terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Glosa


Glosa é uma forma de poema utilizada que foi primeiramente registrada em Português no "Cancioneiro Geral" de Garcia Resende (1536) que colecionou 880 poemas. Um dos formatos é a cantiga, com um mote de quatro ou cinco versos e uma glosa de oito ou dez.

    Composição poética de origem peninsular, constituída por uma estrofe inicial, onde é apresentado o tema (mote), seguida por tantas estrofes quantos os versos apresentados na estrofe inicial e devendo ser estes incluídos sucessivamente, um a um, no final de cada estrofe, para desenvolvimento do tema da composição, que é sobretudo amoroso.

    Lembre-se que o termo glosa é sinônimo de volta e que este possui três acepções diferentes: ora de composição poética; ora de verso, que se repete no final das estrofes que glosam o mote; ora, já numa extensão de sentido, de estrofes, que desenvolvem o tema do mote nas cantigas e nos vilancetes.

    A glosa tem grande representatividade, a partir do século XV, nos cancioneiros hispânico e português, dos quais se destaca o Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende, sendo sobretudo desenvolvida por poetas palacianos.

    Também pode ser referência a uma forma usada pelos poetas do Nordeste do Brasil, principalmente os cantadores, em forma de uma ou mais décimas (estrofe de 10 versos) que respondem a um desafio, expresso em forma de mote. O mote é, geralmente, um dístico, ou seja, composto por dois versos. Esses versos se apresentam na glosa de duas formas mais comuns:

    Os dois versos aparecem no fim da estrofe, compondo a rima, que, na maioria das vezes, segue o esquema ABBAACCDDC.

    Um verso do mote aparece como quarto verso da glosa, e o outro verso na última posição. O esquema rímico é semelhante.

    O poeta Paulo Camelo criou e apresentou o que ele denominou Glosa com mote migrante, um poema com mais de uma estrofe (de duas a cinco), onde o mote, em dístico, aparece em posições diferentes, ascendendo nas estrofes das últimas para as primeiras posições.

MOTE NO FINAL
MOTE
"Devagar, como fogo de monturo,
a saudade invadiu meu coração".

GLOSA
Na fazenda, nasci e me criei,
peraltava e fazia escaramuça,
morcegava, no campo, a besta ruça,
jararaca até mesmo já matei.
Não me lembro da vez em que acordei
assombrado com tiros de trovão,
pinotava da rede para o chão
e saía correndo pelo escuro.
Devagar, como fogo de monturo,
a saudade invadiu meu coração".
(Carlos Severiano Cavalcanti)

MOTE EM VERSOS SEPARADOS

MOTE
"Por esses caminhos venho
pedaços de mim deixando".

GLOSA
Nem juntos arte e engenho
de Camões podem cantar
como em vão a tropeçar
por esses caminhos venho.
O amor para mim é lenho
que em meio aos lobos em bando,
aos trancos vou carregando
e a cada mulher que passa
sou tragado na fumaça,
pedaços de mim deixando
(Zé Barreto)

    Há ainda as glosas feitas a partir de trovas, sendo atualmente a mestra no gênero, a trovadora gaúcha Gislaine Canales. Neste gênero, o mote é uma trova inteira (4 versos setesilábicos), geralmente de outro trovador, e a partir dele a glosa é feita com 4 trovas, sendo que cada verso do mote é colocado individualmente em cada trova, na posição correspondente. Isto é, o 1o verso do mote é o 1o da primeira trova da glosa, o 2o é o 2o verso da segunda trova e assim sucessivamente, como demonstramos no exemplo abaixo:

Gislaine Canales
Glosando Izo Goldman


SAUDADE BOÊMIA...

MOTE:
Pelas noites, na cidade,
busco esquecer-te, porém,
o meu drama é que a saudade
é uma boêmia também...
(Izo Goldman)


GLOSA
Pelas noites, na cidade,
eu ando de bar em bar
e a tristeza que me invade
de tão grande, não tem par!

Ouço uma bela canção!
Busco esquecer-te, porém,
a dor do meu coração,
vai muito além, muito além!

Enfrento a realidade:
Eu nunca vou te esquecer,
o meu drama é que a saudade
veio comigo viver!

E nessa angústia sem fim
me ajudar, não pode alguém!
A saudade está em mim,
é uma boêmia também...

Fonte Principal: Wikipedia

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Olivaldo Junior (A Poesia)

(Conto para 21 de março: Dia Mundial da Poesia)

Quase às seis da tarde, hora em que muitos voltam para casa e vão se preparar para o jantar, foi a essa hora que a danada resolveu aparecer. "Muito prazer!", disse ela ao jovem homem, estupefato, entrando em casa. "Posso entrar com você, em seu lar?", disse a moça de olhos negros, tão fundos quanto um buraco negro desse cosmo que nos cerca. O jovem, que chegava do trabalho, meio sem jeito, não soube bem o que dizer, mas aceitou que ela entrasse. Ah, as coisas de que uma moça é capaz com um jovem cavalheiro!... Fechada a porta, pediu à estranha moça que se sentasse um pouco e, deixando sua bolsa de trabalho de lado, foi à cozinha pegar o óbvio, um copo d'água, a sua "visita". "Quero café...", pediu a moça, num tom de voz mais elevado, para que o jovem homem pudesse ouvi-la. "E agora? Não sei fazer café!...", pensou o jovem procurando uma embalagem de Chá da China que a mãe lhe tinha comprado outro dia. "Tenho chá!...", gritou, da cozinha, o rapaz. "Serve!...", assentiu a moça, um tanto contrafeita, é verdade, mas há situações em que é melhor uma xícara de chá na mão do que mil bules de café voando, sabe-se lá em que cozinha...

O jovem voltava para a sala com a bandeja nas mãos, quando a moça olhava um porta-retratos em que ele, ao pé de uma velha árvore, agachado, mão direita apegada ao tronco, sorria muito. "Gostei dessa foto!...", disse a ele já pegando sua xícara de fumegante Chá da China, a moça que já se sentia em casa, mesmo tendo entrado há pouco em sua vida. "Pois é, eu também gosto...", respondeu a ela o jovem que já começava a se incomodar com aquela desconhecida ali, em pé, como se tivesse vindo inspecionar-lhe a vida, e sem licença nenhuma para isso. "Vou ficar aqui.", declarou ao jovem, se sentando na poltrona mais macia da sala, uma relíquia deixada pela avó do rapaz, pouco antes de ela morrer, ou melhor, "subir no telhado"... "Claro, pode sentar-se aí!.., respondeu gentilmente à moça, que lhe acrescentou: "Você não me entendeu. Vou ficar morando aqui.". O jovem deu um salto da cadeira em que se havia sentado e, como já se encaminhasse para a porta, decretou: "Me desculpe, mas você não pode. A casa não é só minha, minha mãe já vai chegar, não temos lugar. Me desculpe mesmo, mas é hora de você ir.". Nisso, começou a ventar e a chover.

"Não vou embora nunca mais de sua casa, nem de sua vida, foi você que me deixou entrar...", respondeu ao jovem homem aquela moça, toda em preto, dona de si, confortavelmente sentada na melhor poltrona da sala. "Serei sua hóspede para sempre, é melhor se acostumar.", e levou mais uma vez a xícara de Chá da China aos lábios faiscantes de vermelho, tão rubros quanto as faces daquele jovem que não sabia o que fazer. Deixou a porta de lado e jogou-se na mesma cadeira. Não sabia o que pensar. "Não vou dar muito trabalho, menino...", falou a moça ao pobre homem. "Como não?", perguntou-lhe o jovem. Barulho na porta. Era a mãe. Entrou, falou das comadres que encontrara no mercado, do calor e que o jantar sairia em breve. Não, sua mãe não vira a moça. "Quem é você?", assustado, indagou o jovem à incógnita mulher que, para responder a ele, se inclinou um pouco para a frente e, quase num sussurro, lhe disse: "Muito prazer, menino. Sou a Poesia. Ando a visitar homens e mulheres do mundo todo, todos os dias, há uns três mil anos, talvez há mais tempo, não sei, insuflando-lhes muitos versos e muitas ideias poéticas, para que possam compreender melhor o avesso das cotidianas horas vividas. Aceita a minha companhia? Serei só sua enquanto estiver com você, mas o que eu lhe puser no colo você repartirá com todos os seus, como quem reparte o pão de fome aos famintos do universo. O que me diz?".

Anos depois, numa livraria da cidade, num evento simples, mas marcante, o jovem homem lançava seu primeiro livro de versos, singelamente intitulado: "A visita da Poesia".

Com licença, alguém bate à porta. Um momento!...

Fonte: O Autor

domingo, 6 de agosto de 2017

Charles Dickens (A História dos Duendes que Raptaram um Coveiro)

Numa velha cidade clerical, situada nesta parte do Condado, há muito, muito tempo — tanto tempo que a história deve ser verdadeira, de vez que nossos bisavós nela acreditaram implicitamente —, oficiava como sacristão e coveiro no cemitério da igreja um certo Gabriel Grub. De modo algum, porém, se infira que, pelo fato de ser coveiro e viver constantemente cercado de símbolos mortuários, deva um homem tornar-se taciturno e melancólico; os agentes funerários são os sujeitos mais alegres do mundo e, certa feita, tive a honra de privar com um deles que, na vida particular, e quando não em serviço, era um sujeitinho cômico e jocoso, capaz de trautear uma canção burlesca sem qualquer lapso de memória, ou de esvaziar um bom copo de um só fôlego. Todavia, apesar de tais precedentes em contrário. Gabriel Grub era rabugento, taciturno, azedo — um homem ensimesmado e solitário, que não se dava com ninguém, a não ser consigo mesmo e com uma velha garrafa, encapada de vime, que lhe cabia no amplo e fundo bolso do colete — e que fitava cada rosto alegre que por si passasse com um olhar de malícia tão torva e mal-humorada que ninguém lhe suportaria o escrutínio sem sentir arrepios.

Pouco antes da meia-noite, certa véspera de Natal. Gabriel colocou a pá ao ombro, acendeu a lanterna e encaminhou-se para o velho cemitério, pois tinha de preparar uma cova para o dia seguinte; sentindo-se muito deprimido, pensou que seu ânimo melhoraria se se pusesse logo a trabalhar. Enquanto caminhava pela velha rua, viu a luz alegre dos fogoscrepitantes brilhar através das janelas antigas, e ouviu os risos altos e os gritos jubilosos daqueles que se haviam reunido à volta deles; observou os alvoroçados preparativos para a festa do dia seguinte e aspirou os numerosos aromas apetitosos deles resultantes, escapando-se pelas janelas das cozinhas, em nuvens. Tudo isso era fel e absinto para o coração de Gabriel Grub; e quando bandos de crianças saltavam para fora das casas e, aos saltos, atravessavam a rua e encontravam-se, antes de terem tido tempo de bater à porta fronteira, com meia dúzia de moleques de cabelo encaracolado, que se agrupavam em torno deles enquanto subiam para passar a noite em folguedos natalinos. Gabriel sorria torvamente e apertava o cabo da pá com mais força, ao pensar em sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche e muitas outras fontes semelhantes de consolação.

Nesse feliz estado de espírito. Gabriel caminhava, respondendo aos cumprimentos bem-humorados dos vizinhos que por ele cruzavam com um grunhido lacônico e rabugento; por fim, enfiou-se pela escura viela que levava ao cemitério. Gabriel estivera ansioso por chegar à viela porque o lugar era, de modo geral, ermo e funéreo, e a gente da vila não se arriscava a andar por ali senão durante o dia, quando brilhava o sol; por consequência, o coveiro ficou assaz indignado ao ouvir uma voz infantil entoando uma alegre canção de Natal no mesmo santuário que era chamado "Beco dos Caixões" desde os dias da velha abadia e dos monges de cabeça raspada. À medida que Gabriel caminhava e que a voz se tornava mais próxima, descobriu pertencer a um menino que corria a juntar-se a um dos grupinhos da velha rua e que, em parte para sentir-se acompanhado, em parte para preparar-se para a ocasião, berrava a canção com toda a força dos pulmões. Gabriel esperou até que o menino passasse por ele e, encurralando-o num canto, deu-lhe cinco ou seis pancadas na cabeça com a lanterna, apenas para ensiná-lo a modular a voz. E enquanto o menino fugia, com as mãos na cabeça, entoando canção bem diversa da anterior. Gabriel Grub casquinhou sozinho, alegremente, e entrou no cemitério, fechando o portão atrás de si.

Tirou o casaco, pôs a lanterna no chão e, dirigindo-se à cova inacabada, nela trabalhou durante uma hora ou mais, com gosto. Mas a terra estava endurecida pela geada e não era coisa fácil cavá-la nem atirá-la para cima; embora houvesse lua, era lua muito nova, que pouco iluminava a cova imersa na sombra da igreja. Em qualquer outra ocasião, tais obstáculos teriam feito Gabriel Grub sentir-se muito triste e miserável, mas estava tão satisfeito por ter acabado com a cantoria do menino, que mal se deu conta dos pequenos progressos que fazia e, terminado o trabalho da noite, olhou para dentro da cova com soturna satisfação, murmurando, enquanto reunia seus apetrechos:

Bom quarto para a última dormida:
Sete palmos de terra, finda a vida;
Pedra aos pés e também à cabeceira,
Petisco para os vermes da valeira;
Relva em cima, de argila emparedado,
Belo quarto em terreno consagrado!

— Ho! ho! — riu Gabriel Grub, sentando-se num túmulo liso, que era seu lugar de descanso favorito, e sacando a garrafa de vime. — Um esquife no Natal! Um caixão natalino! Ho! ho! ho!

— Ho! ho! ho! — repetiu uma voz as suas costas.

Gabriel interrompeu, algo alarmado, o ato de levar a garrafa à boca e olhou à volta de si. As profundezas do túmulo mais antigo ali existente não estavam mais tranquilas e silenciosas do que o próprio cemitério à pálida luz da lua. A branca e fria geada brilhava nas lousas tumulares e cintilava, qual fieira de gemas, por entre os entalhes de pedra da velha igreja. Havia uma camada de neve dura e crespa sobre o chão, amortalhando os montículos de terra com um lençol tão alvo e macio, que mais pareciam estes uma fileira de cadáveres cobertos apenas com suas mortalhas. Nenhum ruído, por leve que fosse, quebrava a profunda tranquilidade da paisagem solene. Tão frio e quieto era o ambiente que até o próprio som parecia ter-se enregelado.

— Foram os ecos — concluiu Gabriel Grub. levando novamente a garrafa à boca.

— Não foram, não — disse uma voz profunda.

Gabriel ergueu-se assustado e ficou interdito de espanto e de terror quando seus olhos deram com uma aparição que lhe gelou o sangue nas veias. Sentada numa tumba alta, perto dele, havia uma estranha figura supraterrena, que Gabriel constatou, desde logo, não ser gente deste mundo. Suas pernas longas e fantásticas, que bem poderiam chegar ao chão, estavam encolhidas e cruzadas de maneira esquisita e espantosa; trazia nus os braços nervosos; suas mãos descansavam sobre os joelhos. O corpo curto e roliço estava vestido de roupas apertadas e acuchiladas; uma capa curta pendia-lhe das costas; a gola estava recortada em bicos curiosos, que serviam de gravata ou de golilha ao duende, e os sapatos tinham longas pontas reviradas. Trazia na cabeça um chapéu em forma de pão de açúcar, enfeitado com uma pena solitária, e coberto de branca geada; o duende parecia estar sentado muito à vontade, na tumba, havia mais de duzentos ou trezentos anos. Permanecia imóvel, com a língua zombeteira de fora, careteando para Gabriel Grub com uma expressão que só os duendes são capazes de assumir.

— Não foram os ecos — repetiu o duende.

Gabriel Grub estava paralisado e não soube responder.

— Que fazes aqui na véspera de Natal? — perguntou o duende, com voz severa.

— Vim cavar uma cova, sir — balbuciou Gabriel Grub.

— Que homem é este que anda em meio a covas numa noite assim? —
exclamou o duende.

— Gabriel Grub! Gabriel Grub! — berrou um doido coro de vozes, que parecia encher o cemitério. Gabriel olhou temerosamente à volta, mas não viu ninguém.

— Que trazes aí nessa garrafa? — perguntou o duende.

- Genebra, sir — respondeu o sacristão, mais trêmulo do que nunca, pois havia comprado-a de contrabandistas e julgou que talvez seu interlocutor pertencesse ao departamento fiscal dos duendes.

— Quem bebe genebra sozinho num cemitério, numa noite como esta? — exclamou o duende.

—Gabriel Grub! Gabriel Grub! — gritaram as doidas vozes novamente.

O duende olhou maliciosamente para o coveiro aterrorizado e, alçando a voz, exclamou:

- E quem é, então, nossa boa e legítima presa?

A tal pergunta, o coro invisível replicou, num uníssono que vibrava como as vozes de muitos meninos cantando ao som poderoso do órgão da velha igreja; um uníssono que, aos ouvidos do coveiro, parecia transportado por um vento selvagem, e que, conforme passava, ia morrendo; mas o estribilho era sempre o mesmo:

— Gabriel Grub! Gabriel Grub!

O duende fez uma careta maior do que as anteriores e disse:

—Bem. Gabriel, que achas disso?

O coveiro arquejou.

— Que achas disso. Gabriel? — repetiu o duende, atirando as pernas para o ar, de cada lado do túmulo, e olhando para as pontas reviradas dos sapatos com tanta satisfação quanto se admirasse os mais elegantes calçados vendidos em Bond Street.

— É... é... muito curioso, sir — replicou o coveiro, semimorto de terror. -  Muito curioso e muito bonito, mas acho que vou voltar ao trabalho para terminá-lo, sir, se mo permitirdes.

— Trabalho! — exclamou o duende. — Que trabalho?

— A cova, sir; abrir uma cova — tartamudeou o coveiro.

— Oh!, a cova, hein? — disse o duende. — Quem é que se compraz em abrir covas numa ocasião em que todos os outros homens se divertem?

Novamente, as vozes misteriosas repetiram:

— Gabriel Grub! Gabriel Grub!

— Receio que meus amigos te desejem. Gabriel — disse o duende, pondo toda a língua de fora (e que língua. Santo Deus!). — Receio que meus amigos te desejem. Gabriel.

— Por favor, sir — replicou o coveiro aterrorizado —, creio que não, sir; eles não me conhecem, sir; não acredito que esses cavalheiros me hajam visto antes, sir.

— Oh!, viram-te, sim — replicou o duende. — Bem conhecemos o homem de cara amuada e cenho franzido que desceu a rua hoje à noite, olhando as crianças com olhar maldoso, e apertando, raivoso, o cabo da pá. Bem conhecemos o homem que, com o coração cheio de inveja e maldade, surrou um menino, só porque esse menino podia ser alegre e ele não. Bem o conhecemos, bem o conhecemos.

Nesse ponto, o duende riu um riso esganiçado, que os ecos devolveram multiplicado, e, atirando as pernas para o ar, equilibrou-se, de cabeça para baixo, ou melhor, sobre a ponta do chapéu em forma de pão de açúcar, à beirada estreita do túmulo, de onde, numa cambalhota extremamente ágil, foi cair bem aos pés do coveiro, assumindo a posição de um alfaiate entregue ao seu ofício.

— Acho... acho que tenho de ir-me embora, sir — disse o coveiro, fazendo um esforço para mover-se.

— Ir embora! — exclamou o duende. — Gabriel Grub vai embora. Ho! ho! ho!

Enquanto o duende ria, o coveiro, olhando de relance para a igreja, viu-lhe as janelas iluminadas, como se estivessem acesas todas as luzes do edifício; a luz desapareceu, o órgão pôs-se a tocar uma melodia saltitante, e grupos inteiros de duendes, perfeitas reproduções do primeiro, derramaram-se pelo cemitério e começaram a saltitar sobre as tumbas, jamais detendo-se, um instante que fosse, para tomarem fôlego, mas cabriolando cada vez mais alto, um depois do outro, com maravilhosa destreza. O primeiro dos duendes era um saltador espantoso, e nenhum dos outros o ultrapassava; mesmo no auge do terror, o coveiro não pôde deixar de observar que, enquanto seus companheiros se contentavam em saltar por cima das tumbas de tamanho ordinário, o primeiro piruetava sobre os jazigos familiares, com grades de ferro e tudo, tão facilmente quanto se estes fossem marcos de estrada.

Por fim, a brincadeira chegou ao cúmulo da excitação; o órgão tocava cada vez mais depressa, e os duendes pulavam cada vez mais rápidos, enrodilhando-se sobre si mesmos, dando cambalhotas sobre o chão e saltando sobre as tumbas quais bolas de futebol. O cérebro do coveiro girava com tanta rapidez quanto a da agitação que contemplava, e suas pernas vergavam conforme os espíritos lhe passavam diante dos olhos; subitamente, o rei dos duendes, atirando-se sobre ele, agarrou-o pelo colarinho e com ele desapareceu pela terra adentro.

Quando Gabriel Grub conseguiu recuperar o fôlego, que a descida vertiginosa lhe fizera perder, encontrou-se no que parecia ser uma vasta caverna, circundado de todos os lados por multidões de duendes feios e zombeteiros; no centro da caverna, num assento elevado, estava seu amigo do cemitério e, logo atrás dele, sem poder mexer-se, o próprio Gabriel Grub.

— A noite está fria — disse o rei dos duendes —, muito fria. Tragam-lhe algo quente para beber!

A esta voz de comando, meia dúzia de duendes oficiosos, com um perpétuo sorriso nas faces, que Gabriel Grub imaginou fossem cortesãos por causa disso, desapareceram num átimo e logo voltaram com uma taça de fogo líquido, que apresentaram ao rei.

— Ah! — exclamou o duende, cujas faces e garganta faziam-se transparentes à medida que ia engolindo o líquido chamejante —, como isto esquenta! Tragam uma caneca para Mister Grub.

Foi em vão que o coveiro protestou não ser de seu hábito tomar o que quer que fosse de quente à noite; um dos duendes segurou-o, enquanto outro lhe derramava a beberagem incendiada pela garganta abaixo; toda a assembleia torcia-se de rir ao vê-lo tossir, engasgar-se e enxugar as lágrimas que lhe corriam abundantemente dos olhos, depois de ter engolido a causticante bebida.

— E agora — disse o rei, enfiando, num gesto fantástico, a ponta do seu chapéu afunilado nos olhos do coveiro e provocando neste dor agudíssima —, e agora mostrem ao homem da desgraça e da tristeza algumas pinturas do nosso grande depósito!

A medida que o duende dizia tais palavras, uma nuvem espessa, que obscurecia a extremidade mais remota da caverna, dissipou-se gradualmente e pôs a descoberto, muito ao longe, segundo parecia, um aposento pequeno e pobremente mobiliado, posto que limpo e bem-arrumado. Um bando de crianças comprimia-se em torno do fogo alegre, agarradas às saias da mãe e saltitando-lhe ao redor da cadeira. A mãe erguia-se, de quando em quando, e descerrava as cortinas da janela, como se aguardasse a chegada de alguém; uma refeição frugal estava servida sobre a mesa e uma cadeira de braços fora disposta perto do fogo. Uma batida à porta fez-se ouvir; a mãe abriu-a, e as crianças, acorrendo para lá, puseram-se a bater palmas de alegria ao verem seu pai entrar. Estava molhado e tinha ar fatigado; sacudiu a neve das roupas, enquanto as crianças, apinhando-se em volta dele, tomaram-lhe a capa, o chapéu, a bengala e as luvas e, com ar azafamado, levaram tudo para fora da sala. Depois, quando o recém vindo se sentou à mesa, ao pé do fogo, as crianças treparam-lhe sobre os joelhos, a esposa acomodou-se ao seu lado, e tudo se fez felicidade e aconchego.

Mas uma alteração, quase imperceptível, ocorreu no quadro. A cena era agora um pequeno dormitório, no qual o mais lindo e o mais jovem dos filhos jazia agonizante; o róseo havia-lhe desaparecido das faces e a luz fugira-lhe dos olhos; enquanto o coveiro o olhava com um interesse que jamais havia conhecido ou experimentado até então, a criança morreu. Seus pequenos irmãos e irmãs rodearam-lhe o leito minúsculo e tomaram-lhe as mãozinhas frias e lânguidas, mas estremeceram ao toque e olharam medrosamente para o seu rosto infantil: era calmo e tranquilo e revelava paz, mas a linda criança estava morta e eles souberam que era agora um anjo a olhá-los e a abençoá-los lá do céu luminoso e feliz.

Uma luz brilhante passou de novo pelo quadro e o seu tema alterou-se outra vez. O pai e a mãe estavam agora velhos e alquebrados e o número de filhos a rodeá-los diminuíra de mais da metade; todavia, a felicidade e a alegria brilhavam em todas as faces e reluziam em todos os olhos enquanto, agrupada em volta do fogo, a família ouvia e contava velhas histórias dos dias idos. Lenta e tranquilamente, o pai desceu ao túmulo e, logo depois, a companheira de seus cuidados e aflições acompanhou-o àquele lugar de repouso. Os poucos sobreviventes ajoelharam-se ao lado de seus túmulos e regaram de lágrimas a verde relva que os recobria; ergueram-se, depois, e afastaram-se, tristes e enlutados, mas não com gritos amargos ou com lamentos desesperados, pois sabiam que os encontrariam, novamente, algum dia; mais uma vez, mergulharam na azáfama do mundo, e o contentamento e a jovialidade lhes voltaram. A nuvem desceu sobre o quadro e ocultou-o dos olhos do coveiro.

— Que achas disso? — perguntou o duende, voltando seu rosto largo para Gabriel Grub.

Gabriel murmurou algo a respeito de ter achado o quadro muito bonito, e pareceu ficar um tanto envergonhado quando o duende o fitou com seus olhos candentes.

— Tu, miserável criatura! — disse o duende, num tom de absoluto desprezo. — Tu!

Parecia resolvido a acrescentar mais alguma coisa, mas a indignação sufocou-o; erguendo uma de suas flexibilíssimas pernas, e agitando-a acima da cabeça para firmar a pontaria, descarregou um belo pontapé em Gabriel Grub; a esse exemplo os duendes se comprimiram em torno do pobre coveiro e castigaram-no sem clemência, de acordo com o costume estabelecido e invariável dos cortesãos deste mundo, que dão pontapés em quem a realeza dá, e agradam a quem a realeza agrada.

— Mostrem-lhe algo mais! — ordenou o rei dos duendes.

A estas palavras, a nuvem dissipou-se e uma bela e rica paisagem fez-se
visível — a mesma que se contempla até hoje, a meia milha da velha cidade clerigal. O sol refulgia no céu límpido e azul; a água cintilava sob os seus raios; as árvores pareciam mais verdes e as flores mais alegres a sua benéfica influência. A água murmurejava com um ruído agradável; as árvores farfalhavam à leve brisa que lhes agitava as folhas; os pássaros cantavam nos ramos, e a cotovia, lá no alto, saudava o amanhecer. Sim, era manhã — uma clara e balsâmica manhã estival; a menor das folhas, o mais diminuto dos talos de grama palpitavam de vida. A formiga saía para seu labor cotidiano; a borboleta, revoluteando, aquecia-se aos cálidos raios de sol; miríades de insetos estiravam as asas transparentes e gozavam a breve, posto que feliz, existência. O homem caminhava, enlevado pela cena, e tudo era brilho e esplendor.

— Tu, miserável criatura! — exclamou o rei dos duendes, em tom de maior desprezo ainda. E, novamente, fez um floreio com a perna e castigou os ombros do coveiro; novamente, os duendes circundantes imitaram o exemplo do chefe.

Muitas e muitas vezes a nuvem apareceu e desapareceu; e muitas e muitas lições foram ensinadas a Gabriel Grub, que, embora lhe doessem os ombros, devido ao reiterado castigo neles aplicado pelo pé do duende, assistia a tudo com um interesse que nada lograva diminuir. Viu os homens que trabalhavam arduamente para ganharem o escasso pão de cada dia, alegres e felizes; viu que, mesmo para os mais ignorantes, o doce aspecto da Natureza era fonte inesgotável de prazeres e alegrias.

Viu aqueles que haviam sido criados com mimos e que tinham crescido em meio a carinhos, alegres, malgrado as privações, e superiores a sofrimentos que teriam esmagado outros de mais rude constituição, porque traziam dentro do peito as próprias fontes da felicidade, da alegria e da paz. Viu que as mulheres, as mais ternas e frágeis entre todas as criaturas de Deus, eram frequentemente superiores à tristeza, à adversidade e à desgraça, porque traziam, no fundo do coração, um manancial inesgotável de afeto e devoção. Viu, sobretudo, que homens como ele, sempre a escarnecerem da jovialidade e da alegria alheias, eram o pior joio que existia sobre a bela superfície da terra; e, confrontando todo o bem do mundo com o mal nele existente, chegou à conclusão de que o mundo, no fim das contas, era um lugar muito decente e respeitável. Mal chegara a tal conclusão quando a nuvem que envolvera o último quadro pareceu envolver-lhe também os sentidos, convidando-o ao repouso. Um por um, os duendes desapareceram de sua vista e, quando o último se desvaneceu, o coveiro mergulhou em sono profundo.

O dia já havia nascido quando Gabriel, despertando, se achou estirado sobre a laje lisa do cemitério, tendo ao lado, vazia, a garrafa de vime, e o casaco, a pá e a lanterna, recobertos da geada alvacenta da véspera, espalhados no chão. A lousa sobre a qual vira o duende sentado pela primeira vez erguia-se diante dele, e a cova em que trabalhara na noite anterior não distava muito dali. A princípio, duvidou da realidade de suas aventuras, mas a dor aguda que sentiu nos ombros, quando tentou erguer-se, convenceu-o de que os pontapés dos duendes não haviam sido de modo algum imaginários.

Titubeou, novamente, ao observar que não havia pegadas na neve que os duendes tinham pinoteado, mas logo achou explicação para o fato, ao lembrar-se de que, sendo eles espíritos, não haveriam de deixar impressão visível atrás de si. Destarte, Gabriel Grub pôs-se de pé, tão bem quanto lho permitiu a dor nas costas, e, limpando a geada do casaco, vestiu-o e voltou o rosto para a cidade.

Era, todavia, um homem mudado, e não suportava a ideia de retornar a um sítio onde seu arrependimento seria objeto de motejo e sua transformação, de dúvida. Hesitou por alguns momentos; decidiu-se, depois, a buscar outro lugar onde pudesse ganhar o pão.

A lanterna, a pá e a garrafa de vime foram encontradas no cemitério naquele mesmo dia. Houve a princípio inúmeras conjecturas quanto ao destino do coveiro, mas logo se concluiu que ele havia sido levado pelos duendes; não faltaram, mesmo, algumas testemunhas dignas de crédito que o haviam visto, muito distintamente, transportado pelo ar no lombo de um cavalo castanho, cego de um olho, com os quatro traseiros de leão e a cauda de urso. Com o passar do tempo, chegou-se a crer piamente em tudo isso, e o novo coveiro costumava exibir aos curiosos, em troca de insignificante propina, um bom pedaço do cata-vento da igreja que havia sido derrubado acidentalmente pelo referido cavalo em sua fuga aérea, e que ele, coveiro, encontrara no cemitério, um ou dois anos mais tarde. Infortunadamente, estas histórias ficaram algo desmoralizadas pelo inesperado aparecimento de Gabriel Grub em pessoa, mais ou menos dez anos depois; estava velho, reumático, esfarrapado e feliz. Contou sua história ao vigário e também ao prefeito; com o tempo, sua narrativa passou a ser aceita como fato histórico, forma sob a qual se perpetuou até hoje. Os que acreditam no conto do cata-vento, tendo sido iludido na sua boa-fé, não se mostravam mais dispostos a deixar-se iludir novamente, e assumindo ares de sabidos, encolhiam os ombros, tocavam a fronte e murmuravam algo a respeito de Gabriel Grub ter bebido toda a genebra e adormecido sobre a lápide lisa; ofereciam explicação para o que ele havia visto na caverna dos duendes, dizendo que, depois de haver corrido o mundo. Gabriel tornara-se mais esperto. Mas tal opinião, que não chegou nunca a se popularizar, foi-se extinguindo aos poucos. Seja como for, tendo Gabriel Grub padecido de reumatismo até o fim de seus dias, sua história tem, ao menos, uma moral, à falta de coisa melhor — a de que, se um homem ficar mal-humorado e beber sozinho na véspera de Natal, pode ter a certeza de que não tirará muito proveito disso, ainda que os espíritos da bebida sejam menos fortes ou estejam tantos graus acima do normal quanto aqueles que Gabriel Grub viu na caverna dos duendes.

Fonte:
http://nefasto.com.br/historia-dos-duendes-que-raptaram-um-coveiro-charles-dickens/

sábado, 5 de agosto de 2017

Francisco J. Pessoa (Se eu pudesse eu comprava a mocidade/Nem que fosse pagando à prestação)


Conto Africano (Tamina, cor do sol)

Hoje, o céu desabou sobre o coração de Tamina. À volta dos olhos de azeviche, pairam duas nuvens e, nas faces de ébano, dois pequenos riachos deslizam silenciosamente e pousam nos lábios um beijo com sabor a sal. Tamina corre a refugiar-se atrás do loureiro, ao fundo do jardim. Por detrás da folhagem espessa, os ramos abrem os braços para acolherem todos os segredos. Escondida no meio da ramagem, Tamina explica ao arbusto de onde vem este seu desgosto. Ela não compreende por que é que não tem a pele clara das manhãs de Inverno, como as outras crianças.

O arbusto não sabe o que responder. Conhece bem os amigos de Tamina, que vêm muitas vezes brincar no jardim. Acha que são todos parecidos: as roupas coloridas, os rostos alegres e os olhos travessos. Diferente, talvez apenas a cor da pele, mas não vê em que é que isso poderia ter importância.

Um melro curioso deslizou por entre a folhagem. Ao esgravatar a terra à procura de algum bichinho para comer, de saltinho em saltinho acabou por se aproximar. Tamina reconhece-o, é ele que costuma vir regalar-se com os frutos caídos, debaixo da macieira.

Em poucas palavras, o arbusto explica-lhe o problema da pequena. O melro declara que, quanto a ele, está totalmente satisfeito com a cor da sua plumagem porque o amarelo do bico sobressai muito mais no preto do que no branco.

Tamina ficou na mesma. Não tem nenhum bico amarelo para justificar a vantagem de ter a pele negra. E depois, é muito bonito, pensa ela, mas todos os melros são pretos. Se fosse o único melro branco no meio de melros pretos, talvez pensasse de outra maneira!

A poucos batimentos de asas do local, o pássaro conta à sua amiga pega o que viu e ouviu debaixo do loureiro.

A pega vai contar ao gaio, o gaio repete-o à gralha-das-torres, a gralha-das-tores presta contas ao corvo, o corvo transmite-o imediatamente à toutinegra.

Correndo assim de bico em bico, de ramo em ramo e de nuvem em nuvem, o assunto depressa chegou aos ouvidos do sol.

Com a ponta dos dedos de luz, o sol ergue delicadamente uma folha do silvado, afaga o rosto de Tamina e, uma a uma, bebe todas as pérolas do seu desgosto.

— Quando vieste ao mundo — diz-lhe o sol — eras linda, tão linda… Acho que eras o bebê mais lindo que a terra algum dia conheceu. Eu passava dias inteiros a olhar para ti mas, de tanto te admirar, a tua pele ficou dourada, tal como acontece com a espiga de trigo. À noite, não conseguia ir deitar-me, mantinha-me na linha do horizonte, porque os meus olhos não eram capazes de te deixar. Quanto mais fixava o meu olhar na tua beleza, mais a tua pele tomava a cor do café. Se eu imaginasse todo o sofrimento que isso viria a causar-te, teria pedido às nuvens que te protegessem. Foi tudo culpa minha, serás capaz de me perdoar?

Na palma das mãos, Tamina faz uma grinalda de beijos. Pede ao vento que a leve.

E no rosto de Tamina, um sorriso desenha finalmente a curva da felicidade, porque o segredo da sua cor brilha agora bem dentro do seu coração.

Fonte:
Ghislaine Biondi; Laurent Corvaisier. Tamina Couleur Soleil. Paris, Hachette Livre/Gautier-Languereau, 2001. Disponível em Contos de Encantar

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Marco Hruschka (Poemas Escolhidos)

 Empréstimo

Emprestei estas palavras
Do baú das ideias esquecidas
Para escrever uns versos
Desambicionados
Sem sede, sem meta, sem norte

Na gênese, não sabia ao certo
No que podia dar
E agora já não sei de mim
Se serei capaz de versejar

Às vezes, a poesia se apresenta
E é tão encantadora
- Sereia de cantos enfeitiçados -
Que deixo que me possua
Já não sendo mais capaz de evitar

De repente sou um servo,
Um escravo,
Um criado,
E me deixo levar pela inspiração
Que me explora,
Me usa por inteiro,
Me transmuta
E então me guia
Por uma mágica alameda
De oportunidades e
De sonhos
Que me elevam
Ao topo do mundo

E de repente sou o Sol
======================

 Boa nova

A palavra é vida
É a mãe de todas as ideias
E quando o poeta escreve
Dá à luz um sentimento novo
Capaz de transformar o mundo

O poema é a palavra ao extremo
É a potência
Latência
Paixão

Linguagem erigida
Castelo de significação
Mensagem decodificada
Comunicação

Um verso é uma lição de vida
Um ensinamento
Uma doutrina
Que o poeta constrói
Com sua própria alma
E espalha pelo mundo
Feito um apóstolo

A semear a boa nova
==========================

Mirante

Calo-me diante do insólito
Daquilo que não faz parte de mim
Do desconhecido
Do intruso
Do invasor
Pois nem tudo é capaz de construir
Nem tudo é edificante
Fico entre o limbo e o torpor
Amordaçado por mim mesmo
À parte de mim

E em mim permaneço
De olhos abertos,
Bem abertos e vigilantes,
Pés firmes no chão.
Sou o próprio belvedere:
Mirante!
Mirante!
Um voyeur em posição privilegiada
Separando o joio do trigo
Fazendo a triagem...
Desinfectando-me!

Meu inimigo, esse mundo
Insano e arrogante, insistirá!
E com sua arma,
Incansável e idealista arma,
Arremessará com força
Toda a podridão do mundo...
Mas eu sou sentinela
Imponente, imutável, perseverante!
Guardarei meu templo
Com unhas e dentes,
Pois é aqui,
Na minha fortaleza, meu forte,
Dentro de mim que pretendo me salvar,
Sou a minha terra,
Minha própria pátria,
Meu lar!

Fonte:

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

José Roberto Balestra (Papelzinho de bala)

Lembro-me da primeira vez que vi você caminhando pela minha rua. Era manhã duma quinta-feira, fazia um pouco de frio, um arzinho gelado, chato, e você ia com pressa, mas pisava tão leve que sequer eu ouvia o som de seus sapatos tocando o chão enquanto passava perto de mim. Com sua roupa simples e bonita, parecia flutuar, mas muito além de ser só bonita sua roupa; caia-lhe especial. Sem me dar conta do tempo, do portão fiquei te olhando, te olhando, você indo já lá longe, quase no fundo da rua, foi ficando menor, menor, até que sumiu num cruzamento.

Voltei para dentro de casa, retomei a ordinariedade das coisas tão triviais da vida; o arrumar da cama, o dobrar minhas roupas que usava em casa, o escovar e o guardar dos sapatos na gaveta. Assim ia eu meu dia. Todavia, de repente vi que sua imagem andando fincara-me, fixada como um painel de rua no breu da noite chamando sua presença: iluminava-se, crescia, eu olhava, via, e depois tudo ia sumindo afunilado. Em pouco, como as ondas de um lago em dias de vento brando, voltava. Sinceramente, não entendi o porquê daquilo comigo.

Mas saí também à minha faina; era preciso trabalhar. Sem perceber o meu projetor daquele filminho desligou-se. As coisas da cidade, os carros passando, a vida corrida, meus anseios de vitória, o trabalho, os bancos, a escola, contas pra pagar, o namoro rápido às vitrines das lojas com a moda chegando, tudo isso me reconduziu à normalidade, à velha ordinariedade de que falei.

A semana acabou, veio o domingo. Fui à missa das sete na catedral, lugar mágico que a gente, esquecendo as vaidades tão vãs, acha que fica mais perto de Deus de verdade. À saída do templo assustei-me: vi você de novo. E como uma caixa de tarol à frente duma fanfarra, meu coração rufou acelerado. Pensei que ia morrer. Mas se fosse, teria sido muito bom ter morrido daquele jeito, feliz, te vendo! De novo você, sem perceber nada que comigo acontecia, se misturou ao povo que respeitosamente deixava a igreja. Desapareceu como bruma ventilada...

Parei na escadaria da catedral, olhei para os lados para te achar, e por fim conclui: sumira mesmo dos meus olhos, que pena! Resolvi ir pra casa. Misturei-me também à pequena multidão. E quando parei na calçada para olhar os carros e atravessar a rua, novamente outro luminoso susto me invadiu; você estava ali, pertinho de mim, até ao alcance de minhas mãos, desenrolando o papel duma bala de cereja.

Como se conhecidos fôssemos de muito tempo, meus olhos cruzaram-se com os seus. Você me sorriu. Depois é que percebi que eu, ao impulso do coração rufando, houvera lhe sorrido primeiro. Você apenas me respondera. Ou correspondera? Atacou-me essa dúvida insana. Fingi esperar um pouco, e assim que você atravessou a rua, discreta e rapidamente abaixei-me e peguei o papelzinho de bala, da sua bala. O vento repentino dum carro que passava o soprou para mais longe de mim, mas apressei-me e pude recolhê-lo sem você ver. Enrolei-o em borboleta, com carinho. Por algum tempo fiquei olhando pr’aquilo. Depois, levantei os olhos. Não mais lhe vi. Então guardei comigo o meu troféuzinho do coração.

Os ventos da vida fizeram seus itinerários sobre mim, até que num sábado de manhã, enquanto eu comprava uma revista na banca, sem que eu visse você chegou bem perto de mim e disse bom dia! Pensei que fosse alguém cumprimentando o dono da banca, e continuei olhando as capas expostas, distraidamente. Mas aí, mais perto de mim, você me desmontou ao repetir: 

– Bom dia! Como vai? 

E antes que a resposta presa na minha garganta saísse você quase me matou do coração:

– Ainda está guardado?

– O quê?

– O papelzinho de bala?!

Sem palavras, naquel’instante meus olhos correram-lhe o corpo de cima a baixo. Sorri sem graça, disfarcei um olhar sobre as revistas e jornais expostos e, perdoe-me aquele meu atrevimento, mas eu não pude me conter quando meus braços, como um autômato, levantaram-me as mãos e foram encontrar-se com as suas que estavam tão quentinhas. Foi mais que um aperto de mãos aquele cumprimento: eu te abracei sem você saber...

Um fiozinho de raio de sol bateu em meus olhos. À estranha sensação, acordei. Olhei para o teto, reviajei comigo:

– Que coisa? Sonho? Que sonho lindo eu tive? Dá um conto, ou mais... Puxa!...

Então sentei-me na beira da cama, pisei o macio do tapete de algodão trançado, esfreguei o rosto com as mãos, enchi os pulmões com o ar novo do dia, espreguicei-me, e só então foi que vi sobre o criado-mudo:

- ...um papelzinho de bala? Borboleteado? Então não foi um sonho?...

.. e senti quando todas aquelas maravilhas se recolheram pro mais fundo do meu coração, na sua morada perpétua.

Fonte:
http://zerobertoballestra.blogspot.com/2016/11/papelzinhode-bala-12.html

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A. A. de Assis (Microcrônicas) Parte II


33
Cada mês que passa vai passando
a ser passado. Nós também.
34
Santo mesmo é o peixe. Sequer
precisou da arca para se salvar.
35
Casal de velhinhos na janela
olhando a Lua. Tão longe a de mel...
36
Futuro adiado. Ainda há gente
que namora escrevendo cartas.
37
Doce portuñol. Para los niños
los nidos... y los abuelos.
38
Do dente por dente ao voto
por dentadura. A lei da mordida.
39
Flores na enxurrada. Vão ter afinal
bom hálito as bocas de lobo.
40
Veja a parasita: parece gente
que a gente acha até bonita...
41
Teste de audição. Canta ao longe
um passarinho... e eu posso escutar.
42
Ouro, incenso e mirra. Que será
que fez Jesus com tais luxozinhos?
43
Tens que ter estudo.
Sem estudo és nada.
44
Cubram-se as estrelas. Tem gente capaz
de ao vê-las lhes roubar as pilhas.
45
Tão meninas elas, as meninas
dos teus olhos. Pedem colo, ainda.
46
Garrincha e Pelé. Depois deles
nunca mais houve igual olé.
47
Crocante e cheiroso, com garapa,
na feirinha. Pastel de saudade.
48
Um pulo, medalha. Milhões
de cabeças boas tão longe das loas.
49
Chovem meteoritos. Enxame
de pirilampos na noite da roça.
50
Na fila de idosos, troca-troca
de sintomas. Quem não tem inventa.
51
Nós e os nossos rios, cada qual
segue o seu curso. Reencontro na foz.
52
Labor, ciência e ternura. Quanto mais
amado, mais produz o chão.
53
Viva a companheira... Valeu
perder por ela o jardim do Éden.
54
Zunzunzum... zunzum... É um pernilongo
brincando de fórmula um.
55
Menina se abaixa, acaricia a flor,
sorri. Amigas se entendem.
56
Apressados passos passam
nas pistas do parque. Por que não passeiam?
57
Era transromântica. A poesia
hoje se nutre na física quântica.
58
Homo erectus. Não nasci para ser
vírgula; sou ponto de exclamação.
59
Um homem ao relento no gelado
chão. Por que não samaritamos?
60
Tinha um pé de pinha no quintal vizinho.
Tinha. Nem quintal tem mais.
61
Era um frango assado, e além de assado
era assim. Teve à mesa um fim.
62
Velhinhos na praça jogando
conversa fora. Também jogam damas.
63
Era uma era em que o neto
ouvia histórias do avô. Aí veio o celular...
64
Matuto, matuto... chego enfim
à conclusão: que matuto eu sou...
65
Nunca fui à Lua. Tampouco a Viena.
Porém amo as duas.
66
O Sol que se cuide. Volta e meia
a meia-lua chega em casa cheia.
67
Ave, avós. Hão de um dia
devolver a vós a voz.
68
Amor é isto e tão só: ou dá certo
e é fogo vivo, ou dá curto e vira pó...
69
Mataram Jesus.
E Jesus queria apenas acender a luz.
70
"Deixai vir a mim, em paz e sãs,
as criancinhas." Não estão deixando.
71
Serra-serra, será dor.
Cessa a serra, será flor.
72
Que bom ver de novo o verde.
Ver de novo a vida.
73
No cosmo, a cosmética: o puro,
a verdade e o bem. A perfeita estética.
74
“Pedro, tu és pedra”. Empresta
uma a Francisco pra reconstrução.
75
Um pingo... dois pingos... não parou
mais de pingar. E se fez o mar.
76
Nobre flamboyant. O facho que traz
nos cachos acende a manhã.
77
Branquinhas, branquinhas,
voam as garças em V. Vitória da paz.
78
Profissão de fé: eu creio
que Deus existe porque Deus existe.
79
Infinda é a esperança. Os galos
cantam ainda na aurora de cada dia.
80
Bem-aventurados os que sonham.
Chama-os Deus poetas.

Fontes:
Microcrônicas enviadas pelo autor.
Imagem: criação por J.Feldman

domingo, 30 de julho de 2017

A. A. de Assis (Microcrônicas) Parte I


1
No princípio era a paz.
Até que uma vez uma cerca se fez.
2
Tão simples, meu santo: “Ame e faça
o que quiser”. O resto é discurso.
3
Terra prometida. A fé abre ao meio o mar
para o amor passar.
4
Estrela cadente. Vaga-lumes
se alvoroçam cobiçando a vaga.
5
Ao luar, no Paraíso, o primeiro jantar
a dois. Que deu no que deu.
6
Posso viver sem ter nada;
porém jamais sem ter-nura.
7
Florzinha silvestre no jardim
do shopping-center. Êxodo rural.
8
Assanhadas rosas. Disputam
a preferência de um raio de sol.
9
Quem foi que afinal tantas florestas
derrubou? Foi o pica-pau?...
10
No meio do pasto um ponto
de exclamação. Último coqueiro.
11
Nobre girassol. Como podem,
no mercado, chamá-lo commodity?
12
Mosca na parede. Avisem
à lagartixa que o jantar chegou.
13
Mão de jardineiro. Num leve toque
faz do esterco a flor.
14
Me explique, violeta, explique: como pode,
tão humilde, ser você tão chique?
15
Corrija-se a tempo. Mais de mater
que magistra necessita o mundo.
16
Se tiver apoio, bem que pode
um dia virar trigo o joio.
17
Li num alfarrábio: de pobre se sobe
a rico, porém não de rico a sábio.
18
Na Idade da Pedra talvez já se
comentasse: – É uma pedra a idade.
19
Sabiá caçando. Nem só
de gorjeios vive, mas também de insetos.
20
Perdoa, Platão. Transformamos
a Kallipolis numa Bad City...
21
Outrora havia banda no coreto
do jardim. Onde mora o outrora?
22
Pra lá e pra cá. Enfim,
de que lado ficará o pêndulo?
23
Dizem que a cigarra nada faz
senão cantar. Ah, é indispensável.
24
Troca de alianças.
O futuro escolhido a dedo.
25
Curvada, a velhinha cata
o cocô do cãozinho. Civilização.
26
Ah, espelho meu. Cada vez
que em ti me vejo, vejo menos eu.
27
Na segunda, até os segundos
seguem devagar.
28
Maringá feliz. Abriga e escuta ainda
sabiás e bem-te-vis.
29
Um pingo de luz no topo do
arranha-céu. Brincando de estrela.
30
Parábola bela. Mas e a mãe
do filho pródigo, onde estava ela?
31
Balança o palanque. O peso
na consciência do nobre orador.
32
As rosas no cio. Sedutoramente
esperam pelo beija-flor.

Fontes:
Microcrônicas enviadas pelo autor.
Imagem: criação por J.Feldman