quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Nilto Maciel (Aníbal e os Livros)

Bárbara fez uma fogueira de todos os livros de Aníbal, apesar da oposição dos filhos. Melhor vendê-los aos sebos. Doá-los a bibliotecas públicas. Fazer um leilão. Bárbara ainda leu os títulos de alguns livros, antes de lançá-los ao fogo. Talvez descobrisse a causa essencial, primeira, da tragédia de seu marido, nas letras das capas. Ou nos desenhos. Ou nos nomes dos autores. Não, não adiantava descobrir nada. E deu início ao lento esforço de empilhar os volumes no quintal da casa: On The Origin of Species, Charles Darwin; Animal Sharpshooters, Anthony D. Fredericks; The Cannibal, John Hawkes; La Bãete du Gâevaudan: l'innocence des loups, Michel Louis; Cannibal, Terese Svoboda; Viagem ao Brasil, Hans Staden ...

Quando se conheceram, ele já lia livros desse tipo? Bárbara nunca havia se interessado pelas leituras de Aníbal. Se lia romances policiais, biografias de santos, enciclopédias, a Bíblia, o Alcorão, poesias, não sabia. Ler ele lia, e muito, todo dia. E escrever? Não, ele não escrevia nada, a não ser cartas a parentes distantes. Mentia: ultimamente Aníbal andava escrevendo nuns cadernos. Aníbal pode ser considerado um erudito? Talvez sim. Pois conhecia toda a História, as primeiras grandes civilizações, Grécia, Roma, todos os séculos, reis, dinastias, guerras, descobrimentos, invenções, mitologias. Porém, a mania de ler essas coisas de índios, de povos primitivos, de antropofagia, canibalismo é muito recente. Primeiro voltou a se interessar pela História do Brasil, relembrando os tempos de estudante. Lia os livros didáticos dos filhos. Participava ativamente das atividades escolares deles. Principalmente da matéria História. Entusiasmava-se, lia em voz alta trechos dos livros. Lia com prazer o capítulo do naufrágio do navio que conduzia o Bispo Sardinha de volta a Portugal e a consequente devoração dos náufragos pelos índios caetés. Anotassem o nome completo do apóstolo: Pero Fernandes Sardinha. "Pai, por que os peixes não comeram o bispo Sardinha, tendo ele nome de peixe?" Ria, contava outras histórias, fazia teatro. "Vamos estudar os caetés." Na pressa de ler tudo, adquiriu um Caetés, de Graciliano Ramos. "Na verdade, não gosto muito de romances. Prefiro a verdade dos compêndios de História. O título do livro de Graciliano me enganou. Mas não tanto assim. Há semelhança entre os caetés e João Valério. Ambos devoravam seus semelhantes. Os índios devoravam a carne de outros homens. O personagem de Graciliano devorou, ou supôs devorar, as vidas, os sonhos de seus próximos. O narrador confessa ao final do romance: "Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes." Os filhos cresciam, já não pediam o auxílio do pai para os deveres de casa. Aníbal, no entanto, continuava devorando livros, lendo em voz alta, atrapalhando a vida escolar dos filhos. "Homem, deixe os meninos em paz."

Baribal ainda teve tempo de ler alguns trechos dos livros do pai, assim como os cadernos deixados por ele. "Livros não enlouquecem ninguém. A loucura vem de outras fontes." Não, não concordava com a opinião da mãe. O pai até podia estar louco, porém a sua loucura não havia surgido da leitura dos livros, mesmo daqueles que tratam mais diretamente de canibalismo. Se não falava de outro assunto, se discutia em defesa de suas opiniões, se se irritava com facilidade, se brigava com a mulher e os filhos, se todo dia contava um sonho esquisito, se a toda hora falava de seus medos – nada disso se devia aos livros. O princípio de todos os problemas do pai podia estar no próprio nome: "Aníbal" está dentro de "canibal", faz parte da palavra, embora as origens de uma e de outra sejam bem diversas. Vissem bem os nomes dos filhos, dados por ele e não pela mãe: Baribal e Aníbara. Ambos formados de pedaços dos nomes Aníbal e Bárbara. E quem seria mais canibal? Quanto à mania de ler, tudo deve ter começado pela curiosidade de conhecer as origens do próprio nome. Ao descobrir o primeiro grande Aníbal da História, passou a fazer mais e mais pesquisas, leituras. Afundou na História de Roma, perdeu-se no passado. Quando descobriu Aníbal Barca só faltou ficar doido. Sentiu-se o próprio guerreiro antigo. Copiou em grandes letras um trecho em latim e o expôs na sala de casa: "Missus Hannibal in Hispaniam primo statim adventu omnem exercitum in se convertit. Hamilcarem iuvenem redditum sibi veteres milites credere; eumdem vigorem in vultu, vimque in oculis, habitum oris lineamentaque intueri. Dein brevi effecit ut pater in se minimum momentum ad favorem conciliandum esset. Tito Lívio, Ab Urbe Condita Libri."

A discórdia na família de Aníbal vinha de muitos anos. Bárbara nunca gostou dos nomes dos filhos e sempre se queixou disso. Queria nomes mais comuns, como Aniceto, Anacleto, Ana, Anastácia. O menino chorava quando os colegas o chamavam de Bari, Bariba, Barbal e outros apelidos. Aníbara chorava mais ainda, porque a chamavam de Víbora ou Níbra. E, adolescente, passou a responsabilizar o pai por todos os seus infortúnios. Não conseguia namorado. As colegas fugiam dela.

Bárbara acusava Aníbal de ter trazido a loucura para dentro de casa desde o batizado dos filhos. Ao misturar os nomes Aníbal e Bárbara, para da mistura formar os nomes dos filhos, deu início à própria crise, à própria loucura, ao canibalismo de letras, sons e palavras. E o pior de tudo: não havia solução para aquilo. "Nome dado é nome moldado, ferrão em rês, marca. Para sempre." A pobre menina morreria Aníbara, metade Aníbal, metade Bárbara. E Aníbara, tresloucada, se desgrenhava, arrancava cabelos, babava, rolava no chão.

Leonardo Jaguaribe lamentava o final infeliz do amigo Aníbal. Conheciam-se havia muitos anos. Quantas noites juntos nos bares, falando de política, futebol, crime, cinema, música, literatura. Porém, nos últimos tempos Aníbal havia se tornado insuportável. Não parava mais de falar, não deixava ninguém abrir a boca. E, pior, o mesmo assunto. Sim, Aníbal não passava um dia sem falar em livros. Porém, dos livros passava aos sonhos, ao futuro, delirava, voava. Então a loucura de Aníbal vinha dos livros. Não, não via nos livros a causa principal da demência do amigo. Tudo vinha da bebida, do álcool. Daí os sonhos estapafúrdios, os delírios intermináveis. Quantas vezes contou histórias de auto-devoração. Sentia fome e vontade de comer o próprio corpo. Partia dos dedos das mãos, passava aos braços, descia aos pés, às pernas, ao pênis. Sonhava devorando Bárbara. Esquartejava-a, jogava à panela os pedaços. Convidava amigos para a grande ceia. Os filhos perguntavam pela mãe. Ele mentia e os obrigava a se alimentarem da carne da própria mãe. Contava isso como se contasse uma história banal, sem nenhuma cerimônia, porém sem riso de deboche.

Felismina, mulher de Leonardo, também frequentava a casa de Aníbal e Bárbara. Conhecia Baribal e Aníbara desde pequenos. Conversava horas a fio com Bárbara. Com Aníbal não conversava tanto. Não entendia bem as palavras dele. Não gostava dos assuntos por ele tratados. E ultimamente sentia arrepios e até enjoos quando ele se punha a falar. Porém, não via loucura nenhuma nele. Aníbal não passava de um homem estranho, esquisito. "Posso dizer excêntrico?" Talvez nem fosse isso. Possivelmente se fazia assim, se mostrava assim, por exibicionismo. Qualquer pessoa pode ler livros sobre canibais. Qualquer pessoa pode ter sonhos absurdos. Inventaram a loucura de Aníbal. Os objetivos desses "inventores" seriam os mais diversos. Bárbara talvez quisesse se livrar do marido. Viviam brigando. Separação inevitável e necessária. Segundo Bárbara, o marido não a amava mais. Passava dias, semanas, meses sem se aproximar dela. Sentava-se, abria um livro sobre canibais e dormia no sofá. Um dos livros preferidos dele era Viagem ao Brasil. As páginas mais anotadas foram as que descrevem cenas de antropofagia: "Quando trazem para casa os seus inimigos, as mulheres e as crianças os esbofeteiam. Enfeitam-nos depois com penas pardas; cortam-lhes as sobrancelhas; dançam em roda deles, amarrando-os bem, para que não fujam. Dão-lhes uma mulher para os guardar e também Ter relações com eles. Se ela concebe, educam a criança até ficar grande; e depois, quando melhor lhes parece, matam-na a esta e a devoram."

Mesmo quando ia para a cama, levava um livro. Ficava até de madrugada lendo, dormia, acordava assustado, aos gritos. Bárbara também se assustava. "Eles já iam me devorar vivo." Baribal e Aníbara podem ter sido influenciados pela mãe. Leonardo queria afastar Aníbal do álcool.

Havia algum tempo Aníbal vinha tendo dificuldades de relacionamento com os colegas de trabalho. Os primeiros problemas surgiram quando passou a ler durante o expediente. O chefe chamou-lhe a atenção diversas vezes. Além de ler, Aníbal falava muito enquanto trabalhava, ou parava de fazer as tarefas para falar dos livros, de seus sonhos e delírios. A qualquer hora abria um de seus livros raros e se punha a ler em voz alta, em inglês, latim e até idiomas menos conhecidos aqui, como a língua d'oc. Às vezes fazia pose, pedia silêncio, atenção, e relia trechos de obras científicas.       

 Alguns colegas dele riam e, sem que ele ouvisse, chamavam-no de maluco. Outros não lhe davam mais ouvidos, irritavam-se, faziam reclamações ao chefe. Os mais amigos pediram paciência. Aníbal precisava de ajuda médica. César, o chefe, gritou: nada de maluquice, nada de necessidade de tratamento médico. E socou a mesa: preguiça, malandragem, eis o nome da doença desse falso canibal. No entanto, uma funcionária procurou o médico da repartição. E convenceu Aníbal a ir ao consultório do doutor Osvaldo Cruzado. Atônito, o marido de Bárbara se dirigiu ao clínico. Falou durante mais de uma hora: canibais, relatos de cenas de canibalismo, sonhos estapafúrdios. Osvaldo em nenhum momento deixou de mirar as palavras cruzadas e outros passatempos espalhados sobre a mesa. Súbito quis saber se Aníbal gostava de História. E se pôs a falar das Cruzadas. Império Bizantino, papa Urbano II, Deus vult, Deus assim deseja, libertação de Jerusalém, Terra Santa, Guerra Santa. O paciente passou imediatamente a falar de Amílcar Barca e de seu famoso filho. Ainda pequeno, na presença do pai, Aníbal jurou eterno ódio aos romanos. O médico parecia embasbacado. Tomou veneno, para não se entregar aos inimigos. O médico coçou o queixo. O fato se deu no ano 183 a. C. Ao fim da consulta, encaminhou Aníbal a um psiquiatra.

Recebido com euforia pelo doutor Sigismundo Freudungo, o paciente se manteve calado durante alguns minutos. Talvez a origem da doença estivesse na sua infância. Pode ter presenciado cenas de canibalismo entre animais. Cobra engolindo cobra, rato devorando rato. Como se o médico estivesse ali apenas para ouvi-lo, pôs-se a dizer frases desordenadas, como se colhidas aqui e ali, numa colagem babélica: "Os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais; algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos." Abriu a pasta cheia de livros e cadernos, meteu a mão e retirou um calhamaço: "Nem nos deve admirar a barbaridade destes povos, quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descendentes a tanta brutalidade que matavam e comiam aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em guerra ou em ciladas."

Bárbara fez uma fogueira de todos os livros de Aníbal. Nunca mais queria ver livros à sua frente. Por causa deles o coitado do Aníbal havia enlouquecido. Agora a miséria, a vergonha, todos os vexames sociais. Por onde passa ouve um zunzunzum: olha a mulher do doido; tanto orgulho e agora isso...

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Renata Paccola (Trovas)


A força de uma nação
começa com a caneta...
Um a mais na educação:
um a menos na sarjeta!

Alerta a todo machista:
nova era se avizinha...
Será uma grande conquista
ver os homens na cozinha!

A maré desce e descansa
enquanto a onda passeia,
acariciando a criança
e seus castelos de areia...

Ao deitar na rede, o Guido
morreu de uma forma tétrica,
porque, de tão distraído,
deitara na rede elétrica!

Ao ver a joia de Alice,
a amiga pergunta a esmo:
– É diamante? - E a outra ri-se:
– Não, é do marido, mesmo!

Ao ver a praça... o coreto...
lembro você ao meu lado,
e o meu mundo branco em preto
ganha as cores do passado!

As graças que sempre faço
têm o poder de encobrir
a tristeza que o palhaço
faz de conta não sentir...

Casamento traz enganos,
pois seu muso inspirador
pode virar, depois de anos,
o seu museu roncador!

Conquistar novos espaços...
eis a semente da guerra.
Tantas vidas em pedaços
por um pedaço de terra!

Contra a vontade do amado,
nada faça... e se conforme.
Dizia o velho ditado:
"Quando um não quer... o outro dorme".

Deu chilique no garoto
ao saborear seu prato,
e o tempero “Ajinomoto”
bem depressa “agiu no mato!”

É na busca pela paz
e o conhecimento novo
que tantas vezes se faz
a identidade de um povo!

É um arquivo de desmandos
a memória do poeta:
desobedece aos comandos
quando a paixão não deleta...

Eu que fui grão escolhido
nos trigais da mocidade,
hoje sou pão ressequido
nas migalhas da saudade...

Eu só julgo que mereço
a fortuna que amealho
se ela tiver seu começo
no suor do meu trabalho!

Fraternidade é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a dividir
até mesmo o que nos falta…

Insensatez... Causa? Efeito?
Sentimento ou atitude?
Para quem pensa, é defeito;
para quem sonha, é virtude!

Jamais aceite um convite
para o amor, em tempo errado.
Desperta mais apetite
o prato mais esperado!

Já não há nenhum prazer
que em público a lei permita:
quem quer fumar ou beber
tem que virar eremita!

Meu caminho é tão confuso,
que muitas vezes me sinto
como se fosse um intruso
vagando num labirinto...

Meu coração machucado
foi o pior professor,
ao me deixar reprovado
nas tantas provas de amor!

Meu verso reflete a dor
de um coração solitário,
que escreve cartas de amor,
sem qualquer destinatário...

Nacionalismo é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a repartir
até mesmo o que nos falta.

Na inspiração oportuna
pode o poeta buscar,
mais do que criar fortuna,
a fortuna de criar.

Não há bicho que não deixe
suas marcas na Julinha:
no pé tem olho de peixe;
no olho, tem pé de galinha!

Não pode existir quem negue
que em apenas quatro versos
a trova sempre consegue
conter vários universos!

Não quero a vida vazia
com práticas e horas certas,
mas polvilhar cada dia
de pequenas descobertas...

No meu sótão de memórias,
vivem lembranças sem fim,
num velho baú de histórias
vividas dentro de mim...

Nosso tempo de criança...
Os velhos sonhos de outrora...
A saudade é uma lembrança
que se esqueceu de ir embora!

Nossos momentos felizes
semeados na memória,
fazem crescer as raízes
que sustentam nossa história!

Num casório aconteceu
engano quanto à pessoa,
e então um homem ateu
casou com a mulher à toa!

O desejo, por instinto,
e a carícia, por encanto,
vêm criar o amor que eu sinto
e inspirar o amor que eu canto!

O futuro, eu mesmo faço
nas sementes que eu espalho,
transformando meu cansaço
nos frutos do meu trabalho.

Os cobradores levados
aos males e às tentações,
tentam pagar os pecados
em suaves prestações!

Pra cortar alho e limão
sem misturar azedumes,
eu lanço, em primeira mão,
a faca de dois legumes!

Para o furacão filmar,
a TV saiu-se bem:
a matéria foi ao ar
e o repórter foi também!

Por tantas vezes perdido
nas vertentes do destino,
segue em busca de um sentido
o meu sonho peregrino...

Quando as mangas arregaço
para cumprir meu dever,
se bate à porta o cansaço,
eu me recuso a atender.

Quem dera a justiça cega
pudesse ver, tão somente,
a falsa prova que entrega
e condena um inocente!

Quem divide os próprios dias
ajudando a quem precisa,
multiplica as alegrias
e as tristezas, suaviza.

Que os rumos de meus irmãos
não se percam nas estradas
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!

Rico cinquentão? Coitado!
Quisera que fosse assim!
Ele anda mais apertado
que pasta dental no fim!

Ser careca ele detesta.
Não suporta usar peruca.
Então, puxou para a testa
o que restava na nuca...

Sinto a dor de quem confessa
que minha vida pequena
foi o ensaio de uma peça
que jamais entrou em cena...

Solteira por convicção 
só quero um "galho" inconstante:
quem gosta de amarração
é corda,fita e barbante!

Teve um chilique tão forte
que logo tomou vacina,
e se mandou para o Norte
temendo a gripe sulina...

Uma lágrima que escorre
traz mais brilho à própria face,
se a cada sonho que morre
há um novo sonho que nasce!

Um sorriso de criança
inocente, doce e aberto
é uma chuva de esperança
em meu caminho deserto!

Malba Tahan (Minha Vida Querida)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encarnecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibet. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os lamas (1) imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão (2).

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor.

    Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação (3).

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li.

Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

— Han-Ru, ó gênio desapiedado! — exclamou. — Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-li? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

— A tua inquietação é legitima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Li-Tsen-li vai morrer!

— Piedade, Han-Ru! Piedade! —- implorou Te-ha-tá. — Ela é tão jovem, e tão prendada! Pelo amor de Maia Devi (4) deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse:

— Muito fácil será, para aquele (e é esse o teu caso!) que tem o amparo de Maia Devi, prolongar a vida de Li-Tsen-li. Sei que tens direito a uma vida longa e tranquila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?
   
A sombra de um vulto surgia, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.
   
As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

— A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e orientaram na vida?

— Farei como pedes, meu amigo — respondeu o Anjo da Morte. — Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deveras voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.
* * *
   
Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram mais apreciados do que os olhos negros das Apsaras que enchem de encanto o céu de Indra (5).
   
Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

— A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Niansi não se conteve:

— É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas, muitas com as sete ou talvez, com as oito perfeições indicadas no Livro Sagrado (6). Aqui mesmo (no Tibet) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a ideia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de.tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.
* * *
   
A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-tá.

— Vou ouvir — pensou o jovem — a opinião do prudente Kin-Sã. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kin-Sã, citado no Tibet como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

— Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranquilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer  motivo, não se mostrar  digna de teu sacrifício,  perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

— Fizeste bem em hesitar. A Hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.
* * *
   
Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sã, e levou-a sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

— Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim “emprestada”.

* * *
   
Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibet. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa “minha vida querida”.

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou “Minha vida querida” e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

— Onde está “Minha vida querida”? — perguntou, ansioso, aos amigos. — Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à “Minha vida querida”?

Disse um dos amigos:

— Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

— Desgraça? — repetiu, aflito, Te-ha-tá. — É horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está “Minha vida querida”?

— Morreu!

— Morreu! — gritou Te-ha-tá, desesperado. — Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador.

Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

— Han-Ru! — bradou, num tom de incontido rancor. — Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de “Minha vida querida”?

— Escuta, Te-ha-tá — respondeu Han-Ru. — Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

— E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!
__________________________
Notas:
1- Lamas — Sacerdotes budistas entre Mongóis e Tibetanos. O chefe supremo é o grande Lama ou Dalai-Lama.
2- Senhor da Compaixão - Deus.
3- Han-Ru — Na complicada mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Os três primeiros, Brama (o principio criador), Vishnu (o principio conservador) e Siva o principio destruidor), formam a celebre trindade hindu. Além dos 17 deuses, os hindus incluíram entre as divindades os planetas, alguns rios (o Ganges, por exemplo, é adorado sob a forma de uma deusa) e certos animais. Siva, cuja esposa é Maia Devi ou Bhavâni, tem vários auxiliares. Han-Ru é um dos gênios que se encarregam de cumprir as determinações do Deus da Destruição.
4- Maia Devi — também denominada Bhavâni. É a esposa de Siva, terceiro deus da trindade hindu. Essa deusa é, em geral, representada sob a forma de uma linda mulher, em atitude ameaçadora, montada num tigre.
5- Céu de Indra — Da multiplicidade de deuses que são apontados na Mitologia Hindu decorre a crença, geralmente aceita, de que existem vários céus. O céu de Indra parece ser o mais notável. Erguem-se, nessa região divina, palácios de ouro ornados de pedras preciosas, grutas, jardins prodigiosos cujas flores exalam cem mil perfumes diferentes. Um foco luminoso — mais intenso do que o sol — derrama uma claridade sobre todos os recantos do paraíso hindu. O céu de Indra é povoado por uma infinidade de ninfas encantadoras denominadas Apsaras.
6 - Livro Sagrado — A religião dos hindus é, em parte, explicada nos Vedas, que não passam, afinal, de uma coleção de hinos, preces e conceitos morais. O Livro Sagrado a que se refere o herói do conto deve ser, naturalmente, o Código de Manu, cuja origem é anterior ao IX ante-século.
     Todos os conceitos e princípios religiosos no livro de Manu aparecem, aliás, citados nos Vedas.
     Há quatro Vedas, sendo cada um deles dividido em duas ou três partes. O primeiro é constituído exclusivamente por vários hinos religiosos e preces; o segundo estuda os princípios religiosos e analisa as controvérsias teológicas; o terceiro discute certos pontos obscuros de Teologia. O quarto Veda não é, em geral, aceito pelos doutores hindus.
     Os Vedas não podem ser atribuídos a um único autor; em cada um deles colaboram vários personagens de épocas diversas. Os diversos escritos foram reunidos sob a forma atual no século XVI, antes de Cristo.


Fonte: Malba Tahan. Minha Vida Querida.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de Natal)


Dezembro... mês de euforia,
planos: compras de Natal.
No centro: mercadoria
e de lado o PRINCIPAL

É natal nos condomínios,
nas prisões e nas favelas...
mas as faces dos fascínios
mudam conforme as janelas.

Lá no morro, vinte e cinco
é um dia não diferente,
mas mesmo em teto de zinco
quem tem amor tem presente.

Mesmo com todo esse clima
de convulsão social
os fluidos que vêm de cima
purificam o Natal.

Nestes tempos tão modernos
Natal está precisando
de muitos gestos fraternos
e mais tempo vez em quando.

No Natal eu gostaria
de abraçar toda cidade;
ver gente na correria
"comprando" felicidade.

Os apelos aos ouvintes
em paz "artificial"
são verdadeiros acintes
às mensagens do Natal.

Quantos sapatos vazios...
janelas... -portais dos sonhos-
por onde olhinhos sombrios
veem o Natal tão tristonhos.

Fonte: O trovador

Nilto Maciel (Trem-fantasma)

O maquinista, logo após o desastre, deu um grito, levou as mãos à cabeça, pôs-se a chorar e recostou-se a um canto da parede, sentando-se. Descuido? Imprudência? A locomotiva partiu da estação primeira já em alta velocidade e, num segundo, alcançou a segunda, a terceira, feito bala, apitando, sem parar em nenhuma estação. Quando o maquinista percebeu o perigo, não havia mais tempo para frear o trem. O precipício abria-se à sua frente, profundo, mortal. O homenzinho fez careta, arregalou os olhos: os vagões resvalaram, despedaçando-se no fundo do abismo. "Ó meu Deus!" Porém, havia um consolo: nenhum passageiro havia subido aos vagonetes. E ajudantes ele nunca teve. Assim, nada de vítimas. Mais sossegado, enxugou as lágrimas e engatinhou até o primeiro pedaço do trem. Pôs-se a juntar um a um os restos do veículo. Olhou para cima, para a grande mesa da sala, onde o desastre teve início.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Olivaldo Junior (Buquê de Trovas sobre o amor... e sem motivo nenhum)

Cada amor que desfolhei
desfolhou-me a solidão;
para o espelho, já mudei;
só não muda o coração...

- Cada lágrima que eu guardo
nesse peito, o meu Saara,
vira a chama em que me ardo
quando o amor é joia rara...

Com a cal do esquecimento,
recobrimos nosso amor;
mas, o tempo, com o vento,
fez romper da pedra flor...

Da poeira do meu quarto,
de mil livros nunca lidos,
nasce a trova que reparto
com amores não vividos...

Das estrelas que acendi
numa noite enluarada,
a do amor jamais perdi
ao achar a madrugada.

Entre as letras da canção
que eu cantava por amor,
desfolhou-se um coração
que 'batia' em seu louvor...

- Esse amor de quem amou,
tal e qual o cravo branco,
nasce donde alguém chorou
e se firma num barranco.

Este amor que eu alimento
co'as sementes da ilusão
bica em fúria o sentimento
que me escava o coração...

Fina estrela em teu olhar
vira a láctea de uma via
que persigo ao caminhar
com você, amor, poesia...

Grande amor, pequeno embora,
foste grande ao vão poeta
que se encontra à luz da aurora
mas jamais em linha reta...

Grande fado, mar ao lado!...
Mas a lágrima de oliva
rola aos lábios do coitado,
a rogar, silente: - Viva!

Mal o dia em nós raiou,
meu amor se pôs a arfar;
foi meu beijo que tirou
de quem amo todo o ar...

Meu amor jamais foi meu,
disso eu tenho consciência;
no balcão, sobrou Romeu,
numa eterna adolescência...

- Na sanfona que suspira
pelo amor no carrossel,
fica o choro que conspira
pra essa lua ser de mel...

Na varanda de minh'alma,
sob as dálias e o jasmim,
este cravo é branca palma
de uma rosa sem jardim...

No florir dos dissabores,
num bilhete desprezado,
fica o cheiro dos amores
que ficaram no passado...

Ó, guitarra portuguesa,
voz irmã de um trovador,
faz do amor a natureza
de quem busca lua e flor!

Todo o amor que tu me tinhas,
e lhe tinha amor demais...
Mas, na vida, as "cirandinhas",
volta e meia, são jamais.

Um perdão que nunca vem
vem matar quem o quisera,
mas massacra quem o tem
sem o dar a quem o espera...

Fonte: O Autor

Carlos Leite Ribeiro (O Sonho de Sofia)

(Conto de Natal dedicado à minha querida netinha Ana Sofia)
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- Mamã, não tenho sono e quero ir para a tua cama.

Antes de ter autorização para ir para a cama dos pais, a pequenina Sofia saltou para o meio e deitou-se entre ambos.

- Porque não consegues dormir, Bebê ? – perguntou-lhe a mãe.

- Sabes, a Barbie, a boneca da mana, esteve a falar comigo e não me deixou dormir…

- Não acredito que a boneca tivesse falado contigo! E o que te disse ela?

- Disse-me as prendas que o Pai Natal me vai dar amanhã …

- Ah, sim ?!!! não estou a acreditar e o papá está a rir-se.

- É verdade, papás ! Disse-me que me ia dar uma saia comprida como a mamã e a mana tem, uma linda t-shirt, meias, botas altas e um boné de pala.

- Marido, estás a ouvir esta nossa filha ? Não sei não …

- E ainda mais, papás, um telemóvel (celular) como o mano tem, uma mesa para eu escrever, um cocas (sapo) e um boneco muito grande como a mana tem e …

- Olha que talvez o Pai Natal não te possa dar tudo isso. Este ano, ele está com muita falta de dinheiro. Então um boneco grande está fora de causa, pois o vosso quarto é pequenino.

- O boneco da mana, como já é velho, pode ficar na garagem. E como o Pai Natal está pobrezinho, o papá podia dar-lhe uns dinheiritos … Também quando chegar o Pai Natal, quero ir falar com ele, para lhe dar um beijinho…

O pai, muito divertido, levantou-se da cama, dizendo-lhe:

- Olha Bebê, vai para a tua caminha que o papá amanhã vai escrever ao Pai Natal a fazer o teu pedido. O papá vai-te por na tua caminha.

A criança agarrou-se ao pescoço do pai que a foi pô-la na caminha. De regresso ao seu quarto, a esposa muito divertida, disse-lhe:

- Parece-me que esta nossa filhinha vai ser uma “contadora de histórias” como o avô …

Fonte: O Autor

sábado, 23 de dezembro de 2017

Trova 277 (Renata Paccola)


Carlos Leite Ribeiro (O Boneco de Trapos)

https://br.pinterest.com
Era uma vez um boneco de trapos...

O Natal estava à porta e, numa casa modesta, a mãe viúva e as suas duas filhas, trabalhavam afincadamente na confecção de bonecos de trapos.

O último boneco da última série saiu defeituoso: uma perna mais curta, um braço mais comprido e até o olhar era vesgo.

- Não vamos mandar este boneco para a loja, pois, está muito defeituoso - disse-lhe uma das filhas.

- É um fato, este boneco ficou com muitos defeitos - concordou a mãe, que continuou - mas talvez passe e não seja devolvido. Nós precisamos tanto de dinheiro...

- Sendo assim, minha mãe, vamos então mandar também o "aleijadinho".

E o Boneco de Trapos, com uma perna mais curta, um braço mais comprido e com o olhar vesgo, lá foi para a loja...

Em outra casa modesta, outra mãe falava a sua filha mais nova:

- Tu minha filha, queres oferecer uma prenda de Natal àquela menina que mora além, naqueles prédios novos, mas nós somos pobres e não podemos oferecer nenhum brinquedo caro.

- Podemos comprar qualquer coisa barata, uma simples lembrança - disse-lhe a criança - para mais, ela deu-nos umas roupinhas que nos fizeram muito arranjo.

- Pronto, não insistas mais. Vai à loja e compra um brinquedo que seja barato.

E foi assim que, o Boneco de Trapos, defeituoso, com uma perna mais curta, um braço mais comprido e o olhar vesgo, bem embrulhado e com um laço colorido, foi parar a uma casa menos modesta, onde habitava uma menina, que tinha muitos brinquedos caros e bonitos...

- A tua amiguinha ali de baixo, a que no outro dia deste aquelas roupas, trouxe-te esta prenda.

- Ah, mas que boneco tão imperfeito, mamã! que hei de de fazer com ele? É tão feio?!

- Brinca com ele - retorqui-lhe a mãe - Talvez depois o consideres bonito.

Pouco convencida, a menina não arranjou outra brincadeira que não fosse colocar o Boneco de Trapos, no centro do alvo dos dardos, e, com uma precisão quase matemática, começou a espetá-lo. Pouco a pouco o boneco foi-se desfazendo, e, assim, quase desfeito, foi parar na manhã da véspera de Natal, a um contentor de lixo...

Nessa manhã, uma mãe levava sua filha pela mão e, ao passar por um contentor de lixo, a criança exclamou:

- Mãe, olha aquele boneco de trapos. É tão bonito, deixa-me levá-lo?

- É um boneco tão imperfeito, já desventrado, para que tu o queres? Só servia para sujar a casa.

- Mãe, eu nunca tive um boneco, e este, até é coxinho como eu. Tu, minha mãe, até podias arranjá-lo, para mais, o Pai Natal nunca se lembrou de mim!

E a criança lá levou o boneco para casa, que à noite já estava consertado e com os defeitos corrigidos. Até parecia outro...
 
Quando nessa noite, foi para a cama, a menina aleijadinha, orgulhosamente, deitou o Boneco de Trapos a seu lado, e disse à mãe:

- Mãe, tu que és tão habilidosa, que consertaste tão bem este boneco, não podias consertar também e minha perninha, para eu ficar tão bonita como ele?

Comovida, a mãe limpou uma lágrima que, teimosamente lhe caia pela face abaixo, e, tristemente, respondeu-lhe:

- Infelizmente não posso, minha filha. Mas confiemos em Deus e na boa vontade dos Homens. Talvez para o ano que vem, possas ser curada...

E um ano passou...

A menina aleijadinha, depois de fazer algumas operações e de ser bem tratada, recuperou do seu defeito físico.

- Mais um ano em que não podemos fazer uma festinha nesta noite. Nem sequer um brinquedo te posso dar, minha filha - lamentava-se a mãe.

- Não te preocupes, mãe, eu já recebi uma grande prenda, pois, estou completamente curada e, para mais, tenho o Boneco de Trapos, que sempre me acompanhou. Ele é tão bonito, não é, mamã?!

O frio lá fora era intenso e talvez nevasse...

Aquela mãe, depois de aconchegar os cobertores a sua filha e ao seu Boneco de Trapos, olhou-o com mais atenção, e, teve a sensação que este lhe sorria e lhe dizia:

- Obrigado, mãe, vai descansar, pois eu velarei pela nossa menina...

E será mesmo que... Nessa Noite em que dizem que os animais falam, os Bonecos de Trapos, também falam?

Fonte:
O Autor

L. P. Baçan (A História do Terceiro Velho e do Pescador)

          Senhor, havia um pescador tão velho e tão pobre que mal podia sustentar sua esposa e três filhos. Saia pescar muito cedo diariamente e havia estabelecido uma regra para si: jamais lançar sua rede mais do que quatro vezes. Ele partiu uma certa manhã, ainda à luz da lua, e foi para a beira do mar. Ele se despiu e lançou a rede. Quando a estava puxando para o banco de areia, sentiu um grande peso. Imaginando ter pegado um grande peixe, ficou muito contente. Mas, no momento seguinte, viu em sua rede, ao invés de um grande peixe, a carcaça de um asno. Ele ficou muito desapontado.

          Aborrecido com tal pescaria, ele consertou a rede que a carcaça do asno havia arrebentado em vários pontos. Em seguida, atirou novamente a rede ao mar pela segunda vez. Ao puxar, ele novamente sentiu um grande peso, de forma que pensou que ela estava cheia de peixe. Mas ele só achou uma enorme cesta cheia de lixo. Ele ficou ainda mais aborrecido.

          — Ó, sorte! — ele clamou. — Não faça troça comigo, um pobre pescador que não pode sustentar sua família!

          Dizendo isso, ele jogou fora o lixo, e lavou a rede, limpando-a de toda sujeita. Novamente ele a lançou ao mar, pela terceira vez agora. Dessa vez, só pegou pedras, conchas e lama. Ele estava à beira do desespero. Então ele lançou a rede pela quarta vez. Quando pensou ele nada pescara, ele a puxou com muito dificuldade. Não havia peixes, mas ele achou um pote amarelo, que pelo seu peso parecia conter alguma coisa. Ele notou que estava fechado e lacrado com um selo. Ficou encantado.

          — Eu o venderei ao fundidor e, com o dinheiro que conseguir, comprarei uma medida de trigo.

          Ele examinou o jarro por todos os lados, depois o chacoalhou para ouvir algum ruído, mas nada ouviu. Analisando o selo na tampa, ele pensou que, mesmo assim, poderia haver alguma coisa lá dentro. Usando sua faca, com um pouco de dificuldade ele conseguiu soltar a tampa. Virou o pote de cabeça para baixo, mas nada saiu dali. Levantou o objeto à altura dos olhos e estava olhando seu interior, tentando ver alguma coisa, quando saiu dali uma fumaça espessa, fazendo-o recuar alguns passos. Essa fumaça se levantou até as nuvens e estendeu-se para cima do mar e da orla, formando um nevoeiro que muito surpreendeu o pescador. Quando toda a fumaça estava fora do pote, ela se concentrou numa massa enorme, na qual apareceu um gênio duas vezes maior que um gigante. Quando viu aquele monstro terrível olhando para ele, o pescador ficou tão aterrorizado que não conseguiu dar um passo para fugir.

          — Grande rei dos gênios! — exclamou o monstro. — Jamais voltarei a desobedece-lo!

          Estas palavras levaram coragem ao pescador.

          — O que você está dizendo, grande gênio? Conte-me sua história e como acabou encerrado nesse vaso.

          O gênio olhou o pescador com arrogância.

          — Dirija-se a mim com cortesia, antes que eu o mate!

          — Ai! Por que você deveria me matar? — indagou o pescador. — Eu o libertei, já se esqueceu?

          — Não! — respondeu o gênio. — Isso não me impedirá de matar você. Mas vou lhe conceder um favor: escolha como quer morrer!

          — Mas o que fiz eu a você? — insistiu o pescador.

          — Eu não o posso tratar de qualquer outro modo — disse o gênio. — Se quiser saber o motivo, escute a minha história. Eu me rebelei contra o rei dos gênios. Para me castigar, ele me encerrou neste vaso de cobre, lacrando-o com um selo de chumbo, que é o único encanto capaz de me deter e me impedir de sair. Em seguida ele jogou o vaso no mar. Durante o meu cativeiro, jurei que se qualquer um me libertasse antes de cem anos, eu o faria rico até mesmo depois da morte. Aquele século passou e ninguém me livrou. No segundo século, prometi que daria todos os tesouros do mundo para meu libertador, mas ele nunca veio. No terceiro século, eu prometi fazer de meu salvador um rei, sempre estar perto dele e lhe conceder diariamente três desejos. Mas aquele século também se passou e eu permaneci na mesma prisão. Finalmente, fiquei furioso por ter permanecido cativo por tão longo e prometi que se alguém me soltasse, eu o mataria imediatamente e só lhe permitiria escolher de que maneira ele deveria morrer. Como vê,

          O pescador estava muito infeliz.

          — É isso que um homem azarado como eu ganha por ter salvado você. Eu lhe imploro que poupe minha vida.

          — Já lhe disse! — tornou o gênio. — Sejamos breves. Escolha, você está desperdiçando meu tempo!

          O pescador teve uma ideia repentina.

          — Considerando que eu tenho que morrer — falou ele, — antes de eu escolha a maneira de minha morte, eu suplico por sua honra que me diga se estava realmente dentro do vaso!

          — Sim, eu estava — respondeu o gênio.

          — Eu realmente não posso acreditar nisso — afirmou o pescador. Aquele vaso pequeno mal pode conter um de seus pés, quanto mais o corpo inteiro. Eu não posso acreditar nisso, a menos que eu o veja fazer isso.

          — Pois vou lhe mostrar como! — falou o gênio, com desprezo.

          Então ele começou a se transformar em fumaça que, como antes, esparramou-se para cima do mar e da orla, depois foi se juntando e começando a entrar lentamente no vaso, até que nada restasse do lado de fora. Uma vez saiu do vaso, indagando:

          — Bem, pescador descrente, aqui estou eu, dentro do vaso. Acredita em mim agora?

          O pescador, em vez de responder, apanhou a tampa de chumbo e fechou depressa no vaso.

          — Agora, ó gênio do mal — exclamou o pescador. — Peça perdão a mim e escolhe de que morte morrerá! Mas não, será melhor que eu o lance ao mar e que construa uma casa na praia para avisar a todos os pescadores que aqui vêm lançar suas redes para que se previnam de pescar um gênio tão mau como você, que jura matar o homem que o libertar.

          A estas palavras, o gênio fez tudo que pôde para sair, mas não podia, por causa do encanto da tampa.

          — Se me ajudar, eu o farei o homem mais sábio do mundo todo, capaz de desafiar gênios, seduzir fadas e conquistar reinos.

          — Se eu confiar em você, nada me garantirá que serei tratado com justiça. Além disso, se minha astúcia superou a de um gênio, estou certo de que poderei vencer pela astúcia qualquer outro que aparecer no meu caminho — disse o velho.

          — Poderá ter tudo que jamais teve em sua miserável vida! — continuou o gênio.

          — Vou fazer melhor! Vou correr o mundo, levando você para ensinar as pessoas a enfrentarem a maldade — finalizou o velho, encarando agora o gênio que queria tirar a vida do pobre e desesperado comerciante.

          — Devo confessar que sua história é a mais surpreendente e maravilhosa de todas as outras — afirmou o gênio, realmente surpreso, olhando de rabo de olho para o pote que o velho tinha nas mãos. — Por isso eu lhe dou a terceira parte do castigo do comerciante. Ele deve agradecer todos os três pelo empenho demonstrado em salvá-lo. Se não fossem vocês, ele já teria partido desta vida.

          Dizendo assim, ele desapareceu, para grande alegria do comerciante e de seus companheiros. Ele não soube como agradecer seus amigos e fez tudo que estava ao seu alcance para demonstrar sua gratidão.

          Convidou a todos para irem morar na casa dele, mas os viajantes agradeceram e cada um tomou seu rumo. O comerciante voltou para sua esposa e para seus filhos, passando o resto de sua vida feliz com eles.

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

L. P. Baçan (A História do Segundo Velho e dos Cachorros Pretos)

   
       Grande Príncipe do Gênios, você tem que saber que nós somos três irmãos, estes dois cachorros pretos e eu. Nosso pai morreu e deixou mil cequim para cada um de nós. Com essa quantia, resolvemos ter a mesma profissão e nos tornamos comerciantes. Pouco tempo depois que abrimos nossas lojas, meu irmão primogênito, um destes dois cachorros, resolveu visitar países estrangeiros para vender mercadorias. Com essa intenção, ele vendeu tudo que tinha e comprou para novas mercadorias para a viagem que estava a ponto de fazer. Ele partiu e se passou um ano inteiro. Ao término deste tempo, um mendigo veio a minha loja.

          — Bom-dia! — eu disse.

          — Bom-dia! — respondeu ele. — É possível que você não me reconheça?

          Então eu o olhei bem de perto e vi que era meu irmão. Eu o fiz entrar em minha casa e lhe perguntei o que ocorrera com o empreendimento dele.

          — Não me questione! — ele me respondeu. — Veja, você vê tudo o que sobrou do que eu tinha. Sinto dificuldade em contar os infortúnios que me aconteceram nesse ano e que me deixaram assim.

          Eu fechei minha loja e lhe dei toda a minha atenção. Levei-o ao banho, dando-lhe uma de minhas batas mais bonitas. Eu fiz minhas contas e descobri que tinha dobrado meu capital. Entreguei a metade ao meu irmão, dizendo:

          — Agora, irmão, você pode esquecer suas perdas.

          Ele os aceitou com alegria, e vivemos juntos como vivíamos antes. Algum tempo depois, meu segundo irmão também desejou fazer a viagem de negócios dele. Meu irmão primogênito e eu fizemos tudo que pudemos para dissuadi-lo, mas foi inútil. Ele se juntou a uma caravana e partiu, para retornar ao término de um ano, no mesmo estado que nosso irmão mais velho.

          Tomei conta dele e, como eu tinha mil cequim para repartir, eu os dei a ele e ele reabriu sua loja.

          Um dia, meus dois irmãos vieram até mim para propor que nós viajássemos para vender mercadorias. No princípio eu recusei.

          — Vocês viajaram e o que ganharam com isso? — indaguei.

          Eles não desistiram e vieram repetidamente a mim e, depois de insistirem durante cinco anos, eu acabei cedendo. Finalmente, quando eles tinham feito os preparativos deles e começaram a comprar as mercadorias que iríamos vender, perceberam que haviam gastado todo o dinheiro que eu lhes havia dado. Eu não os repreendi e dividi minha fortuna, no total de seis mil cequim, da seguinte forma. Deu mil a cada um deles, guardei mil para mim e enterrei os outros três mil em um canto de minha casa. Nós compramos mercadoria, carregamos um navio com elas e partimos com um vento favorável.

          Depois da navegar dois meses, chegamos a um porto onde desembarcamos e fizemos excelentes negócios. Então nós compramos mercadorias do país e nos preparamos para velejar mais uma vez. Eu estava no barco, parado na praia calma, quando uma linda mas pobremente vestida mulher subiu a rampa e veio até mim, beijou minha mão e me implorou que me casasse com ela e a levasse a bordo. No princípio eu recusei, mas ela implorou tanto, prometendo ser uma boa esposa, que eu, afinal, consenti. Eu comprei alguns vestidos bonitos e, depois de termos nos casado, embarcamos e fixamos a vela. Durante a viagem, descobri tantas qualidades boas em minha esposa que comecei a amá-la cada vez. Mas meus irmãos começaram a ter ciúmes de minha prosperidade e resolveram conspirar contra minha vida. Uma noite, quando nós estávamos dormindo, eles nos jogaram no mar. Porém, minha esposa era uma fada e não me deixou afogar, transportando-me para uma ilha. Quando o dia amanheceu, ela disse a mim:

          — Quando eu o vi naquela praia, fiquei encantada com você e desejei testar sua natureza para ver se era boa, por isso me apresentei na forma em que me viu. Agora eu o recompensei, salvando sua vida. Mas estou muito brava com seus irmãos e não descansarei até levar as vidas deles.

          Eu agradeci à fada tudo que ela tinha feito para mim, mas supliquei para não matar meus irmãos. Tanto fiz que consegui aplacar sua ira. Num momento, então, ela me transportou da ilha onde estávamos para o telhado de minha casa, desaparecendo em seguida. Eu desci, abri as portas e desenterrei os três mil cequim que eu tinha enterrado. Eu foi para o lugar onde minha loja estava localizada e abri-a, recebendo as boas-vindas de meus companheiros comerciantes pelo meu retorno. Quando eu fui para casa, vi dois cachorros pretos que vieram humildemente ao meu encontro, como me conhecessem. Fiquei surpreso, mas a fada reapareceu e disse:

          — Não fique surpreso com esses cachorros. Eles são seus dois irmãos, condenados a permanecer durante dez anos nessa forma.

          E entes que eu pudesse falar alguma coisa, ela desapareceu. Os dez anos já quase se passaram e eu estou viajando a procura dela. Quando passava por aqui, vi esse comerciante e o velho com a corça e fiquei com eles.

          — Realmente! — disse o gênio. — Sua história é maravilhosa e por isso eu lhe concederei um do castigo do comerciante.

          Então o terceiro velho fez para o gênio o mesmo pedido que os outros dois haviam feito, e o gênio lhe prometeu o último terço do castigo do comerciante se a história dele ultrapassasse as outras.

          Assim ele contou a história dele ao gênio.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

L. P. Baçan (A História do Velho e da Corça)

   
       Esta corça que você vê comigo é minha esposa. Nós não tínhamos nenhum filho nosso, então adotei o filho de meu escravo favorito e determinei fazê-lo meu herdeiro. Minha esposa, porém, sentia uma grande antipatia pela mãe e pela criança, fato que me escondeu até que fosse tarde demais. Quando meu filho adotivo tinha aproximadamente dez anos, fui obrigado a sair em viagem. Antes de ir, confiei a minha esposa a criança e a mão dela, implorando que cuidasse delas durante minha ausência, que durou um ano inteiro. Durante este tempo, ela se dedicou ao estudo das artes mágicas para levar a cabo seus planos maléficos. Quando adquiriu conhecimento e poderes suficientes, levou meu filho e a mãe para um lugar distante, transformando-os num bezerro e numa vaca. Depois pediu a meu mordomo que cuidasse dos dois como se fossem animais que ela havia comprado. Por fim, tratou de dar fim no meu escravo.

          Quando voltei, perguntei por meu escravo e pela criança.

          — Seu escravo está morto — disse ela. — Quando ao seu filho, eu não o vejo há dois meses e não sei onde ele está.

          Eu lamentei ao ouvir falar do morte de meu escravo, mas como meu filho havia apenas desaparecido, eu pensei que logo haveria de encontrá-lo. Porém, oito meses se passaram, sem nenhuma novidades dele. Então chegou a época das festas de Bairam.

          Para celebrar isso, ordenei que meu mordomo trouxesse uma vaca gorda para sacrificar. Ele assim fez. A vaca que ele trouxe era minha escrava, a mãe de meu filho. Quando eu estava a ponto de mata-la, ela começou a mugir baixinho, como se suplicasse por sua vida. Eu vi, então, que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Tomado de piedade, ordenei o mordomo para levá-la e trazer um outro. Minha esposa, que estava presente, ridicularizou a minha compaixão, dizendo maliciosamente:

          — O que está fazendo você? Mate esta vaca. É a melhor que nós temos para sacrificar.

          Tentei agradá-la, mas novamente o animal mugiu e suas lágrimas me desarmaram.

          — Leve-a embora! — ordenei ao mordomo. — Mate-a você, eu não posso fazer isso.

          O mordomo, cumprindo minhas ordens, a matou. Ao esfolada, porém, descobriu que ela não tinha nada além de ossos, embora aparentasse ter muita gordura. Fiquei consternado.

          — Fique com ela! — disse ao mordomo. — E se tiver um bezerro gordo, traga-o no lugar dela!

          Em pouco tempo ele trouxe um bezerro gordo que, embora eu não o reconhecesse, era meu filho. Tentou arduamente partir sua corda e vir até mim. Lançou-se a meus pés, com sua cabeça no solo, como se desejasse despertar minha piedade, implorando-me para não lhe tirar a vida.

          Eu fiquei ainda mais surpreso com essa ação do que fiquei com as lágrimas da vaca.

          — Vá — ordenei ao mordomo. — Leve de volta este bezerro, com bastante cuidado, e traga imediatamente outro em seu lugar.

          Assim que minha esposa me ouviu falar isso, indagou:

          — O que está fazendo você, marido? Não sacrifique nenhum outro bezerro senão este!

          — Esposa! — eu respondi. — Não sacrificarei este bezerro!

          Rebati todos os argumentos dela e permaneci firme. Matei um outro bezerro e libertei o primeiro. No dia seguinte, o mordomo me procurou e pediu para falar em particular.

          — Eu vim lhe contar uma notícia que eu o penso que irá gostar de ouvir. Eu tenho uma filha que conhece magia. Ontem, quando libertei o bezerro que você recusou sacrificar, eu contei a ela e ela sorriu. Imediatamente depois começou a chorar. Eu lhe perguntei por que ela estava fazendo aquilo.

          — Pai! — ela respondeu. — Este bezerro é o filho de mestre. Eu sorri de alegria ao vê-lo ainda vivo, mas lamentei ao lembrar que a mãe dele foi sacrificada. Essas transformações foram forjadas pela esposa de nosso mestre, que odiava o filho adotado.

          Ao ouvir essas palavras do mordomo, mal podem imaginar a minha surpresa. Pedi ao mordomo que trouxesse a filha dele e fui para o estábulo ver meu filho, que respondeu a seu modo a todo o meu carinho. Quando a filha do mordomo apareceu, eu lhe perguntei se ela poderia fazer meu filho voltar a sua forma natural.

          — Sim, eu posso — ela respondeu, — sob duas condições. A primeira é que ele me seja dado como marido. A segunda, é que o mestre me deixe castigar a mulher que o transformou em bezerro.

          — Com a primeira condição — respondi, — eu concordo de todo meu coração e ainda lhes darei um generoso dote. Quanto à segunda condição, também concordo, mas eu só lhe imploro que poupe a vida dela.

          — Assim será! — disse ela. — Será tratada como tratou o filho.

          Então ela apanhou uma vasilha de água e pronunciou sobre ela algumas palavras incompreensíveis. Depois, lançou essa água sobre o bezerro, que tomou imediatamente a forma de um homem jovem e belo.

          — Meu filho, meu querido filho! — exclamei, — beijando-o cheio de alegria. Esta linda jovem o salvou do terrível encanto terrível. Estou certo que, não apenas por gratidão, mas também por amor, você concorda em se casar com ela.

          Ele consentiu cheio de alegria, mas antes que eles estivessem casados, a jovem transformou minha esposa em uma corça, e é ela quem vê você aqui, ao meu lado. Eu desejei que ela tivesse esta forma, ao invés de a de um animal mais estranho, de forma que ninguém a olhasse com repugnância. Deixei meu filho cuidando de meus negócios e vivo viajando. Como não queria confiar minha esposa aos cuidados de ninguém, eu a levo comigo aonde for.

          E então, o que achou de minha história?

          — Realmente, é uma história maravilhosa e surpreendente — afirmou o gênio. — Por causa disso, eu concedo a você um terço do castigo desse comerciante.

          Quando o primeiro velho terminou de agradecer, o segundo, que estava conduzindo os dois cachorros pretos, disse ao gênio:

          — Eu gostaria de lhe contar o que aconteceu a mim e estou certo que achará minha história até mesmo mais surpreendente que a que acabou de ouvir. Mas quando eu terminar, também vai me garantir a terceira parte do castigo do comerciante.

          — Sim — respondeu o gênio. — Contanto que sua história seja mais surpreendente que a história da corça.

          Com este acordo feito, o segundo velho começou a narrar sua história.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) VIII


L. P. Baçan (O Comerciante e o Gênio)

       
   Havia um comerciante que possuiu grande riqueza, tanto em terras, mercadorias como também em dinheiro. Ele era obrigado, de tempos em tempos, a viajar para cuidar de seus negócios. Numa dessas vezes, ele montou seu cavalo, levando com ele uma sacola pequena na qual ele tinha posto alguns biscoitos e tâmaras, porque teria que atravessar o deserto, onde nenhuma comida poderia ser encontrada. Ele chegou ao seu destino sem qualquer infortúnio e, tendo terminado seus negócios, partiu em retorno. No quarto dia da jornada, o calor do sol era muito grande e ele decidiu descansar debaixo de algumas árvores. Ele achou, ao pé de uma enorme nogueira, uma fonte de água clara e corrente. Ele desmontou, amarrou seu cavalo a um galho da árvore e se sentou junto à fonte, depois de ter tirado da sacola algumas tâmaras e alguns biscoitos. Quando ele terminou de comer, lavou a face e as mãos na fonte.

          De repente, ele viu um gênio enorme, pálido de fúria, vindo para ele, com uma cimitarra nas mãos.

          — Levante-se! — ordenou o gênio, com uma voz terrível. — Deixe-me mata-lo como você matou meu filho!

          Ao dizer estas palavras, ele deu um grito horroroso. O comerciante, totalmente petrificado diante da face horrorosa do monstro e com as palavras contra ele, respondeu tremulamente:

          — Ai, meu bom senhor bom, o que posso eu ter feito a você para merecer esta morte horrorosa?

          — Eu o matarei! — repetiu o gênio. — Da mesma forma como você matou meu filho.

          — Mas — disse o comerciante, — como possa eu ter matado seu filho se não o conheço e nunca o vi até agora?

          — Quando você chegou aqui, você não se sentou no solo? — perguntou o gênio. — E você não apanhou algumas tâmaras de sua sacola e, ao come-las, não lançou os caroços fora?

          — Sim, eu certamente fiz isso — confirmou o comerciante.

          — Então, eu lhe falo você matou meu filho. Enquanto atirava os caroços fora, meu filho passou a sua frente e um deles o acertou no olho, matando-o. Assim, eu também matarei você.

          — Ah, senhor, me perdoa! — implorou o comerciante.

          — Não terei clemência com você — respondeu o gênio.

          — Mas eu matei seu filho sem querer, assim eu imploro que me poupe a vida.

          — Não! Eu o matarei como matou meu filho!

          Dizendo isso, ele amarrou os braços do comerciante, lançando-o ao solo. Ergueu a cimitarra para lhe a cabeça. O comerciante protestou mais uma vez sua inocência e lamentou as crianças de sua esposa, tentando evitar seu trágico destino. O gênio, com a cimitarra erguida acima de sua cabeça, esperou até que ele tivesse terminado, nem um pouco sensibilizado com as súplicas do outro.

          Quando o mercador percebeu que o gênio estava determinado a lhe cortar a cabeça, ele disse:

          — Só mais um pedido, eu peço. Conceda-me um adiamento, apenas um pouco de tempo para eu ir para casa dizer adeus a minha esposa e filhos e fazer meu testamento. Quando eu fizer isto, eu voltarei aqui e você me matará.

          — Se eu lhe conceder o adiamento que me pede, temo que você não volte mais aqui.

          — Eu lhe dou minha palavra de honra — respondeu o comerciante. — Eu voltarei sem falta.

          — Quanto tempo você quer? — perguntou o gênio.

          — Eu lhe peço a graça de um ano — respondeu o comerciante. — Eu lhe prometo que, daqui a doze meses, eu o estarei esperando debaixo desta árvore para lhe entregar a minha vida.

          Nisso o gênio o deixou perto da fonte e desapareceu. O comerciante, tendo se recuperado do susto, montou seu cavalo e retomou seu caminho. Quando chegou em casa, a esposa e as crianças o receberam com a maior das alegrias. Mas em vez de abraçá-los, ele começou a se lamentar amargamente. Eles adivinharam logo que algo terrível havia acontecido.

          — Fale, conte-nos o que aconteceu! — pediu a esposa dele.

          — Ai! — respondeu-lhe. — Eu só tenho um ano para viver.

          Então ele lhes contou o que tinha acontecido entre ele e o gênio, e como ele tinha dado sua palavra de voltar ao término de um ano para ser morto. Quando eles ouviram esta notícia terrível, entraram em desespero e lamentaram muito. No dia seguinte, ao retomar seus negócios, a primeira coisa que o comerciante começou a fazer foi pagar suas dívidas. Deu presentes para os amigos e grandes esmolas para os pobres. Ele determinou a liberdade de seus escravos e cuidou para nada faltasse à esposa e aos filhos.

          O ano passou logo, obrigando-o a partir. Quando ele tentou dizer adeus, quase foi vencido pelo sofrimento e, com dificuldade, tomou a direção de seu destino final. Quando lá chegou, ele desmontou e se sentou junto à fonte, onde ele esperou a chegada do gênio terrível. Estava ali, esperando, quando um homem velho que conduzia uma corça veio até ele. Saudaram-se e então o velho indagou:

          — Deixe-me perguntar, irmão, o que o trouxe a este lugar do deserto, onde há tantos gênios maus? Vendo estas belas árvores, qualquer um imagina que o local é habitado, mas, na verdade, é um lugar perigoso para se parar por muito tempo.

          O comerciante falou para o velho por que era obrigado a estar ali. O outro o ouviu com surpresa.

          — Mas esse é um acontecimento maravilhoso! Eu gostaria de ser testemunha de seu encontro com o gênio — falou o velho, sentando-se ao lado do comerciante.

          Enquanto eles conversavam, um outro velho chegou, seguido por dois cachorros negros. Ele os saudou e perguntou o que eles estavam fazendo naquele lugar. O velho que estava conduzindo a corça lhe contou a aventura do comerciante com o gênio. O segundo velho, que jamais ouvira uma história semelhante, também decidiu ficar para ver o que iria acontecer. Sentou-se junto aos outros e estavam conversando, quando um terceiro velho chegou, trazendo em seus braços um pote amarelo. Ele perguntou por que o comerciante que estava com eles parecia tão triste. Eles lhe contaram a história e ele também decidiu ficar para ver o que aconteceria entre o gênio e o comerciante.

          Estavam esperando, quando viram uma fumaça espessa, como uma nuvem de poeira. Aquilo foi se aproximando cada vez mais e então tudo desapareceu repentinamente. Eles viram o gênio que, sem falar com eles, se aproximou do comerciante, com espada na mão. Segurando-o pelo braço, disse:

          — Levante-se e me deixe matá-lo como você matou meu filho.

          O comerciante e os três velhos começaram a lamentar e gemer. Então o velho que conduzia a corça se lançou aos pés do monstro e suplicou:

          — Príncipe dos Gênios, eu imploro que detenha sua fúria e me escute. Eu vou lhe contar minha história e a da corça que tenho comigo. Se você achá-la maravilhosa, eu peço que anule um terço do castigo do comerciante que está a ponto de matar!

          O gênio considerou algum tempo, e então disse:

          — Muito bem, eu concordo com isso.

          — Eu vou começar minha história agora — disse o velho. — Por favor, ouça-me com atenção! — pediu ele e iniciou sua história.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) VII


Fiodor Dostoiévski (O Duplo)

O Duplo é um romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski, escrito um ano após o seu livro de estreia, Pobre Gente.

O Duplo narra as aventuras do conselheiro titular Goliadkin e das suas terríveis inquietações em torno de um colega que lhe usurpa a identidade enquanto seu homônimo.

Concebida ainda numa prematura fase do autor russo, O Duplo é ao mesmo tempo «uma história verídica» sobre as crispações - e alienações - de um homem que se vê privado de seus direitos enquanto pessoa particular numa sociedade intrusa e ávida de usurpação, e de uma história documentada sobre a existência do indivíduo em torno de fatores que o levam à insanidade mental e à ruptura da sociedade, mercê de uma vida em que o terror supera o amor em sua plena renovação - fatores esses que desencadearam décadas de superstição e preconceito numa Rússia agitada pelos ventos avassaladores de que o realismo soube tirar proveito.

O mais inquietante neste romance de contornos realistas é a completa desconfiança do senhor Goliadkin – desconfiança essa partilhada ao longo da narrativa pelo leitor – perante as causas que disparam a sua condição. O senhor Goliadkin é antes de qualquer suspeita um homem aparentemente normal, não fosse a sua incessante agitação em redor dos seus inimigos, numa sociedade onde se fomenta a intriga na primeira pessoa. É neste contexto que nos é apresentado o senhor Goliadkin.

Porém, a existência deste homem, aparentemente anônimo e oculto da sociedade de que faz parte, é repentinamente abalada com a aparição de um senhor Goliadkin «completamente igual a si próprio», como se este fosse prova viva da sua pavorosa ocupação.

Após haver dado guarida ao senhor «completamente igual a si» - um indivíduo bastante infeliz e miserável, que passara por várias provações na vida -, o senhor Goliadkin ver-se-á numa situação deveras delicada quando o mesmo a quem dera «do seu pão» se haver convertido em seu inimigo.

A situação em casa do senhor Goliadkin seria para o senhor Goliadkin uma forma muito frutuosa de se passar despercebido na sociedade que frequentava; compreendera mesmo a causa que o deixaria incólume. Porém, o seu homônimo acabaria por se deixar passar por ele mesmo, ora granjeando o carinho dos chefes do departamento, ora fazendo-se convidado no reduto dos seus mais diretos inimigos.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Duplo_(romance)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) IV


Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VIII - A travessia das salas

Para chegar à varanda tinham de subir o último degrau da escada. Por onde? Pelo único caminho existente, o pau da vassoura. Como? Muito bem. Juquinha a ergueria nos ombros e a poria lá. Depois, lá de cima, ela ajudaria Juquinha a subir, dando-lhe a mão. 

"Não! Isso não serve. Posso escorregar e cair. O melhor é eu ir sozinha engatinhando pelo pau até a varanda, e ver se lá existe alguma corda. Se houver corda, Juquinha subirá por ela — e em seguida a Candoca. Está certo."Depois de bem planejada a subida, explicou tudo ao menino e deram começo à realização da ideia. Juquinha, menino forte, ergueu-a facilmente ao ombro e empurrou-a para cima do cabo da vassoura.

— Muito bem — disse Emília lá do alto. — Agora eu subo até a varanda em procura de corda, e você me espera aí com a Candoca — e pôs-se a engatinhar pelo cabo da vassoura acima. Chegando ao nível da varanda, pulou. Encontrou lá um montinho de lixo da manhã.

Emília compreendeu que a criada estava no meio da variação quando ficou reduzida — e a vassoura escorregou pela escada. Nesses ciscos de casa de família, "corda" é coisa que não falta nunca. Emília encontrou vários pedaços de fios de linha, bons para o fim desejado. Arrastou um deles até à quina do degrau e gritou para o menino lá em baixo:

— Achei uma corda ótima. Vou jogar a ponta. Faça uma laçada e passe-a pela cintura da Candoca. Depois suba pela corda acima como os marinheiros sobem pelo cordame dos navios. Mas antes de jogar a corda tenho de amarrar a outra ponta em alguma coisa aqui. Espere.

Emília olhou em torno. Onde amarrar a ponta da "corda"? O chão da varanda era de ladrilhos, sem felpa nenhuma ou prego. Emília foi examinar a soleira da porta, que era de madeira. Descobriu uma excelente lasquinha, ajeitadíssima para o caso, mas inútil, porque ficava a três centímetros de altura. Inútil? Com um pau ela poderia enfiar lá uma laçada feita na ponta da "corda". Só restava achar o pau.

Emília voltou para o montinho de cisco. Que riqueza de materiais! Havia tudo ali. "Cordinhas", paus, pedras, fiapos de pano e rolos de "penugem de cisco".

O pau encontrado foi uma palhinha da vassoura. Emília enfiou a laçada num gancho da palhinha e ergueu-a até à lasca.

— Ótimo! A laçada cerrou e não escapa.

Depois jogou a ponta da "corda" pelo degrau abaixo.

— Pronto, Juquinha. Deixe a Candoca amarrada e suba. Aqui de cima nós dois suspenderemos essa manhosa.

E assim foi feito. O menino subiu com a maior facilidade, porque era mestre em trepar em árvores. Em seguida os dois juntos suspenderam a Candoca. Aí é que ela chorou de verdade, aos berros, como se fosse o fim do mundo. "É natural", pensou Emília fazendo a conta. "Este degrau tem 15 vezes a alturinha dela; corresponde, pois, a uma altura de 27 metros para o Coronel Teodorico. Até ele, um homenzarrão, era capaz de chorar se alguém o suspendesse 27 metros na ponta de uma corda."

Muito bem. Lá estavam os três na varanda, Tinham agora de entrar na casa, o que foi fácil, porque a soleira da porta era apenas de 5 centímetros de altura e havia aquele precioso cisco para ajudá-los. Emília e o menino tomaram duas palhinhas de vassoura de igual comprimento, quebraram outra mais fina em pedaços iguais e amarraram esses pedaços nas duas palhinhas — e lá subiram pela escada feita. A Candoca resistiu. Não queria subir. Estava com medo e a chorar que nem um bezerro. O remédio foi repetirem a operação anterior. Passaram-lhe a corda sob os braços e suspenderam-na à força.

Lá dentro da casa Emília admirou a imensidão de tudo. No assoalho viu um tapete verde-cana com ramagens cor-de-rosa. Tinha meio centímetro de espessura — metade da altura dela! 

— Este tapete está me parecendo um pasto de capim-catingueiro florescido que os bois ainda não amassaram.

Como fosse impossível atravessar a sala por cima do tapete, tiveram de dar volta junto ao rodapé. Em certo ponto viram um enorme balde vermelho: o dedal de celuloide da Zulmira, caído por ali.

— Ótimo! — exclamou Emília. — Vamos deixar a Candoca guardadinha neste "balde", enquanto procuramos o algodão. Esta manhosa só serve para nos atrapalhar.

A Candoca foi sentada à força dentro do dedal e lá ficou chorando, enquanto Emília e Juquinha continuavam a viagem pela beira do rodapé. Em certo ponto encontraram uma pulga dormindo. Que tamanho! Era como um leitão para um homem comum. Juquinha pregou-lhe um pontapé. A pulga arregalou os olhos, assustada, e deu um pulo gigantesco. Logo adiante viram uma traça, dessas que parecem semente de abóbora e caminham com a cabecinha de fora, arrastando a "casa". Pararam para ver bem.

— Estes bichinhos aprenderam o sistema, com os caramujos — disse Emília. — Com eles não há isso de "ir para casa" porque a casa anda com eles.

Notou que a casa da traça era feita de pedacinhos de lã, cortados do tapete e ligados entre si dum modo especial. Emília quis fazer uma experiência.

— Será que se eu trepar em cima ela continua andando? — e trepou.

A traça, porém, encolheu a cabeça, como faz a tartaruga, e ficou imóvel. Emília desceu.

— Não presta. Isto não dá cavalo.

E contou ao Juquinha as suas proezas com o mede-palmo, com o caramujo, com o besouro de pintas amarelas e a mutua. O menino ficou radiante à ideia de montar num besouro.

— Muito melhor que os cavalos — disse ele — porque os besouros voam.

— Antigamente os cavalos também voavam, disse Emília.

— Quando? Nunca ouvi falar nisso.

— Na Grécia houve um tal Pégaso que voava maravilhosamente. O Walt Disney pintou o retrato dele, da Pégasa e dos Pegasosinhos, naquela fita a Fantasia. Não viu?

— Eu bem quis ver, mas papai não deixou. Disse que era muito caro.

— "Pão duro!" Por isso mesmo está "empapado".

— Quê?

— Está dormindo na Papolândia — atrapalhou Emília. — Mas depois da Grécia os cavalos perderam as asas, como as içás quando enjoam de voar e descem. Já agora podemos ter quantos Pégasos quisermos. Podemos montar em besouros, em borboletas, e até em libelinhas. Imaginem que gosto, voarmos montados na velocidade incrível das libelinhas!

E assim, na prosa, chegaram ao quarto de Dona Nonoca. Lá estava a estante dos remédios, imensa, com caixas de pílulas e vidros. Também lá estava o pacote azul do algodão com um chumaço aparecendo. Mas muito alto — na segunda prateleira.

— O algodão está encimíssimo — observou Emília. — Está como papagaio de papel enganchado no fio telefônico. Como derrubar aquilo? O jeito era esse: derrubar. Pacotes de algodão pesam pouco. Se conseguissem alcançá-lo com uma vara... Mas que é da vara?

Emília espiou entre a estante e a parede.

— Achei! Achei! Há aqui um vão escuro, cheio de velhas teias de aranha pelas quais podemos subir.

— E a aranha? — perguntou o menino.

— Não vejo nenhuma. É teia velha, e estes fios aguentam perfeitamente o meu peso — disse Emília experimentando. — Não há como não ter peso nem tamanho. Tudo vira fácil — e foi subindo.

Juquinha de nariz para o ar, acompanhava a manobra.

— A estante tem forro — disse ele. — Quero ver como a senhora passa.

— O forro é de pinho — respondeu Emília. — As tábuas de pinho às vezes têm nós que caem e deixam um buraco. Estou rezando para que este forro seja de tábua de pinho com buraco de nó. Se não houver passagem, paciência. Descerei e procurarei outro meio.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.