terça-feira, 9 de agosto de 2016

Folclore Japonês (Tokoyo, A filha do Samurai)


Tokoyo é um conto de perigo, amor, sacrifício e aventura do Japão antigo. Conta a lenda que na “Terra do Sol Nascente”, durante a regência de Hojo Takatoki (início do século XIV dC), vivia uma jovem chamada Tokoyo que cresceu com o pai, o samurai Oribe Shima. Eles viviam na província de Shima, onde muitos ganhavam a vida no mar. Os dois viviam muito felizes, e a convivência da jovem menina com os samurais a ensinou a ser forte.

Um fatídico dia, vítima de uma conspiração, o samurai (invejado por muitos por suas habilidades) foi acusado de ser o responsável por agravar a doença do imperador. Assim, ele foi banido para a pequena e distante ilha Kamishima, nas Ilhas Oki. 


Após o triste episódio, Tokoyo, que amava muito seu pai, ficou inconsolável, e determinada a reencontrar a única família que lhe restava. Sozinha em sua antiga casa na província de Shima, Tokoyo chorava dia e noite. Então um dia ela decidiu partir de sua terra em uma jornada para encontrar e resgatá-lo. Primeiro, ela vendeu todos os seus bens a um comerciante local para juntar dinheiro suficiente para a sua empreitada.

A jovem então partiu em sua longa viagem até o litoral de Akasaki, de onde mal podia avistar ao longe a ilha em que se encontrava exilado seu amado pai. Tokoyo tentou convencer os pescadores locais a levá-la até a ilha, mas por não ter dinheiro o bastante para oferecer-lhes, estes se recusaram. Mesmo assim, a determinada menina não desistiu.

O sol já tinha se posto e as estrelas acordado, quando naquela mesma noite, ela encontrou um pequeno e velho barco semi-enterrado e coberto de algas nas areias da baía. Experiente em assuntos do mar, pois quando criança ela costumava mergulhar com as mulheres de sua aldeia para coletar conchas e pérolas, partiu imediatamente rumo à ilha. Foi uma viagem difícil por águas tortuosas com o pequeno barco, mas isso não era nada para a valente Tokoyo.

Ainda estava escuro quando ela chegou à costa. Desembarcando, a jovem passou o dia todo procurando por seu pai na ilha, mas não o encontrou. A noite chegou, e Tokoyo muito cansada e triste decidiu descansar debaixo de uma árvore.

Depois de algumas horas, ela foi despertada pelo som de uma voz feminina que em  soluços pedia: “Não, por favor, você não pode fazer isso! Eu não sou o sacrifício!” Lamentava a voz. “É honroso morrer pela vila, e por causa do dragão. Você deve entender isso.” Respondeu outra figura materializada a partir da crescente escuridão, segurando-a, tentando confortá-la, e, ao mesmo tempo, murmurando orações.

Tokoyo, escondida atrás de um arbusto, avistou uma jovem vestida com uma túnica branca acompanhada de um monge. Eles estavam de pé na beira de um penhasco, e o monge murmurava repetindo: “Namu Amida Butsu.” A menina lutando estava sem fôlego de tanto gritar e brigar, caindo de joelhos, gotas de água salgada refletindo crepúsculo. “Não! Não! Por favor, tenha misericórdia, tenha misericórdia.” Chorava a menina. “Lembre-se! Seu nobre sacrifício, e seu amor vão renascer em gerações vindouras. Você está criando um futuro melhor, querida. Mantenha isso em seu coração, pois este é o seu destino.” Repetia-lhe o sacerdote, que terminando a sua oração, levou a menina até a borda das rochas, e ameaçava empurra-la penhasco abaixo sobre o mar, quando Tokoyo correu em seu socorro.

O monge, diante da abrupta interrupção, tentou responder pacientemente à intervenção de Tokoyo. Segundo o seu relato, uma antiga serpente-dragão chamado Yofune-Nushi, habitava uma caverna nas profundezas dos mares em torno das ilhas Oki. Yofune-Nushi durante décadas aterrorizou as pessoas da ilha e ameaçava  evocar tempestades e destruir a indústria da pesca (única fonte de renda dos aldeões), a menos que lhe sacrificassem uma virgem a cada ano, em 13 de Junho. Dizia-se que, enquanto eles mantivessem a sua parte no sangrento acordo, o temido dragão iria deixar a cidade em paz.

Tokoyo sentiu a injustiça sofrida pelas donzelas diante de um trágico destino, e mesmo angustiada para resgatar seu pai, resignada, ofereceu-se para tomar o lugar da jovem. Vestiu então a túnica branca ofertada pela menina, e saltou do penhasco mergulhando no oceano gelado com um punhal entre os dentes, para o espanto do sacerdote e da garota.

Tokoyo mergulhou cada vez mais fundo, através das águas iluminadas pelo sol que já acordara no céu, lutando contra a sensação gelada que inundava seu corpo. Abaixo, abaixo ela nadou, passando escalas intermináveis de escorregadios peixes de prata, e formações de corais de tirar o fôlego. Afastando-se, ela nadou mais profundamente.

A luz solar que havia preenchido previamente o oceano com um sentimento calorosamente feliz, foi lentamente sendo apagados enquanto nadava mais profundo, até que encontrou uma caverna em uma floresta de algas.

Todo o lugar reluzia com conchas, pérolas e luzes fosforescentes. Na entrada da caverna havia uma pequena estátua de Hojo Takatoki. Tomada pela raiva que sentia do Imperador por banir seu pai do reino, seu primeiro instinto foi destruir a escultura, mas decidiu que seria melhor levá-la primeiro para a superfície. Tokoyo então a atou a seu cinto, preparando-se para emergir, quando vislumbrou uma imagem imensa surgindo das profundezas da caverna.

Era Yofune-Nushi, o temido Dragão. Ele tinha a forma de uma cobra, mas com chifres dourados, pernas e as escamas fosforescentes, com aproximadamente 26 pés de comprimento e olhos de fogo. Presumindo que Tokoyo fosse a oferenda, ele ondulou lentamente em direção a ela a atacando.

Tokoyo não se intimidou com seu tamanho, e corajosamente colocou-se em posição de defesa desviando do ataque da fera. A valente tirava vantagem de sua agilidade, e num golpe rápido ela mergulhou a adaga no olho da ameaçadora criatura. Cego com o sangue que jorrava de seu olho e cambaleante de dor, o dragão tentou retornar para a caverna, mas Tokoyo, destemida, o perseguiu. Mais uma vez, a jovem e o Dragão se enfrentaram em um embate, e a  brava Tokoyo aproveitando-se de sua cegueira continuou a atacá-lo o atingindo no lado inferior vulnerável de seu pescoço. Por fim, não resistindo a agilidade dos golpes da jovem aprendiz de samurai, o vil Yofune-Nushi foi morto. Bolhas de sangue tingiram a água do mar.

Sentindo seus pulmões queimarem sem ar, Tokoyo acelerou sua subida a superfície. A valente guerreira, saindo das águas, arrastou-se sobre a terra, onde ela caiu fraca e cansada na areia. O monge e a garota correram em direção a ela, e não podiam acreditar que ela vencera a fera. O grande Dragão foi morto!

O sacerdote levou Tokoyo para a aldeia, e a notícia de seu heroísmo se espalhou rapidamente. A notícia chegou ao Imperador, que agora se encontrava bem e saudável. Logo perceberam que a magia do dragão Yofune-Nushi amaldiçoou sua imagem na forma da estátua sob o oceano, e quando Tokoyo matou o dragão e recuperou a escultura, a maldição foi quebrada.

Então, percebendo que o pai de Tokoyo era inocente, o Imperador mandou que o libertassem imediatamente, devolvendo-o a sua corajosa filha. Lamentando-se por ter banido seu melhor samurai e amigo, o Imperador ainda ordenou que enviassem a Tokoyo e seu pai, uma enorme quantia de tesouros e recompensas.

Tokoyo, depois de dias adormecida pelo desgaste do combate, despertou ao som de tambores e flautas trovejantes. A aldeia inteira estava em festa, todos gritavam o nome de Tokoyo saudando sua heroína. À distância, ela avistou fileiras de casas, e por entre elas, o oceano onde tinha enfrentado o temeroso dragão. Foi quando Tokoyo ouviu uma voz familiarmente querida chamar-lhe o nome, mal acreditando no que ouvira, virou-se, e seus olhos encheram-se de lágrimas.

Parado ali, logo a sua frente, trajando trapos, com cabelo preto acinzentado bagunçado na cabeça, quase irreconhecível. No entanto, um sorriso iluminou seu rosto, e esse era inesquecível. Tokoyo só conseguiu murmurar… Meu pai!

Também foi dado a valente jovem, o privilégio de servir no palácio como uma guerreira samurai ao lado de seu pai, e no reino, a partir de então, viveram juntos e felizes.

Fontes: 
Wikipedia / Myths and Legends of Japan, in Caçadores de Lendas

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 8, final

Três meses mais tarde, Luís Carlos desembarcava no aeroporto de Lisboa, vindo desta vez da Suíça.

Ainda nada sabia do resultado da operação da Sandra Cristina, pois nunca mais comunicara com o Dr. Richter, e passara o tempo por várias capitais da Europa, embebedando-se para esquecer a razão de ser da sua própria vida.

Por fim, convencido de que seria inútil continuar naquelas liberações, que o impossibilitavam para o trabalho, lhe arruinavam a saúde, e pior do que isso não lhe arrancava do seu coração a imagem de Sandra Cristina. Foi assim que decidiu, repentinamente, voltar a São Pedro de Moel, para visitar o seu amigo António das Ondas, e também, saber alguma coisa da Sandra.

Ao chegar à linda praia de São Pedro de Moel, logo encontrou o António das Ondas, que se encontrava sentado no chamado "banco dos reformados", que fica numa rua íngreme que vai dar ao varandim da esplanada, e logo os dois homens caíram nos braços um do outro.

Luís: -  Ah... Ah quanto tempo não o via e que saudades já tinha disto tudo, incluindo o Sr. António!

António: -  Eu já tinha quase esquecido a tua cara e a tua pessoa. Tu é que te esqueceste dos amigos…

Luís: - Olhe que nunca me esqueci, não... Mas diga-me: como está a Sandra Cristina?

António: -  Ela... Ela está completamente curada, e por acaso chega amanhã aqui. Foi um milagre, um verdadeiro milagre, a sua cura total!

Luís: - Completamente curada?!... Decerto que foi... Foi um grande milagre, Deus seja louvado por mais este milagre... A Sandra completamente curada!!!

António: - Não te excites tanto, Luís Carlos. Mas chora à vontade, pois nem sempre é feio um homem chorar. Mas, por favor, acalma-te!

Luís: -  Mas aquela linda mocinha completamente curada, até parece um sonho!

António: - Mas olha lá, tudo bem, mas não é razão par ficarmos para aqui os dois, agarrados um ao outro, a chorar como duas "Madalenas arrependidas"!

Luís: - Tem toda a razão, Sr. António.

António: -  Vamos a casa dos Mendes, e pelo caminho, tenho que passar pelos Correios, para saber se tenho lá alguma coisa para mim...

Luís Carlos ficou passeando pelo largo dos automóveis, enquanto o António das Ondas apressou-se a expedir um telegrama urgente para Nova Iorque e dirigido a Sandra Cristina, dizendo apenas isto:

"Luís Carlos chegou. Perguntou por ti. Disse-lhe que chegavas amanhã. Regressa rápido. António das Ondas".

Ao sair dos Correios, o bom velhote pensava e comentava com os seus botões:

"A verdade é que foi a primeira vez que menti na minha vida - mas foi por bem. Sim, porque senão guardo aqui este maluco do Luís Carlos à espera da Sandra Cristina, ele ainda é bem capaz de arranjar mais "macaquinhos" na sua cabeça, e sendo assim, ainda a nossa Sandra fica mais um ano à espera dele!”.

No outro dia e no último “expresso” que vinha de Lisboa, chegava a Sandra Cristina. Luís Carlos e o António das Ondas, assim como seus pais e alguns amigos, estavam à espera da moça…

Sandra: - Olá queridos papás! Graças a Deus que me encontro completamente curada!

Emília: - Minha querida filha, ainda me parece um sonho, um sonho lindo!

André: - Oh filha querida, como estás linda!

António: - Olá querida mocinha, tu cada vez estás mais bela, e agora, completamente curada!

Sandra: - Estou tão feliz! Mas... Mas o Luís Carlos, não me veio esperar?...

Luís: - Pois claro que sim, por isso estou aqui!...

Sandra: - Oh Luís Carlos, como estou feliz, meu amor! ... Perdoas-me?...

Luís: - O passado morreu minha querida. Mas como estás linda…

E um beijo uniu aquele grande amor...

Dois meses depois a capela de São Pedro de Moel estava linda...

Nesse dia, Luís Carlos e Sandra Cristina, dentro das suas convicções religiosas, iam-se unir para sempre.

São Pedro de Moel estava em festa, e toda a gente feliz com o evento.

Luís: - Olha, minha querida Sandra Cristina, temos de ir fazendo as nossas despedidas, antes de partirmos para a nossa lua-de-mel...

Sandra: - Vamos então. Podemos começar aqui pelo Sr. António das Ondas... Ora diga-me: como é que você sabia que eu ia chegar naquele dia e àquela hora?

O bom velhote levantou-se e calmamente encarou os dois jovens que estavam ali à sua frente, e com um sorriso nos lábios, respondeu-lhe:

António: - Olha lá Sandra, tu por acaso não recebeste o meu telegrama?

Sandra: -  Telegrama?! ... Ah, pois, claro que recebi. Ahahahahah! 

António - Então, minha boa e querida amiga, por vossa causa, menti, pela primeira vez na vida. Vão lá à vossa vida e sejam muito felizes!
 
F I M

Fonte:
O Autor

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Paulo Leminski (" de som a som ")


Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 7

Entretanto, na sala de operações, do melhor e mais bem apetrechado hospital de Lisboa, o Dr. Roger Richter, terminara a segunda operação, a Sandra Cristina. Na ante-sala, esperavam-no o pai e a mãe da paciente. O médico saiu da sala das operações, com o semblante carregado. Os Mendes encararam-se, preocupados.

Encarando com eles, o Dr. Roger Richter disse, com aquela rudeza quase agressiva, que o caracterizava, quando estava enfronhado nos seus trabalhos profissionais:

Dr. Roger: -  A vossa filha vai ficar curada. Cheguei a recear que apenas pudesse fazê-la coxear um pouco menos. Mas a verdade, é que Deus me ajudou, e agora, posso garantir-lhes que dentro de três a seis meses, a nossa gentil Sandra Cristina, correrá e dançará, como qualquer rapariga que nunca tenha sofrido qualquer acidente!

Emília: -  Oh, Sr. Doutor!

A mãe da rapariga rompeu num pranto silencioso e feliz, enquanto o marido caminhava para o Dr. Roger Richter, e estendeu-lhe a mão, com os olhos marejados de lágrimas. O médico apertou-a e com um sorriso. Já perdera aquele ar carrancudo que tinha, quando prestava a sua atenção profissional, e disse-lhe:

Dr. Roger: Não tem nada que me agradecer, Sr. André Mendes. Fiz o que pude. Mas olhe que a sua mulher precisa de si…

Efetivamente, Emília Mendes tateava o ar, procurando onde se pudesse apoiar. Na sua perturbação, aquela mãe ainda duvidava das palavras claríssimas que acabara de ouvir!

Depois do marido a ter amparado e a levado até a uma cadeira, a pobre senhora levantou os olhos para o médico, e nesse olhar endereçou-lhe o mais eloquente agradecimento que ele poderia ter recebido. Sensibilizado, o Dr. Roger Richter disse-lhe então:

Dr. Roger: -  Dentro de uma hora, podem fazer companhia à vossa menina, mas por poucos minutos, dez o máximo. E não se esqueçam que ficam completamente proibidos de lhes dizer o que eu lhes contei do êxito da intervenção cirúrgica. 

Emília: -  Assim faremos, Sr. Doutor. Até parece um sonho, o melhor sonho de minha vida!

Dr. Roger: - Se lhe dissessem isso lhe provocaria um choque nervoso, que poderia ser-lhe prejudicial na evolução no processo de recuperação, que agora deve ser rápido.

Emília: -  Faremos tudo o que o Sr. Doutor nos mandar ...

Dr. Roger: -  Digam-lhe que não estiveram comigo, depois da operação.

Emília: -  Pode estar descansado, Sr. Doutor.

Dr. Roger: -  E para terminar, também vos quero dizer que os convido para jantarem comigo e com a minha mulher, esta noite.

Eles sorriram envergonhados, mas o médico receou que não o tivessem compreendido que lhes estava a fazer um convite formal, pelo que se apressou a acrescentar:

Dr. Roger: -  Esta será a última parte da mentira, que peçam que não digam a Sandra... Bem, não é rigorosamente uma mentira, pois, minha mulher e eu, esperamos que nos deem o prazer da vossa companhia, hoje, ao jantar - está bem ?!

Emília: -  Temos todo o prazer em aceitar o seu amável convite!

Dr. Roger: -  Então até logo às oito horas no hotel.

No final do jantar, o Dr. Roger Richter esclareceu o casal Mendes:

Dr. Roger: -  Convidei-os com um determinado fim, ou seja, o caso de Sandra Cristina. Em princípio, ela deveria de precisar de outra intervenção cirúrgica, mas que talvez seja desnecessária, se durante estes meses mais próximos, for vigiada com toda a atenção e competência. Nós temos de partir de avião para Nova Iorque, na próxima semana, pois não posso de modo algum protelar a data da minha partida, por compromissos anteriormente assumidos.

André: -  E o que nós podemos para ajudar a nossa querida filha?

Dr. Roger: -  Tenham calma e escutem a minha mulher vos tem para vos dizer.

Jodie: -  Por isso pensei, ou melhor, pensamos eu e meu marido, em pedir emprestada a vossa filha por uns meses. Autorizem que a Sandra venha conosco, pois lhe faria muito bem mudar de ambiente. Em Nova Iorque, temos muitos amigos, e ela recompor-se-á noutro meio ambiente, de modo que, quando regressar será outra rapariga, tendo inclusive já perdido todos os seus complexos, que sempre a têm atormentado. Que me dizem?

Emília: -  Nós gostaríamos que ela fosse, mas compreendem as saudades... E, além disso, financeiramente, não podemos suportar tanta despesa,

Jodie: -  Mas atenção, pois tratasse de um pedido nosso, sem qualquer encargo financeiro para vós.

Dr. Roger: -  Reforçando a ideia de minha mulher, lhes direi que não vos fiz qualquer pedido em proveito próprio, a não ser aquele de cederem parte da vossa mesa, na esplanada, no primeiro dia que nos conhecemos!

Jodie: -  É um convite que fazemos com todo o prazer, e que não representa para vocês, repito qualquer despesa financeira.

Dias depois, Sandra Cristina, acompanhada pelo casal Richter, partia de avião rumo a Nova Iorque.

Quando o carro particular do casal parou, de fronte a um enorme arranha-céus onde moravam, o Dr. ajudou Sandra a descer do automóvel, e a rapariga, também amparada a sua mulher, caminhou devagarzinho até ao ascensor.

Estava radiante de felicidade. Chegados ao último andar, o ascensor parou. Um mordomo veio-os receber e cumprimentou-os respeitosamente. A senhora Jodie Richter, perguntou-lhe então:

Jodie: -  Antony, anteontem recebeu um telegrama meu?

Mordomo: -  Recebi sim, minha senhora!

Jodie: -  Então, está tudo conforme as indicações que lhe dei?

Mordomo: -  Segui todas as suas indicações, minha senhora.

Jodie: -  Muito bem... Sandra Cristina venha agora ver a cidade de Nova Iorque, do alto de um centésimo quinto andar.

Devagarzinho, com mil precauções e carinhosamente, a mulher do Dr. Roger Richter levou a Sandra, até a uma grande janela que se abria sobre o coração da cidade. O espetáculo que daí se avistava, era simplesmente maravilhoso!

O Dr. Roger Richter, veio reunir-se a ela e a sua mulher.

Dr. Roger: -  O que se avista daqui é de facto esmagador! Mas vim aqui convidá-las a passarem à biblioteca. Venha, Sandra Cristina, que nós a ajudaremos.

Jodie: -  Eu vou à frente abrir a porta, e a Sandra vai entrar sozinha, sem estar amparada a nós. Serão os primeiros passos que dará, sem coxear, valeu?

Sandra: -  Vamos lá a ver se conseguirei…

A porta abriu-se e a rapariga viu-se num dos topos de uma grande sala, confortável e forrada com estantes cheias de livros. Não estava ninguém na biblioteca, apenas, na grande parede do fundo, estava uma tela...

Ao ver a tela, Sandra Cristina caminhou sozinha para a frente, com o corpo direito e sem coxear, com o olhar brilhante e fixo naquele quadro, como se estivesse sonhando.

Era ela a retratada, era ela que estava ali, numa técnica de pintura como nunca vira, e em que cada traço lhe falava de um amor, que ela não soubera compreender a tempo...

Sim, ela tinha razão quando argumentou com os pais, que o quadro recebido do Luís Carlos, não poderia ser o original. O seu coração não a enganara!

E foi os seus olhos brilhantes, que fizeram a pergunta, que os seus lábios não se atreveram a formular.

Então, conscientemente e pela primeira vez na sua vida, o Dr. Roger Richter faltou à sua palavra, e explicou a Sandra, como é que aquele precioso quadro, que o autor nunca quisera vender por preço algum, se encontrava ali em sua casa, na sua biblioteca.

A Sandra Cristina teve uma inevitável crise de lágrimas e logo quis saber onde se encontrava Luís Carlos.

Jodie: -  Isso também nós queríamos saber, Sandra. Até porque o meu marido tem de fazer contas com ele, pois todas as despesas extras da operação deviam ser pagas por ele. Ora, para isso mandou-nos um cheque com uma importância muito superior àquela que despendemos, mesmo contando com esta sua viagem a Nova Iorque. E o meu marido, quer-lhe devolver-lhe o excedente.

Sandra: -  Mas então têm o endereço dele de Paris?

Jodie: -   Também não temos esse endereço, e só sabemos que ele partiu da capital francesa, sem deixar rastro.

Sandra Cristina ficou pensativa, mordendo os lábios. Foi o Dr. Roger Richter quem lhe indicou o que ela devia de fazer:

Dr. Roger: -  Para mim, não pode haver quaisquer dúvidas sobre o que vai acontecer. Mais dia, menos dia, Luís Carlos vai quer saber o resultado da operação, e então terá de comunicar comigo para poder saber o que aconteceu, ou, então, vai aparecer em São Pedro de Moel, visto que daqui a dois meses, fará dois anos que vocês ali se conheceram, não é verdade?

Sandra: -  É verdade. Estou a ver que o Sr. Doutor sabe tudo a nosso respeito. Mas que posso eu fazer?

Dr. Roger: -  Por enquanto, minha boa amiga, ainda está sob a alçada do clínico, que está a vigiar a sua convalescença.

Sandra: -  E ainda terei que ficar por cá muito tempo?

Jodie: -  Daqui a dois meses e meio ou três, regressará a Portugal e a São Pedro de Moel, novinha em folha e capaz de amar sem qualquer complexo, o mais generoso e bondoso coração de homem que palpita sobre a terra, ou seja, o Luís Carlos! E vai ver que ele aparecer-lhe-á, disso não tenha a menor dúvida, minha amiga!

Sandra: -  Se me pudesse garantir isso...

Dr. Roger: -  O que minha mulher lhe disse, é rigorosamente verdade, pois nada sabemos de Luís Carlos. Mas quase lhe podemos garantir-lhe o seguinte: cuide-se de si, pois com certeza que ele a procurará... e a encontrará!

Sandra: -  Se eu tivesse a certeza...

Jodie: -  Quase lhe posso dar a minha palavra de honra que ele a procurará!

Sandra: -  A sua palavra de honra?! ... Então, deve saber mais algumas coisas, além do que me disse...

Dr. Roger: -  Pode crer que  nem eu nem minha mulher sabemos mais nada, a não ser que o amor dos homens honrados, é a maior força que os impele neste mundo!

continua…

Fonte:
O Autor

domingo, 7 de agosto de 2016

Lídia Vasconcelos (Tristeza)


Nilto Maciel (A Condenação do Senhor Felício)

Nunca mais vi o Dr. Aderaldo Ascegas. Dizem já ter morrido, de velhice, do coração, de qualquer doença. Lembro-me bem da última vez que estivemos juntos, no dia do meu julga­mento. Mostrava-se muito preocupado comigo, não tanto em razão da condenação, mas sobretudo porque eu não admitia ser acusado por aquela promotora e julgado por aquele juiz. Aconselhou-me repouso e tratamento médico. Procurasse uma boa clínica psiquiátrica, com urgência. Aquilo me deixou mais nervoso ainda. Tive ímpetos de ofendê-lo fisicamente, chamá-lo de morcego, ou rato. Sim, ele me lembrava um roedor. Cheguei a ansiar matá-lo. Não precisei, no entanto, cometer o crime. Velho como era, não duraria muito. E contive-me.

Na verdade, eu andava mesmo transtornado e, à medida que se aproximava o dia do meu julgamento, mais eu me sentia nervoso. Na véspera, quase enlouqueci. Passei a noite em claro, não consegui pegar no sono sequer por um minuto. Imaginava-me condenado e desgraçado para o resto da vida. Até tarde fiquei diante da televisão, a ver filmes de violência, noticiários, shows. Nada via, no entanto, a não ser eu mesmo refletido no espelho do vídeo. Tentei outras distrações e passatempos. Coloquei discos na radiola, fumei uma infinidade de cigarros, bebi uns dois ou três conhaques e terminei lendo artigos do Código Penal.

Esses modos já se haviam tornado rotina em minha vida, há algum tempo. Depois de um dia de trabalho, corria para casa, tomava banho, jantava, ligava a televisão. E assim passava a noite, quase sempre acordado. Como seria o julgamento? Pedi mil vezes ao Dr. Aderaldo que me descrevesse minuciosamente um julgamento. Lembrava-me de filmes americanos. Aqui era diferente, dizia-me. Decidi ir ver de perto um julgamento qualquer. Pedia licença ao chefe e corria ao fórum. Nunca pedi licença nenhuma, com medo da simples palavra fórum. E o juiz, como seria? O Dr. Aderaldo não o conhecia direito. Havia sido lotado recentemente na Vara. E o promotor? Passava horas e horas a imaginar as feições de ambos. O juiz seria um velhote de óculos, careca, sério, olhar enigmático. O promotor, um senhor de bigodes grossos, carrancudo, feioso.

Cansado, sonolento, cheio de olheiras, deixei a cama na manhã do dia D como se saísse de um caixão de defuntos. A cabeça parecia enorme, pesada, disforme. Olhei-me ao espelho e me pareceu ver um monstro saído do fundo da terra. Tomei um banho demorado. A partir daí, agarrei-me ao telefone. Precisava conversar com o Dr. Aderaldo. Não se encontrava no escritório, informava a secretária. Tomei calmantes, deitei-me no sofá, ouvi música suave. Necessitava relaxar. Num minuto estava de novo ligando para o advogado. Sem sossego, ia e vinha pela casa. Chegada a hora do almoço, nada comi. Não tinha apetite, embora uma espécie de mal-estar me lembrasse pratos variados e exóticos. Imaginei jias assadas, cobras picadinhas, baratas no arroz. Saí de casa às carreiras, a fugir do almoço indigesto. Por sorte, passava um táxi livre. Direto para o escritório do Dr. Aderaldo. Achou uma loucura eu ter saído tão cedo de casa. Devia até estar trabalhando. O julgamento só começaria às 15 horas. Fosse passear, espairecer, fazer hora. Eu parecia excessivamente abatido e agitado, como se fosse ser executado. De qualquer forma, eu continuaria solto, com direito a sursis. Não me preocupasse tanto.

Li ou tentei ler jornais, revistas, códigos. As caras do juiz e do promotor teimavam em emergir das páginas, das letras, cresciam, vinham ao encontro do meu rosto. Línguas, narizes, olhos saltavam do papel para me lamber, cheirar, espiar. Apavorado, largava o impresso e me punha a andar pelo escritório, a falar e atrapalhar o trabalho do doutor.

Nem sei como cheguei ao foro. Não me lembro do percurso, de sua duração, do que conversamos. Recordo-me a caminhar pelos corredores da Justiça, atônito, sonâmbulo, cheio de medo. E, de repente, o susto. Nem sequer mais um passo consegui dar, tão profundo choque senti ao chegar à porta da sala de audiências. Sim, o palco montado e os personagens terríveis em seus lugares. O juiz, aquele cachorro, sentado ao centro da grande mesa, circunspecto, pronto a decidir o meu destino. Então eu ia ser julgado por aquele animal?! Tive ímpetos de gritar, dizer uns insultos e fugir. Porém o Dr. Aderaldo me arrastava para o interior da sala, respeitoso, solene, decidido. Eu não tirava os olhos daquele sujeito asqueroso à minha frente e então quis rir, gargalhar. Ora, um cachorro daqueles na função de juiz! Cochichei aos ouvidos do meu advogado: “Você já percebeu quem está ali?” Ele apertou-me o braço com força e retribuiu o cochicho: “Não ria, não fale nada, comporte-se”. Do contrário, eu poderia até ser preso, antes mesmo do início da audiência, por desrespeito à Justiça.

Atraído pela figura medúsica do magistrado, custei a desviar os olhos para as outras pessoas. Quando o fiz, encontrei o olhar firme de uma sujeita, sentada à esquerda do juiz. “É a promotora”, segredou-me o Dr. Aderaldo. E já não tive susto nenhum. Só vontade de rir de novo. Ora, aquilo já me parecia cômico. “Comporte-se, Felício”, sussurrou-me o advogado.

Voltei os olhos novamente para o juiz. Ele continuava muito sério em sua toga, a boca sempre aberta, feito um idiota. Olhei para a sua direita, onde um indivíduo batia à máquina. Tanto podia ser novo como velho, escondido que se achava na penumbra. Podia até ser um bicho. Porém não me preocupei com isso.

Despertei de minhas observações ao som de uma sineta. A audiência ia começar. Olhei para o juiz, Dr. Luís Bernardo Galgo (informou-me depois meu advogado), e notei sua boca cheia de saliva, parecendo baba, a língua comprida a projetar-se na minha direção, os enormes dentes caninos, as patas horríveis sobre a mesa. Eu quis rir, mas todos permaneciam muito graves. Procurei o escrivão e não o distingui na sombra. Olhei para o Dr. Aderaldo, em busca do cúmplice necessário, e desisti do riso. Dada a palavra à promotora, desviei minha atenção para ela, que também babava, tinha dentes enormes e boca animalesca. Não dava para aguentar. Aquilo merecia uma boa gargalhada. “Comporte-se, Felício”, beliscou-me o advogado, por baixo da mesa.

Durante longo tempo a cadela latiu, enquanto o escrivão datilografava, certamente os latidos da doutora Cândida Platino Canavieira. E eu com gana de gritar, para não ouvir mais tanto o latir daquela cadela metida a bonitona.

Depois falou o Dr. Aderaldo, enquanto eu não perdia um só gesto dos dois cachorros. Não, não dava para conter mais o riso. O juiz olhou para mim e latiu qualquer coisa como: “Comporte-se, Seu Felício!” Tive vontade de saltar sobre ele, rasgar-lhe o focinho com as unhas, mordê-lo, matá-lo. “Mais um miado, e mando prendê-lo” — latiu. Foi o fim de tudo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

J. G. Araújo Jorge (Poemas Escolhidos)

DEDICATÓRIA

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda creem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns…

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A LIBERDADE E A LARANJA
                                     (A Guilherme Figueiredo)

Um dia a liberdade será como a laranja
que tens na mão...

Já não será o sangue que espirrará em teu rosto
prova, e sentirás o gosto,
- será apenas o suco doce da laranja irmão...

Um dia, sentirás o gosto da liberdade,
apalparás a liberdade entre os dedos,
e ela escorrerá pelos teus lábios
e molhará a tua garganta...

Um dia, essa liberdade de que tanto te falam
e que tanto te prometem
deixará de ser palavra, e terá forma e cor...
E hás de apertá-la então, nas mãos ansiosas,
e hás de sentir na boca e na alma o seu sabor!
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ESPERANÇA!

Sobre a miséria dos pobres,
a caridade dos ricos,          
a injustiça dos governos,   
o sangue dos inocentes,     
a áspera luta dos fracos,    
a revolta e a humilhação    
dos vencidos e explorados;  
  sobre as manchetes do mundo,
impressas em negro e rubro,
sobre ameaças e pragas      
foguetes, bombas, políticos,

- de repente, ouço, distante,
uma criança gritar: mamãe!
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INQUÉRITO SOBRE A LIBERDADE
Perguntei ao lavrador que tão cedo madrugava
a cuspir, nas duras mãos, presa ao cabo da enxada
se ele queria a liberdade...

E ele me olhou em silêncio, desconfiado,
e baixou os olhos à terra amarga do seu Senhor...
(Inútil terra que só tem servido para enterrar os seus mortos).

Perguntei ao trabalhador apressado, na sombra da manhã,
escravo da família, a crescer e a morrer,
acuado pela vida
se ele queria a liberdade...

e ele deu de ombros, e falou em mais feijão e mais carne em sua mesa,
em segurança e escola para seus filhos...
(Inúteis reivindicações sempre adiante do seu salário).

Perguntei ao intelectual, preocupado e inquieto
entre frustrações e ameaças
se ele queria a liberdade...

E ele indagou: Qual? A americana, que massacra
negros, e explora povos indefesos?
Ou a francesa? que garantiu o direito do rico
ser cada vez mais rico,
e se transformou num estado-policial contra a pobreza?
(Inúteis liberdades que apenas mistificam e revoltam).

Até ao menino maltrapilho, sujo, abandonado,
entre outros companheiros, perambulando nas ruas
perguntei se queria a liberdade...

E ele fugiu sem responder, correu em liberdade...
(Inútil liberdade que o levará ao crime e ao presídio).

Liberdade, ó santa liberdade, ó doce liberdade
tão bela nos hinos escolares, nos discursos políticos
nas manchetes dos jornais,

em que dia, em que dia,
encontrando-te a ti mesma, com um sentimento novo,
deixarás de ser proxeneta da burguesia
para ser a verdade do povo?
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POEMA   AO  JORNALISTA
                                                              À Mario Martins
Ninguém te vê. Nem o homem sério de óculos que se sentou
                                       [ de pijama na cadeira de palhinha
na calçada de um subúrbio qualquer,
nem a mulher gorda que tira os óculos e chora por causa do
                                                             [ assassinato hediondo,
- o homem que matou seis filhos e bebeu veneno -
ou pelos dez órfãos da mãe desesperada,
a mulher que se jogou na linha do trem e o trem repartiu na
                                                                                       [terra.
Ninguém te vê. Nem o garoto que fuma escondido num lugar
                                                         [mal cheiroso do colégio,
nem a menina de tranças que gosta de se sentar na ponta do
                                                                     [banco do bonde
e esquece a rua com as últimas histórias do impossível;
ninguém te vê, nem o rapaz que discute política na mesa do café,
nem a moça que procura o seu nome na crônica social, onde
a caridade fica muito mais bonita e onde ela se sente muito mais humana...

Ninguém te vê.
Estás sentado na tua mesa, entre papéis disperses,
                                                         [telegramas de última hora,
a voz do secretário, o relâmpago do magnésio, a campainha do
                                                                                       [diretor,
a importância do homem que vai dar uma entrevista;
estás sentado na tua mesa, e escreves com a música dos
                                                                        [linotipos
o ruído das máquinas datilográficas,
o vozerio dos companheiros que vão e vêm
a bandeja de café, a fumaça do cigarro, o cheiro de óleo,
- e na tua cabeça há uma prodigiosa procissão de coisas
                                                                           [diversas
que se atropelam como os homens na rua
na mudança dos sinais.
(Verde-vermelho,verde-vermelho-verde -vermelho)

Há presidente e chefes em Washington depois que o ladrão
                           [assaltou o apartamento de Copacabana,
dois tiros, um aniversário, Marieta que cortou os pulsos
                                                             [pela décima vez,
mil aviões desovando bombas, o jantar elegante no grill
                                                                      [do cassino,
um fascista graúdo que tomou chumbo na cara, a mulher que
                                                               [teve quatro gêmeos,
a crônica sobre o vestido de Madame X, o político que
                                                [promete um mundo melhor,
o operário que caiu do 5.0 andar, o quilo de feijão a 3
                                                                            [cruzeiros,
Clark Gable que voltou da guerra, o último gol do América,
-tudo isto está na tua cabeça, que a tua cabeça é o mundo
debruçado sobre um bloco de papel...

Ninguém te vê. Mas tu vês o mundo, tu sentes o mundo, cada
                                                                       [dia, cada noite,
captas o mundo, cada dia, cada noite,
e daqui a pouco, e amanhã bem cedo, terás milhões de olhos,
                                                [terás milhões de consciências,
Porque te difundirás na multidão e andarás na multidão como
                                                                                      [os pés
no corpo...

És tu que mudas todos os dias a alma das multidões,
dá-lhes novo alimento, nova água, novas preocupações, novas alegrias,
ou novos tormentos,
depois do sol, é a tua manchete que brilha mais, e que
                                                                             [clareia a rua,
depois da noite, é a tua manchete que enluta o mundo e
                                                               [encobre os homens...


Ninguém te vê. E existes e estás presente em toda parte,
                                                                             [como Deus,
nas ruas, nas batalhas, no avião que ronca no céu, no navio
                                                                  [que não chegará,
na hora do fuzilamento, no recado para a família, nas
                                                                            [barricadas,
nos subterrâneos inconquistáveis onde a liberdade se
                                                                             [recolheu,
na festa do ministro, no banquete do político, na cadeia,
                                                       [na praça onde a bomba
estourou,
na escadaria onde falava o orador, no salão de baile, no
                                                 [microfone não localizado,
na première da grande fita,
-tens mil olhos, mil ouvidos, mil almas, mil mãos,
estás em toda parte, e ninguém te vê,
até o momento em que explodes na rua como uma granada
e a tua voz é o hino de mil letras dos homens heterogêneos
                                                                            [e dispersos...

Alma nova do mundo a cada novo dia. Música das ruas todos
                                                                              [os instantes.
História efêmera que passa e a memória esquecerá
se os livros não lembrarem;
sem ti, reduziríamos o mundo ao alcance dos nossos olhos.
e ficaríamos surdos e mudos, e de tal forma haveria silêncio
e deserto ao redor,
que nos julgaríamos de repente saídos de algum foguete a jato
sobre a face da lua...

Sem ti o mundo de hoje seria como mastro sem bandeira
como bandeira sem vento, como rádio sem antena,
como cérebro sem pensamento, como bússola sem norte,
como morte sem vida
como vida sem morte. .

Sem ti, o mundo seria mundos
muitos mundos, o meu, o teu, o dele, mundinhos de cada um,
nunca um mundo só, nosso mundo, imenso mundo, mundão,
que sai da tua cabeça
e escorre na tua mão!
__
Fonte:
JORGE, J. G. de Araújo. Mensagem (coletânea). 

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 6

Na manhã seguinte, logo pelas nove horas, retiniu a campainha do portão. Sandra Cristina, atarantada, nem conseguiu esperar que a criadinha fosse abrir o portão, e correu logo a abri-lo ela. Ofegante, o seu adorável rosto empalideceu de emoção, ao encontrar-se em frente do médico que lhe sorria calmamente, segurando nas mãos uma pasta e um magnífico ramo de rosas que lhe estendeu, enquanto lhe dizia:

Dr. Roger: -  Bom dia, Sandra Cristina. Minha mulher manda-me pedir desculpa de não poder vir, mas tinha umas voltas a dar na Marinha Grande. Então como passou a menina a sua noite?

Sandra: -  Oh Sr. Doutor, que gentileza a sua! Muito obrigada. Mamã, olhe o que o Sr. Doutor me trouxe!

Emília: -  Bom dia, Sr. Doutor. Que belas flores. Agradeço-lhe muito a sua gentileza!

Dr. Roger: -  Bem, agora que tanto a filha como os pais, já estão mais serenos, vamos lá fazer o exame. Antes de tudo, deixe-me vê-la andar. Ora faça favor de ir até àquela porta e voltar. Devagarzinho e bem direita; vamos, mais uma voltinha...

A mocinha obedeceu, enquanto o cirurgião se transformava de homem da Sociedade, em homem de Ciência. Os olhos fixos como se a tivesse a fuzilar, não querendo perder o mais insignificante pormenor, que lhe fosse fornecido pelos movimentos da rapariga, e foi com voz algo rude, lhe disse:

Dr. Roger: -  Basta! ... Fratura da bacia na região exterior e fratura da tíbia e do perônio, com encurtamento por solidificação errada; além de esmagamento de alguns ossos: o tarso e o metatarso, não foi isso?

Sandra: -  Exatamente, Sr. Doutor!

Dr. Roger:  -  Bem, passemos a um quarto, onde eu possa examinar diretamente, os locais das fraturas, e mais exatamente, os locais das solidificações.

Emília: -  Então, por aqui, Sr. Doutor. Se faz favor...

Dr. Roger: -  A sua filha coxeia pela forma como deixaram solidificar as fraturas que apresenta. Hoje em dia, não têm qualquer importância, quando tratadas convenientemente. Foi uma pena, direi mesmo que foi um crime! Bem, preciso da senhora junto de mim...

O exame foi demorado. Quando terminou, o médico voltou à saleta, sentou e pediu:

Dr. Roger: -  Senhor André Mendes, por acaso não tem aqui em casa uma garrafa de vinho do Porto? É que gostaria muito que bebessemos, ao êxito da operação que vou fazer à sua filha!

Emília -  Oh Sr. Doutor, nem pode calcular o bem que me faz as suas palavras !

André: -  Senhor doutor, eu, como mãe da Sandra Cristina... Nem sei como hei de agradecer-lhe.

Atarantados e chorosos, o pai e a mãe de Sandra abriram uma garrafa do precioso vinho do Porto, que estava guardado para uma qualquer ocasião especial.

Os cristais, os belos cristais da Marinha Grande - tocaram-se e o Dr. Roger Richter, esclareceu:

Dr. Roger: -   Ao contrário do que possam pensar isto não quer dizer que eu esteja seguro da minha intervenção. Compreendam por favor.

André: -  Mas só a sua boa vontade, nem sabemos como havemos de lhe agradecer!

Dr. Roger: -  Prevejo que a idade da nossa doentinha, me ajudará decisivamente. Se fosse mais velha, já nada havia a tentar, mas assim e com a ajuda de Deus, vamos a ver o que podemos fazer.

Conforme ficara estabelecido em Lisboa, a senhora Jodie Richter não acompanhara nessa manhã o marido a São Pedro de Moel, para a primeira consulta a Sandra Cristina, para assim poder escrever uma longa carta a Luís Carlos, pondo-o minuciosamente ao corrente do que ia acontecendo em São Pedro. Mas não fechou a carta antes de o marido regressar, para poder juntar o seu diagnóstico. Feito isso, acrescentou que partiriam no dia seguinte para Lisboa, já acompanhados de Sandra Cristina e de seus pais.

Tal como Luís Carlos combinara, todas as despesas inerentes à operação, seriam pagas por ele, e no fim, o doutor Roger Richter lhe diria esse montante.

Quando na manhã seguinte, o pintor recebeu a carta, o seu rosto distendeu-se num sorriso feliz. As frases em que ela falava da excitação e do alvoroço da pequena, bem como da impressão que lhe produzira a ela, e ao marido, e estonteante beleza da jovem, fizeram um imenso bem à alma de homem amargurado, cujo amor tinha sido (julgava ele...) ostensivamente escarnecido e desrespeitado.

E nada lhe dizia que confirmasse a sua suspeita de que Sandra Cristina tivesse casado. Bem pelo contrário, pela forma como Jodie Richter lhe escrevia, depreendia-se que a mocinha vivia em casa dos pais, como uma filha solteira.

Quem seria então, aquele rapaz que a acompanhava tão naturalmente, no dia em que ele fora espiá-la a São Pedro de Moel?

Luís Carlos interrompeu as suas meditações, para rapidamente fazer as suas malas. Ainda não sabia para onde iria, pois ainda não tinha pensado nisso. Só sabia que não queria permanecer em Lisboa, sabendo que Sandra Cristina e seus pais, ali estavam também. Estava certo de que não teria coragem necessária para se fazer encontrado com eles, e não queria voltar a vê-la, nunca mais!

Foi no avião que o transportava a Paris, que se interrogou sobre aquela sua estranha atitude. Então, se a rapariga já não lhe interessava se nunca mais a queria encontrar, porque é que se teria empenhado em que ela ficasse curada do seu defeito físico? E como se arriscava a não ganhar somas fabulosas, que decerto ganharia com a venda do seu quadro "A Deusa e o Mar"?

Mas, Luís Carlos era um temperamental fora do comum, e chegou a aceitar que o seu amor por ela, e o seu consequente desejo que ela vivesse feliz, sem qualquer complexo, tinham sido suficientes para que tomasse aquela atitude...

Agora, vê-la outra vez, encará-la e ouvir-lhe a voz, é que nunca, nunca mais!

Em Paris, exatamente para se convencer daquele violento "nunca mais", andou por todos os cabarés, boates e discotecas, procurando afogar em prazeres fáceis e bem pagos, o grande amor da sua vida, de homem e de artista.

De lá, recebeu o primeiro relatório do Dr. Roger Richter, redigido depois da primeira intervenção cirúrgica, a que sujeitara Sandra Cristina. Mas o médico não se mostrava otimista, antes pelo contrário, o prevenira para a hipótese muito provável, de um fracasso.

Eram necessárias ainda mais duas ou três operações, mas em qualquer caso, só depois da segunda, se poderia prever exatamente, o estado em que poderia ficar a doente.

Teimosamente, porém, Luís Carlos aceitava como certa a cura da rapariga. Nem por momentos lhe passou pela cabeça, que fosse possível vir a sofrer uma desilusão, e saber que se desfizera do seu precioso quadro, para nada.

Para nada?...

Pior que nada, pois teria sido preferível que Sandra Cristina, não se tivesse sujeitado ao tormento operatório, nem tivesse passado aquele alvoroço de esperanças, que tudo isso acontecesse sem qualquer proveito! Luís Carlos interrogou-se sobre se teria tido alguma vez de estabelecer, com o famoso cirurgião, o espantoso contrato que estabelecera.

Verdadeiramente, ele não tinha qualquer direito de intervir na vida de Sandra, e uma vez que decidira, nunca mais devia de procurá-la, ou mais ainda: nunca mais a ver, tendo até por vontade própria de desaparecer de Lisboa, no mesmo dia, em que ela chegasse à Capital.

Parecia-lhe agora, perante o velado pessimismo do médico, que a sua intervenção, na vida de Sandra Cristina, ultrapassara os limites do que era aceitável.

Se, depois de todo o martírio que passou, e depois do traumatismo psíquico, que fatalmente estaria passando, se ela não melhorasse aquela intervenção cirúrgica, apesar de gratuita, teria efeitos devastadores, na moral da rapariga.

Este pensamento transtornou-o e deixou-o preocupado.

Ele sabia que fora o mais puro e o mais desinteressado dos sentimentos, que o levara a fazer aquela proposta ao Dr. Roger Richter. E, toda a gente que pudesse saber do caso, o felicitaria se a operação viesse a ter êxito. Mas, se fosse um fracasso, ninguém deixaria de lhe dizer que não tinha tido o direito de se intrometer, numa vida que lhe era em tudo estranha à sua, e que não queria, de modo algum, ligar-se.

Mas não queria, não queria, realmente ligar-se a Sandra Cristina?...

Amedrontado com a resposta que a sua consciência lhe ditasse, Luís Carlos, bebeu mais um Whisky e mais outro ...

continua…

Fonte:
O Autor

sábado, 6 de agosto de 2016

Nei Garcez (Ecologia)


No habitat da espécie viva,
entre os seres, simplesmente,
é que a vida, em rediviva,
já preserva o meio ambiente.

Nos ambientes da cidade,
selva, estepe, rio ou mar,
em biodiversidade,
vivem a se completar.

Vegetais, e os excrementos
das espécies animais,
tomam forma, aos quatro ventos,
em adubos naturais.

Hoje a terra está ferida,
carcomida pelo mal,
fenecendo, a sua vida,
na UTI de um hospital.

Nosso próprio meio ambiente,
de equilíbrio natural,
está sendo, vorazmente,
destruído no global.

Continuando as investidas
desta doença artificial,
bem por certo nossas vidas
sofrerão a dor mortal.

O remédio mais urgente,
e sem contra-indicações,
é salvar o meio ambiente
pras futuras gerações.

30 05 2005

Fonte:
O Autor, é de Curitiba/PR
Imagem = A. A. de Assis é de Maringá/PR

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos)

AMOR
Amor de minha vida, amor ventura,
vem comigo seguir a nossa estrada,
vamos viver a vida simples, pura,
antes que o sol desfaça a madrugada.

E vou te amar assim com tal doçura,
com tanto amor serás a minha amada,
que meus versos repletos de ternura
vão se espalhar em tua caminhada.

Terei em minha vida o teu carinho
e nunca mais me sentirei sozinho
e tu terás o amor mais verdadeiro.

Quando o tempo passar, calmo e sereno,
verás que fui e sou, mesmo pequeno,
teu homem, teu poeta e seresteiro.

AMOR CREPUSCULAR

A tarde vai morrendo lentamente
e enquanto o sol se esconde lá na serra,
a brisa vem trazendo mansamente
uma saudade que o meu peito encerra.

E a noite surge alegre e resplendente
com seus mistérios vem saudando a terra,
espalhando, no mundo, o amor ingente
de quem cultiva a paz e evita a guerra.

Quantos amantes passam se beijando
confessando segredos e venturas
que só o amor produz nas almas puras?

Meu coração também está amando
como os casais que passam na avenida
jurando amores para toda a vida.

APÓS A TEMPESTADE

O vento chega e sopra muito forte
anunciando, em trovões, a tempestade,
as folhas arrancadas com vontade
revoam à mercê da injusta sorte.

Raios cortam o céu de Sul a Norte,
um prenúncio de horror, calamidade,
estrondos são ouvidos na cidade
gerando medo, caos e a própria morte.

Tristonha, a tarde se vestiu de escuro,
e a chuva desabou estrepitosa
como se castigasse o povo impuro.

A noite chega e adentra pela fresta,
céu estrelado e a lua tão formosa
e a Natureza, eu vi, estava em festa!

CAMINHADA

A caminhada é longa, nós sabemos
que é difícil vencer este caminho,
mas a fé nos ajuda, assim nós cremos,
melhor lutar do que ceder ao espinho.

Não temer o perigo é o que queremos,
porque o mundo se torna tão mesquinho
que às vezes é preciso que busquemos
um punhado de amor e de carinho.

E enquanto a vida nos disser prossiga,
buscaremos obter na fé amiga
os pomos que a vitória nos conduz.

Almas gêmeas seremos pela vida,
unidas pelo amor – missão cumprida
para o destino que nos leva à luz!

COMPONDO VERSOS

Eu quisera compor uns lindos versos
que falassem do amor e da paixão,
destes sonhos antigos e dispersos
que ocuparam meu pobre coração.

Teus olhos cor de mar (quase perversos),
pousaram sobre mim, que perdição,
e meus sonhos agora estão imersos
neste mar de beleza e solidão.

Por que partiste assim, sem dizer nada,
deixando apenas tua gargalhada
que em saudade se fez e em mim convive?

Peço para que voltes, doce amada,
porque sem luz não há mais alvorada,
sem teu amor meu coração não vive!

ELOGIO AO SONETO

No meu viver de agitação, proscrito,
eu busco a paz para escrever um verso
e de alma pura, coração contrito,
procuro a melhor rima do Universo.

O desespero aperta, estou aflito…
Como escrever num mundo tão perverso?
A inspiração me acode com um grito,
e o meu soneto nasce, incontroverso…

Ao verbo de Camões me fiz escravo.
em busca da palavra me fiz bravo,
para dar ao soneto nova aurora…

Que o pavilhão tremule lá na praça,
e brilhando, qual pérola sem jaça,
reine o soneto pelo mundo afora!

INSPIRAÇÃO

Busquei a inspiração a duras penas
para escrever, com fé, este soneto,
e quero que as palavras mais amenas
sejam a Paz e o Amor, como dueto.

Que vou dizer das provações terrenas,
se o ninho é construído com graveto?
– Será melhor curar dores pequenas
e confirmar aquilo que prometo.

Mas teimo em encontrar a inspiração
que se escondeu e foge com razão,
deixando amargurado este poeta…

Clamo de novo e então ela aparece
trazendo junto aos peito farta messe
e agora, sim, a noite está completa!

O ANDARILHO

“Não me fale de amor”, alguém me disse,
“o amor morreu, já não existe mais”.
E eu retruquei que aquilo era tolice,
– será pecado alguém amar demais?

Ficou parado ali, talvez me ouvisse
que o amor perdoa e espera, sem jamais
querer em troca o favo da meiguice
que perpetua a vida entre os casais.

O tempo foi passando e pela rua
eu vi aquele vulto olhando a lua
perambulando como um peregrino.

E percebi, então, que aquele rosto
marcado pela dor, pelo desgosto,
nunca teve um Amor em seu destino!
________
Fonte:
MARTINS, Filemon F. Sonetos & Trovas. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2014.

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 5

Sandra Cristina e seus pais estavam sentados na esplanada de um café, na chamada varanda de São Pedro de Moel, tomando um refresco.

Estávamos no meio da tarde e todas as mesas estavam ocupadas, quando um casal de estrangeiros, de ar distinto, acercou-se deles e o homem delicadamente perguntou:

Dr. Roger: -  Seriam tão amáveis que nos dessem licença de ficarmos na vossa mesa? ... é que não existe nenhum lugar vago, e estamos a "morrer" de sede?... 

André: - Para nós até será uma honra. Por favor, sentem-se  estejam à vontade.

Dr. Roger: -  Então, se nos dão licença, nós somos o casal Richter, americanos de Nova Iorque.

André: -  Nós somos os Mendes, aqui de São Pedro de Moel. Os senhores são turistas, não é verdade?

Entretanto, tinham-se sentado todos, e o pai de Sandra Cristina, encomendou mais dois refrescos. Sua filha teve a percepção, por uma misteriosa sensibilidade de que alguma coisa estranha se iria passa na sua vida. Uma espécie de ansiedade tomava-a toda, quase impedindo de ver a sua curiosidade fosse disfarçada, para mais, a senhora Jodie Richter a observava de quando em vez.

Em determinado momento, André Mendes, pensativo desabafou:

André: -  Richter... Richter... Escuta, Sandra Cristina, este nome não te diz nada?

Sandra: -  Não sei paizinho? ...

André: -  A minha filha anda sempre na Lua. Também não admira, pois são os seus dezoito anos...

Emília: -  Minha filha, pois eu ia jurar que já li este nome muitas vezes...

Dr. Roger: -  É natural que sim, pois tenho trabalhado muito...

Emília: -  Por acaso o senhor não é médico?

Dr. Roger: -  Sou sim.

Sandra: -  Papás, eu conheço o nome sim, e até já via a fotografia deste senhor, naquela revista alemã, sobre as sumidades do nosso século! É ele, sim, o maior especialista em enxertos ósseos do nosso tempo! ...é o senhor, não é?! Diga lá... 

Dr. Roger: -  Não sei se serei o maior especialista, como a menina, amavelmente me classifica, mas lá que sou médico, sou. Chamo-me Roger Richter, e sou especialista em ossos. Mas porquê? 

Sandra: -  Porquê?! ... Ainda pergunta porquê?...

Sandra Cristina rompeu então num pranto convulsivo, embora chorasse muito baixinho. A mãe da pequena, explicou ao casal a insólita atitude da rapariga.

Os Richter fizeram-se de muito admirados, e o médico, em certa altura, deixou escapar a frase milagrosa:

Dr. Roger: -  Pois é, realmente uma pena que, uma rapariga tão nova e tão fascinante, como a vossa filha, sofra desse defeito. Há quanto anos teve o acidente, Sandra Cristina?

Sandra: -  Quase há sete anos, Sr. Doutor. É tempo demais para se tentar qualquer coisa, não é?

Dr. Roger: -  Depende... Olhe Sandra, tenho muito interesse em observá-la.

Sandra: -  Oh Sr. Doutor, que feliz eu seria, se…

Jodie: -  Vamos lá, não é caso para a Sandra se excitar assim. Meu marido não pode prometer-lhe nada, mas olhe que ele é quase mágico...

Sandra: -  É por isso mesmo que me sinto tão feliz!

O casal Mendes tinha trocado um rápido olhar de compreensão, e o pai de Sandra, numa voz pesada, disse como um criminoso a confessar o seu delito:

André: -  Mas, como lhe hei de dizer Doutor... Nós não temos meios materiais para pagar uma operação dessas, para mais feita por um especialista como o senhor.

Sandra: -  Pois é verdade, Sr. Doutor, os meus pais não têm meios financeiros…

Dr. Roger: -  Vocês, portugueses, são todos de uma grande precipitação, que até vos estraga a alegria de viver! São Pedro de Moel é uma das mais belas praias de Portugal, e vocês parecem apostados em viver em tragédia. Ninguém vos falou em dinheiro, não é verdade?

Emília: -  Pois não, mas nós...

Dr. Roger: -  Também não fizemos nenhum contrato, não é verdade? Eu disse apenas que gostaria de observar a sua filha, e isto, se ela e os senhores estiverem de acordo. Valeu?

André: -  O pior é que...

Dr. Roger: -  Deixem-me falar, por favor. Ando em férias pela Europa, e recebi uma gentileza de um casal desconhecido, que me proporcionou o mais saboroso refresco que tomei em toda a minha vida. Talvez possa recompensá-los desta vossa amabilidade, pedindo-vos que me deixem observar Sandra Cristina.

Houve um silêncio feliz, ou, mais exatamente, um silêncio em que os Mendes recearam entender o que ouvira. Mas logo ficou combinada a hora matinal, no dia seguinte, o Dr. Richter os visitaria, para uma primeira observação da perna e da anca de Sandra. A pequena, durante toda a noite, não conseguiu dormir. No mais íntimo da sua alma, agradecia à providência Divina que tivesse colocado no seu caminho, aquele casal bondoso, que se condoera da sua desgraça.

Nem por sombras poderia lembrar-se de uma possível intervenção de Luís Carlos, naquele processo, se bem que fosse o pintor, a pessoa pela qual mais lhe interessava melhorar do seu defeito físico.

Sentindo-a inquieta e a remexer-se na cama, a mãe enfiou um roupão e foi ter com ela ao quarto:

Emília: -  Porque não dormes minha filha? 

Sandra: -  E tu, porque estás acordada?

As duas sorriram, com os olhos brilhantes de esperança. Momentos depois, também o pai da Sandra, o André Mendes, estava presente. O seu rosto, normalmente calmo, apresentava um colorido e uma excitação excepcional:

Sandra: -  Papá, não é um momento maravilhoso?

Emília: -  Não te agarres já a esperanças tão grandes, minha filha.

Sandra: -  Concordo plenamente contigo, mas seria como um grande e maravilhoso milagre.

Emília: -  Lembra-te que o acidente já foi há muito tempo, e que os ossos já solidificaram.

Sandra: -  Eu sei isso tudo, mas deixa-me sonhar com um milagre que me possa acontecer.

André: -  Mas deves pensar que já é um pouco tarde. Mulher não vem pra a cama que daqui a pouco começa a anoitecer?

Emília: -  Vai indo tu, pois eu ficarei um pouco mais com a Sandra.

André: -  Então um bom resto de noite, e procura sossegar.

Emília: -  Agora que o pai se foi embora, diz-me lá, tu ainda pensas no Luís Carlos, não é verdade?  Não estranhes a minha pergunta, mas as mães sabem tudo a respeito das filhas, especialmente das filhas da tua idade.

Sandra: -  Não te sei responder, mãe…

Emília: -  Tenho a sensação de que tu não te excitarias tanto, se o Luís Carlos não tivesse passado pela tua vida!

Sandra: -  Talvez tenhas razão. Não sei porquê, mas tenho a esperança de que ainda um dia o encontrarei ... E então...

Emília: -  Tem calma, minha filha, e escuta-me.

Sandra: -  Sou toda ouvidos, mãe.

Emília: - De todos os homens que existem no mundo, o Luís Carlos, é aquele que eu reputo ser mais indiferente a teu respeito, melhor, à falta de respeito. 

Sandra: -  Pode ser que tenhas razão, e é por isso que eu muito queria estar curada, quando ele me reencontrar!

Emília: -  És uma alma nobre, minha filha. Mas não deves ficar com essa ideia fixa, de que voltarás a encontrar o Luís Carlos. Até pode ser que ele não volte a São Pedro de Moel.

Sandra: -  Ainda agora ele fez uma exposição em Lisboa. Li nos jornais, e só por vergonha é que não pedi ao pai que fossemos lá...

Emília: -  Vergonha de quê? 

Sandra: -  De lhe aparecer ainda com este defeito.

Emília: -  Só por isso? Olha lá, tu fizeste alguma coisa de indecoroso e que te possa envergonhar?

Sandra: -  Bem sabes que não!

Emília: -  Então, não te entendo...

Sandra: - Oh, nem eu sou capaz de te explicar, mas portei-me como se tivesse feito tudo o que há de pior.

Emília: -  Bem, com esta conversa toda, já são mais do que horas para ir dormir, para podermos estar bem dispostas quando o Sr. Doutor chegar.

Sandra: -  Ele disse que vinha às nove horas... Achas que ele vai faltar e nunca mais o vamos ver?

Emília: -  Não, minha filha! Que disparate de pensamento.

Sandra: -  Desculpa, mas estou muito nervosa!

Emília: -  O Dr. Roger Richter é uma celebridade mundial, não é um troca-tinta qualquer.

Sandra: -  Oh mãe, não te zangues com a tua filhinha que está muito nervosa.

Emília: -  Se ele se comprometeu a fazer uma coisa, sem que ninguém lhe pedisse, decerto que não faltará. Dorme descansada, vá. Um beijinho...

continua...
 
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O Autor

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Humberto de Campos (O Poço dos Maridos)

Fernandina Sobreira havia sido, até os vinte e três anos, uma das moças mais requestadas e formosas dos salões do Rio de Janeiro. Muito clara, cabelos castanhos, olhos suavemente azuis, porte mediano, nenhuma a sobrepujava nas maneiras, na elegância, na distinção e, principalmente, na graça de um sinalzinho petulante, que lhe dava ao rosto, na face esquerda, o retoque de uma brejeirice encantadora. Aquele sinalzinho era, podia-se dizer, o ponto final da formosura. Ao escrever o poema da beleza feminina, Deus havia posto, ali, a última palavra do derradeiro capítulo.

Os anos foram-se, porém, sucedendo, uns aos outros, como gotas da mesma clepsidra; e o certo é que, aos vinte e oito, a moça não havia encontrado marido. Amigas mais feias, ou, antes, menos bonitas, iam, uma a uma, recebendo o seu noivo, constituindo o seu lar, multiplicando o seu sangue; e ela, somente ela, de tantas que eram, lá se deixara ficar na casa de seu pai, cercada de admiradores, atordoada de lisonja, mas sem ver um homem que a convidasse, leal e sincero, para a constituição legal de um ninho em comum. A Belita Simpson, que não tinha os seus olhos nem o seu sorriso, havia encontrado o Dr. Mascarenhas, advogado estudioso e jovem, e lá andava pela Europa em passeio de núpcias, percorrendo as cidades, experimentando os climas, visitando os museus. A Alice Martins era, agora, mme. Lopes Taveira, arrastando pelo braço, nos salões e na Avenida, o grande médico seu marido. A Totinha casara com um deputado, e dava empregos, e a Tecla Meireles com um capitalista, e dava recepções. Só ela, que fora a mais graciosa, a mais elegante, a mais cobiçada, ali estava sozinha no seu leito de solteira, sentindo aproximar-se, após uma alvorada chilreante de pássaros, uma tarde triste, lúgubre, amortalhada em cinza e silêncio! Onde andava com a sua matilha e com os seus pajens o seu Príncipe Encantado, que não vinha, rápido, alarmando a floresta com as buzinas de caça, ao encontro da sua Princesa Adormecida?

Sem irmãs nem irmãos, que lhe dessem o conforto de uns sobrinhos pequeninos, Fernandina sentia-se oprimir, afogar, asfixiar, pelo instinto maternal do coração. O pai, alquebrado, não podia mais conduzi-la, com tanta frequência, como dantes, a festas, a passeios, a teatros. Uma primeira ruga riscou-lhe a fronte lisa, partindo, como um fio telegráfico sem destino, o canto dos olhos. Combatida à força de loções, de unguentos, de pomadas, multiplicou-se, dividiu-se, repartiu-se, abrindo novos caminhos para as lágrimas. E foi nessa idade, com o sol da mocidade em franco declínio, que Fernandina adormeceu e teve, uma noite, um sonho que a desiludiu.

Ao fechar os olhos, umedecidos em torno por uma loção que lhe haviam receitado, sentiu-se, de repente, transportada a uma grande campina, no fim da qual ressoavam harpas e citaras, que ela procurava e não via. Embevecida, olhava para o lado de onde lhe vinham aquelas vozes embaladoras, quando sentiu, de repente, que alguém lhe tocava no ombro. Voltou-se, assustada, e caiu de joelhos, gemendo:

- Minha madrinha! Minha madrinha! Amparai-me!

Ao seu lado, radiosa e doce, mal pisando a terra, sorria a imagem de Santa Rosa de Lima, sua madrinha e protetora, à qual havia rezado contritamente, aflitamente, antes de adormecer, pedindo a graça de um mando. Sorriso nos lábios, auréola à cabeça, mãos sobre o peito, a Santa Rosa fitava-a com ternura, quando, carinhosa, ordenou:

- Minha filha, vem...

E puseram-se a andar pela campina, uma ao lado da outra, mas tão leves, tão brandas, tão ligeiras, as duas, que nem pesavam sobre a relva orvalhada. Súbito, ouviram vozes. A planície havia desaparecido e Fernandina estava, agora, diante de um grande poço, em torno do qual se aglomeravam, apertando-se, empurrando-se, disputando, dezenas, centenas, milhares de moças. Espremendo uma, afastando outra, a rapariga chegou à beira do abismo, e viu: de dentro, saía, vagarosa, uma corda, puxada por um sacerdote, na qual vinha amarrado, de sete em sete palmos um homem, que as mulheres, em cima, recebiam debaixo de gritaria.

- Que é isso? - indagou, tímida, Fernandina, a uma desconhecida que lhe ficara ao lado.

- Então você está aqui, e não sabe?

E como percebesse a sinceridade daquela pergunta:

- Isto, aqui, é o Poço dos Maridos, o lugar de onde eles vêm. Essas moças que aqui vê, estão esperando cada uma aquele que lhe é destinado.

- E a senhora já encontrou o seu? - indagou Fernandina, admirada.

A outra baixou os olhos, e confessou:

- Não, senhora. Estou aqui há doze anos. Felizmente, ainda não perdi a esperança...

A rapariga ia rir da sua vizinha quando os seus olhos descobriram, do outro lado do poço, várias fisionomias amigas, debruçadas, todas, para o fundo insondável do abismo. Eram a Belita Simpson, a Alice Martins, a Dorinha Tavares, a Abigail Queiroz, a Ninita, a Mana da Graça, a Lúcia, a Vidinha, a Tude, a Graziela... E à medida que a corda subia, puxada incessantemente pelo sacerdote, desgarrava-se dela um homem jovem, ou velho, feio, ou bonito, a cujo pescoço pulava logo um vulto feminino, que nunca o tinha visto, mas que o esperava ansiosamente à beira do poço. E assim viu ela sair o Dr. Mascarenhas, o Lopes Taveira, o comandante Maia Cunha, o Dr. Casemiro Alves, o tenente Alberto Wellington, em cujos braços se atiraram, logo, a Belita, a Alice, a Tecla, a Totinha, a Maria da Graça, que lá se iam, felizes, pela campina, com os seus maridos...

De repente, Fernandina sentiu uma agitação íntima, um susto, uma inquietação deliciosa, uma espécie de pressentimento. Uma vontade de fugir, de esquivar-se, agitou-lhe os nervos, mas os pés a detiveram, autoritários, no mesmo lugar. Alguma coisa de grave, de inesperado, ia, necessariamente, acontecer. E estava ela nessa angústia, nessa tortura, encantada, quando a Santa, sua madrinha, lhe apareceu, de novo, anunciando-lhe:

- Minha filha, olha para o fundo do poço. Teu noivo, o homem que te é destinado para marido, está para chegar. É o oitavo, depois deste, que saiu agora.

O ímpeto de Fernandina foi o de atirar-se à Santa, abraçando-a, apertando-a, cobrindo-a de beijos gulosos, de furiosa gratidão. Era preciso, porém, olhar para o fundo do poço, e receber com os olhos, de longe, o seu prometido; a ansiedade dominou-a, curvando-a sobre o abismo. Debruçada para dentro, contou os vultos que se divisavam agarrados à corda:

- Um... dois... três... quatro... cinco... seis... sete... oito...

Era aquele. De longe, na meia escuridão, não lhe podia divisar as feições nem avaliar a idade. O coração batia-lhe, inquieto, sôfrego, descompassado. Um suor frio corria-lhe por todo o corpo, numa vertigem. As pernas tremiam-lhe, mal sustentando o peso do busto, amparado ao muro do poço. A manivela continuava, porém, a rodar, manejada pelo padre, e a corda a subir, trazendo gente. Agora, faltavam apenas quatro. Ele era o quinto. Apesar da penumbra, Fernandina via-lhe, já, as feições. Era jovem, sim! Jovem e bonito. Na sua coqueteria instintiva a moça levou as duas mãos ao cabelo, afofando o penteado. Mais um movimento da manivela e a claridade exterior atingiu-o. Chicoteado pelo jato de luz o rapaz ergueu o rosto, e encontrando, em cima, os olhos dela, encarou-a, e sorriu. Fernandina quase desmaia, de gozo, de prazer, de ventura. Toda ela era alvíssaras de carne, alvíssaras de nervos, alvíssaras de coração Agora, ele era o segundo. Olhos nos olhos, embebidos um no outro, as suas mãos já se tocavam, quase. Fernandina sorria e chorava. Mais uma volta da manivela, e estaria ele nos seus braços. Esperava, como se fosse um século, a passagem desse grão de areia na ampulheta da eternidade, quando um grito reboou, alarmando a multidão.

- Fujam! Fujam! - avisou alguém.

A massa humana recuou, espavorida, deixando Fernandina, sozinha, à beira do poço.

- A corda vai partir-se! - bradou a mesma voz, com terror.

Atordoada, a moça, voltou-se, e viu. Um pouco acima da sua cabeça, no ponto que passava pelo carretel, o cabo desfiava-se, rápido, ameaçando romper-se. Soltando um grito, a rapariga estendeu as mãos, aflita, louca, desesperada, para o fundo do poço. Era, porém, tarde. Rodopiando com o peso, o cabo se havia distorcido de repente, estalando num ruído seco, atirando, com um estrondo surdo, a sua carga humana no fundo do abismo!

Um grito de raiva, de angústia, de dor alucinante, alarmou, àquela hora da noite, a família Sobreira. Pessoas da casa acorreram, em trajes de dormir.

Curvada para fora do leito, os braços estendidos para o chão, o rosto lavado de lágrimas, Fernandina chorava nervosamente, aflitamente, agoniadamente, no seu primeiro ataque de histeria.

Folclore Japonês (Fujin e Raijin: Deuses do Vento e do Trovão)

Fujin e Raijin, Deus do Vento e Deus do Trovão, são alguns dos deuses mais populares do panteão xintoísta japonês descritos no Kojiki, livro mais antigo sobre a história do Japão. Fujin é geralmente descrito como muito forte, musculoso com um grande saco de pele, o qual é preenchido com numerosos ventos. Quando ele abre seu saco, uma rajada de vento sopra intensamente na Terra. Raijin também é retratado como imensamente robusto, ao seu redor, uma série de tambores, com o qual ele faz os estrondosos trovões. Muitas vezes eles são considerados como Youkais (demônio, espírito ou monstro).

Segundo uma antiga lenda do budismo chinês, Fujin e Raijin foram ambos originalmente demônios que se opunham a Buda. Então Buda ordenou a seu exército celestial que os capturassem, depois de uma batalha intensa entre os dois demônios e 33 deuses, os demônios foram capturados e convertidos, trabalhando para os céus desde então.

FUJIN “O DEUS DO VENTO”

Fujin (fu: vento e jin: deus) é o deus japonês do vento, dos furacões, e dos redemoinhos, é uma das divindades xintoístas mais antigas. Ele estava presente com Amaterasu (deusa do sol) na criação do mundo, e quando ele deixou o vento sair pela primeira vez da sua bolsa, este clareou a neblina da manhã e preencheu o espaço entre o céu e a terra, e assim o sol brilhou. Acredita-se que ele vive acima das nuvens junto com Raijin, o deus do trovão.

Ele geralmente é representado carregando um grande saco de tecido (ou pele de animal), repleto de ventos, quando ele abre este saco, libera uma rajada de ventania. Fujin, Raijin e Amaterasu são responsáveis pelo clima do universo, por isso são representados quase sempre juntos (em algumas versões eles são irmãos), supostamente seriam alguns dos inúmeros filhos de Izanagi.

Conta a lenda, que antes dos humanos habitarem a terra, uma discussão surgiu entre eles pelo controle das tempestades. Nesta batalha, Fujin cortou o braço esquerdo de Raijin. Algum tempo depois, os dois deuses voltam a serem amigos e Amaterasu recuperou o braço perdido de Raijin para que este continuasse produzindo trovões.

Algumas crenças tradicionais atribuem o fracasso dos mongóis em sua tentativa de invadir o Japão no ano de 1274 a uma tempestade criada por Fujin, que recebeu o nome de Kamikaze (kami: divino e kaze: vento).

A iconografia de Fujin parece ter sua origem nas trocas culturais ao longo da Rota da Seda. Começando com o período helenístico, quando a Grécia ocupou partes da Ásia Central e Índia, o deus grego do vento Bóreas tornou-se o deus Wardo na arte Greco budista, em seguida, uma divindade do vento na China (Tarim) e, finalmente na divindade japonesa Fujin.

Durante essa evolução, o deus do vento manteve sua simbologia, o seu jeito falastrão, e sua aparência desgrenhada.

RAIJIN, "O DEUS DO TROVÃO"

É o deus do trovão, do relâmpago e da guerra na mitologia japonesa, um deus-demônio retratado com dentes e garras afiadas, cabelos longos e com um tambor para fazer os trovões. Por vezes é representado como um deus vermelho que adora comer umbigos humanos, tanto que muitos pais japoneses diziam a seus filhos para esconder seus umbigos durante uma tempestade, se não seriam devorados pelo deus.

Seu nome é derivado das palavras japonesas rai (significando “trovão”) e shin (“deus” ou “kami”). Ele é tipicamente descrito como um demônio batendo tambores para criar um trovão, geralmente com o símbolo “tomoe” (presente em templos budistas e xintoístas, que significa ciclo ou giro, referindo-se ao movimento da terra) desenhado na bateria. Ele também é conhecido pelos seguintes nomes:

Yakuza no ikazuchi no kami: Yakuza (oito) e ikazuchi (trovão) e kami (espírito, ou divindade)

Kaminari-sama: Kaminari (Kami, espírito, ou divindade + nari, trovão) e sama (um japonês honorífico que significa “mestre”)

Raiden-sama: rai (trovão), den (raios), e sama (mestre)

Narukami: naru (trovejante) e kami (espírito, ou divindade)

Raijin geralmente é acompanhado por “Raijuu” (besta do trovão) que é uma lendária criatura da mitologia japonesa, de corpo composto tanto de eletricidade como de fogo e pode aparecer na forma de um gato, tanuki, macaco, ou doninha. Ou ainda, na forma de um lobo azul e branco (ou mesmo um lobo envolvido em raios) é comum seu rugido soar como um trovão.

Um dos comportamentos peculiares de Raiju, parecido com o do deus Raijin, é o de dormir em umbigos humanos. Isso leva Raijin a disparar flechas de raios no Raiju para acordar a criatura, e, portanto, prejudica a pessoa em cujo ventre o demônio está descansando. Pessoas supersticiosas, portanto, muitas vezes escondem seus umbigos durante o mau tempo, mas outras lendas, no entanto, dizem que Raiju só vai se esconder nos umbigos de pessoas que desavisadamente dormirem ao ar livre.
Fujin e Raijin em Anime

Os deuses Fujin e Raijin são muito populares na cultura japonesa e estão presentes em muitos Templos por todo Japão, assim como aparecem em muitas produções para mangá e anime.

Fonte:
Caçadores de Lendas