terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Domingos Freire Cardoso (Depois do Circo já ter ido embora)


João do Rio (Os tatuadores)

- Quer marcar?

Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

- Por quanto?

- É conforme, continuou o petiz. É inicial ou coroa?

- É um coração!

- Com nome dentro?

O rapaz hesitou. Depois:

- Sim, com nome: Maria Josefina.

- Fica tudo por uns seis mil réis.

Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

- Ó moço, faço eu; não escute embromações!

- Pagará o que quiser, moço.

O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: “o mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele”?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou de tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pelo, descobriu a tatuagem.

Desde os mais remotos tempos vê-mo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceania, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente, baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é só por si um problema de psicologia e de atavismo.

Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das prostitutas de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas (ruelas) e das chombergas (casinhas). Suas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas. A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos nas peles dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, as suas horas de ócio e a fantasia da sua arte e a crença na eternidade dos sentimentos - são a exteriorização da alma de quem os traz.

Há três casos de tatuagem no Rio completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor - com que se confunde a tinta empregada.

Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d’água doce.

Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:

- Eh! Eh! Pedro II não era o dono?

E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros “eikones” primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth (manto), vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Jeová.

A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio - os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.

Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.

- Quer marcar? - perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.

Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.

- Que quer V.S.? - O pequeno estava a arreliar. - Marca, moço, marca! – E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.

Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações.

Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação inumerável da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:

- Venha quanto antes d. Elisa / Enquanto o Chico Passos não atiça / Fogo na cidade...

Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações - um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.

Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras - a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.

Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão,o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra - a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada - tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que a influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano da malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, da posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada.

O marinheiro Joaquim tem um Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza: quando sofre castigos os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

- Parece que estão dando em Jesus!

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela, o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: “viva o marechal de ferro!...”, desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião.

Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

- No peito não! - cuspiu o mulato - no peito eu quero Nossa Senhora!

A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que - e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime.

Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez.

Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

– Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice, o “grain de beauté”, a gracinha, principalmente para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo. Quando envelhecem, as pobres mulheres mandam apagar os sinais – porque querem ir limpas para o outro mundo, e a Florinda, há pouco falecida, que rolara quarenta anos nos bordéis de S. Jorge e da Conceição, dizia-me antes de morrer:

– Ai, meu senhor, isto é para os homens! Quando se fica velho arranca-se, porque a terra não vê e Deus não perdoa.

Grande parte desses homens e dessas mulheres tem o delírio mais sensual, fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda – a sua única oferenda de mãe aos desgraçados perdidos...

Num meio de tão fraca ilusão, onde as miçangas substituem os “pendentifs d’arte” e a vida ruge entre o desejo e o crime, depois de muito os pobres entes marcados como uma cavalhada – a cavalhada da luxúria e do assassínio, – começa a gente a sentir uma concentrada emoção. E a imaginar com inveja o prazer humano, o prazer carnal, que eles terão ao sentir um nome e uma figura debaixo da pele, inalteráveis e para todo o sempre.

Aquele pequeno impressionou-me de novo na sua profissão estranha. Indaguei:

– Quanto fizeste hoje?

– Hoje fiz doze mil réis.

E eu compreendi que afinal tatuador deve ser uma profissão muito mais interessante que a de amanuense de secretaria...

 Fonte:
RIO, João do. A Alma Encantada das Ruas.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Hegel Pontes (Duas Chamas)


Monteiro Lobato (Búgio moqueado)

— Uno!

Ugarte...

— Dos!

Adriano...

— Cinco...

Vilabona...

— ...

Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte... Ugarte é furão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também me estraga nesta?

— Mucho, Adriano!

Qual Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está Ugarte com um ponto já feito.

Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe se com uma torcida...

— Mucho, Genúa!

- Raio de azar! — Genúa “malou” no saque. Entra agora Melchior... Este Melchior às vezes faz o diabo. Bravos! Está aguentando... Isso, rijo! Uma cortadinha agora! Buena! Buena! Outra agora... Oh!... Deu na lata! Incrível...

Se o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública — Frontão da Boa-Vista, por exemplo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os aficionados que jogam em pules ou “torcem”.

Eu jogava, e, portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido, desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de dois sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.

“... coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato...”

“Horrendo prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de ouvidos, alerta.

— “Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. “Mas lá em Mato-Grosso tudo é longe. Cinco léguas é “ali”, com a ponta do dedo. Este troco miúdo de quilômetros, que vocês usam por cá, em Mato-Grosso não tem curso. E cada estirão!... “Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem me tinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e preço, era esse Coronel Teotônio, do Tremedal.

Encontrei-o na mangueira, assistindo à domação dum potro — zaino, ainda me lembro... E, palavra d’honra! não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entintada de rugas, ar de carrasco... Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões... e aquele, ou muito me enganava ou tinha divisas de general.

Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de “doze galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos.

Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora.

Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.

De volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido.

Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado, diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada...

Sentamo-nos à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiro ou viúvo. Interpelá-lo? Nem por sombras. A secura e a má cara do facínora não davam azo à mínima expansão de familiaridade; e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceu-me ele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol.

Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que não se buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus de lado o nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois.

Correram assim os minutos. Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse ninguém, repetiu o apelo com certo frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto branco de mulher.

- Sonâmbula?

— Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, cadavérica, dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autômato, e sentou-se de cabeça baixa.

Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-viva morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! — bambeio de pernas e tremo que nem geleia! Foi assim naquele dia...

Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não pude identificar. Ao vê-lo a mulher estremeceu, como horrorizada.

— “Sirva-se!” disse o marido.

Não sei por que, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou o coração como navalha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite. Desd’aí nunca ponho os olhos em certos casarões sombrios sem que os imagine povoados de dramas horrendos. Falam-me de hienas. Conheço uma: o homem...

Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.

— “Sirva-se, faça o favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no prato da mulher.

Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou...

O milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperança, o derradeiro talvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de frequência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.

Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente...

Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões!

A sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, a terceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à escuridão, eu divisava melhor as coisas; enquanto aguardávamos o café, corri-os pelas paredes e pelos móveis, distraidamente. Depois, como a porta da despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ela a dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão sacos de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na testa a decifrar a charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cortante:

— É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço...

Vexadíssimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir o insulto e calar-me. Calei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e irônico:

— Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e ali dentro há um para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?

— Nunca! Seria o mesmo que comer gente...

— Pois não sabe o que perde!... filosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos de cobra.

Neste ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava colocado e Gaspar, com três pontos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um “camarote” infeliz de Gaspar deu o ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu não tinha. Jogo vai, jogo vem, “despintou” a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me o jogo. Quis insistir, mas não pude. A estória estava no apogeu e antes “perder de ganhar” a próxima quiniela do que perder um capitulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito atento, a ouvir o velhote.

Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira.

Aqui nunca mais! Credo!” e abri de galopada pela noite adentro. Passaram-se anos. “Um dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves. Traquejado da vida e sério, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois brancos. Esteves valia por quatro.

Mas não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não dava conta. Empenhado em descobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntei-lhe uma vez:

— Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?

— Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais...

— De que morreu?

— De morte matada. Foi morto a rabo de tatu... e comido.

— Comido? repeti com assombro.

— É verdade. Comido por uma mulher.

A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.

— Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom para todo serviço. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em...

— ... em Mato-Grosso? Do Coronel Teotônio?

— Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na casa do carrasco era fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundo!...

— O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo...

— Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que ele... que ele, perdão da palavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martírio — lepte! lepte! E pimenta em cima... Morreu. E depois que morreu foi moqueado.

— “???”

— Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa comer...

Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cinquenta metros de distância. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Negrinha. 

domingo, 3 de dezembro de 2017

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Estribilho)


Raul Pompéia (Dois viajantes)

A peça principal da casa de Eustáquio era uma sala, de boas dimensões, entre paredes de imaculada alvura, que era clareada por três janelas de caixilhos brancos.

Uma tarde, achando-se o subdelegado ausente por exigências do seu cargo, estavam Branca e Rosalina assentadas junto de uma dessas janelas, entretidas na leitura de um livro, iluminado pelo brando clarão roxeado que algumas vezes tinge as paisagens, ao crepúsculo, quando ouviram duas leves pancadas na porta.

- Eustáquio! - exclamou a jovem filha de Manaus regozijando-se com a chegada do esposo.

Deixando cair o livro sobre uma pequena mesa, correu à porta. Quando, porém, começava a suspender uma tranca de ferro que a reforçava, recuou e disse vivamente, em voz baixa:

- Não, é impossível, não é ele, pois que quando partiu assegurou-me que só amanhã estaria de volta.

Rosalina olhou Branca e viu-a tornar-se lívida e tremer levemente.

- Tem medo, mamãe? - perguntou ela concedendo à esposa de Eustáquio esse doce epíteto.

- Na verdade, Rosalina, sinto-me, não sei por que, atemorizada... aqueles acontecimentos... a ausência de meu marido... tenho apreensões horríveis...

Nesta ocasião, apresentou-se Silvano em uma das portas interiores, que dava entrada para um corredor, algum tanto enfumaçado pelos vapores da cozinha que ficava na sua extremidade.

Branca acenou-lhe para que fosse saber quem batera. O preto abriu mui cautelosamente a porta, depois de alguns instantes fechou-a e, rindo-se da sua extrema prudência, anunciou dois viajantes.

A senhora, tranquilizada, disse:

- Convide-os a entrar.

Abriu-se de novo a porta, e dois indivíduos se mostraram sobre a soleira. Um deles era um homem alto, cheio de corpo, de porte sereno mas intrépido, cuja boca desaparecia, encoberta por dois bigodes louros que formavam a base de respeitável nariz, verdadeira pirâmide do Egito. Trajava de viajante trazendo a tiracolo uma espingarda.

O outro era um rapazinho de dez ou doze anos. Tinha o rosto, de beleza pouco vulgar aos do seu sexo, aureolado de cabelos de ouro, tendo seus olhos um tom de atrevimento superior a sua idade.

Estava vestido como o companheiro, possuindo como ele uma boa espingarda.

Os recém-chegados e a dona da casa trocaram os cumprimentos. Em seguida Branca dirigindo-se ao mais velho deles perguntou:

- Em que poderei ser-lhe útil, meu senhor?

- Já vos direi, minha cara senhora - começou o viajante que pela entonação da voz parecia francês, - porém depois que souberdes quem sou. Chamo-me Henrique Dugarbon, minha pátria é a França. Por amor de aventuras estou no Brasil, e há já dois anos que eu o percorro em todos os sentidos. Este menino é meu filho Otávio, que me tem seguido por toda a parte. Os perigos das minhas viagens têm crescido desde que sai de Manaus. Três semanas já se passaram, depois que deixei as margens do Rio Negro, durante elas andei errando pelas florestas, rompendo os matagais e transpondo, com dificuldade e perigo, os largos pântanos e as regiões dominadas pelos selvagens. Vindo suspender a minha jornada diante das águas do Iapurá, que banha os alicerces de S. João do Príncipe, onde há de ficar esta criança.

Os motivos que me forçam a isso são as provações que, bem o sei, me esperam nas excursões que tenciono fazer através da imensa porção do Brasil que está ao norte do Amazonas e a elas não quero sujeitar uma natureza débil como a de Otávio...

Neste ponto o menino quis falar, mas, vendo o pai continuar, conteve-se, deixando rolar uma lágrima pela face rosada... O que espero da vossa bondade, devo agora dizer-vos, é unicamente o favor de indicar-me o caminho a tomar para a povoação.

- Sr. Dugarbon, muito mais tenho feito por outros peregrinos; o que o senhor me pede não é um favor, pois que tenho obrigação de o fazer. Eu mesma levá-lo-ei, depois que houver ceado, até a embocadura do caminho, que poucos passos separam daqui.

A graciosa Branca falava com a naturalidade franca de uma provinciana brasileira.

- Minha excelente senhora, no meu coração agradecido se perpetuará a lembrança do acolhimento que me dais.

- Ora, não lhe admire isto, senhor, o que faço qualquer outro o faria, venha portanto provar, como o seu Otávio, do que para vós mandei preparar.

Enquanto Branca, a orfãzinha e os dois franceses tomavam assento em volta da mesa de jantar, coberta com uma toalha de linho e alumiada por um lampião de querosene, pois já era noite, cujo abajur fazia cair a claridade sobre um assado de carneiro.

Silvano, contente, celebrava a recepção de quatro camaradas, companheiros de viagem do francês.

Todos eles deviam se ir munir do necessário em S. João do Príncipe, para continuar a jornada.

Correu a refeição perfeitamente, versando a conversação sobre as maravilhas vistas pelos viajantes. Otávio e Rosalina tinham travado inocente amizade e, sem que o pai visse, aquele presenteara a esta com um pedacinho de ouro grosseiro, recebendo da menina uma mãozinha de coral que ela costumava trazer ao pescoço.

Já se erguiam da mesa, quando um assobio demorado e forte feriu os ouvidos de todos.

Fez-se absoluto silêncio e cada um se interrogava mudamente.

Branca estava grandemente assustada e o francês aproximou-se, cheio de calma, da janela. A noite era escura, mas a luz das constelações bastou-lhe para perceber três ou quatro vultos que se chegavam para o cercado.

- Há novidade por aqui - disse, - mas nada têm que temer.

- Camaradas! - gritou com voz máscula mas serena, - fogo naquela direção!

Quatro balas partiram, porém nada lhes respondeu.

Fechou-se a janela.

- Minha senhora, disse gravemente Dugarbon, ainda não tive a indiscrição de perguntar-vos se tendes pai ou marido que more convosco, mas este incidente me obriga a fazê-lo. Correis perigo, esta gente não me parece bem intencionada.

- Aqueles homens que lobriguei são sem dúvida - continuou o francês - bandidos que vos espreitam.

- A mim não, interrompeu a esposa do subdelegado, mas o meu marido.

- Assim pois, sois casada, não?

- Sim senhor, com Eustáquio, subdelegado desta freguesia.

- Podeis dizer-me onde se acha ele, agora?

- Acha-se fora ocupado em investigações sobre um roubo de pouca valia, deve voltar amanhã, se o permitir o céu.

- Tenho, assim, minha senhora, o prazer de comunicar-vos que, antes da chegada do Sr. subdelegado, não deixarei esta casa, para vossa segurança.

Branca, que não encarava sem terror a ideia de uma agressão, aceitou contente.

- Obrigada - disse, - do seu caráter não esperava outra cousa, todavia creio que a minha segurança não exige que não repousem o senhor e o seu filho das suas fadigas. Aquela alcova é dos viajantes e, portanto, do senhor.

Falando assim apontava para uma porta de vidraças, cobertas com pequenas cortinas de cassa, que, meio-aberta, deixava entrever duas camas, comodamente paramentadas.

O oferecimento foi bem recebido e, desejando a Branca e Rosalina boa noite, os dois peregrinos entraram para o aposento indicado.

Silvano e os camaradas assentaram-se perto da entrada e aí adormeceram. Com Rosalina recolheu-se a mulher de Eustáquio, não antes de amortecer a chama do lampião, que começou a espalhar pela sala essa luz escura que tanto agrada a Morfeu...

Fonte:
POMPÉIA, Raul. Uma Tragédia no Amazonas.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Marlene Rangel Sardenberg (Fim da Jornada)


Arnaldo Jabor (O mistério do gambá gigante)

Há seis anos escrevi um artigo que repito, em parte, pois lembro emocionado que dali saiu o desejo profundo de fazer o filme “A suprema Felicidade”, que estou finalizando agora.

Era um artigo em que meu filho, então com 4 anos, perguntava sobre meu passado. Lembro que pensei: "Acho que vou filmar coisas que vi e vivi na adolescência; acho que talvez haja nisso uma verdade maior do que buscar teses ou certezas sobre a vida hoje"... Não é um filme biográfico, nem de "época". Ao contrário, é um filme que tenta captar o que há de permanente no curso dos anos que passaram. Como disse o Fellini, "a única objetividade que conheço é a subjetividade".

Hoje, só há um enorme presente e um passado que nos parece uma decadência em preto e branco. Perdemos a pista do que éramos ou até mesmo do que pensávamos ser.

O artigo era mais ou menos assim: "Antigamente, quando eu era pequenininho...", com essa frase mágica eu cortava qualquer choro de meu filhinho, qualquer bagunça em curso e ele subia em meu colo de olhos abertos, lágrima secando, largando a geleca trêmula no chão, para ouvir as estórias de meu passado.

Papai, antigamente não tinha DVD? Não. Não tinha televisão? TV estava começando, tinha mais rádio. Tinha Homem-Aranha? Acho que não; mas, tinha o Tocha Humana, tinha o Homem de Borracha tinha Super-Homem, mas só apareciam no gibi.

O que é "gibi"? “Revista de quadrinhos - respondo, mas tinha Príncipe Submarino, que hoje não tem mais, um super-herói que lutava no fundo do mar contra os polvos malvados e as lulas venenosas”. “E ele não morria afogado?” “Não, meu filho, porque ele era meio "peixe" também. “E pescavam ele?” “É... tinha uns homens malvados que queriam pescar ele, mas ele era craque”.

“E tinha você, antigamente?” “Eu?” “É... você, com seu papai e sua mamãe?” “É, filho, tinha... tinha eu... mas eu era pequenininho também... olha aqui no retrato”. “Por que você está chorando no colo do seu avô? Não sei; eu acho que já era vocação, ha! ha!”

“Quem eram seus amigos?” “Bem... tinha o Bertoldo, o Bertoldinho e o Cacasseno (personagens de um livro de estórias) e também o meu amigo Albertinho Fortuna... (não sei por que transformei esse cantor popular dos anos 50 num "amigo de infância"... Sempre achei graça nesse nome: "Albertinho Fortuna"...).

“E vocês caçavam o gambá gigante?” “Sim; a gente ia lá na floresta, cada um com um pau na mão e subíamos até a caverna do gambá gigante, que ficava no alto do Corcovado”. “Lá onde tem o "Quisto Redentor"?” “Isso, filhinho; a gente ia subindo a pé porque antigamente não tinha o trenzinho e, quando chegávamos perto da casa do gambá gigante, a gente sentia o cheiro ...argghhhh... era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele; a gente gritava de fora, tapando o nariz: "Gambá gigante! Sai daí!!" Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente, o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tacava nele e aí o gambá gigante ficava cheirozinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí, todo mundo ia dormir, feito você, agora..."

E aí, enquanto meu filhinho começava a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu pensei em sua pergunta profunda: "Pai, tinha você, antigamente?"

Bem? - respondo para mim mesmo - antigamente, tinha eu, outro "eu", diferente deste casca-grossa de hoje ...tinha nossa casinha de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira e, fora de casa, tinha minha curta paisagem de menino: rua, poste, fogueira no capinzal, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças com a lua tremendo na água, balões coloridos no céu, trêmulos de lanterninhas, balões-tangerina, balões-charuto. De dia, tinha o sol que era meu, a chuva que era minha, tinha as nuvens-girafa, as nuvens-camelo, que eu olhava deitado no chão onde as formigas eram minhas, com meus caramujos nas folhas deslizando em sua gosminha madre-pérola...

Uma vez, houve um grande eclipse, e eu fiquei olhando minha família olhando o sol negro, através de cacos de vidro escuros e, eu me lembro, tive a sensação dolorida de que a casa, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, como o sol, tudo indo para longe, como os urubus, mais longe, quase no infinito, na bruma.

Nas ruas, tinha uma luz mortiça nas janelas das casas, com o som do rádio com as novelas deprimentes e o seriado do "Capitão Atlas", tinha os amores impossíveis, os suicídios com guaraná e formicida, as luas de mel fracassadas, as TVs em preto e branco, tinha um Brasil mais micha, cambaio, mas bem mais brasileiro que hoje, em seu caminho que o Golpe de 64 interrompeu e que, agora, essa mania vertiginosa de "primeiro mundo global" acabou matando a tapa. Hoje, essa pobreza é disfarçada pela falsa exuberância de um progresso que fabrica ratos verdes com genes de "águas-vivas", mas não consegue diminuir a miséria e a destruição da natureza.

E eu penso: "Antigamente, filho, não tinha esse povo arrebentado, dividido, tonto. Era uma pobreza mais pobre, mas menos - como direi? - menos insolúvel. Tinha uma nacionalidade ilusória, sim, com o povo apinhado nos bondes, mais burro que hoje, sem defesas, mas ainda havia formas possíveis de consertar, apesar de acharmos que bastava o grito das massas e a vontade de justiça para que um novo país se realizasse." Em 63, não sabíamos ainda que a democracia custaria tanto. Havia um "vazio" no Brasil; mas era um vazio que dava ideia de que ia surgir uma sociedade nova, mesmo num futuro cheio de urubus.

E aí, eu me perguntei, vendo meu filhinho dormir: "Como fazer, meu filho, para restaurar aquela ideia de Brasil, sem fugir das regras implacáveis da vertigem global?" Eu não sabia e não sei ainda. Nem ele - sonhando com o gambá gigante, sob a voz melodiosa de Albertinho Fortuna, cantando por cima do tempo.



sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Maria Nascimento Santos Carvalho (Fantasia)


Monteiro Lobato (Cidades Mortas)

A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas minas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.

A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital — e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.

Em São Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do chamado Norte.

Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.

Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes. Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de há muito, em matéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante símbolo do viver colonial — o carro de boi. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões que lembram ossaturas de megatérios, donde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram.

Vivem dentro, mesquinhamente, vergônteas mortiças, de famílias fidalgas, de boa prosápia, entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem da pátina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras. Paira o  bafio da morte. Há nas paredes quadros antigas, "crayons", figurando efígies de capitães-mores de barba em colar. Ha sobre os aparadores Luiz XV brônzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas., nem se guardam,  os nomes dos enquadrados. — e por tudo se apruma, o bolor rancido da velhice.

São os palácios, mortos da cidade morta.

Avultam em numero, nas ruas centrais, casas sem janelas, só portas, três e quatro: antigos armazéns hoje fechados, porque o comércio desertou também, Em certa, praça vazia, vestígios vagos de "monumento" de vulto: o antigo teatro — um teatro onde já ressoou a voz da Rosina Stolze, da Candiani...

Não ha na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram-se estes remendões; aqueles, meros demolidores, tanto vai da última construção. A tarefa deles se lhes resume em especar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remendá-las mal e mal. Um dia metem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil réis o milheiro — e fica à inclemência do tempo o encargo de aluir o resto.

Os ricos são dois ou três forretas, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no Rio; e os sinecuras acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegados. O resto é a "mob": velhos mestiços de miserável descendência, roídos de opilação e álcool; famílias decaídas a viverem misteriosamente umas, outras à custa do parco auxílio enviado de fora por um filho mais audacioso que emigrou. "Boa, gente", que vive de aparas.

Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só ficam as moças - sempre fincadas de cotovelos à janela, negaceando um marido que é um mito em terra assim, donde os casadouros fogem. Pescam, ás vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu delegadozinho de carreira — e o caso vira prodigioso acontecimento histórico, criador de lendas.

Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio - magro estafeta bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postais à garupa, murchas como figos secos.

Até o ar é próprio; não vibraram nele fonfons de auto; nem cometas de bicicletas, nem campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem tem-tens de sorveteiros, nem plás-plás de mascates sírios. Só os velhos sons coloniais - o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em bando rumoroso cruzam e recruzam o céu.

Isso, nas cidades. No campo não, é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados - o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados.

À mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas.

Raro é o casebre de palha que fumega e entremostra em redor o quartelzinho de cana, a rocinha de mandioca. Na mor parte os escassíssimos existentes, descolorados pelas ventanias, esburaquentos, afestoam-se do melão de São Caetano — a hera rústica das nossas ruínas.

As fazendas são escoriais de soberbo aspecto vistas de longe, entristecedoras quando se lhes chega ao pé. Ladeando a Casa Grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com viçosas guanxumas nos interstícios. O dono está ausente. Mora no Rio, em São Paulo, na Europa. Cafezais extintos. Agregados dispersos. Subsistem unicamente, como lagartixas na pedra, um pupilo de caboclos opilados, de esclerótica biliosa, inermes, incapazes de fecundar a terra, incapazes de abandonar a querência, verdadeiros vegetais de carne que não florescem nem frutificam — a fauna cadavérica de ultima fase a roer os derradeiros capões de café escondidos nos grotões.

— Aqui foi o Breves. Colhia oitenta mil arrobas!...

A gente olha assombrada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada mais!... A mesma morraria nua, a mesma saúva, o mesmo sapé de sempre. De banda a banda, o deserto — o tremendo deserto que o Atila Café criou.

Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pousada no topo dum espeque. Aproxima-se de vagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida; permanece imóvel. Chega-se inda mais, franze a testa, apura a vista. Não é ave, é um objeto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo Oeste, esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando mudamente uma grandeza morta, até que decorram os muitos decênios necessários para que a ruína consuma o rijo poste de "candeia" ao qual o amarraram um dia - no tempo feliz em que Ribeirão Preto era ali...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Cidades Mortas.