quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Concurso “Poesia no Ônibus” de Balneário Camboriú - 2016 (Poesias)


Poesias vencedoras por ordem alfabética

André Foltran
São José do Rio Preto/SP

POEMINHO

Reparei
que todo sabiá
que é de gaiola

pela manhã
antes de tudo

canta a Canção
do exílio.
________________

André Luís Soares
Vila Velha/ES

BEM-TE-VI

Bem te vejo,
bem te digo,
bem te quero,
benfazejo
sempre aqui.
Bendito fruto,
Deus te guarde
nas florestas,
onde, entre réstias,
bem te vi.
_____________________

Alfredo Guimarães Garcia
Ananindeua/PA

Sussurros da terra
Entre os caminhos da chuva:
De repente, a flor.
__________________________

Alvaro Posselt
Curitiba/PR

Nem cofres nem gavetas
Tudo que me vale cabe no olhar
Voam borboletas
__________________

Ana Luiza von Döllinger de Araújo
Belo Horizonte/MG

POEMA LÓGICO

Enxaguar no balde ou bacia
manter a torneira fechada
reflorestar as margens dos rios.
São bons conselhos, porém
o que têm a ver com poesia?

Acontece que a natureza
pode trazer dor ou beleza.
E a escolha entre errado ou certo
é que define se haverá versos
ou o silêncio infinito do deserto.
_____________________________

Anderson Gibathe
Saudade do Iguaçu/PR

SOBRE GAIVOTAS E HUMANOS

Requebra em voo a gaivota
Pelos ares praianos
Quiçá estará morta
Ou viva por mais um ano.

Humanos sujam mares
Com lixo na calçada
Humanos poluem ares
Vidas são ameaçadas

Se continuar o ritmo insano
Nem gaivotas, nem humanos.
_______________________

Carlos Pessoa Rosa
​Atibaia/SP

NATUREZA MORTA

morta natureza
que o homem resenha com seus pincéis afiados
em lâminas e dentes

morta natureza
que serve ao poema pela falta e pela ausência
e inspira o poema pela estranheza

morta natureza
que poetiza a agonia e a perda
daqueles que destroem o próprio oxigênio
_________________________

Bruna Rodrigues Tschaffon
Niterói/RJ

POESIA RECICLÁVEL

No meio do caminho tinha uma lixeira, avisaria Carlos, mas ninguém reparou
e Gonçalves sonhava com a terra de palmeiras que a construtora derrubou
Manuel quer ir embora para Pasárgada, nos rios daqui não pode se banhar
já Casimiro, da aurora da vida saudoso, inspira dióxido de carbono no ar
Olavo dizia ouvir estrelas, até que o arranha-céu lhe interpôs a visão
Não seja do contra, Mário, passará mesmo um dia toda esta [poluição?
O trânsito de carro após carro não mais cabe no poema do Zé Gullar
O meio-ambiente, Vinícius, só é infinito enquanto dure.  Faça-o durar.
___________________

Catarina Maul
Petrópolis/RJ

Fotografei
Na lentes do olhar
O que a tecnologia
Não foi capaz de dimensionar.
O balançar do coqueiro
O odor de maresia
Exalado em sintonia
Com a dança do mar
Sob o sol, que nenhum projetor
Foi capaz de copiar.
_____________________________

Cris Dakinis
Cabo Frio/RJ

NOTURNO

O céu desenhou
um palco na lagoa:
Grilos estrelam!
_________________________

Domingos Freire Cardoso
Ílhavo/Portugal

VOZ

Uma voz nos arrebata
Passa por vales e montes
Dorme no abrigo da mata
Chora no cantar das fontes;
É voz que sopra dos mares
Dominando as latitudes
Soltando no azul dos ares
Prece de urgente clareza:
Mudem vossas atitudes
E salvem a Natureza!
________________________

Eduardo F. F. de Abreu
Cachoeiras de Macacu/RJ

Lixo no chão
sente-se gente:
Por solidão
volta pra gente
na primeira enchente.
______________________

Fábio D. A. L. Silva
Florianópolis/SC

PITANGUEIRO

Da altíssima, verdejante árvore
Vem a sombra
Que me acolhe
Nutre-me desde pequeno
Rubro, forte, ileso
Eu, hoje
Vasto homem
Repleto de litoral
Incólume, inteiro
Pitangueiro.
__________________________

Flavio Machado
Cabo Frio/RJ

ATAQUE AÉREO

o dia claro inventa o poema
as andorinhas tomam de assalto a cidade
na desordem dos acontecimentos
como um movimento popular de ocupação

para reinaugurar a república
propor uma ordem econômica mais justa
na inversão dos valores
do tempo em que água vale
mais do que ouro.
________________________

Francisco Ferreira
Conceição do Mato Dentro/MG

SILÊNCIO

Calaram-se para sempre
na queda da última árvore
a motosserra, as aves
e o meu coração.
________________________

Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
Brasília/DF

PASTEL DE TRAGÉDIA

Mar marrom
Céu cinza
Terra pastel
Recheada de azeitonas de caroços duros
Cercada de carne triturada moída e tostada
Num óleo antigo como aquele velho vendedor
Em seu caldeirão cheio daquele mar particular
Que chia e sobe em nuvens pesadas de vapor
Transformando o horizonte em aventura crocante
Fazendo minha fome passageira de tragédia ambiental
______________________

Geraldo Trombin
Americana/SP

PRIMAVERA

Aonde você flor,
eu... beija-flor!
___________________

Giana Guterres
São José dos Pinhais/PR

O QUE SOBRA?

A araucária embelezou o caminho
E o tapete de pétalas no chão
Floresceu dentro de mim

O mar gigante e azul
E a gaivota que cortou o céu
Mergulhou dentro de mim

E se cortarem a floresta?
E se sujarem o mar?

O que sobra?
O que resta dentro de mim?
__________________________

Hélio Pedro Souza
Natal/RN

Para um caminho seguro
temos que agir no presente,
zelando o meio ambiente,
com vistas para o futuro;
sem horizonte obscuro
que nos trate feito algoz,
bom mesmo é ser porta-voz,
dizendo daqui pra frente:
Natureza é permanente,
passageiros somos nós.
____________________

Julieta de Souza
Divinópolis/MG

RETROCESSO

Nasci verde!
Respirava feliz até o dia
em que lavaram minha cor
e me pintaram de cinza.
Hoje, o ar me sufoca,
a pressa me comprime
e a paisagem desbotada embaça meus olhos.
É o progresso engolindo
a seiva do meu coração!
________________________

Líam Naví
Biguaçu/SC

MENTE TECNOLÓGICA

Olhe à janela!...
O mundo cresce, globaliza, tecnologiza!
Você se conforta, eu me conforto, nos saciamos;
Um clique, um touch, uma passagem...
E tudo o mais nos parece sorrir!

Olhe à janela!...
Dentro em pouco a contradição.
Mude a lente que mente e verás,
Quem sabe, se assim o quiseres,
Nossos restos pelo chão!
_________________

Lunara
São Leopoldo/RS

CINZA
  
O amanhã
                   chegou
                                   cinzento...
                        ... despido de verde...
                                  e de folhas...
                                                           e  não coloriu
                                           minha alma...
_____________________________

Marlene Gil
Itararé/SP

PROPOSTA

De ponto em ponto,
De ponte a ponte,
De ponta a ponta.
Aperte o freio,
Veja a flor,
Olhe o bosque,
Sinta o calor
De ponta a ponta,
De ponte a ponte,
De ponto em ponto.
_____________________________

Ricardo Gualda
Niterói/RJ

DOIS TRECHOS DE UMA CANÇÃO QUE SE EXTINGUE

Minha terra tem _______
Onde canta o ________:
As _______ que, aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais _____,
Nossas _________ tem mais _______.
Nossos _________ tem mais vida,
Nossa vida mais amores.
________________________

Ricardo Mainieri
Porto Alegre/RS

BIODIVERSIDADE

dor me atinge
ao ver a mata devastada

enlaça
todos os seres vivos

uma epiderme
invisível & contínua
nos une

implacavelmente.
_______________________

Rodolfo Minari
Rio Branco/AC

PRISÃO

Passarim, na gaiola de ouro,
agradece a migalha de pão.

Menino pensa ele cantar,
escuta encantado,
na tarde de sol.

Isso não é canto, menino!,
é choro…
__________________

Rosmari Aparecida Capella Fernandes
Araraquara/SP

POLUIÇÃO NÃO

Rasga o véu negro de fumaça
Que rouba,
Que esconde o ar
E o tempo dos seres.
Corta o véu,
E leva ao léu
O que mata
O que rompe
E suga a vida
Que ainda resta.
____________________________

Silvio Valentin Liorbano
Osasco/SP

ROTA DE ESTRELAS

A árvore olha o passageiro
A vida é um vulto
Que passa ligeiro.

A abelha distraída
Beijou a flor
Numa lata de bebida.

Pelas janelas do coletivo
Cardumes de estrelas
Boiam no mar ao vivo.
_______________________________

Solange Firmino
Rio de Janeiro/RJ

REDOMA

O verde viçoso que brilha
no olho de cada bicho,
na folha de cada árvore,
no meio ambiente
que o homem insiste em empobrecer
é de esperança -
para que um dia se lembre
que a natureza, os animais
e a humanidade são um só,
conectados.
_______________________________

Ulisses Tavares
São Paulo/SP

QUEM AMA CUIDA

Gosto de passarinho.
Em homenagem ao seu voo,
Abro a gaiola e, dentro,
Coloco vento.
___  ___  ___  ____  ____  ____  ____

Contos do Oriente (Remédio para cavalo)

Em Urumqi, um taoísta vendia remédios no mercado e algumas pessoas diziam:

— Esse aí é feiticeiro. E dos grandes!

Ele tinha sido visto em um albergue e, pouco antes de dormir, abriu uma bolsa que trazia na cintura. De dentro da bolsa tirou uma menor. E nessa menor, pegou dois comprimidos de cor escura. Imediatamente duas mulheres belíssimas apareceram no quarto para dormir com ele. Elas só deixaram o quarto de madrugada.

No dia seguinte, alguém perguntou como tudo tinha acontecido. Ele fez cara de desentendido. Negou de pé junto que soubesse alguma coisa.

Eu me lembro de ter lido nos “Trabalhos Ininterruptos”, de Zhou Yuexi, uma explicação de que pessoas como esse monge taoísta são “caçadores de almas”. Como essa magia perde a eficácia se a pessoa comer carne de cavalo, e como um cavalo acabava de morrer na guarnição, enviei um ajudante com instruções secretas ao dono do albergue. Ele devia dizer ao taoísta que havia boa carne de cavalo e que ele estava convidado para comer um pouco.

O taoísta moveu a cabeça de um lado para o outro.

— Carne de cavalo? Claro que não — disse.

Isso reforçou minhas suspeitas e decidi tomar providências.

Meu colega, general Chen Tiqiao, foi contra:

— Que moças estejam com o taoísta é impossível saber, porque você não viu com seus próprios olhos. E não viu igualmente se ele come ou não carne de cavalo. Fiar-se a boatos não verificados para abrir um processo às pressas me parece perigoso. Nessa região, não se tem o direito de prender um indivíduo com base apenas na suspeita: melhor pedir a repartição competente para expulsá-lo do território e o assunto fica resolvido.

Estava pensando nos passos a dar quando o general Wen soube da história e disse:

— Querer ir a fundo nessa questão é ir longe demais. Suponhamos que por medo de castigo esse homem confesse qualquer coisa. O assunto ficaria então muito grave e seria preciso tomar outras providências.

Como não existe nenhuma prova ainda, como fazer para pôr um fim nisso? Expulsá-lo do território não resolve, por que ele vai para outro lugar, dá um golpe e declara que viveu durante muito tempo em Urumqi. Quem ficaria com a responsabilidade?

Todas as guarnições devem interrogar, investigar, examinar todos os indivíduos de comportamento suspeito. Se existem provas reais, ele será entregue à autoridade competente. Caso contrário, melhor enviá-lo ao lugar de onde ele veio, para que ele não engane o povo. Não é uma boa solução?

Nós ficamos admirados com a sabedoria dos senhores generais.

Fonte: 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Concurso “Poesia no Ônibus” de Balneário Camboriú - 2016 (Trovas)


Trovas vencedoras por ordem alfabética

Dá medo o “progresso” louco
que, na caçada à riqueza,
dia a dia, pouco a pouco,
vai matando a natureza.  
A. A. de Assis
Maringá/PR

Nas longas noites de estio,
eu ouço estranha canção:
São os lamentos do rio
morrendo de poluição...
Angelica Villela Santos
Taubaté/SP

Passageiro e passageira,
prestem bastante atenção:
- Lixo é só lá na lixeira;
não joguem lixo no chão!
 Antonio Colavite Filho
Santos/SP

Deixe às gerações futuras
mundo melhor, mais perfeito:
amor pelas criaturas
e à natureza, respeito!
Cristina Cacossi
Bragança Paulista/SP

Degradando sem cessar,
o futuro será drástico.
O mundo vai sufocar
nas sacolinhas de plástico.
Dora Oliveira
Ipatinga/MG 

Quantas árvores cortadas
por um machado inclemente!
E nas áreas devastadas,
morre o mundo lentamente.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG 

Criança conscientizada,
aprende e ensina a teus pais
que a água desperdiçada
é bem que não volta mais...
 Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava/SP

O cidadão consciente
toma exemplar atitude:
preserva o meio ambiente
pra preservar a saúde.
Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE

Ato que não se concebe,
natureza destruída:
Poluição ninguém bebe,
e nem concreto é comida !
Henrique Eduardo Alves  Pereira
Maracanaú/CE

A luz do sol da alvorada
brilha no mar transparente.
Sendo a praia bem cuidada,
encanta os olhos da gente.
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba/PR

Natureza... obra divina,
sopro sagrado de amor,
maravilhosa menina
dos olhos do Criador!!!
Maria Nelsi Sales Dias
Santos/SP

Nem sempre os ventos socorrem
as asas desesperadas
dos passarinhos, que morrem,
na insensatez das queimadas.
 Messias da Rocha
Juiz de Fora/MG

Preservar a natureza,
mais que princípio, dever,
é conservar a beleza,
embelezar o viver.
Olga Maria Dias Ferreira
Pelotas/RS

Você que lê estes versos
nas ruas desta cidade,
não deixe em mãos de perversos
a biodiversidade.
Plácido Amaral
Caicó/RN

“Ganância" é terra ferida,
o homem destrói... põe à venda.
A terra é fonte de vida...
não uma fonte de renda.
Reovaldo Paulichi
Atibaia/SP

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte I

INTRODUÇÃO

Se isso estimular um novo tipo de relações com o
Oriente, se, na verdade, isso eliminar o “Oriente” e o
“Ocidente” como um todo, teremos avançado um pouco
no processo daquilo que Raymond Williams chamou de
“desaprendizado” do “modo dominativo inerente.
Edward Said

O trabalho A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum trata do estudo das configurações árabes na literatura brasileira, elaboradas no período do Modernismo do Nordeste, através de Jorge Amado, e em nossa contemporaneidade, através da escrita amazonense de Milton Hatoum. Para tanto, elegemos como textos privilegiados dessa pesquisa o romance Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade do interior, elaborado em 1958 por Jorge Amado e o discurso ficcional de Milton Hatoum, Dois irmãos, editado em 2000, isto é, publicado no alvorecer desse século. Essa aproximação demonstra, por si só, não apenas a presença árabe em nossa literatura, como a recorrência dessa temática em nosso corpus ficcional.

Não obstante as diferenças verificáveis entre Jorge Amado e Milton Hatoum, de contexto histórico e literário, em particular às de convenções literárias, as duas obras, separadas por quarenta e oito anos, se aproximam pelas similaridades de soluções estéticas utilizadas por ambos os escritores.

Nessa compreensão, nos voltaremos para Jorge Amado e Milton Hatoum, numa leitura dialógica que, longe das noções de fonte e influência, como defende Silviano Santiago (1982, p. 13-25) busque observar as similaridades e diferenças nas representações do árabe no Brasil, procedidas pelo escritor nordestino e pelo romancista do Norte, espaços geográficos irmanados numa mesma região, até a segunda década do século XX.

Como caminhos interpretativos, procederemos, num primeiro momento, a leitura da obra Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, procurando observar, na história amorosa de Nacib e Gabriela, as linhas responsáveis pela configuração da identidade árabe-brasileira do sul da Bahia, tecida pela inter-relação entre os traços culturais da sertaneja nordestina, expulsa do sertão pela seca, e pelos traços culturais do imigrante árabe, igualmente tangido de sua terra pela necessidade, ou pelas guerras.

Guiados pelo mesmo propósito, nos voltaremos, num segundo momento, para a obra Dois irmãos, atentos, sobretudo, aos procedimentos literários utilizados por Milton Hatoum em sua configuração da identidade manauara, configurada pelos traços culturais dos imigrantes árabes e pelos traços indígenas, num curioso convívio interétnico entre as gentes árabes e as gentes autóctones brasileira.

Reconhecendo a fascinação despertada pelo estrangeiro em nossos literatos e que essa fascinação instaurou um topoi em nossa literatura, apresentaremos, num terceiro momento, ou parte conclusiva, nossas conclusões acerca das convergências e das diferenças entre as narrativas estudadas, procurando situá-las não apenas dentro do contexto histórico dos seus autores, mas principalmente no interior do nosso contexto escritural, em sua dinâmica de incorporação, de rejeição ou de renovação da tradição. Não é demais lembrar que tanto a sertaneja Gabriela quanto a índia Domingas descendem, literariamente, de nossos ancestrais indígenas representados, em nosso Romantismo, como signos essenciais de brasilidade.

Nessa leitura intertextual das obras de Jorge Amado e Milton Hatoum, nos apoiaremos num referencial teórico-metodológico, cujos autores, citados nesse texto dissertativo, constituem nosso corpo teórico-chave. Assim, nos valeremos das contribuições teóricas de Antonio Cândido, no que diz respeito à compreensão do estético, da literatura brasileira como um sistema; das reflexões de Silviano Santiago acerca da leitura comparada e das especificidades do discurso latino-americano; dos estudos de Luiz Costa Lima sobre as relações discursivas entre literatura, memória e história; e das idéias defendidas por Flora Süssekind quando do estudo do naturalismo em suas manifestações na literatura brasileira, além de outros referenciais chamados ao texto.

Em relação à compreensão do universo árabe no Ocidente, nos valeremos da compreensão do intelectual palestino, Edward Said, como também dos Cursos, dos escritos, produzidos e/ou veiculados pelo Instituto de Cultura Árabe – ICARABE/SP. Nessa conjunção textual, procederemos nossa leitura dialógica entre Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e Dois irmãos, de Milton Hatoum, com o objetivo de contribuirmos para os estudos literários no Brasil, em especial das pesquisas que tratam das configurações árabes produzidas entre nós.

CAPÍTULO I

A PRESENÇA ÁRABE NA LITERATURA BRASILEIRA

Se isso estimular um novo tipo de relações com o 
Oriente, se, na verdade, isso eliminar o “Oriente” e o
“Ocidente” como um todo, teremos avançado um pouco
no processo daquilo que Raymond Williams chamou de
“desaprendizado” do “modo dominativo inerente.
Edward Said

– Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.
Manuel Bandeira

Uma das verdades incontestes é de que os saberes da humanidade provêm de um acúmulo gradativo, contínuo e permanente de conhecimentos para os quais contribuem os mais diversos povos. Não obstante justa, a concepção de que os conhecimentos humanos originam-se das mais diversas procedências é, no mundo ocidental, quando não silenciada, narcisicamente deformada.

É o que ocorre com as configurações e com as representações das gentes árabes que, desde as Cruzadas, especialmente em sua segunda etapa(1), isto é, após o aniquilamento dos povos pagãos ao redor da Europa, têm enfrentado uma campanha depreciativa, redutora de sua cultura na qual se acentuam o caráter de irracionalidade, de luxúria, de crueldade e de barbárie, notadamente na Europa Ocidental e, mais recentemente, entre os seus povos transplantados, em especial entre os descendentes britânicos, que ocuparam uma vasta extensão da América do Norte e nela fundaram os Estados Unidos da América (EUA), desalojando e dizimando os índios que ocupavam essa parte americana.

Exemplificadora dessa campanha, continuadamente reatualizada e transplantada, constitui a fala do escritor inglês, Ian McEwan. Reconhecido como um dos mais importantes autores britânicos na atualidade, McEwan veio ao Brasil por ocasião do lançamento de sua nova obra, Na praia, editada pela Companhia das Letras (2007). Entrevistado pela Revista Época, o ficcionista inglês discorre sobre sua obra, cujo tema se volta para os comportamentos sexuais, anteriores à revolução sexual, no Ocidente. Ao comentar o comportamento amoroso de seus personagens centrais, um casal jovem numa lua de mel mal sucedida, Ian McEwan sustentaria que essa dificuldade amorosa ocorreria, ainda hoje, na Inglaterra, entre os imigrantes muçulmanos. Nessa constatação, acresceria ao caráter árabe uma nova “qualidade”, a de reprimidos sexuais, enquanto vê, na violência louca dos extremistas islâmicos, apenas a frustração sexual do Islamismo, de acordo com o texto abaixo:

Acho que seria possível, sim. Ela pode ocorrer hoje. Por exemplo, temos 2 milhões de muçulmanos na Inglaterra. Os meninos jamais se encontram com as meninas antes do casamento. E eles não costumam ter namoradas, nunca falam de sexo e a virgindade ainda é um tabu. Acho que a frustração sexual é um dos grandes problemas do islamismo. E essa pode ser uma das explicações da violência louca dos extremistas islâmicos. Eles não passam de reprimidos sexuais. Tenho certeza de que muitos deles sofrem na noite de núpcias. (McEWAN, 2007, p. 120-121 – grifos nossos)

Marcado pela linearidade, pelo tom e pelos velhos interesses que abriga, o discurso de hostilidade e de desclassificação do mundo árabe vem atravessando os séculos da modernidade, chegando aos nossos dias em forma de uma violenta atualidade; seja ela verbal, como atesta o discurso de Ian McEwan, seja ela propriamente bélica, como atestam a ocupação do Afeganistão (2001) e a recentíssima invasão do Iraque (2003), e suas funestas conseqüências, tais como a violência fratricida entre os muçulmanos, em especial entre os xiitas e sunitas, no território iraquiano.

Capitaneada pelos Estados Unidos, em parceria íntima com a Inglaterra, já habituada às investidas no mundo árabe; com os experientes conquistadores e colonizadores da América Latina – Portugal e Espanha; com a Itália, terra de Cristóvão Colombo, defensor, em plena modernidade, do projeto das Cruzadas (TODOROV, 1993, p. 10-11), essa nova agressão contra os árabes é, ideologicamente, justificada através de um aparato discursivo, pretensamente científico, chamado de Orientalismo, sobre o qual discorre, longa e profundamente, o intelectual árabe, de origem palestina, Edward Said. Responsável por conceituar o discurso hegemônico que se construiu em torno dos árabes, problematizando a própria noção de orientalismo, criada pelo Ocidente, Edward Said em seu livro, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990), ressalta o caráter etnocêntrico, aliado à perspectiva eurocêntrica, que caracteriza o conjunto desses discursos, denominado por ele de pensamento desumanizado, como se vê a seguir:

Essas atitudes orientalistas contemporâneas povoam a imprensa e a mente popular. Os árabes, por exemplo, são vistos como libertinos montados em camelos, terroristas, narigudos e venais cuja riqueza não-merecida é  uma afronta à verdadeira civilização. Há sempre nisso a presunção de que o consumidor ocidental, embora pertença a uma minoria numérica, tem direito a possuir ou a gastar (ou ambas as coisas) a maioria dos recursos mundiais. Por quê? Porque ele, ao contrário do oriental, é um verdadeiro ser humano. Não existe hoje um melhor exemplo do que Anwar Abdel Malek chamou de ‘hegemonismo das minorias possuidoras’ e de antropocentrismo aliado ao eurocentrismo: uma classe média branca ocidental que acredita ser sua prerrogativa humana não apenas administrar o mundo não-branco, mas também possuí-lo, apenas porque, por definição, ‘ele’ não é tão humano quanto ‘nós’ somos. Não há um exemplo de pensamento desumanizado mais puro que este. (SAID, 1990, p. 117 – grifos nossos)

Esse pensamento atual atinge, notadamente, os muçulmanos, ou seja, os árabes convertidos ao Islamismo, configurados, agora, como fanáticos, terroristas, reprimidos sexuais; representados como loucos, conseqüentemente como perigo ao Ocidente. Criada por Muhammad, em 570-632 EC, a religião do Islam, relativamente recente, é, hoje, ironicamente, a religião que mais cresce no mundo, principalmente entre os ocidentais, disputando a hegemonia espiritual no mundo com o Cristianismo, especialmente com Igreja Católica (2). Em face desse novo contexto que, pela ação, pelos personagens e pelos discursos, reatualiza o passado, insurge-se a voz cáustica, desmistificadora e de um impressionante domínio histórico, do homem latino-americano, no caso do índio Guaicaí puro Cuatemoc. (3)

Cacique de uma nação indígena da América Central, Cautemoc se fez presente à Conferência dos Chefes de Estado da União Européia, MERCOSUL e Caribe, ocorrida em Madri, em maio de 2002, quando se processava, no mundo ocidental, a campanha pela globalização na América Latina e Caribe, entendida, pelos povos americanos, como um neocolonialismo na América Latina. Ao fazer uso da palavra, diante dos atônitos chefes de Estados europeus, o cacique americano denuncia a violência da colonização na América Ibérica, os saques de nossas riquezas, perpetrados pelos cristãos europeus, as guerras contra os muçulmanos, enquanto procede a um explícito elogio a esses povos, salientando, concomitantemente, a dívida econômica dos europeus para conosco e a dívida cultural para com os mulçumanos:

Eu também posso reclamar pagamentos e juros. Consta no Arquivo das Índias que somente entre os anos de 1503 e 1660 chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Terá sido isso um saque? Não acredito porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao Sétimo Mandamento! Teria sido espoliação? Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de outros empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos. Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano Marsthalltesuma, para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho diário e outras conquistas da civilização. (CUATEMOC, 2002, p. 16 – grifos nossos)

Na verdade, além da álgebra, dos banhos diários, da tradução dos textos gregos, à época, proibidos no Ocidente, a Europa deve, também, aos árabes, a arte da navegação. Aprimorando os conhecimentos náuticos árabes, os europeus alcançam os quatros cantos do mundo, chegando às terras americanas, até então completamente desconhecidas aos europeus, como reconhece Américo Vespúcio, em seu texto epistolográfico, Mundus Novus, de 1550, traduzido por Gian Battista Ramusio, conforme anota Riccardo Fontana:

Portanto, não sem razão o chamamos Mundo Novo, porque todos os antigos não tinham dele nenhuma consciência e as coisas que foram por nós descobertas ultrapassam a sua concepção. Eles pensaram que além da linha equinocial, para o sul, não existia nada a não ser o mar amplíssimo e algumas ilhas queimadas e estéreis. Chamaram-no mar Atlântico, e se alguma vez reconheciam que aí estava um ponto da terra, afirmavam que ela era estéril e que não podia ser habitada. A presente expedição refuta a opinião deles e demonstra abertamente a todos que é falsa e distante de toda a verdade. (VESPÚCIO, apud FONTANA, 1994, p. 150)

Dessa sorte, os europeus ampliariam, assim, os seus horizontes visuais, políticos, econômicos e culturais. Essa ampliação, contudo, que poderia favorecer um conhecimento humano mais universal, serve, antes, para que o homem europeu, sob a forma de conquistador e de colonizador, reproduza, em outras terras, seus conflitos, seus impasses sociais, econômicos, políticos e religiosos, como também seus medos e os seus preconceitos, como observa Silviano Santiago:

Mas em lugar de esse ampliar do horizonte visual operar um desequilíbrio positivo e fecundo nos alicerces do homem e da sociedade que descobrem, serve ele antes para que o desbravador reproduza – em outro lugar – os conflitos e impasses político-sociais e econômicos da sua sociedade sob a forma básica de ocupação. Exemplo concreto: o Novo Mundo serviu de palco para onde deslocar o beco-sem-saída das guerras santas que se desenrolavam na Europa. (SANTIAGO, 1982, p. 13-14)

Na verdade, desde o aportamento da frota de Pedro Álvares Cabral, em nossas terras, a presença árabe, mesmo em absência, se insinua em nosso país. Como fantasma europeu, o árabe estará presente num dos primeiros testemunhos sobre o Brasil, redigidos in loco, por um dos integrantes da expedição de Cabral: A Relação do Piloto Anônimo (1500). A importância dessa Relação se deve, sobretudo, ao ineditismo ou ao seqüestro, como quer Jaime Cortesão (1943, p. 25), da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da esquadra de Cabral. O desaparecimento, durante três séculos, do texto epistolar de Caminha, tornaria a Relação do Piloto Anônimo, provavelmente também um escrivão de ofício, nas primeiras impressões européias divulgadas sobre o Brasil, como atesta a sua publicação, em língua italiana, no ano de 1507 (CORTESÃO, 1943, p. 26).

Súditos-marinheiros do Rei de Portugal, verdadeiros agentes do expansionismo lusitano, o Piloto Anônimo e o escrivão oficial de Cabral, como os demais navegantes, descobrem e tomam posse da terra brasileira, em nome de seu monarca. Ciosos da nova propriedade de seu Rei, o Piloto Anônimo, assim como Caminha, perscruta os perigos, as possíveis dificuldades que o seu Rei possa enfrentar na terra encontrada e, em seguida, apropriada, criando em nossas terras a ética da propriedade, depois do primeiro e grande roubo, como assinala Santiago.

O conquistador europeu usurpa e, ao camuflar este gesto com a noção de propriedade, já aí institui como indispensável para o contrato social futuro a noção de roubo e conseqüente e indispensável punição. A cadeia em suma. A noção de propriedade só pode ser considerada como legítima e corrente depois que o primeiro e grande roubo for feito. A redenção do aventureiro estaria na imposição radical de um código de conduta (ou de justiça) que seria válido para todos menos para ele. (SANTIAGO, 1989, p. 196)

Temerosos de que os nossos nativos, claramente de feições orientais, fossem oriundos, etnicamente, dos seus fantasmas semitas, em particular dos árabes e dos judeus, os missivistas portugueses examinaram, com atencioso cuidado, os traços físicos e culturais dos nossos indígenas, como antes observara Wilma Mendonça (2002, p. 79). Por um lado, Caminha observara, redundantemente, a genitália índia masculina, identificando, na ausência da circuncisão judaica, uma proximidade entre os homens brasileiros do século XVI e os europeus, segundo anotações abaixo:

Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas [...] Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas [...] Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. (CAMINHA, 1999, p. 34-41 – grifos nossos)

NOTAS
(1) Segundo Yuri e Vera Sanada, o aperfeiçoamento da doutrina da Guerra Justa ou Santa foi alcançado “por monges do movimento denominado Reforma Cluniac, nos séculos X e XI. Eles concluíram que o desejo de Cristo para a humanidade, corporificado pela Santa Igreja, podia avançar sob o domínio das sociedades cristãs, e que a violência não era mais maligna, mas sim moralmente neutra. Se usada para aumentar o reino cristão, a violência se tornava, em verdade, boa. Esta doutrina foi chamada de Guerra Santa. Agora podia-se matar e pilhar, sob proteção divina. Mas os nobres cristãos puseram tanto entusiasmo nas doutrinas da Guerra Justa e Guerra Santa, usadas para aniquilar os povos pagãos ao seu redor, como os Viquingues e Magiares, que logo se viram sem inimigos próximos. Apenas os muçulmanos sobraram.” (SANADA, Yuri; SANADA, Vera. As Cruzadas. In: Histórias e lendas do descobrimento: a história completa de como Cabral obteve o conhecimento para chegar às Terras de Santa Cruz e outros descobrimentos de 2000 a.C. a 1500 d.C. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, p. 19-47)

(2) Ver O homem em busca de Deus, texto publicado, no Brasil, pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, de São Paulo.

(3) Texto apresentado e discutido pela Profa. Wilma Martins de Mendonça, durante o Curso de Literatura Brasileira, da Universidade Federal da Paraíba, no período de 2006.2.
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continua
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Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
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