sábado, 12 de agosto de 2017

Conto Africano (A Árvore que falava)

Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais velha do que qualquer outra.

Abrigava, sob a sua corcha toda a sabedoria de África.

A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta…

E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela escutava com todas as suas folhas.

Até os homens vinham sentar-se debaixo da árvore no momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus ramos.

A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se, enquanto eles gostavam de falar.

Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta a muitas questões.

Quando os seus filhotes estavam suficientemente grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito levá-los até à árvore. Ao cair da noite, a árvore enchia-se de chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar os mais palradores. E cada um escutava o murmúrio que subia da raiz mais profunda até ao raminho mais alto.

No dia seguinte, os jovens sabiam um pouco mais da arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!

E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de uma presa fácil.

Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e estúpidos como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes tinha ensinado porque não sabiam escutar.

Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles que precisavam para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez, sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer. Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…

Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela deixou de lhes falar.

E todos diziam que ela estava morta.
* * *

Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa, uma girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.

Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não refletia nem fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo, era um homem.

Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do homem se iluminava.

Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco.

E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das montanhas.

Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore.

Em conjunto, acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo.

É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se atreveram a segui-lo.

Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã.

Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro. Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar em conjunto.

Como o homem pegava de novo no machado para podar os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a árvore com ele fizeram -lhe sinal que parasse:

― Pequeno homem, nós ajudámos-te ― disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. ― O nosso trabalho deve ser pago.

― Mas… com que é que vos vou pagar? Eu não tenho nada, bem sabem!

― Deixa-te disso! ― insistiram os homens fortes. ― Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte.

― Não pode ser ― protestou o homem. ― É preciso que o tronco fique inteiro para este tantã. Se não, como é que a tribo poderá tocar?

Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos.
* * *

Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e também quando não lho pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra:

― O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado.

E expeliu uma baforada do seu cachimbo.

Os outros membros do Conselho, sentados em círculo, aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio.

Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.

Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos Anciãos:

― Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que estais aqui reunidos.

― Ah, não! É verdade que estamos aqui ― respondeu o Ancião.

— Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.

Expeliu uma outra baforada e calou-se.

Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:

― Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.

O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio.

Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um passo em frente.

De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente:

― O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho.

O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que decidiria mais tarde!

De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno homem assim o fez porque era costume dar uma prenda aos Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos.

E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar.

E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas, toras e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.
* * *

Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava para fazer um bom tambor para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido.

― Ah! És tu? ― disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. ― O que queres de mim?

― Se fazes favor, podias emprestar-me o teu podão? ― perguntou muito educadamente o pequeno homem.

― Eh! ― respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo a quem interromperam a digestão. ― Não me deixas dormir com esse barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão! E se eu precisar dele?

― Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!

― O que me dás em troca?

― Sabes bem que não tenho nada de meu.

― Ah não? E essa árvore? É tua, não é?

― Sim, mas… ― começou o pequeno homem.

― Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu podão.

Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o pequeno homem precisava.

Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou.

Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha cinzel para o fazer.

De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore?

Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.

― Tu, outra vez! ― bocejou o vizinho. ― O que queres?

― Desculpa ― disse o pequeno homem com a sua voz gentil. ― Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes o favor.

― Em troca? ― zombou o vizinho. ― Não há troca nenhuma porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.

Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som chegasse mais longe. Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para atear uma fogueira. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.

Foi então pedir aos homens fortes, que faziam uma grande fogueira, a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.

― De acordo, ― disseram eles ― mas com a condição de pores uma acha na nossa fogueira, como todos fazem.

― Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! ― respondeu.

― Ah sim? E isto, não é madeira? ― perguntou o mais forte dos homens fortes, indicando o pequeno tantã.

Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz.

E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar o seu belo projeto.

Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande tambor.

Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá a esta espécie de tambor, em África). Mas o pequeno homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.

Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que seria mais fácil falar com ela.

― Bom dia ― disse à criança.

― Bom dia ― respondeu ela. ― És tu que dás madeira a toda a gente em troca de uma ferramenta ou de lume?

― Sim, quer dizer… ― começou ele.

― O que queres de mim? ― interrompeu a criança.

― Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho madeira para te dar.

― É pena ― disse a rapariga. ― Justamente, também eu necessito de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.

― Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta ― suplicou o pequeno homem.

― Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! ― retorquiu a criança.

E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.

A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê-la para a tornar mais suave e tão sólida como o couro.

Só faltava levá-la ao curtidor.

Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros não teriam querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro insuportável das peles molhadas.

Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como prêmio do seu trabalho.

― Mas já não há nenhuma árvore! ― lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor!

― De acordo ― concluiu o curtidor. ― Contentar-me-ei com um bocado do tambor.

E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé.

Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer.

Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida.

Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.

O pequeno homem regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho.

Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e a coragem voltou-lhe. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.

O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o homem não ficou decepcionado, porque era um belo djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, o homem quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta.

O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira.

Um por um, todos os da tribo se aproximaram dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno tambor. E faziam silêncio.

Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras, faziam silêncio.

Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber, por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.

E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África.

A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta.

Até os homens…

Fonte:
Do Spillers. L’arbre qui parle. Toulouse, Milan Poche, 1999. Disponível em Contos de Encantar

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte I

Novela em 5 partes.

Novela de Carlos Leite Ribeiro 
Embora romanceada, é baseada em fatos reais, passados por familiar de uma pessoa amiga, cujos fatos se passaram em Portugal e no Brasil.
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Este livro foi escrito, em parte, baseado sobre o filme de ficção “Casablanca” (*) produzido em 1942. Comecei então a imaginar: o que teria acontecido a estas personagens depois de Casablanca? Como dizia o Mestre Almada Negreiros: “a caverna da mente dos escritores é insondável e imprevista …”. E assim, comecei a escrever este livro, que é pura ficção.
Carlos Leite Ribeiro

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(*) Casablanca, (Marrocos – África Oriental) em árabe “dar al-Bayda ou Dar el-Beida” que quer dizer “a casa branca”. Cidade de Marrocos e seu principal porto no oceano Atlântico. Casablanca desenvolveu-se durante o período colonial francês. Em Janeiro de 1943, realizou-se nesta cidade marroquina, uma conferência entre Churchill e Roosevelt, no decurso da qual os generais franceses De Gaulle e Giraud tiveram o primeiro encontro.

Ambos trabalharam durante muitos anos num escritório de advogados em Lisboa, em gabinetes diferentes e separados. Quando se cruzavam no corredor, davam um simples cumprimento, como: “olá”; “bom dia”; “tarde”. Só uma vez em tantos anos, ele deu-lhe uma boleia (carona), numa tarde muito chuvosa, até ao Metro que nem ficava longe do escritório, pois ela tinha o carro a reparar. Nem almoçavam no mesmo restaurante.

Os anos foram passando e chegou a altura da reforma: primeiro ela e meses depois ele. Por casualidade, ambos começaram a lanchar na mesma pastelaria que ficava no centro de Lisboa. Olhavam um para o outro, sorriam e cumprimentavam-se.

Certo dia e também por casualidade, ela sentou-se numa mesa junto à mesa que ele ocupava.

- Então Dona Ivone, como vai a sua vidinha, depois de se reformar?

- Vai bem Sr. Júlio, só com uns “achaques” de vez em quando, devido à idade. E a sua vidinha como vai – perguntou-lhe ela, o que ele respondeu-lhe:

- Descontando o reumatismo e uns “ataques” de artrite, vai indo bem. E podia ser melhor se os impostos não fossem tão altos!

- Desse mal, também me queixo, meu caro amigo (não sei se possa e deva trata-lo como amigo?)

- Trate-me como quiser, desde que retire o “Sr”. Pode tratar-me só por Júlio e eu a tratarei só por Ivone. Está de acordo?

Começou a ser habitual os tais encontros naquela pastelaria, só com a diferença de ambos se sentarem na mesma mesa. Durante semanas, as conversas foram banais, praticamente só falando dos filhos e dos netos. Até que um dia, começaram a falar de suas famílias. A determinada altura, Ivone perguntou-lhe:

- Júlio, o que lhe vou perguntar, corro o risco de estar completamente enganada. Seu sobrenome é Blaine – certo?

- Desde que nasci – disse-lhe ele com um sorriso aberto.

- O sobrenome Lund, não lhe diz nada?

- Confesso que não, mas porquê?

- O nome de seu avô, por acaso não era Rick Blaine?

- Sim, era do sobrenome do meu avô paterno. Mas porque essa pergunta, digamos tão “misteriosa?

- Minha avó escreveu um diário que quando morreu, entregou-o a minha mão que por sua vez mo deu a mim. Nesse diário, minha avó materna, conta que conheceu durante a segunda guerra, um americano de nome Rick Blaine, o qual foi a paixão de sua vida.

- Meu avô Rick, foi um aventureiro, digamos compulsivo. Conseguiu fugir de França quando os alemães ocuparam-na, e durante uns anos fixou-se em Casablanca.´, em pleno Marrocos.

- Então acertei, é mesmo de seu avô que estou a falar, mas fale de seu avô.

- Segundo as “crônicas” da família, meu avô em Casablanca, teve de matar um general ou major alemão para ajudar a fugir uma mulher que até era casada.

- Até aqui conheço a história, que depois lhe contarei. O que foi feito de seu avô?

- Quero saber essa história direitinha. Continuando a falar do que dizem as crônicas familiares. Meu avô Rick teve de fugir de Casablanca para Brazzaville (ex- Congo Belga), onde montou um bar em parceria com um chefe de polícia que tinha conhecido em Casablanca, e parece que ajudou a matar o tal general alemão. O Louis Renault.

Mas Brazzaville era um ninho de nazistas que estavam espalhados por toda a parte e, por azar, foi lá assassinado. Meu avô mais uma vez teve de abandonar o negócio e fugir com a filha do Louis Renault, para Lourenço Marques (hoje Maputo) em Moçambique e lá casou com ela, ou seja com minha avó. Casamento esse que durou pouco tempo, pois minha avó fugiu, levando-lhe todo o seu dinheiro, abandonando – o assim como o filho.

Meu avô teve de trabalhar no duro em Moçambique, para poder sobreviver. Entretanto, uma família portuguesa que vivia nesse país africano, acolheu e mais tarde adotou meu pai. Quando regressaram a Portugal, trouxeram meu pai que cá casou e eu nasci aqui nesta bela cidade que é Lisboa.

- Nunca soube mais nada de seu avô Rick?. Só agora reparo que já é noite e tenho que me ir embora. Amanhã continuaremos a história. Esta noite quero dar uma vista de olhos pelo diário que minha avó Ilsa Lund escreveu.

- Sim, já é noite e estava quase a convidá-la para jantar comigo. Como quer ir para casa, eu acompanho-a até lá.

Foi uma noite em que ambos tiveram dificuldade em adormecer. Ela impressionada com o que ele lhe contou do avô; ela desejosa de lhe contar a história de sua avó. Ambos tiveram vontade de ligar um ao outro, mas tinham receio de incomodar a outra parte. Por fim, Ivone encheu-se de coragem e ligou para ele.

- É o Júlio? Desculpe de lhe ligar a esta hora…

- É um prazer ouvi-la! Também tinha vontade de lhe ligar, mas não queria incomodá-la. Pelos vistos, ambos estamos com dificuldade em adormecer!

- Estou deitada a passar os olhos sobre o diário de minha avó.

- Tem encontrado coisas interessantes?

- Afirmativo, mas não lhe vou contar aqui pelo telefone. Nem antes de saber toda a história de seu avô! Temos muito que falar sobre nossos avós!

- Deve ser preciso muitas horas! Atrevo-me a convidá-la para um almoço, pois assim teríamos mais tempo para dar à língua. Aceita?

- Aceito!

- Já amanhã?

- Amanhã não pode ser pois tenho cá em casa a senhora que faz a limpeza. Se o Júlio aceitar, poderá ser na próxima sexta-feira?

- Por mim está tudo bem. E onde a Ivone quer almoçar (e se quiser jantar também), diga que eu aceito. E também diga a hora em que posso a ir buscar no fundo da sua rua.

- Gosto muito da beira-mar da zona de Setúbal. Mas só almoçar.

- Proponho-lhe a Serra de Arrábida, depois as praias da Figueirinha, Portinho da Arrábida e almoçar em Sesimbra no restaurante “O Velho e o Mar”, que tem sempre um peixe espetacular.

- Também gosto muito da Arrábida, de suas belas praias e de Sesimbra e também conheço esse restaurante. Também conheço o belo Convento de Nossa Senhora da Arrábida. A hora, pode ser às 10?…

- Amiga Ivone, não pode ser mais cedo? Tomávamos o pequeno almoço em Almada.

- Pensando bem, o Júlio pode vir-me esperar ás 08.30. E o pequeno almoço poderá ser em Corroios, numa pastelaria que também conheço e tem sempre bolos quentinhos rssss.

- Então até sexta-feira e tente fazer um soninho bem descansado.

- Também tenha uma boa noite. Abraço.

- Um beijo!

No dia e hora combinada, Júlio estava no fundo da rua esperando a Ivone. Quando já estava com o telemóvel (celular) na mão para lhe ligar para lhe perguntar se tinha esquecido o combinado, quando ela apareceu junto ao carro e logo que entrou, perguntou-lhe:

- Não estou muito atrasada, pois não?

- Claro que não. A Ivone só está atrasada 25 minutos!

- Pelo meu relógio, são só 20 minutos, Veja se acerta seu relógio!

Ele deu uma sonora gargalhada e partiram para o passeio. Depois de passar a Ponte 25 de Abril e já à entrada de Almada, ela disse-lhe que estava com muita fome e se podiam ir tomar o pequeno almoço a Almada, talvez a um Shopping, desculpando-se:

- Sabe, o atravessar o Tejo faz-me sempre abrir o apetite.

- E também os 25 minutos de atraso, também lhe provocaram ainda mais essa fome rsssss

- Nem tenho palavras nem lhe quero responder!

Já a caminho da Arrábida, ele perguntou-lhe por onde queria começar, o que ela, depois de pensar algum tempo, respondeu-lhe:

- Se o “cavalheiro” estiver de acordo, podemos começar por visitar o Convento de Nossa Senhora da Arrábida. É um local calmo, onde se vê o mar e sempre me sinto bem.

- De acordo, pois ainda sou uma “cavalheiro à moda antiga”!

- Daqueles que atiram flores às damas?

- Sou ainda mais completo: não só atiro flores como também o respectivo vaso! .
KKKKKKK !!! E nesse local podemos falar mais um pouco de seu avô.

Algum tempo depois chegaram ao convento e numa das varandas superiores admiraram o belo estuário do rio Sado e um pouco à esquerda, Troia (portuguesa que fica na margem esquerda do Sado).

Lembrou-se que quando mais novo, conheceu Troia ainda estado “selvagem”, era uma grande herança, mais tarde comprada pelo grupo Grão-Pará. Hoje tem vários pavilhões e condomínios Também se lembrou que um grande amigo dele, nas escavações arqueológicas para prática de seu curso, em determinada altura encontrou um cobra. Fugiu gritando que tinha encontrado uma cobra com mais de três metros. Os companheiros mataram a cobra e ao medi-la não tinha mais de 70 centímetros. Nesse acampamento, ficou conhecido por “Cobra de três metros”!

continua...
 
Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Virgínia Woolf (Noite de Festa)

Ah, mas vamos esperar um pouco! — A lua está no alto; o céu, aberto; e lá, erguendo-se numa elevação contra o céu, com árvores por cima, está a terra. As nuvens prateadas e fluidas contemplam ondas do Atlântico. Na esquina da rua, o vento sopra de leve e me levanta o casaco, estendendo-o delicadamente no ar antes de o deixar curvar-se e cair, como o mar que agora engrossa para rebentar nos rochedos e depois se afasta de novo. — A rua está quase vazia; as venezianas das janelas estão fechadas; as vidraças amarelas e vermelhas dos navios lançam por um momento um reflexo sobre o azul flutuante. Doce é o ar da noite. As criadas deixam-se ficar ao redor da caixa de correio ou namoram na sombra da parede onde a árvore derrama sua chuvarada escura de flores. Tal como na casca da macieira as mariposas tremem sugando açúcar pelo longo filamento negro da probóscide. Onde estamos? Que casa pode ser a casa da festa? Todas essas são pouco comunicativas, com suas janelas cor-de-rosa e amarelas. Ah — dobrando a esquina, ali no meio, lá onde a porta está aberta —, espere um momento. Vamos observar as pessoas, uma, duas, três, que se precipitam na luz como as mariposas vão de encontro ao vidro de uma lanterna que ficou no chão da floresta. Eis um táxi que passa depressa para o mesmo local. Dele desce uma dama volumosa e pálida, que entra na casa; um senhor vestido para a noite, em preto e branco, paga ao chofer e a segue, como se ele também estivesse muito apressado. Venha, porque senão nos atrasamos.

Sobre todas as cadeiras há almofadinhas macias; nesgas tênues de gaze enroscam-se por sobre sedas brilhantes; velas vertem chamas periformes nos dois lados do espelho oval; há escovas de fino casco de tartaruga; frascos talhados com lavores de prata. Pode isto ter sempre esta aparência — não é isto a essência — o espírito? Alguma coisa dissolveu meu rosto. Coisa que aliás mal aparece em meio à névoa prateada da luz das velas. Pessoas passam por mim sem me ver. Como têm rostos, as estrelas parecem cintilar em seus rostos, através da rósea coloração da carne. A sala está repleta de figuras vívidas, contudo insubstanciais, que se postam eretas à frente de prateleiras listadas por inumeráveis volumezinhos; cabeças e ombros maculam quinas de molduras quadradas com douração; e a massa de seus corpos, lisos como estátuas de pedra, aglutina-se contra uma coisa cinzenta, tumultuosa, brilhante também, como que tendo água dentro, além das janelas sem cortinas.

“Venha para o canto e vamos conversar.”

“Maravilhosos!  Maravilhosos  seres  humanos!  Espiritualizados  e maravilhosos!”

“Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary?”

“Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles.”

“As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo, que vão queimando enquanto voam — queimando, não pensando.”

“Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aqui está Shelley — aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemas descerem como paraquedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixando cair sua chuva de florações em forma de estrelas.”

“Quer que eu lhe cite Shelley? ‘Vamos! faz escuro no matagal sob a lua…’”

“Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo.”

“Vaga-lumes na glicínia.”

“Bem cruel, reconheço; mas veja como as grandes floradas surgem diante de nós; vastos candelabros de ouro e roxo fosco pendentes dos céus. Você não sente como a bela douradura nos tinge as coxas, quando entramos, e como as paredes cor de ardósia oscilam pegajosamente sobre nós, quando nos arremessamos, cada vez mais fundo, pelas pétalas, ou então se esticam como tambores?”

“O professor se agiganta sobre nós.”

“Diga-nos, Professor…”

“Madame?”

“Em sua opinião é necessário escrever gramáticas? E a pontuação? A questão das vírgulas de Shelley interessa-me profundamente.”

“Vamos sentar. Para dizer a verdade abrir janelas após o por do sol — eu de pé com as minhas costas — conversa todavia agradável — Sua pergunta, sobre as vírgulas de Shelley. Questão de certa importância. Ali, um pouco para a sua direita. A edição da Oxford. Meus óculos! O castigo dos trajes de noite! Não me aventuro a ler… Além do mais vírgulas… O tipo moderno é execrável. Concebido para corresponder à exiguidade moderna; pois eu confesso que encontro pouco de admirável nos modernos.”

“Nisso eu concordo inteiramente com o senhor.”

“Ah, é? Pois eu temia oposição. Na sua idade, nos seus — trajes.”

“Professor, eu encontro pouco de admirável nos antigos. Estes clássicos — Shelley, Keats; Browne; Gibbon; haverá uma página que o senhor possa citar inteira, um parágrafo perfeito, uma frase mesmo que não se possa ver emendada pela pena de Deus ou do homem?”

“Xi, Madame! Sua objeção tem peso, mas falta-lhe sobriedade. Além do mais a sua escolha de nomes… Em que câmara do espírito pode a senhora consorciar Shelley e Gibbon? A não ser de fato pelo ateísmo de ambos — Mas vamos ao ponto. O parágrafo perfeito, a frase perfeita; hum! — minha memória — e depois meus óculos, que eu larguei lá por trás, no parapeito da lareira. Garanto. Mas a sua crítica aplica-se à própria vida.”

“Certamente esta noite…”

“A pena do homem, imagino, poderia ter pouco trabalho para reescrever isso. A janela aberta — de pé na corrente de ar — e, permitam-me sussurrá-lo, a conversa destas senhoras, compenetradas e benevolentes, com opiniões exaltadas sobre o destino do negro que está neste momento mourejando sob chicote para extrair borracha para alguns dos nossos amigos envolvidos em amenas conversações aqui. Para desfrutar da perfeição da senhora…”

“Concordo com o senhor. Há que excluir.”

“A maior parte de tudo.”

“Mas, para demonstrar corretamente isso, temos de descer à raiz das  coisas; pois temo que sua crença seja apenas um desses amores-perfeitos que são comprados e plantados para uma noite de festa e de manhã já estão murchos. O senhor mantém a exclusão de Shakespeare?”

“Madame, eu não mantenho nada. Estas senhoras me deixaram fora de mim.”

“São mulheres benevolentes, que armaram seu acampamento à margem de um dos riachos tributários de onde, colhendo ali caniços para flechas e mergulhando-os bem em veneno, com o cabelo entrançado e a pele pintada de amarelo, elas saem de vez em quando para plantá-los nos flancos do conforto; tais são as mulheres benevolentes.”

“Os dardos que elas atiram ardem. Isso, somado ao reumatismo…”

“O professor já se foi? Coitado do velho!”

“Mas, na idade dele, como ainda poderia ter o que, na nossa, nós já estamos perdendo? Quero dizer…”

“O quê?”

“Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, uma espécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola de cristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todo o tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações, coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então era excluído; e uma coisa era certa — felicidade. Mais tarde porém, quando a gente os segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros. Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contrassenso.”

“Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúncia ele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. ‘Tão frio deve parecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.’ Isso é bom senso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cada um. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa que pode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudo compromisso — tudo segurança, o modo mais comum de relações entre seres humanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos de acreditar que há alguma coisa para descobrir. ‘Contrassenso’, você diz; querendo dizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de o tentar.”

“A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam  quando é jogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar.”

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”

“Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há de admitir que gosta mais das pessoas descontentes.”

“Gosto do som melancólico do mar distante.”

“Que história é essa de falar de melancolia em minha festa? É claro que, se vocês ficarem cochichando num canto… Mas venham e deixem-me apresentá-las. Este é Mr. Nevill, que aprecia seus escritos.”

“Nesse caso — boa noite.”

“Nalgum lugar, esqueci o nome do jornal — qualquer coisa de sua autoria — esqueço agora o título do artigo — ou era um conto? Você escreve contos? Não é poesia que você escreve? São tantos os amigos da gente, e depois todo dia está saindo alguma coisa que… que…”

“Que a gente não lê.”

“Bem, para ser honesto, por desagradável que possa parecer, ocupado como estou o dia todo com assuntos de natureza odiosa, ou melhor, fatigante — o tempo que eu tenho para a literatura eu dedico a…”

“Aos mortos.”

“Detecto ironia na sua correção.”

“Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir, enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; o relacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres.”

“Ah, se você pensa assim, vamos falar dos mortos. Lamb, Sófocles, de Quincey, Sir Thomas Browne.”

“Sir Walter Scott, Milton, Marlowe.”

“Pater, Tennyson.”

“Agora, agora, agora.”

“Tennyson, Pater.”

“Feche a porta; puxe as cortinas para que eu veja apenas seus olhos. Eu me ponho de joelhos. Cubro o rosto com as mãos. Adoro Pater. Venero Tennyson.”

“Prossiga, filha.”

“É fácil confessar nossos erros. Mas que escuridão é tão fechada para ocultar nossas virtudes? Eu amo, adoro — não, não consigo lhe dizer como minha alma é uma rosa de devoção por — o nome treme em meus lábios — Shakespeare.”

“Concedo-lhe absolvição.”

“No entanto, com que frequência se lê Shakespeare?”

“Com que frequência é a noite de verão impecável, a lua perfeita, os espaços entre as estrelas profundos como o Atlântico? Com que frequência as rosas mostram branco no escuro? A mente, antes de ler Shakespeare…”

“A noite de verão. Oh, isto sim é que é maneira de ler!”

“Rosas que ondulam…”

“Ondas quebrando…”

“Ares singulares da aurora vindos pelos campos afora para forçar as portas da casa sem surtir efeito…”

“Deitando então para dormir, a cama é…”

“Um barco! Um barco! A noite inteira no mar…”

“Com estrelas que se postam a prumo…”

“E lá no meio do oceano nosso barquinho flutuando sozinho, isolado mas sustentado, atraído pela compulsão das luzes nórdicas, seguro, cercado, dissipa-se onde a noite repousa sobre a água; lá diminui e desaparece, e nós, já submersos, lacrados na frieza das pedras lisas, abrimos nossos olhos de novo; traço, batida, ponto, salpico, mobília de quarto, e a barulhada da cortina no trilho. — Eu ganho a vida. — Apresente-me! Oh, ele conheceu o meu irmão em Oxford.”

“E você também. Venha para o meio da sala. Tem alguém aqui que se lembra de você.”

“Em criança, querida. Você usava um vestidinho cor-de-rosa.”

“O cachorro me mordeu.”

“Ficar jogando paus no mar, já pensou que perigo? Mas sua mãe…”

“Na praia, na barraca…”

“Sorria sentada. Ela adorava cachorros. — Você conhece a minha filha? Este é o marido dela. — Era Tray que ele chamava? o grande, o amarronzado, porque havia um outro, o menor, que mordeu o carteiro. Posso ver isso agora. Ah, as coisas de que a gente se lembra! Mas estou impedindo…”

“Oh, por favor (Sim, sim, eu escrevi, estou indo). Por favor, por favor. — Pro inferno, Helen, interrompendo! E lá vai ela, nunca mais — abrindo caminho entre as pessoas, ajeitando seu xale, descendo lentamente os degraus: foi-se! O passado! o passado!…”

“Ah, mas ouça. Diga-me; estou com medo; tantos estranhos; alguns barbudos; outros tão bonitos; ela esbarrou na peônia; caíram todas as pétalas. E feroz — a mulher com aqueles olhos. Os armênios morreram. E os trabalhos forçados. Por quê? Tanta tagarelice também; a não ser agora — cochichos — todos nós devemos cochichar — nós estamos ouvindo — esperando — mas então o quê? A lanterna acender! Cuidado com sua gaze! Certa vez uma mulher morreu. Dizem que isso acordou o cisne.”

“Helen está com medo. Essas lanternas de papel acendendo e as janelas abertas deixando a brisa entrar levantam nossos babados. Mas eu não estou com medo das chamas, sabe. É o jardim — quero dizer, o mundo. Que me assusta. Aquelas pequenas luzes lá longe, cada qual com um círculo de terra por baixo — cidades e morros; e depois as sombras; os movimentos do lilás. Não fique conversando. Vamos sair. Pelo jardim; sua mão na minha.”

“Vamos. Faz escuro no matagal sob a lua. Vamos, haveremos de enfrentá-las, essas ondas de escuridão coroadas pelas árvores, que se erguem para sempre, solitárias, trevosas. As luzes se levantam e caem; a água é rala como o ar; por trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga as ilhas? Sozinha comigo.”

Fonte:
WOOLF, Virgínia. A Marca na Parede e outros contos.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Trovas Sobre o Mar


Quando a terra em seu girar
o dia em trevas reduz,
a lua emerge do mar,
pingando gotas de luz!
Annibal Vitral Monteiro -  RJ

Barqueiro dos mil pesares,
acostumado entre escolhos,
tenho a tristeza dos mares
na tristeza dos meus olhos.
Antonieta Borges Alves - SP

Ó velho mar, são singelas
as tuas fúrias insanas,
comparadas às procelas
do mar das paixões humanas!...
Aparício Fernandes - RJ

Lembra o mar a mão incerta,
que oferece e quer negar:
avança fazendo oferta,
recua para não dar!
Archimino Lapagesse -  RJ

Rendeiras de toda parte,
tecelãs de fina teia,
vinde à praia ver com que arte
o mar faz rendas na areia.
Carlos Guimarães -  RJ

Do Tejo partiu a armada
de Pedro Álvares Cabral
e fez no mar uma estrada
do Brasil a Portugal.
Celso Furtado de Mendonça - RJ

O mar imenso e profundo
vai gemendo, sem parar...
Todo gemido do mundo
geme no fundo do mar!...
Colbert Rangel Coelho - RJ

No mastro ao longe oscilando,
a vela branca, a passar,
parece um lírio boiando
na superfície do mar.
Dolores Almeida -  RJ

Nas incertezas do mar
a velha jangada avança
e a esperança de voltar
fica, às vezes, na esperança.
Durval Mendonça -  RJ

Caracóis, conchas redondas,
que o mar guarda, com desvelo,
são roubados, como as ondas,
das ondas do teu cabelo...
Edgard Barcellos Cerqueira - RJ

Beija as areias do mundo
o mar, com as rendas de um véu:
volúpia que vem do fundo
ou amor que vem do céu?
Eduardo Luiz Gomes Filho - RJ

Que o mundo melhor se faça,
ante o símbolo profundo,
do mar que, eterno, entrelaça
os mil caminhos do mundo.
Fernando Burlamaqui - PE

No meu peito, tatuados,
dois corações a sangrar.
Neles, três temas lembrados:
a mulher, o porto e o mar.
Francisco Manoel Brandão - RJ

O mar, que é poeta, em rondas
de amor pela Lua-cheia,
escreve versos com as ondas
no livro branco da areia.
Geralda Ferreira de A. Marques - MG

Mar, mistério, poesia...
Se te pudesse cantar,
quantas coisas eu diria
nestas trovas a rimar...
Hesiodo de Castro Alves - RJ

No fim da esteira dourada
que, no mar, tece o arrebol,
o barco, de madrugada,
é um ponto negro no sol!
Iraci do Nascimento e Silva -  RJ

Fui Ulysses, naveguei
sem temer tufão e escolhos,
mas, ao te ver, naufraguei
no verde mar dos teus olhos!
Isimbardo Peixoto - RJ

Nós dois... Soprava o terral:
o nosso barco afastou-se...
Nunca, num leito de sal,
a vida me foi mais doce!
Jacy Pacheco - RJ

A vida é mar inclemente,
amargo, cheio de mágoas,
que põe nos olhos da gente
o gosto das suas águas.
João Rangel Coelho -  RJ

Por mais que o mar se lamente,
o seu choro não deploro:
- O mar chora, mas não sente,
eu, por sentir, é que choro!
José Maria Machado de Araújo - RJ

Meus versos - estro de monge -
querem ser luz de luar
e rios que vêm de longe
na trova que faço ao mar.
José Valeriano Rodrigues - MG

Tesouros guarda, avarento,
o mar de vagas inquietas.
Os meus, com vaidade, ostento!
- Mostro ao mundo minhas netas.
Lilinha Fernandes - RJ

O mar nos deu a receita
de um viver sábio e profundo:
sendo salgado, ele aceita
as águas doces do mundo!
Luiz Otávio - RJ

As tristezas que te sobram,
crê que as podes suportar...
As águas que o céu transborda
cabem todinhas no mar.
Manita - RJ

Enfrenta o mundo, sem medo -
mas à ofensa não respondas:
morre de encontro ao rochedo
a fúria insana das ondas!...
Maria de Lourdes Loretti Motta -  RJ

As caravelas do sonho
navegam dentro de mim,
- querendo um porto risonho,
- lutando num mar sem fim...
Nilza de Castro - RS

O mar, gigante, sereno,
tem a força das marés;
e eu, sendo assim tão pequeno,
o tenho sempre a meus pés.
Nydia Iaggi Martins - RJ

Passou... bonita de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela...
Orlando Brito - SP

Dorme o mar pesado sono.
Enquanto isso a Lua-cheia,
cansada deandar sem dono,
deita comigo na areia.
Paulo Emílio Pinto - MG

Sou triste como este mar,
que, num lamento profundo,
parece até represar
todas as mágoas do mundo.
P. de Petrus -  RJ

Bosquejo a paisagem. Traço,
na manhã que desabrocha,
gaivotas singrando o espaço,
e o mar açoitando a rocha...
Pedro Uzzo - SP

O mar tem alma... Costuma,
em noites de Lua-cheia,
cobrir de rendas de espuma
seus alvos leitos de areia...
Vasco de Castro Lima -  RJ

Duas coisas há no mundo,
de grandeza incomparável:
o amor - mistério profundo,
e o mar - abismo insondável.
Vera Milward de Carvalho - MG

Em paradoxos te esmeras,
mar, que crias, que destróis!
Verde berço de quimeras...
negro túmulo de heróis!
Vilmar de Abreu Lassance - RJ

No mar do amor, quando avista
das gaivotas os sinais,
meu peito diz: "terra à vista!"
mas nunca divisa o cais
Walter Gomes da Silva - RJ

Mar em fúria, mar em jade,
mar tranquilo, mar de altar.
- Como a calma e a tempestade
são efêmeras no mar!
Zalkind Piatigorsky -  RJ