domingo, 29 de janeiro de 2017

Folclore Japonês (Kaguya Hime: A Princesa da Lua)

A lenda da Princesa Kaguya também conhecido como o Conto do Cortador de Bambu, cujo título original é Taketori monogatari, data do Século X, é considerada a mais antiga narrativa japonesa existente. 

Kaguya-Hime: A Lenda

Há muito, muito tempo atrás, viveu um homem conhecido como O Velho Cortador de Bambu, ou “Taketori”. Todos os dias, andava entre os campos e as montanhas para colher bambus que, depois, transformava em lindos cestos e nos mais variados artigos. Seu nome era Sanuki no Miyatsuko.

O ancião e sua velha esposa viviam juntos numa casa no meio da floresta. Eles eram muito pobres e solitários, pois não tinham filhos para criar.

Um belo dia, enquanto estava na floresta, o velho Sanuki percebeu entre os bambus um talo cuja base brilhava intensamente. Achando aquilo muito estranho, aproximou-se para examinar melhor e viu uma luz intensa dentro do talo oco. Ele ficou espantado, pois, em anos e anos de trabalho, nunca havia visto algo como aquilo. Muito curioso, ele cortou o bambu e mal pôde acreditar no que viu. Dentro do talo, havia uma garotinha encantadora, com cerca de dez centímetros de altura.

“Uma menina, uma menina! Tão pequena e tão linda, só pode ser um presente dos Deuses!” -Disse o velho homem  – “Eu a descobri porque você estava aqui, entre os bambus que vejo todos os dias. Isso deve significar que você está destinada a ser minha filha.”

Então, ele pegou a frágil garotinha na palma de suas calejadas mãos e a levou para casa, entregando-a aos cuidados da sua esposa para que a criasse. Ao ver a menina, a velha senhora também ficou muito contente e encantada com a criança que possuía uma beleza incomparável, e era tão pequena que eles a colocaram num cesto para protegê-la.

Depois desse dia, por várias vezes, quando o Velho Cortador de Bambu recolhia os bambus, encontrava alguns talos recheados de moedas de ouro que ele juntou e juntou e, dessa forma, tornou-se um homem rico e importante na região. Pouco a pouco, Sanuki abandonou sua rotina de andar pelos campos para cortar bambus, porém, permaneceu sendo tratado e conhecido pelo antigo ofício: o Cortador de Bambu.

Kaguya Hime crescia muito rápido e a cada dia parecia mais bonita. Menos de três meses depois da sua chegada, a pequenina já era alta como uma adolescente. Até então, durante dias e noites, os pais, preocupados com a sua segurança, sequer tinham permitido que a filha saísse de seu quarto protegido por enormes cortinas.

Ninguém poderia acreditar que uma pessoa tão bonita pertencesse a este mundo. A menina tinha uma pureza de traços sem igual no mundo inteiro, e sua presença iluminava a casa com uma luz intensa que não deixava nem um canto na penumbra. Além disso, todas as vezes que o velho homem se sentia desanimado, com alguma dor ou até mesmo com raiva, bastava olhar para a criança e tudo passava. Diante dela, tudo ficava perfeito.

Ao alcançar o tamanho de adulta, um homem sábio de Mimuroto, de nome Imbe no Akita, foi convidado a dar a jovem um nome de mulher. Akita a chamou de “Nayotake no Kaguya-hime”, a Princesa Resplandecente do Bambu Flexível.

Os pais, que cuidavam dela amorosamente, decidiram celebrar o acontecimento com sua entrada na vida adulta. Para a comemoração, a jovem foi cuidadosamente preparada. Seus cabelos foram penteados para cima e a vestiram com trajes longos, de modo que a sua beleza foi ainda mais realçada.

A princesa Kaguya-hime estava deslumbrante. Sua festa, engrandecida por atrações de todos os tipos, durou três dias inteiros. Homens e mulheres foram convidados e se divertiram largamente.

Logo os comentários sobre a beleza da Kaguya Hime se espalharam e vinham jovens de todos os cantos do país para conhecê-la. Todos, encantados com a bela jovem queriam se casar com ela, mas Kaguya não queria se casar com ninguém. “Quero ficar ao lado de vocês dois”, dizia a jovem para seus velhos pais.

Mas cinco jovens nobres, de posições importantes, foram mais persistentes. Eles acamparam em frente à casa de Kaguya Hime e pediam uma chance a ela.

Preocupado, o velhinho chamou Kaguya e disse: “Minha filha, eu gostaria muito de ter você sempre por perto, mas acho justo que se case. Escolha um dentre os cinco rapazes que estão acampados aqui”.

Assim, depois de refletir, a linda jovem decidiu. “Eu me casarei com aquele que me trouxer o objeto mágico que pedirei”.

Um colar feito com os olhos de um dragão, um vaso feito com pedras dos deuses que nunca se quebra, um manto de pele de animal forrado de ouro, um galho que faz crescer pedras preciosas, um leque que brilha como a luz do sol e uma concha que a andorinha põe junto com seus ovos. Estes foram os objetos que Kaguya Hime pediu.

O velhinho levou os pedidos de Kaguya aos pretendentes acampados. Ele sabia que seria muito difícil conseguirem obter tais objetos. Qual não foi sua surpresa quando, ao final de alguns meses, todos os pretendentes trouxeram os presentes para Kaguya. Mas, quando eles foram obrigados a entregá-los a jovem, todos admitiram que os presentes eram falsos, pois conseguir os verdadeiros era uma missão muito difícil. E assim, nenhum deles obteve êxito.

Com a falha de todos os cinco príncipes, Kaguyahime, o velho taketori e sua esposa viveram tranquilos e felizes por uns tempos, como uma família unida. Mas as histórias sobre os feitos e falhas dos príncipes percorreram todo o Japão e chegaram ao ouvidos do imperador.

Este ficou então curioso e fascinado pelos relatos sobre a beleza da princesa, e se interessou em conhecê-la, enviando até seu pai então, um convite para que comparecesse a sede imperial.

Mas mesmo o convite do imperador foi rejeitado pela jovem, o que o irritou e o fez enviar então uma ordem convocativa. Temendo o imperador o cortador de bambu aconselhou à filha que obedecesse, mas ela surpreendeu a todos mais uma vez declarando que não obedeceria a ordem e que nem poderia, pois caso se afastasse de casa, iria dissolver-se em fumaça e desaparecer.

Dessa vez o Imperador não se enfureceu devido a justificativa, mas ficou ainda mais interessado, passaram então a trocar correspondências frequentemente e acabaram se tornando amigos, mas sempre adiando uma oportunidade de se conhecerem, enviando um ao outro poemas e contos. E assim, a família do taketori permaneceu em paz por alguns anos a mais.

Quatro primaveras haviam se passado desde que Kaguya fora encontrada no broto de bambu. Mas ela ficava mais triste a cada dia. Noite após noite, Kaguya Hime olhava para a lua, suspirando. Preocupado, o velho pai um dia perguntou: “Por que está tão triste minha filha?”. “Eu gostaria de ficar aqui para sempre, mas logo devo retornar.” Disse a jovem. “Retornar, mas para onde? O seu lugar é aqui conosco, nunca deixaremos você partir.” Disse o pai aflito. “Este não é o meu reino, eu sou uma princesa de Reino da Lua e, na próxima lua cheia, eles virão me buscar”. Completou tristemente a princesa.

Muito assustados com a reveladora confissão de Kaguya Hime, os velhinhos decidiram pedir ajuda ao imperador do reino onde viviam. O Imperador, em ajuda, prontamente enviou muitos guardas para vigiarem a casa do casal. Um verdadeiro exército foi formado.

No dia seguinte, a temida noite de lua cheia chegou. A casa estava tão vigiada que parecia impossível alguém conseguir levar Kaguya Hime. De repente, uma enorme luz surgiu no céu, como se milhares de luas estivessem presentes ao mesmo tempo.

A luz era tão intensa que ninguém conseguiu enxergar a carruagem que descia, guiada por um grande cavalo alado e muitos seres ricamente trajados. Depois de algum tempo, quando a luz diminuiu, a carruagem já estava voando, em direção à lua. Kaguya Hime não estava mais presente, ela fora junto com a comitiva celestial. A comitiva celeste levou Kaguya-hime de volta à Tsuki-no-Miyako (A Capital da Lua), deixando seus pais adotivos da terra em lágrimas.

Os velhos pais ficaram muito tristes, inconformados voltaram ao aposento de Kaguya e encontraram um potinho, presente da filha querida. Ela havia deixado um pó mágico, uma pequena amostra do elixir da vida que garantiria a vida eterna para os dois.

Mas, sem sua filha amada, os velhinhos não tinham motivo para viver para sempre. Eles recolheram todos os pertences de Kaguya e levaram para o monte mais alto do Japão. Lá, queimaram tudo, junto com o pó mágico deixado pela jovem. Uma fumaça branca foi vista subindo ao céu naquele dia.

A montanha era o Monte Fuji. A lenda diz que a palavra imortalidade (fushi ou fuji) tornou-se o nome da montanha, “Monte Fuji”. Dizem, que ainda hoje, é possível ver a fumaça branca subindo em direção ao céu.

Fonte:  Myths and Legends of ancient Japan in Caçadores de Lendas 

Clarice Lispector (A entrevista alegre)

Há pouco tempo uma moça me telefonou dizendo que era da Editora Civilização Brasileira e que Paulo Francis me pedia para dar uma entrevista a ser publicada num dos livros da série Livro de cabeceira da mulher. Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras. Mas tratava-se de um pedido de Paulo Francis, e não havia como negar. Marquei o dia. E depois fiquei furiosa, até com Paulo Francis. Como é então? O Livro de cabeceira da mulher vende como pão quente e eles ganham dinheiro. A moça entrevistadora ganha dinheiro. E só eu tenho amolação. Tentei telefonar para Paulo Francis e desmarcar. Mas como? Se sou, como todo o mundo, vítima do telefone. Este ou não dava linha, ou dava e não estabelecia ligação. Afinal resignei-me. Mas vou me vingar, pensei, de um modo ou de outro vou me vingar.

Só que não pude nem tive vontade. Na hora marcada, entra-me pela porta adentro uma moça linda e adorável, Cristina. Tem um desses rostinhos difíceis de retratar, porque, apesar dos traços exteriores serem bonitos, o que mais importa são os interiores, a expressão. Estabelecemos logo um contato fácil. O que a fez me informar: também trabalhava para um jornal e seus colegas, ao saberem que ia me entrevistar, tiveram pena dela. Disseram que eu era fogo, que mal falava.

Cristina acrescentou: “Mas você está falando.” – Sim, falei – como resistir? O racionamento de luz começara, e Cristina, para ficar perto das duas velas que acendi, sentou-se no tapete, e já fazia parte da casa.

Suas perguntas eram inteligentes e complicadas, quase todas sobre literatura. Eu disse: mas pensei que o que interessaria à mulher de classe média seria se eu gosto de comer feijão com arroz.

Respondeu tranquila: “chegaremos lá. Aquilo era apenas o começo.” E fui me encantando com Cristina. É noiva. Que pena, pensei. Gostaria que ela ficasse bem sentadinha esperando durante muitos anos que meus filhos crescessem para um deles se casar com ela. Mas ela não pode esperar, meus filhos estão custando a crescer. Me conforto em recomendá-la como entrevistadora.

A entrevista começou com bom humor. Rimos várias vezes. Uma das vezes foi quando ela perguntou o que eu achava do que o crítico Fausto Cunha escrevera. Escrevera – e eu não sabia – que Guimarães Rosa e eu não passávamos de dois embustes. Dei uma gargalhada até feliz.

Respondi: não li isso, mas uma coisa é certa: embustes é que não somos. Podiam nos chamar de qualquer coisa, mas de embustes não. Ora essa, Fausto Cunha. Você, que conheci no casamento de Marly de Oliveira, é até simpático, mas que ideia. Veja se pensa um pouco mais no assunto. Acho que Guimarães Rosa também riria.

Cristina me perguntou se eu era de esquerda. Respondi que desejaria para o Brasil um regime socialista. Não copiado da Inglaterra, mas um adaptado a nossos moldes.

Perguntou-me se eu me considerava uma escritora brasileira ou simplesmente uma escritora. Respondi que, em primeiro lugar, por mais feminina que fosse a mulher, esta não era uma escritora, e sim um escritor. Escritor não tem sexo, ou melhor, tem os dois, em dosagem bem diversa, é claro. Que eu me considerava apenas escritor e não tipicamente escritor brasileiro. Argumentou: nem Guimarães Rosa que escreve tão brasileiro? Respondi que nem Guimarães Rosa: este era exatamente um escritor para qualquer país.

Cristina estava com tosse e eu também: mais um traço de união. A entrevista era entrecortada de acessos de tosse, e até isso serviu para quebrar a cerimônia. Além do mais nenhuma das duas estava tomando um xarope, e pelo mesmo motivo: preguiça; Minha vingança resumiu-se em também entrevistar Cristina. Fiz-lhe várias perguntas, às quais respondeu com simplicidade e inteligência. Sob o pretexto de mostrar-lhe retratos que fizeram de mim, percorri com ela o apartamento quase todo: Cristina era uma das minhas, e tinha o direito de me conhecer através de minha casa. Casa é muito reveladora. Entrou num dos quartos onde um de meus filhos estava deitado lendo à luz de uma vela. Ele nem se incomodou, tão simples é a presença de Cristina. Meu outro filho ia ao cinema com um amigo. E ele, que está na idade de mostrar que é independente da mãe, também não se perturbou em me dar um beijo de despedida, na frente da moça. O outro filho não se importou de interromper-nos para pedir dinheiro para comprar Manchete: era o anoitecer de uma quarta-feira. Terminei tão à vontade que estirei as pernas em cima de uma mesa e fui descendo pelo sofá abaixo até estar quase deitada.

Cristina, você representa o melhor da juventude brasileira. Dá orgulho. Quero que meus filhos um dia venham a ser assim.

Aliás uma pergunta que me fez: o que mais me importava – se a maternidade ou a literatura. O modo imediato de saber a resposta foi eu me perguntar: se tivesse que escolher uma delas, que escolheria? A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou mais importante do que como escritora.

Cristina disse-me: “O crime não compensa. A literatura compensa?” De jeito nenhum.

Escrever é um dos modos de fracassar. Cristina se surpreendeu, perguntou-me então por que eu escrevia. E eu não soube responder.

O engraçado é que a moça veio tão preparada para a entrevista que sabia mais sobre mim do que eu própria. Perguntou-me por que meus personagens femininos são mais delineados do que os masculinos. Protestei em parte. Tenho um personagem masculino que ocupa o livro inteiro, e que não podia ser mais homem do que era.

Cristina, um dia talvez eu a entreviste. Os estudantes universitários vão se identificar com você e quase todos pensarão em casamento. Que seu noivo tome cuidado. Também tenho um amigo que, se a conhecesse, ia se apaixonar do modo mais poético e real. Você é tão
necessária ao Brasil. Muitos rapazes e moças como você, e o Brasil iria para a frente.

Percebo que afinal estou tendo a minha vingança: a moça escreve sobre mim, mas eu vou e escrevo sobre ela. Aliás, Cristina, você quer jantar uma noite dessas comigo? É só me telefonar.

Você vai se casar com um diplomata, mas esse será um jantar não diplomático, na nossa copa provavelmente, pois continuo esquecendo de comprar uma campainha de chamar empregada e na certa não poderemos jantar na sala. Aliás, uma grande amiga dadivosa, mas distraída, disse que tinha mais de uma campainha e que me daria uma. Cadê? Distraio-me e não compro, ela se distrai e não me dá.

Perguntou-me o que eu achava da literatura engajada. Achei válida. Quis saber se eu me engajaria. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos. É possível que este meu lado ainda se fortifique mais algum dia.

Ou não? Não sei de nada. Nem sei se escreverei mais. É mais possível que não.

Perguntou-me o que eu achava da cultura popular. Eu disse que ainda não existe propriamente. Quis saber se eu a considerava importante. Eu disse que sim, mas que havia algo muito mais importante ainda: oferecer oportunidade de ter comida a quem tem fome. A menos que a cultura popular leve o povo a tomar consciência de que a fome dá o direito de reivindicar comida. Vide a nova encíclica que fala no recurso extremo à rebelião em caso de tirania.

Até breve, Cristina, até o nosso jantar. Você parece que também gostou de mim. O que é bom. Mas não sei por que, depois que li a entrevista, saí tão vulgar. Não me parece que eu seja vulgar. E nem tenho olhos azuis.

Fonte:
Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Os três tigres)

Nos últimos anos, nossa aldeia foi infestada por tigres, que devoraram muitas pessoas, mais do que se conseguiria contar. Viajantes que passavam por aqui diziam que isso acontecia também no resto da China.

Segundo muitos, os tigres errantes seriam enviados do céu, encarregados de procurar aqueles que tinham conseguido escapar do seu encontro com uma morte violenta. Outros afirmavam que debaixo da pele do tigre se escondem demônios ferozes, espíritos vingadores no estado de furor extremo. A verdade pode existir nessas duas explicações, mas nenhuma é tão estranha como a do velho Huang.

O velho Huang morava em Mixi, a alguns quilômetros do distrito de Qiao. Ele tinha três filhos grandes na força da idade. Na primavera daquele ano, ele ordenou que eles fossem lavrar o campo nas colinas e durante muitos dias eles saíam bem cedo e voltavam no fim da tarde.

Um dia um vizinho disse ao Huang:

— Teu roçado está cheio de mato.

— Como pode ser? - respondeu o velho Huang. Meus filhos passam lá, trabalhando o dia inteiro.

— Parece que não - respondeu o vizinho.

Intrigado, Huang decidiu seguir seus filhos. Na manhã seguinte, foi atrás deles. Logo que chegaram no bosque, no pé da colina, eles tiraram a roupa e a penduraram em galhos de árvore. Depois se transformaram em tigres, pulando e dando terríveis rugidos.

Aterrorizado, o velho Huang voltou depressa para a aldeia. Ele contou ao seu vizinho o que tinha visto e depois se trancou dentro de casa.

De noite, seus filhos voltaram. Esperaram muito, diante da porta fechada, mas ninguém respondia quando chamavam. No fim, o vizinho saiu e explicou que seu pai os renegava, depois do que tinha visto no bosque.

— O que ele viu foi verdade - reconheceram os rapazes. - Mas não fazemos assim por nossa vontade. É o mestre dos Céus que nos obriga.

Em seguida, o mais velho chamou seu pai.

— Pai, como poderíamos ser ingratos com o senhor? Sua bondade para conosco é sem limites. Ficamos desesperados por termos sido escolhidos já há tanto tempo para esse papel funesto. Nos últimos dias corremos por montes e vales, na esperança de encontrar alguém para pegar nosso lugar, porque não aceitamos a sorte que nos foi reservada. Não deu certo. Agora, mesmo com o senhor sabendo o que está acontecendo, não podemos desobedecer as ordens. No bolso de cima do meu casaco, pai, tem uma caderneta. Pega essa caderneta, pai, senão o senhor está perdido, e teremos nós três aqui assinado sua sentença de morte.

O velho Huang pegou a candeia e procurou no bolso de cima do casaco, de onde tirou a caderneta. Ele leu os nomes de todos aqueles que, no distrito, deviam ser mortos pelos tigres. Seu nome vinha em segundo lugar na lista.

— O que podemos fazer? — gritou, desesperado.

— Abre a porta, respondeu o mais velho. Acho que tem uma saída.

O velho Huang abriu a porta. O filho mais velho pegou a caderneta, e os três filhos, retendo os soluços, inclinaram-se diante do pai. Depois disseram:

— Que seja o destino do Mestre dos Céus. Agora, pai, veste quatro ou cinco calças e camisas, uma por cima da outra, mas não afivela o cinto. E agora, reza ajoelhado. Temos um jeito de salvá-lo.

O velho Huang obedeceu. Nem bem tinha se ajoelhado, seus três filhos já tinham virado tigres e caíram sobre ele com as garras afiadas. Com patadas e dentadas, cada um arrancou uma camada das roupas e foram embora rugindo, com farrapos de roupa na garganta.

Nunca mais eles foram vistos na aldeia, e o velho ainda hoje mora no mesmo lugar.

Fonte: 

4º Concurso do Projeto de Trovas Para Uma Vida Melhor (Trovas Premiadas)


5ª Etapa 
A Busca da Paz, do Equilíbrio em Sociedade.

Tema: Agressão

GRUPO 1

VENCEDORES

1º LUGAR
Troca os trapos da agressão
por vestes de amor profundo
e serás ''o cara'', então,
mais bem vestido do mundo!
Carlos Henrique da Silva Alves
(Senhor do Bonfim/BA)

2º LUGAR
Quando a injustiça é patente,
a palavra não dosada
pode ser mais contundente,
que a agressão, ou bofetada! 
Carolina Ramos
Santos/SP

3º LUGAR
Dizer palavras horríveis
– não há maior agressão!
Feito flechas invisíveis,
vão direto ao coração. 
Aparecida Gianello dos Santos
Martinópolis / SP

 MENÇÃO HONROSA

Mesmo com raiva não xingue,
busque a paz na relação.
Não faça da vida um ringue
para a troca de agressão. 
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

2
Toda agressão é violência
urdida contra um irmão...
Quem a usa com frequência
perde o direito e a razão! 
Myrthes Mazza Masiero
São José dos Campos/SP

3
É uma agressão desumana,
uma falta de respeito...
Num país com tanta grana,
hospitais faltando leito. 
Edy Soares
Vila Velha/ES

4
Toda agressão cometida
contra o ambiente, onde for,
reverte-se contra a vida
e atinge o próprio agressor... 
Antonio Augusto de Assis
Maringá/PR

5
O que é preciso fazer,
nesta contenda falaz,
para o mundo compreender
que agressão não gera paz? 
Joel Hirenaldo Barbieri
Taubaté/ SP

 MENÇÃO ESPECIAL

1
A pior agressão vem,            
findas as guerras verbais,
no silêncio de um desdém,
que ao coração fere mais. 
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/Japão

2
Demonstra não ter razão               
quem tenta, em qualquer contenda,
fazer uso da agressão,
seja o que for que pretenda.
Julimar Andrade Vieira
Aracaju/SE

3
Agressão é ferimento 
que machuca o coração.
E se atinge o sentimento...
não tem cicatrização. 
Paulichi
Atibaia/SP

4
Quem anda em busca da paz
deve ter como missão
desarmar-se, e isto se faz
não revidando agressão! 
Nemésio Prata Crisóstomo
Fortaleza/CE

5
O que será desse mundo
sofrendo tanta agressão,
por um povo que no fundo
só tem amor ao cifrão? 
Luiz Moraes
São José dos Campos/SP

DESTAQUE

1
Ao sofrer uma agressão,
o Mestre não revidava;
olhava com compaixão
o próximo a quem amava. 
Sonia Regina Rocha Rodrigues
Santos/SP 

2
Nem dá para relatar,
na polícia, as aflições;
o desprezo de um olhar
é a pior das agressões. 
Geraldo Trombin
Americana/SP 

3
Pelas agressões sofridas,
Jesus se compadeceu,
perdoou dores curtidas
e  por seu povo morreu. 
Olga Maria Dias Ferreira
Pelotas/RS

4
Felicidade é viver  
na alegria e na união;
no entanto, há quem tem prazer
de praticar a agressão.
Marina Gomes de Souza Valente
Bragança Paulista/SP 

5
Quando qualquer atitude,
for seguida de agressão,
o causador não se ilude:
não tem justificação! 
Nadir Nogueira Giovanelli
São José dos Campos/SP

GRUPO 2

VENCEDORES 

1º LUGAR
Eu acho uma crueldade,
até mesmo uma agressão,
o tamanho da saudade
que sinto no coração. 
Maria Lúcia Fernandes Rocha
São Fidélis/RJ

2º LUGAR
Mesmo o Pai nos dando a prova                
que devemos perdoar,
agressão que se renova
é difícil suportar. 
Ana Maria Nascimento
Araçoiaba/CE

3º LUGAR
Agressão é sentimento   
de profunda  autoridade,
mas acaba no momento
que o outro, mostra  humildade. 
Elenir Ferreira
Santos/SP

MENÇÃO HONROSA

Para educarmos o mundo,
temos que ter mansidão; 
pois o carinho profundo
repele sempre a agressão! 
Wanda Duarte
Ribeirão Preto/SP 

2
A agressão desfaz o amor
e grava na alma amargura.
Mas da paz vem o clamor  
com um gesto de ternura. 
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba/PR

3
A mãe Natureza roga
ao Criador proteção.
Mas, ao homem, interroga
o motivo da agressão. 
W. Mota
Taubaté/SP

4
Agressão contra mulher
ou criança dói-nos n'alma
O castigo que vier
será justo ou só acalma?
Angela Guerra
Rio de Janeiro/RJ

5
Irmão deve amar irmão,
sem agressão, sem rancor,
viver como bom cristão
e difundir muito amor. 
Claudio Morais
Taubaté/SP 

MENÇÃO ESPECIAL

1
Agressão de qualquer jeito
deve ser denunciada,
pois prevalece o direito
de ser sempre respeitada.
Maria Zilnete de Moraes Gomes
Campos dos Goytacazes/RJ 

2
Toda agressão prejudica
a pessoa que a recebe;
o agressivo não dá dica
da maldade que concebe. 
Mifori
São José dos Campos/SP 

3
Não importa a agressão
– seja física ou verbal –,
diga um veemente “Não!”,
seja exemplo fatual! 
George Gimenes
Ontario/Canadá

4
Depois de tanta agressão
com toda maledicência,
você me pede perdão
e quer que eu tenha clemência?!... 
Nair Lopes Rodrigues
Santos/SP

5
A nossa grande missão:
zelar, observar, cuidar,
qualquer tipo de agressão;
praticando o verbo amar! 
Leonir Aparecida Ligor Menegati
Dourados/MS 

DESTAQUE

1
Está o mundo agressivo,
no olhar a agressão, revolta...
É um olhar destrutivo,
que talvez, não tenha volta!... 
Lora Saliba
São José dos Campos/SP 

2
Mulher que sofre agressão, 
deve o mal já denunciar,
jogue o agressor na prisão
pra ninguém importunar.
Marcos Coelho
Dourados/MS 

GRUPO: ALUNOS

VENCEDORES 

1º Lugar
Agressão não é legal,
seja lá qual a razão,         
sendo física ou moral
maltrata alma e coração.
Leandro Sena Carvalho 
8º A – EM Profª Elza Farias Kintschev Real
Dourados/MS 

2º Lugar
Quando vir uma agressão  
não fique parado, olhando,
diminui o valentão,
diga-lhe que vá parando. 
Lucas Sampati Pereira 
 6º C – EM Profª Elza Farias Kintschev Real
Dourados/MS

3º Lugar
Eu não gosto de agressão,
ainda mais contra mulher
dá uma grande tensão
- O que essa pessoa quer? 
Luiz Fernando Dias Barbosa 
8º A – EM Profª Elza Farias Kintschev Real
Dourados/MS

MENÇÃO HONROSA

Eu sempre fui ameaçada,
sofri uma forte agressão.
Minha vida regaçada,
o meu caso: coração. 
Grabriela de Mattos Santos 
6º A – EM Profª Elza Farias Kintschev Real
Dourados/MS

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VI

Gabriela (Juliana Paes) e
Nacib (Humberto Martins)
A perspectiva estético-ideológica adotada e o seu compromisso seriam, recorrentemente, tematizados por Jorge Amado, em seus escritos. Essa insistente tematização se efetivaria das mais variadas formas discursivas. Seja através de entrevistas, seja como elemento de seu próprio discurso romanesco, como se observa em São Jorge dos Ilhéus (1940), ou como elementos paratextuais, como se verifica em Cacau:

Joaquim trata Sérgio com mostras de grande respeito, dá importância ao que o poeta faz e durante muito tempo negou-se a opinar sobre os seus poemas. Porém, certa vez, muito instado pelo poeta, perguntou-lhe por que ele escrevia poesia revolucionária numa forma que nenhum operário poderia ler. Sérgio levara semanas preocupado com o problema e foi devido a essa observação que mudara seus ritmos e procurava, agora, numa busca por vezes frutífera, os ritmos populares. (AMADO, 1981 2, p. 140 – grifos nossos)

Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 1980, p. 8)

Se, no fragmento de São Jorge dos Ilhéus, é o narrador amadiano quem expressa, através do personagem Joaquim, seu projeto escritural, estruturado em dois eixos solidários, o militante e o popular; na epígrafe de Cacau, seria o próprio Jorge Amado quem, revestido do poder autoral, revelaria a sua perspectiva estético-ideológica.

Tornada num leitmotiv crítico de realce da “pouca literatura” amadiana, a epígrafe de Cacau revela, antes de tudo, uma faceta do Modernismo brasileiro que, em suas várias vertentes complementares, busca novas formas de expressão, de redefinição do papel da literatura e do escritor, de reinterpretação da cultura e do homem brasileiro, numa continuidade que se processa via desvio, via descontínuo, ou pelo endosso das velhas soluções propostas, como observa Wilma Mendonça (2002, p. 20). Na realidade, “o mínimo de literatura” e o “máximo de honestidade” amadianos indiciam a busca literária do escritor nordestino em resolver a contradição que caracteriza nossa cultura, como afirma Antonio Cândido, como também o seu engajamento ao contexto escritural e social de sua época, como se apreende das palavras de Luiz Lafetá, em seu estudo sobre o projeto estético e ideológico do Modernismo e da análise de Eduardo Assis Duarte sobre a narrativa Cacau:

Talvez se possa dizer que os romancistas da geração de Trinta, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior [...] a massa começou a ser tomada como fator de arte, os escritores procurando opor à literatura e à mentalidade litorâneas a verdade [...] No trabalho de revelação do povo como criador, que assinalei atrás, nenhum escritor se apresenta de maneira mais característica do que o Sr. Jorge Amado. (CÂNDIDO, 1992, p. 45-49 – grifos do autor)

Decorre daí que qualquer nova proposição estética deverá ser encarada em suas duas faces (complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não obstante às vezes relacionadas em forte tensão): enquanto projeto estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) de sua época. [...] na verdade o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão-de-mundo (justificando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo [...] Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista. (LAFETÁ, 1974, p. 11-13 – grifos do autor)

O “mínimo de literatura” expressa, antes de tudo, oposição à retórica da pompa e circunstância, ao “falar difícil das classes dominantes e da tradição bacharelesca herdada do Império. Acoplado ao “máximo de honestidade”, soa como declaração de guerra à tradição ficcional idealizadora da vida no campo e porta-voz da ideologia do latifúndio. Uma literatura que propagava as imagens do bom senhor e do escravo contente, vivendo num ”paraíso” de fartura e inocência, livre de sofrimentos, longe das contradições. (DUARTE, 1995, p. 58 – grifos do autor)

Na verdade, em sua proposição modernista, Jorge Amado assenhora-se das linguagens populares da Bahia através das quais organiza a sua visão de mundo, em face dos problemas sociais do cenário nordestino. Nessa conjunção, se tornaria num dos escritores de maior repercussão popular entre nós, na mesma medida em que sofre restrições da crítica acadêmica.

Reconhecidamente um dos autores brasileiros mais conhecidos e festejados no Brasil e no exterior, Jorge Amado tinha ciência de que, não obstante o inegável sucesso editorial de sua obra, esta se movia com dificuldades entre os teóricos da literatura no Brasil, como revela em O sumiço da Santa: uma história de feitiçaria: romance baiano, publicada em 1988: 

Inegável audácia de um Autor, velho de idade e de batalhas perdidas, que ainda não conseguiu levar a crítica literária a gozar com a leitura de seus tapácios, de linguagem escassa, vazios de idéias, populacheiros. Quem não estiver de acordo com a inovação não é obrigado a ler. (AMADO, 1992, p. 409-410)

Levando em consideração o projeto literário de Jorge Amado, e as soluções estéticas por ele utilizadas para concretização de seu intento, nos voltaremos, através de um recorte étnico-identitário, à maneira, embora noutra direção, de Lúcia Lippi de Oliveira, para a leitura da narrativa amadiana, Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade do interior, na qual se verifica, através do intercurso amoroso entre o árabe Nacib Saad e a sertaneja mestiça do Nordeste, Gabriela, a representação do imigrante árabe no interior da Bahia.

2.2 NACIB SAAD: UM BRASILEIRO DAS ARÁBIAS

Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus.

Publicada em 1958, dois anos após o afastamento de Jorge Amado do Partido Comunista do Brasil – PCB, a narrativa Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior é apreciada por Alfredo Bosi, juntamente com Dona Flor e seus dois maridos (1966), como “crônica amaneirada de costumes provincianos”, destituída, segundo esse crítico, dos esquemas ideológicos que caracterizaram a primeira fase da literatura amadiana, como se lê em sua História concisa da literatura brasileira:

Mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos). Nessa linha, formam uma obra à parte, menos pelo espírito que pela inflexão acadêmica do estilo, as novelas reunidas em Os Velhos Marinheiros. Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Em visão assemelhada a Bosi, Tânia Pellegrini apreciaria a narrativa de Jorge Amado. Ao tratar do Sumiço da Santa, uma das últimas narrativas de Jorge Amado, Pellegrini qualificaria essa narrativa como um exemplar bem construído do que se denomina, atualmente, de literatura de mercado. Nessa avaliação, construída a partir de uma perspectiva mercadológica da obra amadiana, Pellegrini assinalaria que os recursos, largamente utilizados por Jorge Amado, não apenas já se encontravam em Gabriela, cravo e canela, como também se apresentavam, nessa narrativa, de forma mais relevada:

O Sumiço da Santa (Amado, 1988), de que nos ocuparemos, apresenta-se como um exemplo bem construído do que hoje se pode chamar de ‘literatura comercial’. Um dos últimos livros do escritor revela-se como um conglomerado de recursos já bastante usados em outros romances seus, com mais ênfase a partir de Gabriela, cravo e canela, considerado um ponto de ruptura no interior do conjunto de sua obra. (PELLEGRINI, 1999, p. 124)

Nessa compreensão, Tânia Pellegrini, como a maioria de nossos críticos, consideraria a narrativa do amor entre Nacib e Gabriela como marco de ruptura, de finalização do projeto ideológico amadiano e, ao mesmo tempo, como ponto de partida de sua trajetória literário-comercial. Assim, vê, no formidável êxito editorial, na contundente recepção popular à Gabriela, cravo e canela, apenas a celebração da nova inclinação de cunho mercadológico, de Jorge Amado:

Só para citar alguns exemplos, Gabriela, cravo e canela, publicada em 1958, vendeu imediatamente duzentos mil exemplares e, em edições sucessivas, atingiu a casa do milhão em 1990 [...] Como se vê, esses números ofuscam – desde a época em que uma indústria editorial brasileira de peso era apenas um quase-projeto – as tímidas tiragens de dois ou três mil exemplares que ainda hoje caracterizam a publicação da grande maioria das narrativas nacionais. (PELLEGRINI, 1999, p. 123)

Ao se voltar para a discussão sobre a relação da literatura/mercado e mídia, Tânia Pellegrini veria, na produção e na recepção literária contemporânea, as determinações mercadológicas e midiáticas, como elementos estruturadores desses escritos. Ao atribuir esses traços à maioria dos escritores jovens, que internalizaram as perspectivas da chamada pós-modernidade, Pellegrini ressaltaria que alguns antigos também se renderam a essas determinações, ilustrando como exemplo lapidar o caso de Jorge Amado:

Dentre estes últimos, o caso de Jorge Amado é lapidar. Tendo iniciado sua carreira literária como autor reconhecidamente engajado, que usava sua ficção como instrumento de luta política, alimentado por todo o contexto político-social das décadas de 1930 e 1940, aos poucos derivou para uma literatura descompromissada, leve crônica de costumes, exótico cartão postal da Bahia [...] O que nos interessa em particular na obra de Jorge Amado é de que maneira ela – um dos baluartes do regionalismo engajado – também acabou incorporando sensivelmente as mudanças nos modos de percepção gerados pelas transformações nos modos de produção da cultura (sobretudo a máquina da indústria cultural, no sentido adorniano do termo). (PELLEGRINI, 1999, 122-124)

Na perspectiva de que a obra mais recente de Jorge Amado se constitui como objeto da indústria cultural, Pellegrini iria, noutra passagem de seu texto, responsabilizar o gosto, ou a falta de gosto, do leitor amadiano, pelo sucesso editorial/comercial do escritor grapiúna, acentuando, antropofagamente, que Jorge Amado é consumido, com grande sucesso por todos os paladares ao redor do mundo (PELLEGRINI, 1999, p.122). Dessa forma, estende aos leitores de Jorge Amado, concebidos como abstratos, médios e poderosos, a desqualificação que procede ao próprio autor, numa passagem em que, contraditoriamente, registra o enorme êxito escritural de Amado, bem antes de Gabriela, cravo e canela.

Jorge Amado é, reconhecidamente, um dos primeiros autores que aqui se podem considerar de ‘profissionais’, ou seja, aquele autor que consegue viver dos lucros auferidos pela venda de seus livros [...] capaz de mobilizar a máquina editorial e as glórias acadêmicas, além de seduzir o mercado estrangeiro e conquistar o abstrato e poderoso ‘leitor médio brasileiro’. (PELLEGRINI, 1999, p. 122-123)

Autodefinindo-se, com simplicidade, como apenas um baiano romântico e sensual (apud BOSI, 1980, p. 455), Jorge Amado inundaria suas narrativas com a temática do amor e da sensualidade, como bem observa Antonio Cândido, em seu texto, “Poesia, documento e história”, como se verifica abaixo:

O amor carrega de uma surda tensão as páginas dos seus romances, avultando por cima do rumor das outras paixões. Na nossa literatura moderna, o sr. Jorge Amado é o maior romancista do amor, da força da carne e de sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinário clima lírico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, amor dos operários, que antes não tinha estado de literatura senão edulcorado pelo bucolismo ou bestializado pelos naturalistas. (CÂNDIDO, 1992, p. 52)

Contemplando, com a temática do amor e da sensualidade, todos os estratos sociais presentes em sua obra, como já observara Antonio Cândido, Jorge Amado transformaria Gabriela, cravo e canela numa verdadeira polifonia amorosa. Há o amor trágico e adúltero de dona Sinhazinha Guedes Mendonça, esposa do coronel Jesuíno, e o dentista Osmundo Pimentel, símbolo desconstrutor do velho código da família patriarcal, cujos assassinatos assinalam, cronologicamente, o início do amor entre Nacib e Gabriela:

Essa história de amor – por curiosa coincidência, como diria dona Arminda – começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de Igreja, e o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião–dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. (AMADO, 1979 1, p. 9)

Há o idílio, delicadamente insinuado entre o dr. Mundinho Falcão, exportador de cacau e símbolo da nova ordem econômica, e Jerusa, neta do coronel Ramiro Bastos, representante do poder da velha ordem econômica, cuja perspectiva de um desfecho feliz funciona como solução conciliatória, preservadora da posição, do prestígio e das vantagens das antigas e poderosas famílias dos senhores do cacau, como indicia, continuadamente a narrativa:

Houve ainda duas sensações no baile. Uma foi quando Mundinho Falcão [...] reparou na moça loira de pele de fina madrepérola, de olhos cor do azul celeste: – Quem é? – perguntara. – A neta do coronel Ramiro, Jerusa, filha do dr. Alfredo. Sorriu Mundinho, parecia-lhe divertida ideia [...] O aniversário do coronel Ramiro [...] Mundinho Falcão não fora à missa nem lhe levara pessoalmente o seu abraço. Mandara, porém, um grande ramalhete de flores para Jerusa, com um cartão onde escrevera: “Peço-lhe, minha jovem amiga, transmitir a seu digno avô meus votos de felicidade. Em campo oposto ao dele, sou, no entanto seu admirador”. Foi um sucesso [...] O próprio coronel Ramiro Bastos, ao ler o cartão e olhar as flores, comentou: É sabido esse senhor Mundinho! Se me manda o abraço por minha neta, não posso deixar de receber... Por um curto espaço de tempo chegou-se a pensar num acordo [...] Esse Mundinho, podre de rico, rapaz elegante do Rio, combatia num combate mortal a família dos Bastos. Uma luta com jornais queimados, homens surrados, atentados de morte. Fazia frente ao velho Ramiro, disputava-lhe os cargos, levava-o a ataques de coração. E, ao mesmo tempo, dava um conto de réis, duas reluzentes notas de quinhentos, por meia dúzia de xícaras de louça barata, prenda da neta de seu inimigo [...] Tonico Bastos espiava a conversa. Não entendia esse tipo. Sonhava ainda com um acordo de última hora, a salvar o prestígio dos Bastos. (AMADO, 1979 1, p. 192; 229; 299 – grifos nossos)

Se o amor entre Mundinho e Gerusa não se realiza no tecido narrativo, Jorge Amado, à maneira de Gregório de Matos, é extremamente discreto quando se volta para as relações sensuais do feminino patriarcal, isto é, das mulheres brancas e de posse, o acordo sonhado e esperado por Tonico Bastos se concretizaria plenamente, como demonstra a passagem na qual Mundinho, vencedor, revela o desejo de não prejudicar a família dos Bastos, principalmente o pai de Jerusa: Não penso em perseguir ninguém. Não sou disso. Ao contrário, o que desejo é discutir com o senhor a maneira de não prejudicar o Dr. Alfredo (AMADO, 1979 1, p. 335)

Há o amor romântico, tísico e infeliz, de Ofenísia pelo Imperador. O amor adúltero de Glória, amásia do coronel Coriolano e Josué, professor, metido a poeta, como anota o narrador. Os amores dos pobres, das prostitutas, dos retirantes. Entrelaçadas, em meio ao cenário da transformação econômico-política de Ilhéus, essas múltiplas narrações amorosas, tecidas pela simpatia e cumplicidade do narrador, não ofuscam e nem comprometem a primazia do amor entre Nacib e Gabriela, caracterizada como doida paixão, como o ponto de irradiação de toda a vida ilheense, como o qualifica o narrador, nas páginas iniciais de Gabriela, cravo e canela:

Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas [...] Ninguém, no entanto, fala desse ano, da safra de 1925 à de 1926, como o ano do amor de Nacib e Gabriela e, mesmo quando se referem às peripécias do romance, não se dão conta de como, mais que qualquer outro acontecimento, foi a história dessa doida paixão o centro de toda a vida da cidade naquele tempo, quando o impetuoso progresso e as novidades da civilização transformavam a fisionomia de Ilhéus. (AMADO, 1979 1, p. 19)

Estruturado por essa temática, o romance narra, em meio ao contexto do apogeu do cacau no sul da Bahia e das grandes transformações econômicas que caracterizam o Nordeste cacaueiro, a relação amorosa entre o imigrante árabe, Nacib Saad, e a imigrante sertaneja, cujo sobrenome, ou epíteto, nos remete aos cheiros do mundo do Oriente: Gabriela, cravo e canela.

Oriunda da cultura popular, mais propriamente do cancioneiro baiano, universo do qual Jorge Amado se alimenta e estrutura o seu projeto estético, Gabriela é personagem de  versos anônimos, das modinhas cantadas pelos trabalhadores da zona cacaueira, transposta para a cultura letrada, como ressalta, em epígrafe, o próprio escritor:

‘O cheiro de cravo,
A cor de canela,
Eu vim de longe
Vim ver Gabriela’.
(Moda da zona de cacau, apud AMADO, 1979 1, p. 8)

Nessa transposição e transfiguração do popular, Jorge Amado elaboraria a sua primeira 
narrativa em que o imigrante árabe é elevado à condição de protagonista, como explicita o narrador amadiano, ao anunciar o assunto de sua narração romanesca, como se lê, nas páginas iniciais de Gabriela, cravo e canela:

Aventuras e desventuras de um bom brasileiro (nascido na Síria) na cidade de Ilhéus, em 1925, quando florescia o cacau e imperava o progresso – com amores, assassinatos, banquetes, presépios, histórias variadas para todos os gostos, um remoto passado glorioso de nobres soberbos e salafrários, um recente passado de fazendeiros ricos e afamados jagunços, com solidão e suspiros, desejos, vingança, ódio, com chuvas e sol e com luar, leis inflexíveis, manobras políticas, o apaixonante caso da barra, com prestidigitador, dançarina, milagre e outras mágicas ou um brasileiro das arábias. (AMADO, 1979 1, p. 11)
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continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008