rgya), gestos rituais executados com as mãos. O sentido literal desta palavra é o de "carimbo", e, por analogia, designa uma atitude interior conformada a uma realidade arquetípica. Encontramos estes gestos nas íóguicas, na dança e na iconografia hindus, cuja essência, comum às três, foi "transvasada" ao budismo, onde encontrou uma plasmação quase sacramentai na imagem de Buda.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXI

Em A corte do Sr. Lyon, de Angela Carter, o príncipe tinha a “cabeça de leão; juba e fortes patas de leão; erguia-se nas patas traseiras como um leão furioso, mas vestia um smoking de veludo vermelho-escuro e era dono dessa casa maravilhosa e das colunas que a rodeavam” (CARTER, 1999, p. 68). Percebe-se que a descrição de Carter em nada representa o estereótipo de homem perfeito e ideal. Aliás, nem sequer é homem, na verdade é um animal, aparentemente feroz, mas a aparência de nada importa se o mesmo veste-se elegantemente e possui muitos bens. Estes são os valores sociais cultuados pela humanidade.

Carter, em A corte do Sr. Lyon, aproveitou a descrição de Branca de neve para compor sua personagem que, na verdade, chamou-se Bela, uma vez que a escritora utilizou-se do enredo de A Bela e a Fera e, além disso, rememorou um trecho de As aventuras de Alice no país das maravilhas para estruturar a sua narrativa.

Esta linda moça, com uma pele que tinha a mesma luz interior, como se ela, também, fosse toda feita de neve [...] (CARTER, 1999, p. 63) Nem sequer dinheiro teve para comprar para a sua Bela, para a sua menina, para a sua querida, a rosa branca que ela tinha pedido; a única prenda que ela queria, sem se importar com o que pudesse vir a acontecer, sem se importar com ele poder vir a ser de novo muito rico [...] (CARTER, 1999, p. 64)

[...] Em cima da mesa, uma travessa de prata; no gargalo de uma garrafa de uísque, uma placa com a inscrição BEBA-ME, e a tampa da travessa de prata tinha gravado COMA-ME em letra cursiva [...] (CARTER, 1999, p. 66)
                     
A corte do Sr. Lyon também é “um conto de fadas”, desse modo havia sinais de encantamento nos portões e nas portas do castelo, que facilitaram a passagem do viajante, pai de Bela. Isso faz lembrar Rosinha dos espinhos, de Grimm e A Bela dormindo no bosque, de Perrault, uma vez que ambos os príncipes embrenharam-se em cercas-vivas para entrar no castelo e, como magia, elas se abriam, fechando-se após eles passarem.

Bela gostava muito de ler e era uma moça humilde. Na verdade, seu pai já tinha sido rico, mas perdeu tudo em jogos de cartas. A partir dessa atitude inconsequente do pai e de muitas outras mostradas no decorrer da história, percebe-se o seu espírito fraco e inexpressivo.

Bela não presenciou a riqueza e nem viveu nela, pois ainda não havia nascido. Sua mãe falecera ao dar à luz a menina. Assim como a personagem Bela de Beaumont, a Bela de Carter também era dotada de sentimentos nobres e, talvez por ser órfã de mãe, tinha real adoração pelo pai. Em consequência disso, faria qualquer coisa para ajudá-lo e vê-lo feliz: “Não que ela não tivesse vontade própria; mas tinha um invulgar senso de obrigação e, além disso, era capaz de ir até os confins do mundo pelo pai, a quem amava profundamente” (CARTER, 1999, p. 70).
Nesse conto, a história original (hipotexto) e a recriada (hipertexto), como é de se esperar, cruzam-se incessantemente, contudo, o surpreendente no conto recriado é a Fera tornar-se uma herbívora, pois perdeu a coragem de caçar animais para se alimentar.

- Estou morrendo, Bela - disse ele, num murmúrio fendido do antigo ronronar. - Tenho estado doente desde que você foi embora. Já não conseguia caçar, vi que já não tinha coragem de matar aqueles delicados animais, já não conseguia comer. Estou doente e vou morrer, mas morro feliz, porque você me veio dizer adeus. (CARTER, 1999, p. 78-79)                     
E, no final, como no conto original, a metamorfose acontece, o encanto que o havia tornado animal acaba. De outro modo, o encanto poderia ter se iniciado, uma vez que a Fera se tornou num belo homem e, a partir daí, poderia se sugerir um novo recomeço para a história.

Segundo Maria Tatar, em versões subsequentes à original nem sempre se encontra a explicação sobre o príncipe ter sofrido tal encantamento que o transformou em uma fera, mas no conto de Beaumont, menciona-se que uma fada má o havia enfeitiçado e o transformado em animal.

[...] Poucas versões da história explicam por que o príncipe sofreu encantamento. Em algumas delas, a razão é sua arrogância, ou sua falta de caridade para com uma mulher. (TATAR, 2004, p. 82)

Uma fada má condenou-me a viver sob essa forma até que uma bela moça consentisse em me desposar [...]. (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 82)
                     
Já em A noiva do tigre, Carter situa o conflito do conto em sua frase inicial: “Meu pai perdeu-me num jogo de cartas para a Fera” (1999, p. 83). Na verdade, ambos os contos, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, abordam a história de A Bela e a Fera. Desse modo, o nome da personagem-protagonista é o mesmo, além de ambas serem órfãs de mãe.

Em A noiva do tigre, a razão da morte da mãe de Bela foi o vício do pai, sendo que ele perdeu tudo em jogo, até mesmo o dote recebido pela família da noiva, quando se uniram em casamento. Neste caso, a escritora revive um antigo costume, estipulado por preceitos patriarcais, em que o casamento se efetivava mediante pagamento.

Assim como Barba-Azul, a Fera de A noiva do tigre disfarçava-se de humano, usando máscara e peruca. Desse modo, Carter ironiza a representação dos papéis masculinos, mascarados em falsos príncipes, porém perceptíveis aos olhos femininos.

[...] Ah! Sim, uma linda cara; mas com demasiada simetria para ser inteiramente humana: o perfil da máscara é a imagem perfeita do outro lado, demasiado perfeita, misteriosa. Usa também uma peruca, de cabelos não verdadeiros, atada na nuca por um grampo, uma cabeleira como as que se vêem em retratos antigos. Um lenço de seda pura preso por uma pérola esconde-lhe o pescoço. E luvas de pelica castanha, tão grandes, todavia, que não parecem esconder mãos. (CARTER, 1999, p. 86-87)                     
Já a personagem Bela, em A noiva do tigre, desde a infância se mostrava diferente, ou melhor, não se portava como as demais meninas. Era bastante vivaz e rebelde, o que incomodava suas babás. Além disso, apreciava boas leituras. Segundo Maria Tatar, tratando-se de Bela, não era nada comum apresentar-se personagens de contos de fadas como leitores.

[...] É inusitado para personagens de contos de fadas aperfeiçoarem-se através da leitura. A maioria deles é relegada a trabalhos servis em casa, ou parte em viagens pelo mundo. (TATAR, 2004, p. 66)                     
No conto de Beaumont, Bela é desmedidamente nobre de coração, a ponto de se sentir feliz por trocar a sua vida pela de seu pai, acrescentando que nunca foi muito apegada à mesma e seria uma forma de provar a sua afeição por ele. Ainda, no conto de Beaumont, Bela tem duas irmãs. Já no conto contemporâneo de Carter a protagonista é filha única. No entanto, em Beaumont, a atitude de Bela em relação às irmãs que só a maltrataram é surpreendente, uma vez que ela as perdoa sem nenhum ressentimento. A respeito disso, Tatar menciona:

[...] Como algumas Cinderelas (a de Perrault, para citar um exemplo), Bela estava pronta a perdoar as irmãs, por mais perversas que tivessem sido. Nos contos populares orais, Belas e Cinderelas tendem a ser menos magnânimas. (TATAR, 2004, p. 74)                     
Em A noiva do tigre, com o passar do tempo, a menina Bela cresceu e as suas características percebidas na infância afloraram em uma personalidade forte, decidida, inviolável, virgem. Tanto que Bela não aceitava a situação de ter sido vendida, trocada em jogo para a Fera. Dessa forma, a escritora aborda os temas como prostituição, dinheiro, casamentos negociáveis e desprovidos de sentimentos.

Muitas passagens presentes no conto A noiva do tigre são reminiscências do conto original, o hipotexto, como a visão do pai de Bela pelo espelho; a eclosão do fogo dentro e fora da lareira; o oferecimento da roupa para cavalgar ou a roupa limpa, pronta para ser usada; o desejo de Bela ver seu pai, entre outras.

Em A garota da neve, Carter seguiu seu estilo próprio, recortando passagens de outros contos de fadas e inserido-as em sua recriação, tais como Branca de Neve (de Jacob e Wilhelm Grimm), de que a autora aproveitou o título também para compor sua obra, além de Sole, Luna e Talia (de Giambattista Basile).

Em Grimm, o conto se inicia com o desejo de a rainha ter um filho, seguindo características determinadas pela futura mãe. Em Carter, o conde deseja ter uma garota conforme caracterizações semelhantes às da rainha do conto de Grimm. No entanto, o conde não deseja uma filha, mas uma amante, pois ele se apresentava cavalgando com a esposa ao lado.

[...] ela estava sentada a costurar, junto de uma janela com uma moldura de ébano. Enquanto costurava, olhou para a neve e espetou o dedo com a agulha. Três gotas de sangue caíram sobre a neve. O vermelho pareceu tão bonito contra a neve branca que ela pensou: “Ah, se eu tivesse um filhinho branco como a neve, vermelho como o sangue e tão negro como a madeira da moldura da janela” [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 86)
- Gostaria de ter uma garota branca como a neve - diz o conde.
Continuam a cavalgar. Chegam a um buraco na neve, cheio de sangue. Ele diz:
- Gostaria de ter uma garota vermelha como o sangue.
Continuam a cavalgar; um corvo está pousado num galho nu.
- Gostaria de ter uma garota negra como as penas de corvo. (CARTER, 1999, p. 161)
                     
Ao final das falas, o conde obteve o objeto de seu desejo, a garota da neve. Assim como a rainha que, pouco tempo depois, deu à luz a uma menina. No entanto, a garota da neve, tal qual Cinderela, sofre provações advindas não da madrasta, mas da condessa, esposa do conde.

Em A garota da neve, a moça perece em uma das provas impostas pela condessa. Como em Sole, Luna e Tália, a garota da neve, espeta o dedo em uma roseira e morre e, mesmo estando morta, ela é abusada sexualmente pelo conde, na presença de sua esposa. Em seguida, ambos partem. Cena semelhante é narrada em Sole, Luna e Tália, uma vez que a princesa havia espetado “uma lasca de linho debaixo da unha” (BASILE, 1996, p. 53) e se encontrava adormecida. O rei, que também era casado, entrou no castelo e, encontrando-a sozinha e encantada, estuprou-a, posteriormente, esquecendo-se do ocorrido.

No primeiro conto, O quarto do Barba-Azul, há a presença marcante da mãe da protagonista. Nos dois subseqüentes, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, as protagonistas eram órfãs de mãe e, no último conto, A garota da neve, não se faz menção aos pais da moça.    Maria Tatar, a respeito disso, comenta que muitas narrativas enfocam essa temática, visando enaltecer a benevolência de uma mãe morta, em contrapartida vê-se uma madrasta cruel que se encontra viva.

[...] Os contos de fadas muitas vezes cindem a figura materna em dois componentes: uma mãe boa, morta, e uma madrasta malévola, viva. Isso permite às crianças preservar uma imagem positiva da mãe ao mesmo tempo em que se entregam a fantasias sobre a maldade materna. (TATAR, 2004, p. 96)                     
De acordo com o que já foi visto, é possível afirmar que o texto literário é o reflexo social e histórico da humanidade, uma vez que perpassam nele situações isoladas, somando-as, arrematando-as em um único contexto, o próprio texto, que nada mais é que um processo intertextual. E o interessante é que nesses dois últimos séculos as mulheres não escreveram somente contos de fadas, mas a história social, a sua trajetória de vida. E, mais especificamente, quanto aos contos analisados de Carter, percebe-se a verdadeira identidade feminina.

Carter comprovou que não é mais concebível considerar as mulheres como “cidadãs de segunda classe”, uma vez que suas personagens protagonizam seus papéis na ficção e na vida real. Além disso, a escritora desconstruiu a velha imagem da figura feminina, recriando a mulher contemporânea. Essa não é princesa e nem admite parecer-se como tal. É uma mulher normal que deseja tomar as rédeas de seu destino, buscando a felicidade.

Na verdade, a escritora emancipou a figura feminina de um longo período de dependência masculina. E, agora, considerada independente, a mulher quer desfrutar de seus direitos. Junto a Carter, as escritoras Drabble e Extrebarría também engajaram-se  no processo de composição da identidade feminina, o que será visto no subcapítulo seguinte.

continua…

Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Coisa de amigo)

No bar aonde nunca vou, um amigo me espera. Tem olhos que me entendem como eu sou, mãos que apertam como se deve as minhas. Esse bar é muito longe de onde moro. Não sei sequer onde fica. Fico de olho nas ruas onde passo de ônibus. Não fica lá. Longe, deve estar mais perto do céu que da terra onde estamos.

Conta coisas meio bobas, passadas há muito, quando nem nos conhecíamos. Logo que enche o bar, felizes por estarmos bem, paramos tudo e cantamos alto as canções mais belas daqui, onde canta o sabiá. Se eu fosse um passarinho, voava para perto desse bar, que se esconde numa nuvem qualquer, "às barbas" de Noé.

De vez em quando, se essa vida fica feia, chora baixo, em frente a mim, que o reconforto com palavras de esperança, como um velho missionário, sem saber que sou aquele que professa a própria fé: coisa de amigo. Minha fé, como todo credo, nasce das lágrimas de Deus, das páginas dos homens, das máximas de mim, que sou autor de minha história (mesmo que até a página dois...). Depois, mais firme, com um sorriso em seus olhos, fala de tanta coisa de que se havia esquecido, tanta coisa importante que deixara de lado, com propósito, sendo adulto, de voltar a menino.

Na poeira de meus tênis surrados, de meus olhos cansados, de meus lábios silentes, tem um pouco da poeira do chão, dos móveis e da eterna despensa daquele bar aonde nunca vou. Nele, um amigo, o amigo me espera. Falamos de versos, de Bossa e de Vinicius, sem vontade de sair de lá, de deixar que esse pó nos cubra e nos descubra como seres que se afinam nos acordes da memória, que, falha, fura a fila da existência e bebe um pouco desse álcool, desse etílico da amnésia. Esquecer, muitas vezes, é o único remédio: coisa de amigo. Amigo, anônimo, num bar, meu lar.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://paposdebar.blogspot.com.br/