sábado, 12 de agosto de 2017

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte I

Novela em 5 partes.

Novela de Carlos Leite Ribeiro 
Embora romanceada, é baseada em fatos reais, passados por familiar de uma pessoa amiga, cujos fatos se passaram em Portugal e no Brasil.
________________________________

Este livro foi escrito, em parte, baseado sobre o filme de ficção “Casablanca” (*) produzido em 1942. Comecei então a imaginar: o que teria acontecido a estas personagens depois de Casablanca? Como dizia o Mestre Almada Negreiros: “a caverna da mente dos escritores é insondável e imprevista …”. E assim, comecei a escrever este livro, que é pura ficção.
Carlos Leite Ribeiro

_________________________________

(*) Casablanca, (Marrocos – África Oriental) em árabe “dar al-Bayda ou Dar el-Beida” que quer dizer “a casa branca”. Cidade de Marrocos e seu principal porto no oceano Atlântico. Casablanca desenvolveu-se durante o período colonial francês. Em Janeiro de 1943, realizou-se nesta cidade marroquina, uma conferência entre Churchill e Roosevelt, no decurso da qual os generais franceses De Gaulle e Giraud tiveram o primeiro encontro.

Ambos trabalharam durante muitos anos num escritório de advogados em Lisboa, em gabinetes diferentes e separados. Quando se cruzavam no corredor, davam um simples cumprimento, como: “olá”; “bom dia”; “tarde”. Só uma vez em tantos anos, ele deu-lhe uma boleia (carona), numa tarde muito chuvosa, até ao Metro que nem ficava longe do escritório, pois ela tinha o carro a reparar. Nem almoçavam no mesmo restaurante.

Os anos foram passando e chegou a altura da reforma: primeiro ela e meses depois ele. Por casualidade, ambos começaram a lanchar na mesma pastelaria que ficava no centro de Lisboa. Olhavam um para o outro, sorriam e cumprimentavam-se.

Certo dia e também por casualidade, ela sentou-se numa mesa junto à mesa que ele ocupava.

- Então Dona Ivone, como vai a sua vidinha, depois de se reformar?

- Vai bem Sr. Júlio, só com uns “achaques” de vez em quando, devido à idade. E a sua vidinha como vai – perguntou-lhe ela, o que ele respondeu-lhe:

- Descontando o reumatismo e uns “ataques” de artrite, vai indo bem. E podia ser melhor se os impostos não fossem tão altos!

- Desse mal, também me queixo, meu caro amigo (não sei se possa e deva trata-lo como amigo?)

- Trate-me como quiser, desde que retire o “Sr”. Pode tratar-me só por Júlio e eu a tratarei só por Ivone. Está de acordo?

Começou a ser habitual os tais encontros naquela pastelaria, só com a diferença de ambos se sentarem na mesma mesa. Durante semanas, as conversas foram banais, praticamente só falando dos filhos e dos netos. Até que um dia, começaram a falar de suas famílias. A determinada altura, Ivone perguntou-lhe:

- Júlio, o que lhe vou perguntar, corro o risco de estar completamente enganada. Seu sobrenome é Blaine – certo?

- Desde que nasci – disse-lhe ele com um sorriso aberto.

- O sobrenome Lund, não lhe diz nada?

- Confesso que não, mas porquê?

- O nome de seu avô, por acaso não era Rick Blaine?

- Sim, era do sobrenome do meu avô paterno. Mas porque essa pergunta, digamos tão “misteriosa?

- Minha avó escreveu um diário que quando morreu, entregou-o a minha mão que por sua vez mo deu a mim. Nesse diário, minha avó materna, conta que conheceu durante a segunda guerra, um americano de nome Rick Blaine, o qual foi a paixão de sua vida.

- Meu avô Rick, foi um aventureiro, digamos compulsivo. Conseguiu fugir de França quando os alemães ocuparam-na, e durante uns anos fixou-se em Casablanca.´, em pleno Marrocos.

- Então acertei, é mesmo de seu avô que estou a falar, mas fale de seu avô.

- Segundo as “crônicas” da família, meu avô em Casablanca, teve de matar um general ou major alemão para ajudar a fugir uma mulher que até era casada.

- Até aqui conheço a história, que depois lhe contarei. O que foi feito de seu avô?

- Quero saber essa história direitinha. Continuando a falar do que dizem as crônicas familiares. Meu avô Rick teve de fugir de Casablanca para Brazzaville (ex- Congo Belga), onde montou um bar em parceria com um chefe de polícia que tinha conhecido em Casablanca, e parece que ajudou a matar o tal general alemão. O Louis Renault.

Mas Brazzaville era um ninho de nazistas que estavam espalhados por toda a parte e, por azar, foi lá assassinado. Meu avô mais uma vez teve de abandonar o negócio e fugir com a filha do Louis Renault, para Lourenço Marques (hoje Maputo) em Moçambique e lá casou com ela, ou seja com minha avó. Casamento esse que durou pouco tempo, pois minha avó fugiu, levando-lhe todo o seu dinheiro, abandonando – o assim como o filho.

Meu avô teve de trabalhar no duro em Moçambique, para poder sobreviver. Entretanto, uma família portuguesa que vivia nesse país africano, acolheu e mais tarde adotou meu pai. Quando regressaram a Portugal, trouxeram meu pai que cá casou e eu nasci aqui nesta bela cidade que é Lisboa.

- Nunca soube mais nada de seu avô Rick?. Só agora reparo que já é noite e tenho que me ir embora. Amanhã continuaremos a história. Esta noite quero dar uma vista de olhos pelo diário que minha avó Ilsa Lund escreveu.

- Sim, já é noite e estava quase a convidá-la para jantar comigo. Como quer ir para casa, eu acompanho-a até lá.

Foi uma noite em que ambos tiveram dificuldade em adormecer. Ela impressionada com o que ele lhe contou do avô; ela desejosa de lhe contar a história de sua avó. Ambos tiveram vontade de ligar um ao outro, mas tinham receio de incomodar a outra parte. Por fim, Ivone encheu-se de coragem e ligou para ele.

- É o Júlio? Desculpe de lhe ligar a esta hora…

- É um prazer ouvi-la! Também tinha vontade de lhe ligar, mas não queria incomodá-la. Pelos vistos, ambos estamos com dificuldade em adormecer!

- Estou deitada a passar os olhos sobre o diário de minha avó.

- Tem encontrado coisas interessantes?

- Afirmativo, mas não lhe vou contar aqui pelo telefone. Nem antes de saber toda a história de seu avô! Temos muito que falar sobre nossos avós!

- Deve ser preciso muitas horas! Atrevo-me a convidá-la para um almoço, pois assim teríamos mais tempo para dar à língua. Aceita?

- Aceito!

- Já amanhã?

- Amanhã não pode ser pois tenho cá em casa a senhora que faz a limpeza. Se o Júlio aceitar, poderá ser na próxima sexta-feira?

- Por mim está tudo bem. E onde a Ivone quer almoçar (e se quiser jantar também), diga que eu aceito. E também diga a hora em que posso a ir buscar no fundo da sua rua.

- Gosto muito da beira-mar da zona de Setúbal. Mas só almoçar.

- Proponho-lhe a Serra de Arrábida, depois as praias da Figueirinha, Portinho da Arrábida e almoçar em Sesimbra no restaurante “O Velho e o Mar”, que tem sempre um peixe espetacular.

- Também gosto muito da Arrábida, de suas belas praias e de Sesimbra e também conheço esse restaurante. Também conheço o belo Convento de Nossa Senhora da Arrábida. A hora, pode ser às 10?…

- Amiga Ivone, não pode ser mais cedo? Tomávamos o pequeno almoço em Almada.

- Pensando bem, o Júlio pode vir-me esperar ás 08.30. E o pequeno almoço poderá ser em Corroios, numa pastelaria que também conheço e tem sempre bolos quentinhos rssss.

- Então até sexta-feira e tente fazer um soninho bem descansado.

- Também tenha uma boa noite. Abraço.

- Um beijo!

No dia e hora combinada, Júlio estava no fundo da rua esperando a Ivone. Quando já estava com o telemóvel (celular) na mão para lhe ligar para lhe perguntar se tinha esquecido o combinado, quando ela apareceu junto ao carro e logo que entrou, perguntou-lhe:

- Não estou muito atrasada, pois não?

- Claro que não. A Ivone só está atrasada 25 minutos!

- Pelo meu relógio, são só 20 minutos, Veja se acerta seu relógio!

Ele deu uma sonora gargalhada e partiram para o passeio. Depois de passar a Ponte 25 de Abril e já à entrada de Almada, ela disse-lhe que estava com muita fome e se podiam ir tomar o pequeno almoço a Almada, talvez a um Shopping, desculpando-se:

- Sabe, o atravessar o Tejo faz-me sempre abrir o apetite.

- E também os 25 minutos de atraso, também lhe provocaram ainda mais essa fome rsssss

- Nem tenho palavras nem lhe quero responder!

Já a caminho da Arrábida, ele perguntou-lhe por onde queria começar, o que ela, depois de pensar algum tempo, respondeu-lhe:

- Se o “cavalheiro” estiver de acordo, podemos começar por visitar o Convento de Nossa Senhora da Arrábida. É um local calmo, onde se vê o mar e sempre me sinto bem.

- De acordo, pois ainda sou uma “cavalheiro à moda antiga”!

- Daqueles que atiram flores às damas?

- Sou ainda mais completo: não só atiro flores como também o respectivo vaso! .
KKKKKKK !!! E nesse local podemos falar mais um pouco de seu avô.

Algum tempo depois chegaram ao convento e numa das varandas superiores admiraram o belo estuário do rio Sado e um pouco à esquerda, Troia (portuguesa que fica na margem esquerda do Sado).

Lembrou-se que quando mais novo, conheceu Troia ainda estado “selvagem”, era uma grande herança, mais tarde comprada pelo grupo Grão-Pará. Hoje tem vários pavilhões e condomínios Também se lembrou que um grande amigo dele, nas escavações arqueológicas para prática de seu curso, em determinada altura encontrou um cobra. Fugiu gritando que tinha encontrado uma cobra com mais de três metros. Os companheiros mataram a cobra e ao medi-la não tinha mais de 70 centímetros. Nesse acampamento, ficou conhecido por “Cobra de três metros”!

continua...
 
Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Virgínia Woolf (Noite de Festa)

Ah, mas vamos esperar um pouco! — A lua está no alto; o céu, aberto; e lá, erguendo-se numa elevação contra o céu, com árvores por cima, está a terra. As nuvens prateadas e fluidas contemplam ondas do Atlântico. Na esquina da rua, o vento sopra de leve e me levanta o casaco, estendendo-o delicadamente no ar antes de o deixar curvar-se e cair, como o mar que agora engrossa para rebentar nos rochedos e depois se afasta de novo. — A rua está quase vazia; as venezianas das janelas estão fechadas; as vidraças amarelas e vermelhas dos navios lançam por um momento um reflexo sobre o azul flutuante. Doce é o ar da noite. As criadas deixam-se ficar ao redor da caixa de correio ou namoram na sombra da parede onde a árvore derrama sua chuvarada escura de flores. Tal como na casca da macieira as mariposas tremem sugando açúcar pelo longo filamento negro da probóscide. Onde estamos? Que casa pode ser a casa da festa? Todas essas são pouco comunicativas, com suas janelas cor-de-rosa e amarelas. Ah — dobrando a esquina, ali no meio, lá onde a porta está aberta —, espere um momento. Vamos observar as pessoas, uma, duas, três, que se precipitam na luz como as mariposas vão de encontro ao vidro de uma lanterna que ficou no chão da floresta. Eis um táxi que passa depressa para o mesmo local. Dele desce uma dama volumosa e pálida, que entra na casa; um senhor vestido para a noite, em preto e branco, paga ao chofer e a segue, como se ele também estivesse muito apressado. Venha, porque senão nos atrasamos.

Sobre todas as cadeiras há almofadinhas macias; nesgas tênues de gaze enroscam-se por sobre sedas brilhantes; velas vertem chamas periformes nos dois lados do espelho oval; há escovas de fino casco de tartaruga; frascos talhados com lavores de prata. Pode isto ter sempre esta aparência — não é isto a essência — o espírito? Alguma coisa dissolveu meu rosto. Coisa que aliás mal aparece em meio à névoa prateada da luz das velas. Pessoas passam por mim sem me ver. Como têm rostos, as estrelas parecem cintilar em seus rostos, através da rósea coloração da carne. A sala está repleta de figuras vívidas, contudo insubstanciais, que se postam eretas à frente de prateleiras listadas por inumeráveis volumezinhos; cabeças e ombros maculam quinas de molduras quadradas com douração; e a massa de seus corpos, lisos como estátuas de pedra, aglutina-se contra uma coisa cinzenta, tumultuosa, brilhante também, como que tendo água dentro, além das janelas sem cortinas.

“Venha para o canto e vamos conversar.”

“Maravilhosos!  Maravilhosos  seres  humanos!  Espiritualizados  e maravilhosos!”

“Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary?”

“Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles.”

“As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo, que vão queimando enquanto voam — queimando, não pensando.”

“Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aqui está Shelley — aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemas descerem como paraquedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixando cair sua chuva de florações em forma de estrelas.”

“Quer que eu lhe cite Shelley? ‘Vamos! faz escuro no matagal sob a lua…’”

“Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo.”

“Vaga-lumes na glicínia.”

“Bem cruel, reconheço; mas veja como as grandes floradas surgem diante de nós; vastos candelabros de ouro e roxo fosco pendentes dos céus. Você não sente como a bela douradura nos tinge as coxas, quando entramos, e como as paredes cor de ardósia oscilam pegajosamente sobre nós, quando nos arremessamos, cada vez mais fundo, pelas pétalas, ou então se esticam como tambores?”

“O professor se agiganta sobre nós.”

“Diga-nos, Professor…”

“Madame?”

“Em sua opinião é necessário escrever gramáticas? E a pontuação? A questão das vírgulas de Shelley interessa-me profundamente.”

“Vamos sentar. Para dizer a verdade abrir janelas após o por do sol — eu de pé com as minhas costas — conversa todavia agradável — Sua pergunta, sobre as vírgulas de Shelley. Questão de certa importância. Ali, um pouco para a sua direita. A edição da Oxford. Meus óculos! O castigo dos trajes de noite! Não me aventuro a ler… Além do mais vírgulas… O tipo moderno é execrável. Concebido para corresponder à exiguidade moderna; pois eu confesso que encontro pouco de admirável nos modernos.”

“Nisso eu concordo inteiramente com o senhor.”

“Ah, é? Pois eu temia oposição. Na sua idade, nos seus — trajes.”

“Professor, eu encontro pouco de admirável nos antigos. Estes clássicos — Shelley, Keats; Browne; Gibbon; haverá uma página que o senhor possa citar inteira, um parágrafo perfeito, uma frase mesmo que não se possa ver emendada pela pena de Deus ou do homem?”

“Xi, Madame! Sua objeção tem peso, mas falta-lhe sobriedade. Além do mais a sua escolha de nomes… Em que câmara do espírito pode a senhora consorciar Shelley e Gibbon? A não ser de fato pelo ateísmo de ambos — Mas vamos ao ponto. O parágrafo perfeito, a frase perfeita; hum! — minha memória — e depois meus óculos, que eu larguei lá por trás, no parapeito da lareira. Garanto. Mas a sua crítica aplica-se à própria vida.”

“Certamente esta noite…”

“A pena do homem, imagino, poderia ter pouco trabalho para reescrever isso. A janela aberta — de pé na corrente de ar — e, permitam-me sussurrá-lo, a conversa destas senhoras, compenetradas e benevolentes, com opiniões exaltadas sobre o destino do negro que está neste momento mourejando sob chicote para extrair borracha para alguns dos nossos amigos envolvidos em amenas conversações aqui. Para desfrutar da perfeição da senhora…”

“Concordo com o senhor. Há que excluir.”

“A maior parte de tudo.”

“Mas, para demonstrar corretamente isso, temos de descer à raiz das  coisas; pois temo que sua crença seja apenas um desses amores-perfeitos que são comprados e plantados para uma noite de festa e de manhã já estão murchos. O senhor mantém a exclusão de Shakespeare?”

“Madame, eu não mantenho nada. Estas senhoras me deixaram fora de mim.”

“São mulheres benevolentes, que armaram seu acampamento à margem de um dos riachos tributários de onde, colhendo ali caniços para flechas e mergulhando-os bem em veneno, com o cabelo entrançado e a pele pintada de amarelo, elas saem de vez em quando para plantá-los nos flancos do conforto; tais são as mulheres benevolentes.”

“Os dardos que elas atiram ardem. Isso, somado ao reumatismo…”

“O professor já se foi? Coitado do velho!”

“Mas, na idade dele, como ainda poderia ter o que, na nossa, nós já estamos perdendo? Quero dizer…”

“O quê?”

“Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, uma espécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola de cristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todo o tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações, coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então era excluído; e uma coisa era certa — felicidade. Mais tarde porém, quando a gente os segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros. Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contrassenso.”

“Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúncia ele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. ‘Tão frio deve parecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.’ Isso é bom senso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cada um. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa que pode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudo compromisso — tudo segurança, o modo mais comum de relações entre seres humanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos de acreditar que há alguma coisa para descobrir. ‘Contrassenso’, você diz; querendo dizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de o tentar.”

“A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam  quando é jogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar.”

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”

“Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há de admitir que gosta mais das pessoas descontentes.”

“Gosto do som melancólico do mar distante.”

“Que história é essa de falar de melancolia em minha festa? É claro que, se vocês ficarem cochichando num canto… Mas venham e deixem-me apresentá-las. Este é Mr. Nevill, que aprecia seus escritos.”

“Nesse caso — boa noite.”

“Nalgum lugar, esqueci o nome do jornal — qualquer coisa de sua autoria — esqueço agora o título do artigo — ou era um conto? Você escreve contos? Não é poesia que você escreve? São tantos os amigos da gente, e depois todo dia está saindo alguma coisa que… que…”

“Que a gente não lê.”

“Bem, para ser honesto, por desagradável que possa parecer, ocupado como estou o dia todo com assuntos de natureza odiosa, ou melhor, fatigante — o tempo que eu tenho para a literatura eu dedico a…”

“Aos mortos.”

“Detecto ironia na sua correção.”

“Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir, enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; o relacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres.”

“Ah, se você pensa assim, vamos falar dos mortos. Lamb, Sófocles, de Quincey, Sir Thomas Browne.”

“Sir Walter Scott, Milton, Marlowe.”

“Pater, Tennyson.”

“Agora, agora, agora.”

“Tennyson, Pater.”

“Feche a porta; puxe as cortinas para que eu veja apenas seus olhos. Eu me ponho de joelhos. Cubro o rosto com as mãos. Adoro Pater. Venero Tennyson.”

“Prossiga, filha.”

“É fácil confessar nossos erros. Mas que escuridão é tão fechada para ocultar nossas virtudes? Eu amo, adoro — não, não consigo lhe dizer como minha alma é uma rosa de devoção por — o nome treme em meus lábios — Shakespeare.”

“Concedo-lhe absolvição.”

“No entanto, com que frequência se lê Shakespeare?”

“Com que frequência é a noite de verão impecável, a lua perfeita, os espaços entre as estrelas profundos como o Atlântico? Com que frequência as rosas mostram branco no escuro? A mente, antes de ler Shakespeare…”

“A noite de verão. Oh, isto sim é que é maneira de ler!”

“Rosas que ondulam…”

“Ondas quebrando…”

“Ares singulares da aurora vindos pelos campos afora para forçar as portas da casa sem surtir efeito…”

“Deitando então para dormir, a cama é…”

“Um barco! Um barco! A noite inteira no mar…”

“Com estrelas que se postam a prumo…”

“E lá no meio do oceano nosso barquinho flutuando sozinho, isolado mas sustentado, atraído pela compulsão das luzes nórdicas, seguro, cercado, dissipa-se onde a noite repousa sobre a água; lá diminui e desaparece, e nós, já submersos, lacrados na frieza das pedras lisas, abrimos nossos olhos de novo; traço, batida, ponto, salpico, mobília de quarto, e a barulhada da cortina no trilho. — Eu ganho a vida. — Apresente-me! Oh, ele conheceu o meu irmão em Oxford.”

“E você também. Venha para o meio da sala. Tem alguém aqui que se lembra de você.”

“Em criança, querida. Você usava um vestidinho cor-de-rosa.”

“O cachorro me mordeu.”

“Ficar jogando paus no mar, já pensou que perigo? Mas sua mãe…”

“Na praia, na barraca…”

“Sorria sentada. Ela adorava cachorros. — Você conhece a minha filha? Este é o marido dela. — Era Tray que ele chamava? o grande, o amarronzado, porque havia um outro, o menor, que mordeu o carteiro. Posso ver isso agora. Ah, as coisas de que a gente se lembra! Mas estou impedindo…”

“Oh, por favor (Sim, sim, eu escrevi, estou indo). Por favor, por favor. — Pro inferno, Helen, interrompendo! E lá vai ela, nunca mais — abrindo caminho entre as pessoas, ajeitando seu xale, descendo lentamente os degraus: foi-se! O passado! o passado!…”

“Ah, mas ouça. Diga-me; estou com medo; tantos estranhos; alguns barbudos; outros tão bonitos; ela esbarrou na peônia; caíram todas as pétalas. E feroz — a mulher com aqueles olhos. Os armênios morreram. E os trabalhos forçados. Por quê? Tanta tagarelice também; a não ser agora — cochichos — todos nós devemos cochichar — nós estamos ouvindo — esperando — mas então o quê? A lanterna acender! Cuidado com sua gaze! Certa vez uma mulher morreu. Dizem que isso acordou o cisne.”

“Helen está com medo. Essas lanternas de papel acendendo e as janelas abertas deixando a brisa entrar levantam nossos babados. Mas eu não estou com medo das chamas, sabe. É o jardim — quero dizer, o mundo. Que me assusta. Aquelas pequenas luzes lá longe, cada qual com um círculo de terra por baixo — cidades e morros; e depois as sombras; os movimentos do lilás. Não fique conversando. Vamos sair. Pelo jardim; sua mão na minha.”

“Vamos. Faz escuro no matagal sob a lua. Vamos, haveremos de enfrentá-las, essas ondas de escuridão coroadas pelas árvores, que se erguem para sempre, solitárias, trevosas. As luzes se levantam e caem; a água é rala como o ar; por trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga as ilhas? Sozinha comigo.”

Fonte:
WOOLF, Virgínia. A Marca na Parede e outros contos.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Trovas Sobre o Mar


Quando a terra em seu girar
o dia em trevas reduz,
a lua emerge do mar,
pingando gotas de luz!
Annibal Vitral Monteiro -  RJ

Barqueiro dos mil pesares,
acostumado entre escolhos,
tenho a tristeza dos mares
na tristeza dos meus olhos.
Antonieta Borges Alves - SP

Ó velho mar, são singelas
as tuas fúrias insanas,
comparadas às procelas
do mar das paixões humanas!...
Aparício Fernandes - RJ

Lembra o mar a mão incerta,
que oferece e quer negar:
avança fazendo oferta,
recua para não dar!
Archimino Lapagesse -  RJ

Rendeiras de toda parte,
tecelãs de fina teia,
vinde à praia ver com que arte
o mar faz rendas na areia.
Carlos Guimarães -  RJ

Do Tejo partiu a armada
de Pedro Álvares Cabral
e fez no mar uma estrada
do Brasil a Portugal.
Celso Furtado de Mendonça - RJ

O mar imenso e profundo
vai gemendo, sem parar...
Todo gemido do mundo
geme no fundo do mar!...
Colbert Rangel Coelho - RJ

No mastro ao longe oscilando,
a vela branca, a passar,
parece um lírio boiando
na superfície do mar.
Dolores Almeida -  RJ

Nas incertezas do mar
a velha jangada avança
e a esperança de voltar
fica, às vezes, na esperança.
Durval Mendonça -  RJ

Caracóis, conchas redondas,
que o mar guarda, com desvelo,
são roubados, como as ondas,
das ondas do teu cabelo...
Edgard Barcellos Cerqueira - RJ

Beija as areias do mundo
o mar, com as rendas de um véu:
volúpia que vem do fundo
ou amor que vem do céu?
Eduardo Luiz Gomes Filho - RJ

Que o mundo melhor se faça,
ante o símbolo profundo,
do mar que, eterno, entrelaça
os mil caminhos do mundo.
Fernando Burlamaqui - PE

No meu peito, tatuados,
dois corações a sangrar.
Neles, três temas lembrados:
a mulher, o porto e o mar.
Francisco Manoel Brandão - RJ

O mar, que é poeta, em rondas
de amor pela Lua-cheia,
escreve versos com as ondas
no livro branco da areia.
Geralda Ferreira de A. Marques - MG

Mar, mistério, poesia...
Se te pudesse cantar,
quantas coisas eu diria
nestas trovas a rimar...
Hesiodo de Castro Alves - RJ

No fim da esteira dourada
que, no mar, tece o arrebol,
o barco, de madrugada,
é um ponto negro no sol!
Iraci do Nascimento e Silva -  RJ

Fui Ulysses, naveguei
sem temer tufão e escolhos,
mas, ao te ver, naufraguei
no verde mar dos teus olhos!
Isimbardo Peixoto - RJ

Nós dois... Soprava o terral:
o nosso barco afastou-se...
Nunca, num leito de sal,
a vida me foi mais doce!
Jacy Pacheco - RJ

A vida é mar inclemente,
amargo, cheio de mágoas,
que põe nos olhos da gente
o gosto das suas águas.
João Rangel Coelho -  RJ

Por mais que o mar se lamente,
o seu choro não deploro:
- O mar chora, mas não sente,
eu, por sentir, é que choro!
José Maria Machado de Araújo - RJ

Meus versos - estro de monge -
querem ser luz de luar
e rios que vêm de longe
na trova que faço ao mar.
José Valeriano Rodrigues - MG

Tesouros guarda, avarento,
o mar de vagas inquietas.
Os meus, com vaidade, ostento!
- Mostro ao mundo minhas netas.
Lilinha Fernandes - RJ

O mar nos deu a receita
de um viver sábio e profundo:
sendo salgado, ele aceita
as águas doces do mundo!
Luiz Otávio - RJ

As tristezas que te sobram,
crê que as podes suportar...
As águas que o céu transborda
cabem todinhas no mar.
Manita - RJ

Enfrenta o mundo, sem medo -
mas à ofensa não respondas:
morre de encontro ao rochedo
a fúria insana das ondas!...
Maria de Lourdes Loretti Motta -  RJ

As caravelas do sonho
navegam dentro de mim,
- querendo um porto risonho,
- lutando num mar sem fim...
Nilza de Castro - RS

O mar, gigante, sereno,
tem a força das marés;
e eu, sendo assim tão pequeno,
o tenho sempre a meus pés.
Nydia Iaggi Martins - RJ

Passou... bonita de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela...
Orlando Brito - SP

Dorme o mar pesado sono.
Enquanto isso a Lua-cheia,
cansada deandar sem dono,
deita comigo na areia.
Paulo Emílio Pinto - MG

Sou triste como este mar,
que, num lamento profundo,
parece até represar
todas as mágoas do mundo.
P. de Petrus -  RJ

Bosquejo a paisagem. Traço,
na manhã que desabrocha,
gaivotas singrando o espaço,
e o mar açoitando a rocha...
Pedro Uzzo - SP

O mar tem alma... Costuma,
em noites de Lua-cheia,
cobrir de rendas de espuma
seus alvos leitos de areia...
Vasco de Castro Lima -  RJ

Duas coisas há no mundo,
de grandeza incomparável:
o amor - mistério profundo,
e o mar - abismo insondável.
Vera Milward de Carvalho - MG

Em paradoxos te esmeras,
mar, que crias, que destróis!
Verde berço de quimeras...
negro túmulo de heróis!
Vilmar de Abreu Lassance - RJ

No mar do amor, quando avista
das gaivotas os sinais,
meu peito diz: "terra à vista!"
mas nunca divisa o cais
Walter Gomes da Silva - RJ

Mar em fúria, mar em jade,
mar tranquilo, mar de altar.
- Como a calma e a tempestade
são efêmeras no mar!
Zalkind Piatigorsky -  RJ

Cícero Galeno Lopes (Não sei se disse)

Na mocidade a gente olha pra vida como vinda. É como madrugada, toda luz de porvir. De repente você se encontra com dois filhos, olha ao redor, está sozinha. Você fica olhando pela janela de muitos vidros que tem a esperança.

Você quer as coisas como gostaria que elas lhe fossem, como elas deveriam ser. Não vim aqui pra dizer só os sacrifícios nem só o desespero. Vim por trabalho. Nesta cidade, antiga e grande, só menor que a capital, as coisas vão ficando mais velhas a cada dia, porque seu coração vai se cobrindo de idas sem vindas. Tudo se vai, tudo vai indo. Vai indo seu rosto, vão indo seus cabelos, vão se sumindo as luzes, o dia vai caindo pra tarde. Os muitos vidros da janela lhe impedem ao invés de lhe abrir a vista. São obstáculos ao invés de passagens. Em lugar de você olhar pra terra, pras ruas, você fica olhando é pras estrelas, pras aves, que parece que nelas a vida não para. Porque são muitas estrelas, e você não sabe os nomes delas, porque são tantas que você duma noite pra outra não sabe se é a mesma ou outra que está na mira do seu olhar. Porque você não vê os corpos dos pássaros que morrem de natureza. Você vê apenas os que foram matados por pedradas ou venenos. Esses você vê no seu caminho.

Depois que fiquei sozinha moro numa peça emprestada, porque faz muito que nada posso pagar. A fila assim enorme que se formou pra vir falar aqui com os senhores assusta. Estou esperando minha vez desde ontem. Se os senhores vissem minha casa – a gente diz assim – aí que iam se assustar. Se eu voltar de mãos vazias desta fala com os senhores, meus filhos, de oito e dez, magrinhos e tristinhos, eles vão ter que voltar outras vezes pro hospital. De mês em mês, lá vão eles, como lá estão neste momento, tomando soro. Noutras vezes, vão amparados em mim, na busca de comer a sopinha que o hospital pode dar, que todos lá sabem que estão lá porque não têm o que engolir. Em casa, o que bebem é água e água com açúcar. Vão querer dizer, como já disseram, que sou mãe despreocupada, porque eles não vão ao colégio.

Me digam os senhores: como ir? Quando passo por um banco, fico pensando no dinheiro dos que têm. Chego a pensar - credo! - que algum assaltante até pode ter um pouco de razão de fazer o que faz. Não que concorde. Mas olhos de filho com fome, amarelinhos de desalimentação, têm força de virar pessoa. O choro deles, muito mais. Tive empregos, não coisa boa, mas possível de suportar momentos tristes.

Fiquei sozinha, porque o pai dos meninos não suportou olhar pra eles nem me ver como sou. Às vezes vem, chora disfarçado, cospe no chão, sem levantar os olhos, sem falar comigo mais que um grunhido de chegada e outro de saída, as roupas sujas, arqueado como se levasse sempre pesos mais pesados que ele. Pega um, se encosta noutro, ficam os três no chão sentados, algumas palavras que os meninos perguntam. Quando pode, bebe até dormir, caído onde estiver, nem se esconde mais. Com esta aparência alguém me dá emprego? Quer dizer, alguns, quase todos não dão. Mas aqui é emprego público. Falei com alguns na fila. Tem gente com estudos, marcas no jeito de ser de quem teve boa vida, trabalhando. Agora estão como eu. Todos não vão poder entrar: tem mais gente que lugar.

Eu, pela benção de Deus e compreensão mesmo dos senhores, tenho que pedir não dinheiro, mas emprego, que não é de fato coisa de se pedir, não deveria. Não façam por mim; façam por dois meninos que neste mesmo momento estão na cama do hospital, pra depois voltar pra casa – é como a gente se acostuma a dizer – e depois voltar pra lá. Tem outro jeito? Tem pessoas que às vezes me dizem quase sempre que compreendem minha situação. Como? Se compreendessem, me permitiriam um trabalho, mesmo que passageiro. Se deixo meus filhos todos os dias, como vai ser? Se compreendessem não negariam. As pessoas – acho – pensam que compreendem. Compreender só se vivessem como nós, eu com os meninos.

Todas as coisas que pude ter, que não foram muitas nem tão boas, se foram pra pagar armazém. Hoje pra duzentos gramas de bolachinha. Amanhã pra dois saquinhos de chá. Depois, pra meio quilo de açúcar. Quero - é o que mais preciso - pegar esse emprego. Estou cansada de virar saco de lixo. Não resolve. Não me importa que seja com lixo. O que quero é varrer as ruas, arrancar a erva, quero um salário no fim do mês. Quero de novo ter outra panela, ter caneca com alça, quero poder ter fogo de gás, um fogão, cama e uma casinha, um buraco qualquer, meu.

Quando pegar os meninos no hospital, vou contar pra eles que estou empregada, que vou ter uma chance de emprego fixo, vou poder comprar de novo com livreta pra o fim do mês e pagar do meu trabalho. Vão poder ter comida nos horários.

Se tem taxa, não posso pagar. Suas perguntas não respondi, acredito. Mais que respostas vim lhes trazer a vida que rola pelas ruas e becos desta cidade, que quero ajudar a limpar, é o que mais quero, preciso como nada. Nem é preciso muito saber pra isso. Caprichosa sempre fui, quando tinha com que. Sempre moradas humildes, de gente pobre, mas tinha. Fico pensando quando me lembro que contam que esta cidade tinha até banco com nome dela. Aonde foi? Que fizeram com ele? O governo tem parte nos bancos. Por que não ajuda quem precisa? Não quero dizer que é o que faz este governo. Quero e preciso. Me desculpem se falo mal, entorto a conversa, se meto pé por mão. Desculpem. A necessidade não é amiga da fala mansa e macia. Esse emprego é mais que emprego, é a minha vida e a dos meninos que os senhores vão devolver, queira Deus e a compreensão mesmo dos senhores. A gente vota, a gente espera. Sei ler até bem ligeiro, faço contas, posso pegar condução. Me determino.

E vassoura, empurrar carrinho de cisco, ensacar não requerem tanto mais. Acho que já disse. Se não disse o que era preciso, olhem pros meus olhos, pras covas da minha boca, vejam meus cabelos, as marcas. No verão, quando os que podem vêm ao Cassino, daqui me vou, moro na rua, fazemos biscates, os meninos ajudam. Quando se vão, vem o inverno, aí a gente teme, a gente treme. A vida vira isso de ter que pedir até mesmo pra trabalhar, porque atrás do trabalho vem o fim do mês, seguro. Não sei se disse?

Fonte:
LOPES, Cicero Galeno.A curva da estrada. Porto Alegre: Movimento, 2000.