quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) V – Aventuras

A "vaquinha" havia largado Emília no meio duma das ruas do jardim. Como o sol estivesse esquentando as pedras, ela percebeu que se não fosse para a sombra morreria torrada. E como não viesse em redor nenhum cavalinho ao seu alcance teve de vencer a pé o espaço que ia dali até o canteiro próximo. Como padeceu para vencer aquela enorme extensão de um metro, por cima da horrível pedranceira do pedregulho! O sol queimava-lhe a pele e por duas vezes o vento a derrubou.

Outro grande inimigo da nova humanidade vai ser o vento, ia pensando Emília. O maldito vento já me derrubou duas vezes e, no entanto, devia ser um ventinho de nada, pois pouco boliu com as folhas deste jardim. O sistema de andar de pé, próprio dos bípedes, só dá resultado com as criaturas que possuem tamanho, como os antigos homens e as aves.

Para um serzinho sem tamanho como eu é o maior dos desastres. Por isso não há bichinho nenhum dotado de dois pés e que ande de pé. São todos horizontais e cheios de perninhas. Estou agora compreendendo: defesa contra o vento! Se um ventinho à-toa me derrubou duas vezes, isso quer dizer que um vento de verdade me joga para os confins do Judas e, no entanto, não há formiguinha que não resista aos ventos. Por quê?

Porque não é bípede nem anda de pé, como eu. Aprenda mais essa, Senhora Dona Emília. E assim filosofando alcançou a sombra dos periquitos em redor do canteiro, onde se sentou sobre um pauzinho seco, para descansar e pensar na vida.

— Que mundo este, santo Deus! — murmurou, muito atenta a tudo quanto se passava em redor. É o tal "mundo biológico" de que tanto o Visconde falava, bem diferente do "mundo humano". Diz ele que aqui quem governa não é nenhum governo com soldados, juizes e cadeias. Quem governa é uma invisível Lei Natural. E que Lei Natural é essa? Simplesmente a Lei De Quem Pode Mais. Ninguém neste mundinho procura saber se o outro tem ou não tem razão. Não existe a palavra justiça. A Natureza só quer saber duma coisa: quem pode mais. O que pode mais tem o que quer, até o momento em que apareça outro que possa ainda mais e lhe tome tudo. E por que essa maldade? O Visconde diz que é por causa duma tal Seleção Natural, a coisa mais sem coração do mundo, mas que sempre acerta, pois obriga todas as criaturas a irem se aperfeiçoando. "Ah, você está parado, não se aperfeiçoa, não é?" diz a Seleção para um bichinho bobo. "Pois então leve a breca." E para não levar a breca, o bichinho trata de inventar toda sorte de defesa e astúcias. O tatuzinho inventou aquela defesa de virar bola e fingir-se morto. Os gafanhotinhos inventaram um verde que os confunde com a grama. As aranhas inventaram a teia para caçar as moscas e os ferrões e o veneno para se defenderem. Inúmeros inventaram asas. Outros inventaram as cascas grossas. A pulga inventou o pulo. 

Eu sempre achei graça na "prosa" dos homens com as invenções lá deles. Que são as invenções dos homens perto dos milhões de inventos destes bichinhos? Não há pulgão que não tenha vários inventos para a defesa, para conseguir alimento, para morar — ou como diz o Visconde, para "sobreviver" num mundo onde a tal Seleção só tem duas palavras na boca: "Isca! Pega!"

Emília olhava em redor e ia compreendendo o mundo novo em que tinha de viver. À esquerda viu uma aranha sugando um mosquito preso em sua teia invisível. À direita um bando de formigas atracadas a uma pobre minhoca, que se debatia como um "S" vivo. Um filhote de louva-a-deus estava fingindo que rezava, de mãos postas, mas na realidade aquilo não era reza e sim um bote armado contra uma presa qualquer.

— A vida é uma caçada contínua — filosofou Emília. — Estes meus colegas parece que só não caçam quando estão dormindo.

Os pés de periquito abrigavam inúmeros moradores permanentes, além de hóspedes alados que chegavam, ficavam por ali alguns instantes e lá se iam. Emília calculou que para cada bichinho de terra, dos sem asas, havia muitos do ar, com asas, e que levam a maior parte do tempo voando.

— Chega de caçadas — disse ela por fim. — Preciso descobrir outro cavalinho para continuar a minha viagem.

Nesse momento uma mutuca sentou-se perto dela. Emília pensou:

"Montar nessa mutuca não vai dar certo porque há os tais tombos; mas se eu agarrar-me às suas patinhas traseiras? Isso não a atrapalhará em nada no voo, e pode ser que ela me aproxime do palacete."

Decidida a fazer a experiência, aproximou-se da mutuca por trás, como fazem certas aranhas de parede, das que não usam teias e sim botes, e fez como essas aranhas: deu um bote nas perninhas traseiras da mutuca, segurando-se com toda a força.

Assustada com aquilo, a mutuca voou — um voo pesado de quem está levando uma carga excessiva e desceu logo adiante. Emília largou-a, muito contente com a ideia que tivera.

— Bravos! Vou chegando, vou chegando. Estou só a três metros da calçada.

Que lugar era aquele? Um simples canteiro de violetas, dentro do qual Emília teve a sensação do caçador em plena mata virgem. A sua redução de tamanho permitia-lhe ver a "abundância do pequenino". Quantas vidinhas na sombra daquela mata, sobretudo sob forma de vermes! Bichos cabeludos de todos os jeitos, e lagartas não cabeludas, uma delas com chifres no nariz — como o Quindim. E mede-palmos cor de esmeralda, translúcidos, gulosamente devorando folhas ou tecendo casulos. E caramujos, e tatuzinhos. E uma infinidade de formas de vida que só os sábios sabem.Por uma fresta Emília viu lá pelas alturas várias borboletas borboleteando pelas flores, tão leves e lindas. Mas uma vespinha jiti a furtar o pólen duma violeta a distraiu — e por causa dessa vespinha a pobre Emília quase levou a breca. 

Enquanto observava a linda vespa naquele trabalho uma horrenda sarassará se aproximou, de ferrão arreganhado. 

Emília tinha ódio a essas formigonas pretas desde o dia em que Pedrinho encontrou, no pomar lá do sítio, um ninho de beija-flor com dois filhotes já meio devorados por elas. As canibais, foi o nome que o Visconde lhes deu. Será que ela iria ter a mesma sorte dos beija-flores implumes?

Na maior aflição, Emília olhou em redor, em procura de abrigo. Deu com uma velha casca de caramujo: lançou-se dentro, ficando bem escondidinha lá no fundo. A canibal plantou-se à porta, à espera de que aquele "inseto descascado" saísse. Por fim, desanimada, foi-se embora.

Quando Emília teve coragem de espiar, a horrenda canibal já ia longe.

— Que susto! — exclamou ela saindo de dentro do caramujinho e enxugando com uma isca de musgo o suor gelado da testa. — Tenho que arranjar uma arma qualquer. Há feras muito perigosas nesta mata.

Achou fácil e agradável caminhar dentro do "violetal", porque o chão estava coberto de folhas secas e úmidas, macias para seus pezinhos. Foi andando até chegar à beira da "floresta", onde deu com um gigantesco pé de cactos, dos chamados palmatórias-do-diabo. As enormes folhas chatas, recobertas de espinhos pareciam almofadas de alfinetes.

— E se me armasse dum espinho?

Mas como arrancar um espinho daqueles? Nem com a força de cem Emílias, quanto mais com a de uma só. E ficou de nariz para o ar, namorando aquele tremendo arsenal de lanças, até que lhe veio uma ideia.

"Impossível que aqui pelo chão não haja algum espinho velho de alguma folha caída", e pôs-se a procurar. Foi feliz. Encontrou uma palmatória já desfeita pelo apodrecimento, mas com os espinhos em muito bom estado. Escolheu o menor e pronto.

— Estou um D. Quixote, com esta tremenda lança — disse, pondo a arma debaixo do braço, tal qual fazia D. Quixote.

Logo adiante estava uma aranha quase do seu tamanho, encorujada na leia, à espera de bichinhos incautos. Vendo aproximar-se aquele inseto desconhecido a aranha armou o bote; mas Emília de lança em riste, não lhe deu importância — foi chegando. Ao atirar-se contra ela, a aranha cravou o ventre no espinho. Esperneou, berrou, mas não teve remédio senão ir encolhendo as pernas e morrendo.

A primeira vitória de Emília em pleno "mundo biológico" encheu-a de orgulho. Estava demonstrando aos seus colegas o valor da inteligência. Já se utilizara de vários como cavalinhos e agora vencera uma aranha em combate. Uma coisa a assustava mais que tudo: as aves. Percebeu logo que estavam ali os piores inimigos da nova gente pequenina. 

O Visconde havia contado que grande número de passarinhos eram onívoros, isto é, comem de tudo — e portanto comeriam a ela também e a quantos homens– bichinhos encontrassem. Felizmente batera meio–dia, hora em que os pássaros, já de papo cheio, descansam à sombra das árvores. As horas mais perigosas deviam ser as da manhã, enquanto eles almoçavam.

Pouco antes de chegar ao "violetal", Emília tinha assistido a uma tragédia dolorosa. Um gafanhoto verde, ainda criançola e bobo, caíra na asneira de afastar-se da grama, com cujo verdor ele tão bem se confundia.

Dera-lhe na cabeça brincar de pula-pula na areia branca. Mas a areia branca tornava-o visibilíssimo. Uma corruíra avistou-o, veio e zás! — papo.

— Que coisa horrível o papo das aves! — filosofou Emília. — Verdadeiros barris sem fundo. Elas passam a vida inteira a botar bichinhos ali dentro e não os enchem nunca.

A lembrança do almoço da corruíra fê-la lembrar-se do estômago. Ainda não tinha comido coisa nenhuma. Que poderia comer naquele jardim?

Se fosse ave, nada mais simples, porque não faltavam insetos; mas era gente e gente não come insetos — isto é, só come içá torrado e gafanhotos. Dona Benta havia dito que São João no deserto se alimentava de gafanhotos e mel.

— Mel, mel, mel — murmurou Emília lembrando-se das borboletas e abelhas que vivem só de mel. E as flores dali deviam ter mel, já que eram tantas as borboletas. Sim, mas as flores andam lá pelos altos, boas só para os insetos de asas. Esperem! Há também flores baixas — as violetas do "violetal". E Emília voltou para aquela mata virgem em procura das violetas baixinhas. Encontrou três com os cachos pendidos e as pétalas encostadas no chão.

Foi ali que fez o seu primeiro lanche na vida nova, com o mel tirado das três violetas pendidas — mas o perfume deu-lhe dor de cabeça. Muito forte para ela.

— E água?

Mel causa sede; e água nos jardins, só de manhã, antes que o sol evapore as gotas de orvalho. Mas não há jardim sem torneira de irrigação. Emília tratou de descobrir a torneira daquele. Se tivesse a sorte de a encontrar pingando, o problema da água não era problema.

Para descobrir a torneira tinha de trepar a uma "árvore", do alto da qual pudesse "devassar os horizontes". Emília pôs-se a escolher uma árvore "trepável", isto é, que tivesse os galhos bem pertinhos uns dos outros.

O melhor que achou foi um pé de samambaia, e por uma folha trepou até à pontinha. Com facilidade pôde ver a dois metros de distância a calçada, e na parede do palacete uma enormíssima torneira com um tremendo regador em baixo.

— Que regador colossal, meu Deus! — exclamou Emília fazendo cálculos. — Devia ter 40 vezes a sua altura, equivalente a qualquer coisa de 72 metros de altura para o Coronel Teodorico. Em suas comparações ela se lembrava sempre desse homem famoso no bairro de Dona Benta por causa do tamanho.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Samuel da Costa (Poemas Escolhidos) III

Iconoclasta 

Foi de repente...
Depois de muito tempo,
Ela decidiu voltar para casa...
Sem qualquer explicação aparente
Sem dizer uma palavra sequer...
Sem dar motivos para sua partida
Ou mesmo do seu retorno...
E eu afinal de contas
Sem dizer nada
Uma palavra ao menos...
Sem saber o que fazer
Acabei aceitando-a de volta
Como se eu não fosse nada
Uma mera figura decorativa
Bem ali parada
Disponível
Dispensável & artificial
Contudo
Já não poderia viver sem sua doce presença
Na minha vida...
Tão inconstante & breve
Não tinha como não aceitar
As coisas são assim inexplicáveis...
Inconstantes
Irreais
Surreais...
_____________________

Rainha Victória (navego pelo mar da tranquilidade)
Para Victória Butler Rodríguez

Navego pelo mar da tranquilidade
Eu tenho esperanças
Renovadas 

Pois tenho pensamentos probos 
Pensamentos bons
Mesmo sabendo 
Que tenho um longo 
E difícil caminho para percorrer

A minha abstrata arte
Já não conhece mais limites
Criou asas 
Voo para além do cosmo infindo 

Tenho um longo 
E tortuoso caminho
Pela frente bem sei
Mas sei também 
Que ela vai estar lá
A minha espera 
Tão linda e prefeita 
Como só ela sabe ser

Já não dói mais... 
A minha negra arte tão carregada 
De dor e sofrimento 
Não existe mais 

A minha negra dor se foi 
Dobrou a esquina e desapareceu 
Por completo em meio
A massa dissoluta 

O crepúsculo eviterno
Já não cega mais 
Meus quasímodos olhos
Não temo a negra noite eterna 
Com seus mistérios infindos 

Tenho o sono tranquilo 
Pois sei que ela estará
Ao meu lado 
Quando eu acordar pela manhã 
_________________

Selene
Para negra Valquíria 

És para mim um mistério!
Um sonhar acordado...
Um perpétuo vagar...
Entre o real 
E o abstrato!
Um trespassar... 
Entre a materialidade estéril! 
E o devaneio absoluto!
Um eviterno dormir. 
Para um nunca mais acordar.

És para mim
Um peregrinar no imaginário! 
Um vagar 
Entre terras ignotas...

És para mim...
Um negro universo infindo!
_____________________

Em violetas paixões 
Para Izabella Silva 

Não! Não quero mais ser sua 
Não quero mais 
Os teus ternos carinhos 
Nem tão pouco os beijos teus 

Não! Eu não vou ficar 
Mais ao lado teu 
E quando eu sair pela porta afora 
Não me peça para voltar

Não me procures mais
Nunca mais
Nem fiques de joelhos
Implorando o meu amor
Para que volte
Para a nossa solidão a dois

Não! Não me traga inexatas flores
Não! Não me peça perdão
Em violetas paixões 

Não! Não acredito mais
No teu amor 

Fonte: O Poeta

H. G. Wells (O desabrochar da estranha orquídea)

A compra de orquídeas sempre traz consigo um certo sabor especulativo. Você tem diante dos olhos um pedaço amarfanhado de tecido vegetal marrom, e para todo o resto precisa confiar apenas no seu discernimento, ou no leiloeiro, ou em sua própria sorte, conforme lhe parecer mais adequado. A planta pode estar agonizante ou morta, mas também pode ter sido uma compra valiosa, por um preço justo, ou quem sabe — pois isto tem acontecido, o tempo todo — comece a desabrochar ali, diante dos olhos deliciados do feliz comprador, dia após dia, alguma nova variedade, alguma rara preciosidade, uma estranha torção no labelo, ou uma coloração mais sutil, ou um mimetismo inesperado. Orgulho, beleza e lucro florescem juntos num delicado talo verde, e quem sabe, até mesmo a imortalidade. Porque o novo milagre da Natureza pode necessitar de um nome específico, e que nome mais conveniente que o do seu descobridor? “Johnsmithia!” Ora, há nomes piores.

Talvez fosse a esperança de uma extraordinária descoberta desse tipo que fazia de Winter-Wedderburn um frequentador habitual desses leilões — essa esperança e também, talvez, o fato de que ele não tinha nenhuma outra coisa minimamente interessante para fazer neste mundo. Era um homem tímido, solitário, desprovido de talentos; dispunha de uma renda apenas suficiente para não permitir que passasse necessidades, e faltava-lhe a energia necessária para ir em busca de um trabalho mais exigente. Poderia ter sido um colecionador de selos ou de moedas, ou poderia ter traduzido Horácio, ou encadernado livros, ou inventado novas espécies de diatomáceas.

Acontece, no entanto, que ele cultivava orquídeas, e era proprietário de uma estufa pequena e ambiciosa.

— Tenho o pressentimento — disse ele, durante o café — de que alguma coisa vai me acontecer hoje.

Ele falava lentamente, tal como pensava e se movia.

— Oh! Não diga isto! — disse sua governanta, que era também sua prima distante. Porque “acontecer alguma coisa” era para ela um eufemismo que tinha apenas um significado.

— Você não me entendeu. Não quero dizer nada desagradável, embora eu não faça ideia do que possa ser. Hoje — prosseguiu ele — o Peters’ vai pôr à venda uma coleção de plantas das Ilhas Andamã e da Índia. Vou até lá para ver o que eles têm. Pode acontecer que eu compre algo interessante sem perceber. Pode muito bem ser isto.

Ele estendeu a xícara para servir-se de café pela segunda vez.

— São essas coisas que aquele pobre rapaz colecionava, aquele de quem você me falou outro dia? — perguntou a prima, enquanto enchia sua xícara.

— Sim — disse ele, contemplando meditativo uma fatia de torrada. — E depois de algum tempo comentou, como que pensando em voz alta: — Nunca acontece nada comigo. Fico pensando por quê. Acontecem coisas com todo mundo. Veja Harvey. Só na semana passada, na segunda-feira, ele achou na calçada seis pence; na quarta-feira suas crianças adoeceram; na sexta seu primo chegou da Austrália, e no sábado quebrou o tornozelo. Que turbilhão de emoções! Comparando comigo...

— Pois eu creio que passaria muito bem sem essas emoções todas — disse a governanta. — Não pode lhe fazer bem.

— Imagino que é algo que gera problemas. Mesmo assim... você sabe, nada me acontece. Quando eu era menino nunca sofri um acidente sequer. Quando cresci, nunca cheguei a me apaixonar. Não me casei. Imagino como deve ser quando alguma coisa nos acontece, alguma coisa extraordinária.

“Aquele colecionador de orquídeas tinha apenas trinta e seis anos, vinte anos mais novo do que eu, quando morreu. Tinha sido casado duas vezes, e divorciou-se uma; teve malária quatro vezes, e uma vez quebrou a coxa. Matou um homem, um malaio; e foi ferido por um dardo envenenado. E no fim de tudo foi morto por sanguessugas da floresta. Tudo isto deve ter lhe causado contratempos, mas também deve ter sido muito interessante, sabe, exceto talvez pelas sanguessugas.”

— Tenho certeza de que não fez bem a ele — disse a dama, cheia de convicção.

— É, talvez não. — Wedderburn olhou o relógio. — Passam vinte e três minutos das oito. Vou pegar o trem das 11h45, então tenho tempo de sobra. Acho que vestirei o meu paletó de alpaca, que é bastante quente, e meu chapéu de feltro cinzento, e sapatos marrons. Suponho que...

Olhou pela janela para o céu sereno e o jardim banhado de sol, e depois, com algum nervosismo, para o rosto de sua prima.

— Seria melhor levar um guarda-chuva, já que vai a Londres — disse ela, numa voz que não admitia recusa. — Lembre-se de que tem a caminhada daqui até a estação, e depois a volta.

Quando ele voltou, estava bastante animado. Tinha feito uma compra. Não era sempre que costumava tomar uma decisão de maneira tão rápida, mas desta vez tinha sido assim.

— Estas aqui são Vandas — disse —, esta é um Dendróbio, e estas aqui são Falenopses.

Examinou afetuosamente suas aquisições, enquanto tomava sopa. Estavam dispostas sobre a imaculada toalha de mesa, e ele contou toda a história à prima enquanto o jantar progredia sem muita pressa. Era seu hábito reconstituir suas idas a Londres, à noite, para o entretenimento da prima e o seu próprio.

— Eu sabia que alguma coisa ia acontecer hoje. E veja, comprei todas estas orquídeas. Algumas delas... algumas delas... tenho certeza, sabe, tenho certeza de que algumas delas devem ser extraordinárias. Não sei bem o que é, mas sinto uma certeza, como se alguém tivesse me garantido que algumas delas são fora do comum.

“Esta aqui”, prosseguiu, apontando um rizoma encarquilhado, “não foi identificada. Pode ser uma Falenopse, ou talvez não. Pode ser uma nova espécie, ou até mesmo um novo genus. E foi o último exemplar colhido pelo pobre do Batten”.

— Não gosto da aparência dela — disse a governanta. — Tem um formato tão feio.

— Para mim ela mal tem algum formato.

— Não gosto dessas coisas estendidas para fora.

— Amanhã vou colocá-la num pote.

— Ela parece — disse a governanta — uma aranha fingindo-se de morta. Wedderburn sorriu e examinou a muda de orquídea, inclinando a cabeça para um lado.

— Bem, é verdade que não é um objeto muito bonito — disse. — Mas nunca se deve julgar essas coisas pela aparência que têm quando estão secas. Ela pode vir a se tornar uma linda orquídea, sem dúvida. Puxa, amanhã vou estar muito ocupado. Hoje à noite verei exatamente o que preciso fazer com todas estas coisas, e amanhã... mãos à obra!

Depois de uma pausa, ele recomeçou:

— Encontraram o pobre Batten morto, ou moribundo, dentro de um mangue pantanoso, não lembro exatamente qual, com uma destas orquídeas esmagada sob o corpo. Ele já vinha adoentado havia alguns dias, com uma dessas febres nativas, e suponho que deve ter desmaiado. Esses mangues têm exalações muito doentias. E as sanguessugas do pântano, pelo que dizem, drenaram até a última gota que tinha nas veias. Ele deu a vida para conseguir uma planta, e talvez seja justamente esta.

— Nem por isso a vejo com bons olhos.

— Os homens devem lutar, mesmo que as mulheres chorem — respondeu Wedderburn, com profunda gravidade. — Imagine só, morrer longe de todo o conforto, num pântano repugnante! Imagine estar doente de febre, sem nada para tomar a não ser clorodina e quinino (se os homens fossem deixados em paz, eles poderiam viver somente de clorodina e quinino!), e tendo em volta apenas aqueles horríveis nativos! Dizem que os ilhéus de Andamã são os tipos mais repugnantes, e em todo caso dificilmente seriam bons enfermeiros, não tendo recebido o treinamento adequado. E todo esse sacrifício para que o povo da Inglaterra tivesse orquídeas!

“Não imagino que tenha sido algo cômodo, mas alguns homens gostam desse tipo de coisa”, disse Wedderburn. “De qualquer modo, os nativos que o acompanhavam foram civilizados o bastante para cuidar de sua coleção até que o colega dele, um ornitologista, voltasse do interior, embora eles não soubessem a que espécie pertencia a orquídea, e permitissem que ela ficasse ressequida. Isto torna as coisas mais interessantes.”

— Torna-as mais repulsivas. Eu iria imaginar que um pouco da malária aderiu a elas. E pense só, um cadáver ficou caído em cima dessa coisa horrorosa! Não pensei nisto antes. Ora! Não posso comer nem mais uma garfada do meu jantar.

— Posso tirá-las da mesa, se quiser, e colocá-las junto da janela. Posso vê-las do mesmo jeito.

Nos dias seguintes ele esteve atarefadíssimo em sua estufa quente e abafada, remexendo em carvão, pedaços de madeira, lodo e todos os demais mistérios do cultivador de orquídeas. Na sua avaliação, estava vivendo momentos muito movimentados. À noite, conversava com os amigos sobre suas novas orquídeas, e a toda hora voltava a se referir à sua expectativa de que algo estranho acontecesse. Algumas das vandas e o dendróbio morreram em suas mãos, mas depois de algum tempo a estranha orquídea começou a dar sinais de vida. Ele ficou entusiasmado e no momento em que fez a descoberta trouxe imediatamente a governanta, que estava fabricando uma geleia, para ver a flor.

— É apenas um botão — disse ele —, mas daqui a pouco tempo haverá uma porção de folhas ali, e estas pequenas coisas que estão saindo por aqui são as raízes aéreas.

— Parecem dedinhos saindo de dentro dessa parte marrom — disse a governanta. — Não gosto deles.

— Por que não?

— Não sei. Parecem dedos querendo nos alcançar. Eu gosto das coisas ou não gosto, não posso mudar.

— Não sei ao certo, mas não acredito que haja orquídeas com raízes aéreas como essas. Pode ser fantasia minha, claro. Veja, são meio achatadas nas extremidades.

— Não gosto delas — disse a governanta, estremecendo e virando as costas.

— Sei que é uma tolice da minha parte, e lamento, principalmente porque você gosta tanto dessa coisa. Mas não paro de pensar naquele cadáver.

— Mas não era esta planta específica, foi apenas uma suposição minha.

A governanta encolheu os ombros:

— Seja como for, não gosto dela.

Wedderburn sentiu-se um pouco magoado diante do desagrado dela, mas isto não o impediu de continuar conversando sobre orquídeas em geral, e aquela em particular, sempre que lhe aprazia.

— Existem coisas curiosas a respeito das orquídeas — disse ele um dia. — Muitas surpresas à nossa espera. Sabe, Darwin estudou sua fertilização, e demonstrou que a estrutura inteira de uma dessas flores estava compactada de modo a que uma mera mariposa fosse capaz de conduzir esse pólen de planta em planta. Bem, parece que há uma quantidade enorme de orquídeas conhecidas cuja flor não pode ser usada para fertilização dessa maneira. Algumas das Cipripédias, por exemplo; não se conhecem insetos capazes de fertilizá-las, e em algumas delas nunca foram encontradas sementes.

— Então, como formam novas plantas?

— Através de estolhos e de túberas, e outros tipos de protuberâncias. É algo que se explica facilmente. A questão é: para que servem as flores? É bem possível — prosseguiu ele — que minha orquídea tenha algum aspecto extraordinário desse tipo. Se for o caso, vou pesquisar. Sempre pensei em fazer pesquisas como as de Darwin, mas até hoje nunca tive tempo, ou sempre acontecia algo para me impedir. As folhas dela estão começando a se abrir agora, gostaria que você viesse vê-las!

Mas ela disse que o orquidário era quente a ponto de lhe dar dor de cabeça. Já vira a planta, uma vez, e aquelas raízes aéreas, algumas das quais tinham agora mais de trinta centímetros de comprimento, davam-lhe a desagradável impressão de tentáculos tentando alcançar alguma coisa; e tinham reaparecido em seus sonhos, crescendo com incrível rapidez em sua direção. Ela tinha, portanto, afirmado com absoluta convicção que não iria olhar para aquela planta novamente, e Wedderburn teria de contemplar sozinho suas folhas. Estas eram de um formato comum, largas, com um verde profundo e luzidio, cheias de pequenas manchas e pontos em vermelho vivo na direção da base. A orquídea estava colocada numa bancada baixa, perto do termômetro, e ao seu lado tinha sido feito um arranjo mediante o qual a água gotejava sobre canos aquecidos e
umedecia o ar. Ele passava agora suas tardes, regularmente, meditando no próximo desabrochar daquela estranha planta.

E por fim deu-se o grande acontecimento. No instante em que entrou no orquidário ele soube que a planta tinha brotado, embora sua grande Falenopse lowii ocultasse o canto onde estava sua nova favorita. Havia um odor novo no ar, um aroma rico, intensamente doce, que suplantava todos os outros no interior da estufa repleta e coberta de vapor.

Wedderburn percebeu isto de imediato ao caminhar na direção da estranha orquídea. E, vejam! Os longos espiques verdes exibiam agora três grandes florescências, das quais emanava aquele irresistível odor adocicado. Ele se deteve, num êxtase de admiração. As flores eram brancas, com raias de laranja dourado sobre as pétalas; o pesado labelo se contorcia numa intrincada projeção, e nele uma tonalidade maravilhosa de roxo misturava-se ao dourado. Wedderburn percebeu de imediato que se tratava de um novo genus. E aquele perfume insuportável! Como o local estava quente! As pétalas pareceram oscilar diante dos seus olhos.

Tinha que verificar se a temperatura estava correta. Deu um passo na direção do termômetro. De repente tudo parecia oscilar. Os tijolos do piso pareciam dançar para cima e para baixo. Então as florescências brancas, as folhas verdes à sua frente, o orquidário inteiro, pareceram deslizar para um lado, e depois fazer uma curva para cima.

Às quatro e meia sua prima preparou o chá, de acordo com o costume invariável da casa. Mas Wedderburn não veio. “Está adorando aquela orquídea horrorosa”, disse ela para si mesma, e esperou dez minutos. “O relógio dele deve ter parado. Vou chamá-lo.” 

Foi direto para a estufa, e, ao abrir a porta, chamou-o pelo nome. Não houve resposta. Ela percebeu que o ar estava muito carregado, e saturado de um perfume intenso. Então viu alguma coisa sobre os tijolos do chão, entre os canos de água aquecida.

Durante um minuto, talvez, ela permaneceu imóvel.

Ele estava caído, com o rosto para cima, ao pé da estranha orquídea. As raízes aéreas semelhantes a tentáculos já não oscilavam soltas no ar, mas amontoavam-se num emaranhado de cordões cinzentos, e estavam retesadas, com as extremidades coladas ao queixo, ao pescoço e às mãos do homem caído.

Ela não compreendeu. E então viu que de um daqueles tentáculos exultantes sobre o rosto dele escorria uma gota de sangue. Com um grito inarticulado ela precipitou-se e tentou arrastá-lo para longe daquelas sanguessugas. Partiu dois dos tentáculos, e a seiva que escorreu deles era  rubra. Então o irresistível cheiro das flores começou a fazer sua cabeça girar.

Como aquelas coisas estavam agarradas a ele! Ela puxou os fios, tão resistentes, e o homem e as florescências brancas pareceram balançar diante dos seus olhos. Sentiu que ia desmaiar, mas não podia deixar que isso acontecesse. Deixou-o ali e foi às pressas abrir a porta mais próxima, e depois de aspirar o ar puro por alguns momentos teve uma ideia brilhante. Erguendo um vaso de flores, despedaçou as janelas de vidro no fundo da estufa. Só depois entrou novamente. Desta vez arrastou com força renovada o corpo imóvel de Wedderburn, fazendo a orquídea cair ao chão com violência. A planta ainda se agarrava obstinadamente à sua vítima. Com uma energia frenética, ela conseguiu arrastar o homem e a planta para o ar livre.

Então ocorreu-lhe atacar aquelas cordas cinzentas uma por uma; e um minuto depois ele estava livre, e ela o arrastava para longe daquele horror. Wedderburn estava lívido, e sangrava por uma dúzia de pontos em forma de círculo.

O caseiro estava chegando ao jardim, atraído pelo estardalhaço dos vidros quebrados, quando a viu emergir da porta da estufa, arrastando o corpo inanimado, com as mãos tintas de sangue. Por um instante, coisas impossíveis passaram pela cabeça dele.

— Traga água! — gritou ela, e o som de sua voz varreu da mente dele quaisquer suposições. Quando, com uma alacridade fora do normal, ele voltou com a água, encontrou-a chorando de excitação, com a cabeça de Wedderburn pousada no joelho, limpando o sangue do seu rosto.

— O que aconteceu? — disse Wedderburn, abrindo fracamente os olhos, e fechando-os de novo em seguida.

— Vá dizer a Annie que venha me ajudar, e depois corra a chamar o dr. Haddon, agora mesmo! — disse ela para o caseiro, assim que recebeu a vasilha com água, e completou, vendo que ele hesitava: — Quando voltar eu explico tudo.

Por fim Wedderburn abriu os olhos novamente, e vendo seu olhar espantado diante da posição em que se encontrava ela explicou:

— Você desmaiou dentro da estufa.

— E a orquídea?

— Depois eu lhe mostro.

Wedderburn tinha perdido uma boa quantidade de sangue, mas afora isto não tinha sofrido nenhum ferimento grave. Deram-lhe conhaque misturado com um extrato de carne de cor rósea, e levaram-no para sua cama no andar de cima. A governanta contou sua incrível história, de modo fragmentado, ao dr. Haddon.

— Venha até o orquidário e veja — disse ela.

O ar frio de fora entrava soprando pela porta escancarada, e aquele perfume doentio se dissipara quase por completo. A maior parte dos filamentos aéreos da planta já estava encarquilhada, por entre as manchas escuras dos tijolos. O talo da planta tinha se partido na queda, e as flores pendiam moles, com as bordas das pétalas já escurecidas. O doutor inclinou-se para examiná-la, então viu que uma das raízes ainda se movia debilmente, e hesitou.

Na manhã seguinte a estranha orquídea ainda estava lá, agora negra e putrescente. A porta batia de modo intermitente com a brisa da manhã, e toda a coleção de orquídeas de Wedderburn estava ressequida e prostrada. Mas ele em pessoa estava radiante e loquaz no andar de cima, inundado pela glória de sua estranha aventura.

Fonte:
H. G. Wells. O País dos Cegos e Outras Histórias. RJ: Objetiva, 2014.

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) IV – A viagem pelo jardim

O mede-palmo vinha descendo pela haste dum ramo de hortênsia. Era dos peludinhos. Emília, ansiosa por se ver no chão, teve uma ideia.

— E se eu montasse nele e ficasse bem agarrada aos pelos? Os mede-palmos não mordem.

Emília aproximou-se e zás! cavalgou-o. O mede-palmo deteve-se, estranhando aquilo; ergueu a cabecinha e ficou uns instantes a virá-la dum lado para outro. Por fim continuou a descer.

— Primeira descoberta! — gritou Emília. — A escada rolante viva!

Em seu passeio a Nova Iorque, contado na Geografia de Dona Benta, Emília tivera oportunidade de conhecer as escadas rolantes das grandes lojas, escadas que em vez de serem subidas pela gente, subiam a gente. Os fregueses ficavam de pé nos degraus, imóveis e aqueles degraus os iam subindo de um andar para outro; e ao lado de cada escada em perpétua subida, ficava outra em perpétua descida.

— Meu mede-palmo agora — disse Emília — é a escada que desce.

Ao chegar ao chão, debaixo da moita de hortênsia, estranhou o escuro. Como viesse de cima da flor, onde a luz era intensa, custou-lhe acostumar os olhinhos a tanta sombra. Que frescura ali! Até demais. E úmido. Se ficasse muito tempo naquela sombra, apanharia um resfriado. A primeira coisa que a impressionou foi a aspereza do chão. Era irregularíssimo!

— Como há pedras no mundo! — exclamou, tropicando e machucando os delicados pezinhos.

— Isso que nós chamávamos terra ou chão, não é terra nada, é pedra, pedra e mais pedra. A crosta do planeta é uma pedreira sem fim. Hum! Por isso é que os bichinhos do meu tamanho usam tantos pés. Cada inseto tem seis. Os mede-palmos têm muito mais.

De dois pés não há nenhum. Agora compreendo o motivo — é que só com dois pés não poderiam caminhar pelas infinitas pedreiras destes chãos. A gente dá um passo e cai, porque, se um pé escorrega, o outro é pouco para manter o equilíbrio. Mas com seis pés o andar é fácil, porque, se um escorrega, sobram cinco para a escora. Além disso — estou vendo — todas as patas dos meus colegas possuem garrinhas, com as quais eles vão se agarrando às asperezas do chão ou da casca das árvores.

Emília compreendeu por que os insetos sobem tão bem pelas paredes. Para uma formiga uma parede é uma verdadeira escada, com degraus irregulares a que as garras das patinhas vão se agarrando.

— Mas em parede de vidro, formiga não sobe, porque o vidro não é escada, não tem degraus. O vidro é liso de verdade.

Aquela dificuldade de andar começou a aborrecê-la. Para ir daqui até ali era um custo — e quantos tombos! Experimentou andar de quatro. Muito melhor, mas cansava,

— O remédio é montar num dos meus colegas.

Nesse momento avistou um enorme caramujo da altura dela. Compreendeu que era um daqueles caramujinhos tão abundantes na horta de Dona Benta. Trepou sem medo em cima da casca e ficou de cócoras.

O caramujo parece que nem deu pela coisa. Foi andando, andando, mas vagaroso demais.

Emília cochilou e caiu.

— Este cavalo não serve. Dá sono na gente. Tenho de arranjar outro.

Seu pensamento era explorar o jardim e aproximar-se da casa para ver se havia gente grande lá dentro. Ainda não obtivera a prova provada de que o "apequenamento" das criaturas humanas havia sido geral. O palacete, porém, ficava longe dali, a uns dez metros de distância, e uma viagem de dez metros por um terreno tão horrivelmente pedregoso (uma rua apedregulhada de jardim) era proeza que seus pezinhos descalços não aguentavam.

— Assim não chego lá nunca e arrebento as unhas. Só de caminhar meio metro já fiquei com os pés em brasa. A solução é mesmo um cavalinho.

Olhou em redor. Além de lerdos caramujos havia muitos bichos-de-conta, ou "tatuzinhos" como ela dizia. Eram conhecidos velhos. Gostava de brincar com eles lá no sítio. "São uns bobos. Basta que a gente bula neles para que se finjam de mortos." Emília experimentou. Montou num dos maiores. O bichinho, apavorado, imediatamente virou bola — ou conta, como as de rosário.

— Não serve. Estes tatus-bolas também não nasceram para cavalos.

Um gafanhoto verde estava a espiá-la de dentro das folhas do "bananal." Tinha cinco vezes a sua altura. Emília foi-se aproximando sem que ele fizesse caso. Chegou bem perto e, súbito, zás! montou. Mas o gafanhoto deu um formidável pulo, lançando-a de ponta cabeça sobre as "pedras" da areia.

— Também não serve — disse ela, erguendo-se muito desapontada.

— Preciso dum bicho que não durma a gente, nem se finja de morto, nem pule.

A certa distância estava uma "vaquinha" pastando, Era o nome que no sítio Pedrinho dava a certo besouro de pintas amarelas e que o Visconde dizia ser um "coleóptero". O Visconde vivia estudando a vida daqueles animaizinhos. Explicou que se chamavam coleópteros por causa do sistema das asas dobráveis e guardáveis dentro dum estojo. Essas asas são membranosas, fininhas como papel de seda, mas não andam à mostra, como as das borboletas, aves e outros bichos menos aperfeiçoados. Só aparecem quando o coleóptero vai voar. O estojo é formado de dois élitros cascudos, duros como unha. São dois verdadeiros moldes côncavos ajustados à forma do corpo. Eles abrem aquilo de jeito a não atrapalhar as asas de dentro. Abrem o estojo e vão desdobrando as asas — e voam. Quando pousam, dobram de novo as asas, muito bem dobradinhas e cobrem-nas outra vez com as tampas do estojo.

O Visconde achava muita graça no sistema, que era o mais aperfeiçoado de todos, dizia ele; e vivia fazendo experiências com besouros de todos os tamanhos. Era um sistema tão bom, que o mundo já andava um besoural imenso. Cento e cinquenta mil espécies de besouros já haviam sido estudadas pelos sábios, imaginem! Se o sistema não fosse tão bom, a ordem dos coleópteros não se multiplicaria em tantas espécies. Quando um sistema não é aperfeiçoado, os bichos que o usam levam a breca, como aconteceu com aqueles grandes sáurios que o Walt Disney mostrou na Fantasia. Por que desapareceram tais monstros? Justamente porque o "sistema sáurio" não prestava. E por que os "besouros aumentaram? Porque o "sistema besouro" é aqui da pontinha — e Emília, que estava conversando consigo mesma, pegou na pontinha da orelha. O Visconde também achava que o futuro Rei da Criação ia ser o besouro, depois que o rei atual, o Homem, totalmente se destruísse na horrenda guerra que andava guerreando.

Emília aproximou-se da "vaquinha" e montou. O coleóptero quis reagir — abrir os élitros para desenrolar as asas e voar, mas Emília não deixou. Manteve o estojo fechado. A "vaquinha", então, pôs-se a andar com ela às costas, e justamente na direção da casa. Súbito, porém, mudou de rumo. Emília danou. Viu que tinha de descobrir a "dirigibilidade dos besouros" como Santos Dumont havia descoberto a "dirigibilidade dos balões". Os balões no começo eram como os besouros; iam para onde queriam e não para onde os homens queriam. Veio Santos Dumont e inventou o meio de governá-los. Já a "dirigibilidade dos animais" era coisa velha. A dirigibilidade do cavalo, por exemplo, surgiu com a invenção do freio. E se ela pusesse um freio naquele coleóptero? Emília apeou para estudar a situação. Mas assim
que se viu sem cavaleiro, o "cavalinho pampa" abriu os élitros, desenrolou as asas e lá se foi pelos ares — zunn...

— Maçada! — exclamou Emília cocando a cabeça e olhando em torno.

Havia se aproximado apenas dois metros do seu objetivo, que era a casa. Faltavam ainda sete metros e meio.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Olivaldo Júnior (Poemas Escolhidos) IV


Meu amor me disse...

Meu amor me disse
que eu seguisse a pé
pela rua, em fúria,
que um amor dá pé!...

Meu amor me disse
que eu subisse ao céu
pela lua, em fúria,
que a lua é de mel!...

Meu amor me disse 
que eu servisse à fé
quase nu, em fúria!...
E ele?! "Deu no pé"!
________

A solidão é de ferro

Para Teresinska Pereira
Ottawa Hills, Ohio, EUA

Nem de mel, nem de papel,
nem do verso que descerro;
tão sozinha, em seu cordel,
a solidão é de ferro.

Não do tal das ferrarias,
nem do tal que passa a roupa,
mas das velhas ferrovias,
onde um trem parece estopa.

Assim, só, de madrugada,
tendo o ferro da paixão
nestes ossos, quase nada,

passo a ferro o coração,
velho trem, nessa toada
de ser ferro, ou solidão.
___________________

Passarinho aflito

Engolindo alpiste,
na maior clausura,
gradeada e triste,
terna voz perdura...

Alma eterna, insiste
em poupar ternura
e, ao poupar, resiste
co' a maior bravura.

Passarinho aflito,
bica os livros, para
e já volta ao 'rito'...

A si mesmo encara,
sem soltar seu grito,
que o penar apara.
_____________________

Minha amiga, a Solidão

Num cantinho lá de casa,
onde mora uma ilusão,
certa amiga arrasta a asa
por um pobre coração...

Por um pobre coração
que foi rubro, em viva brasa,
certa amiga faz serão
e, depois, meu sono "arrasa"...

Minha amiga, a Solidão,
vende os ecos a granel,
mil sussurros sem razão!...

Diz que é feita só de mel,
mas eu sei que a Solidão,
minha amiga é de papel.

Fonte: O Poeta

Herman Hesse (O Demônio do Campo)

Na época em que, no Egito, o paganismo decadente cedia cada vez mais terreno à nova doutrina e floresciam nas cidades e mais humildes lugarejos inúmeras congregações cristãs, os antigos demônios viam-se forçados a retirar-se mais e mais para o deserto tebano. Era um vasto ermo então completamente desabitado, pois os devotos penitentes e os eremitas ainda não se atreviam a penetrar nessa perigosa região e preferiam viver, fechados a toda comunicação com o mundo, em pequenos hortos ou palheiros vizinhos das aldeias ou para além das grandes cidades. Assim, esse grande deserto estava completamente à disposição de Belzebu, com seu exército e séquito, pois as únicas criaturas que lá habitavam eram as feras e uma infinidade de vermes e répteis venenosos. A elas se juntavam agora — desalojados de toda a parte pelos santos e penitentes — os demônios superiores e os diabos inferiores, assim como todos os seres pagãos e heréticos. Entre estes havia os sátiros ou faunos, chamados demônios do campo ou silvanos, os unicornes e centauros, os druidas e muitos outros espíritos; pois Belzebu exercia poder sobre todos eles e era tido como certo que, tanto pela sua origem pagã como pela conformação meio animal, eram desprezados por Deus e não podiam jamais aspirar à sua glória.

Entre esses homens-animais e ídolos pagãos derrubados nem todos eram maus; alguns só a contragosto se submetiam a Belzebu. Outros, porém, obedeciam-lhe com prazer e, em sua raiva, comportavam-se de maneira muito diabólica, visto não saberem por que motivo haviam sido expulsos de sua anterior existência, tranquila e inofensiva, e empurrados para o seio das criaturas desprezadas, perseguidas e maldosas. Segundo as crônicas da vida do saudoso eremita Paulo e as notícias de Atanásio sobre o santo frade Antônio, parece que os centauros eram seres hostis e malignos mas os sátiros ou demônios do campo eram, até certo ponto, pacíficos e mansos. Pelo menos, está escrito que o bem-aventurado Antônio, durante sua prodigiosa viagem pelo deserto ao encontro de Paulo, deparou-se com um centauro e um demônio do campo; enquanto o primeiro o tratou com rudeza e malícia, o sátiro, pelo contrário, conversou amenamente com o santo e demonstrou até desejo de receber a sua bênção. É desse sátiro ou demônio do campo que trata esta lenda.

O demônio do campo, com outros da sua estirpe, acompanhara os demais espíritos maus até o deserto inóspito e nele vagueava. Como vivera outrora numa frondosa e bela floresta e suas relações se limitavam unicamente aos seus semelhantes e às graciosas dríades, ou ninfas dos bosques, o pobre sátiro ressentia-se profundamente desse exílio para lugar tão selvático e da convivência com os espíritos e demônios malignos.

Durante o dia, gostava de afastar-se dos outros, errando solitário entre os rochedos e dunas de areia, sonhando com os lugares verdejantes e férteis de sua vida anterior, despreocupada, alegre, e cochilando umas horas na sombra rala das palmeiras esparsas. De noite, costumava sentar-se em um vale sombrio, rochoso e agreste, de onde brotava um riacho, e aí ficava tocando em sua flauta de junco nostálgicas e dolentes canções, a que sempre acrescentava uma nova. Quando escutavam, ao longe, essas melodias plangentes, os faunos relembravam, pesarosos, os melhores tempos passados.

Alguns deles soltavam doloridos suspiros ou entregavam-se a penosas lamentações. Outros, que não sabiam mais do que isso, entregavam-se a danças turbulentas, soltando gritos e silvos estridentes, para esquecer mais depressa o que haviam perdido. Os demônios superiores, porém, debochavam do solitário e pequeno sátiro, arremedavam-no, troçavam dele e ridicularizavam-no de inúmeras maneiras.

Pouco a pouco, depois de ter largamente meditado sobre o motivo de sua tristeza, ter chorado os antigos e perdidos prazeres, e lamentado a desprezível existência atual no deserto, o sátiro passou a discutir tais assuntos com seus irmãos. E logo se formou entre os demônios do campo mais sérios uma pequena comunidade, empenhada em investigar as causas de sua degradação e a possibilidade de refletir sobre retorno ao antigo e paradisíaco estado de espírito.

Todos eles tinham consciência de se encontrarem submetidos ao poder supremo de Belzebu e suas hostes, pois o mundo era regido agora por um novo Deus. Desse novo Deus pouco sabiam. Mas da conduta e modo de ser do Príncipe das Trevas sabiam muito. E do que sabiam não gostavam. Era poderoso, sem dúvida, e entendia muito de feitiçarias, tendo com elas dominado a todos, e suas leis eram duras e terríveis.

Mas, agora, davam-se conta de que o todo-poderoso Belzebu também fora exilado e obrigado a refugiar-se no deserto. Por conseguinte, o novo Deus teria certamente de ser ainda mais poderoso do que ele. Assim, os demônios do campo acabaram por chegar à conclusão de que seria talvez melhor para eles manterem-se-sob as leis de Deus, em vez de obedecerem às de Lúcifer. E por isso estavam ansiosos por conhecer melhor esse Deus, resolvendo procurar todas as informações possíveis sobre Ele. Então, se gostassem do que lhes fosse dito, tratariam de se aproximar d'Ele.

Assim vivia essa pequena comunidade desalentada de demônios do campo, sob a direção daquele que era exímio tocador de flauta, numa tênue esperança de que seus tristes dias pudessem ter fim. Ignoravam, porém, até que ponto era grande o poder de Lúcifer sobre eles. Mas não tardariam em sabê-lo.

Na verdade, foi por essa mesma época que os piedosos eremitas devotos deram os primeiros passos no deserto tebano, até então jamais pisado por seres humanos. Só há pouco anos Frei Paulo, e mais ninguém, ousara penetrar nessas paragens. Dele conta a santa lenda que, durante esses anos, levou uma vida de penitente, vivendo numa estreita caverna, alimentando-se unicamente da água de uma fonte, dos frutos de uma palmeira e de um pedaço de pão que lhe era trazido diariamente das alturas por um corvo.

Foi justamente desse Paulo de Tebas que um dia o demônio do campo tomou conhecimento e como uma certa inclinação, embora tímida, o atraia para as pessoas, procurava observar e escutar frequentemente o santo eremita. Achava maravilhoso o modo de vida desse homem; pois Paulo vivia na mais santa pobreza e em completa solidão. Não comia nem bebia mais do que um pássaro, cobria o corpo de folhas de palma, dormia sem esteira, numa estreita gruta, e suportava o calor, as geadas, os ventos e a umidade sem um queixume, sujeitando-se ainda a penitências extraordinárias, como ficar rezando de joelhos, horas a fio, numa rocha áspera, ou jejuar dias inteiros, evitando até sua tão parca refeição.

Tudo isso parecia sumamente estranho ao curioso demônio do campo que, no começo, considerou aquele homem um tanto louco. Mas logo notaria que, afinal, Paulo levava realmente uma vida triste e dura, mas sua voz, quando ele orava, tinha um timbre singularmente suave e fervoroso, como se fosse o eco de uma grande felicidade interior; no rosto descarnado pairava uma expressão de tranquila bem-aventurança e sobre a cabeça grisalha havia como que uma auréola luminosa.

O demônio do campo ficou espiando o penitente durante dias e chegou à conclusão de que esse anacoreta era um homem feliz e recebia fluidos de uma felicidade extraterrena que brotavam de ignotas fontes. E como o ouvia louvar e evocar tantas vezes o nome de Deus, concluiu que Paulo era, certamente, um servo e amigo desse novo Deus e que seria bom pertencer-Lhe.

Assim foi que, um dia, se armou de coragem, saiu de trás de uma rocha e acercou-se do encanecido eremita. Este desviando-se dele exclamou:

— Para trás! Para trás, Satanás! — Mas, ignorando as imprecações, o demônio do campo saudou-o humildemente e, em voz baixa, disse:

— Vim porque gosto de ti, eremita. Se porventura és um servo de Deus, oh, fala-me então d'Ele, conta-me algo do teu Deus e ensina-me o que é preciso fazer para que também eu possa servi-Lo.

Ouvindo essas palavras, Paulo hesitou e, movido pela sua natureza benévola, explicou:

— Deus é amor, fica sabendo. E bem-aventurado é aquele que O serve e por Ele sacrifica sua vida. Tu me pareces um espirito impuro, por isso não posso dar-te a bênção de Deus. Para trás, demônio!

O demônio do campo afastou-se muito triste, carregando consigo as palavras do crente. Teria dado com prazer sua vida para assemelhar-se àquele servo de Deus. As palavras Amor e Bem-Aventurança, apesar de seu significado um tanto obscuro, soavam-lhe promissoras e deliciavam seu coração, despertando nele uma nostalgia violenta, não menos doce e forte do que a saudade dos perdidos tempos passados. Após alguns dias de silenciosa inquietação, lembrou-se novamente de seus amigos que, como ele, estavam cansados de ser diabos, e contou-lhes tudo. Discutiram muito sobre o caso, suspiraram e não sabiam ao certo o que fazer.

Aconteceu então que nessa mesma época surgiu um outro penitente. Foi instalar-se num lugar ermo e uma multidão de vermes asquerosos fugia e contorcia-se diante de seus pés. Era o santo Antônio. Lúcifer, porém, irritado com a presença do intruso e temendo por sua soberania nesse deserto, logo se empenhou em usar todo seu poder para afastá-lo daqueles lugares. É do conhecimento geral os mil e um ardis a que Lúcifer recorreu para desencaminhar, assustar e afugentar o santo homem. Surgiu-lhe como uma bela e sedutora mulher, como um irmão e confrade; ofereceu-lhe deliciosas iguarias e colocou prata e ouro em seu caminho.

Como tudo fosse em vão, passou a apavorá-lo. Espancava o santo até jorrar sangue, aparecia-lhe nas mais pavorosas formas, atravessava sua caverna com hostes de diabos, espectros, duendes, sátiros e centauros, ou com verdadeiros exércitos de lobos ferozes, panteras, leões e hienas. Também o melancólico demônio do campo tinha de participar nessas cavalgadas tenebrosas mas, quando se acercava do mártir, fazia apenas gestos suaves e compadecidos. Se os seus irmãos zombavam dele, puxando-lhe a barba ou o grosseiro hábito, o demônio do campo pousava o olhar envergonhado no santo e pedia-lhe um silencioso perdão. Mas Antônio não entendia e tomava as atitudes do infeliz sátiro como chocarrice de um espírito maligno. Tendo assim resistido a todas as tentações diabólicas, pôde então viver muitos anos de solitária vida santa.

Quando chegou aos noventa anos, Deus achou por bem dar-lhe a saber que nesse mesmo deserto vivia um ainda mais velho e digno penitente, e Antônio imediatamente se decidiu a visitá-lo. Sem conhecer o caminho certo, peregrinou ao acaso pelos ermos; mas o melancólico demônio do campo seguia-o furtivamente e ajudava-o, de modo discreto, a encontrar o rumo exato. Por fim, com a sua habitual timidez, apareceu diante de Antônio. Saudou-o com humildade e disse-lhe que ele e seus irmãos ansiavam por conhecer Deus, rogando-lhe que os abençoasse. Mas como Antônio desconfiasse dele, o sátiro afastou-se, entre lamentações compungidas, como também está escrito em todas as antigas crônicas das Vitae Pat rum.

Prosseguindo Antônio em seu caminho, encontrou Paulo, lançou-se-lhe aos pés e foi seu hóspede. Paulo morreu aos cento e treze anos e Antônio foi testemunha de que surgiram dois leões ferozes, rugindo lamentosamente, e com as garras cavaram a sepultura para o santo. Depois disso abandonou a região e regressou ao seu lugar anterior.

O demônio do campo presenciara todos esses acontecimentos à distância. Sentia profundamente no inocente e magoado coração que os dois santos padres o tivessem rechaçado sem consolo. Como decidira ser preferível morrer a continuar escravo da maldade e como observara, e gravara bem o modo de vida e os gestos do saudoso Paulo, penetrou na mísera caverna onde ele vivera, vestiu seus trajes de penitente, feitos de folhas de palmeira, e passou a alimentar-se de água e tâmaras, ficava horas e horas ajoelhado numa postura incômoda, cheio de dores, sobre duras pedras, e procurava imitar em tudo o eremita defunto.

Apesar de tudo, seu coração entristecia cada vez mais. Era evidente que Deus não o aceitava como a Paulo, pois o corvo que vinha diariamente visitar o ancião nunca mais aparecera. Além disso, bem vira, quando foi visitar Frei Antônio, que o mesmo corvo lhe levara o dobro do pão. Na caverna havia um fólio com os Evangelhos mas o demônio do campo não sabia ler. Em certos momentos, quando ficava ajoelhado até à exaustão e clamava fervorosamente por Deus, sentia perpassar em seu íntimo como que uma suave e furtiva sombra, um pressentimento de Sua presença, mas não conseguia chegar ao pleno reconhecimento.

Lembrou-se então das palavras de Paulo, que para a salvação é preciso morrer por Deus, e decidiu morrer. Nunca vira um seu semelhante morrer e a ideia de morte parecia-lhe algo terrível e amargo. Mas sua intenção era firme. Deixou de comer e beber, e passava dia e noite de joelhos, repetindo incansavelmente o nome de Deus.

E assim morreu. Morreu ajoelhado, tal como vira Frei Paulo. Momentos antes da morte, viu com espanto o corvo aproximar-se com um pão igual ao que costumava levar ao santo e apoderou-se dele um profundo júbilo, agora certo de que Deus aceitara o seu sacrifício e o elegera para a Redenção.

Pouco tempo depois de sua morte apareceram novos peregrinos, no intuito de se instalarem naquela região do deserto. Quando avistaram o vulto imóvel de joelhos, em traje de penitência e amparado pela rocha, acercaram-se e percebendo que estava morto, decidiram enterrá-lo cristãmente. Cavaram uma pequena sepultura, pois o morto era de pouca estatura, e entoaram preces.

Mas ao levantar o cadáver para sepultá-lo, os peregrinos observaram que, por baixo dos cabelos desgrenhados, havia dois pequenos chifres; e sob as folhas de palmeira viram ocultos dois pés de cabra. Então gritaram apavorados, crentes de que tudo não passava de uma zombaria do Príncipe do Mal. Largaram o morto e fugiram, entoando em altas vozes suas orações.

Fonte:
Herman Hesse. O Livro das Fábulas