domingo, 1 de abril de 2018

Zélia Maria de Nardi (50 Trovas Seletas)


1
A folha levada ao vento
sussurra um canto de amor,
voando em doce acalento
numa oração ao Senhor.
2
A humanidade oprimida
procura por um caminho,
não sentiu no amor guarida
nem em Cristo fez seu ninho.
3
A mulher num doce alento
revela paz e harmonia.
Acalenta este momento
nos braços da poesia.
4
Ao frescor da madrugada
no Senhor sempre medito,
em bela oração calada
acariciando o infinito.
5
A pizza era um presente
para a noiva, com carinho;
o Ofice Boy “impaciente”
comeu toda no caminho.
6
A praia fica tão bela
em noites de lua cheia,
qual tapete de aquarela
que Deus estende na areia.
7
Brinquedo também tem alma
porque é sonho de criança,
nos trejeitos ele acalma
e acalenta uma esperança.
8
Coloco no altar da vida
meus temores e esperança,
de sempre ter a guarida
dos meus tempos de criança.
9
Da árvore eis a esperança
na lei da vida previsto:
o bercinho da criança,
a manjedoura de Cristo.
10
De pedra é teu coração
por que ser tão insensível?
Com prece e meditação
a cura é sempre possível.
11
Em meu ser a realidade
no corpo a marca insolente,
a ferir minha vaidade
que o tempo deixa inclemente.
12
É na audácia persistente
que a mulher tudo realiza,
ao plantar sempre a semente
para um mundo que eterniza.
13
Encantada ver a andorinha
voltando ao ninho do amor,
de leve sempre se aninha
aos "filhos" dando calor.
14
Esta luz em teu olhar
é uma fonte de perdão;
no teu peito a me afagar
num grande abraço de irmão.
15
Estás no meio da estrada
muito ainda vais viver...
segues pela madrugada,
mundo novo irás colher.
16
Jogar pedras em alguém
é culpa reconhecida...
Mesmo sendo para o bem
magoa o Senhor da vida.
17
Meu retorno à mocidade
em pensamento calado,
lembranças de uma saudade
presente sempre ao meu lado.
18
Nada me leva a descrença,
sobre um Deus sempre bendito,
ao mostrar sua presença
nos recantos do infinito.
19
Na estrada longa da vida
vou seguindo meu destino;
Sempre terei a guarida
sob a luz de um ser divino.
20
Na euforia terna e pura,
em teu ser sempre bendito,
existe o amor e a ternura
acariciando o infinito.
21
Na praia uma leve brisa
em brilhante sintonia,
com toques de amor suaviza
o som de leve harmonia.
22
Naquela fonte divina
resplandecente de luz
viu-se n'agua cristalina
bela imagem de Jesus.
23
Na tênue luz do infinito
Cristo unido à oração,
ouviu do meu peito um grito
com tua separação.
24
Neste mundo sem destino
muitas coisas almejamos.
Mas, somente no Divino
das mágoas nos libertamos.
25
No espelho do teu olhar
existem mil alvoradas.
Só nele como num altar
minhas mágoas são guardadas.
26
No jardim com muitas flores
colibri, voa docemente
com trejeitos multicores
enfeitando o meio ambiente.
27
No retorno de uma viagem
através do firmamento,
o deslumbre da paisagem
encantou meu pensamento.
28
No rumo da plenitude
caminho, verdade e luz.
"Quisera que a juventude
se drogasse de Jesus".
29
Nos passos do amor sereno,
agradeço a vida, sim,
neste mundo tão pequeno
e no amor que não tem fim!
30
Nos teus braços, na ternura
em teu ser sempre bendito,
existe o amor e a brandura
acariciando o infinito.
31
O amor singelo oferece
a vida por um irmão:
em cada pranto - uma prece
e na dor - uma oração.
32
Ó bela folha de outono
caindo sobre os telhados,
relembra o meigo abandono
dos beijos dos namorados.
33
O orvalho beijando as flores
na bela noite indolente,
são bafejos multicores
perfumando o meio ambiente.
34
O truque do amor fascina
envolve muito talento;
só ele que determina
este nobre sentimento.
35
Pelo amor que é sem medida,
pela paz no coração,
graças dou por minha vida
num abraço de união.
36
Pelos “olhos” da janela
vejo um mundo de esperança;
e nesta visão tão bela
pelo amor tudo se alcança.
37
Pensamentos e emoções
fazem parte da memória,
são retalhos de canções
que alimentam nossa história.
38
Plantei sementes de vida
nas fibras do coração.
colho a lágrima sofrida
no infinito da oração.
39
Preservando a natureza
entre as flores de um jardim;
cantarei tanta beleza
num louvor que não tem fim.
40
Preservar o meio ambiente
é dever do cidadão:
seja criança, adolescente...
cada qual tem seu quinhão.
41
Pretendo tirar da vida
muito amor, toda emoção,
e mesmo em treva sofrida,
ter laços no coração.
42
Qual uma fonte de luz
que ilumina meu caminho,
somente ela me conduz
a paz, o amor o carinho.
43
Quando há luz no teu olhar
sinto uma doce paixão,
no teu peito a me afagar
num grande abraço de irmão.
44
Quando no amor a pureza,
se mostra no coração,
existe sempre a nobreza
revelada no perdão.
45
Se as pedras do teu caminho
teus pés irão machucar;
como aconchego de um ninho
poças erguer um altar.
46
Se num vôo bem singelo
o ser humano pudesse,
viver num mundo mais belo
num lindo gesto de prece.
47
Ser paciente é ter audácia
na arte de conviver:
é preciso perspicácia
ao outro não ofender.
48
Somente com sentimento
de carinho e emoção
agradeço este momento
no fundo do coração.
49
Somos apenas humanos;
para a vida, mera aposta...
Entre muitos desenganos
o leitor terá a resposta.
50
Terra sagrada e fagueira
é o Brasil um soberano...
Na amizade sem fronteira
a elevar o ser humano.

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 33 a 36

33 — VI UM NEGRO REFESTELADO...

Ontem vi um negro refestelado dentro dum automóvel. Estava bem vestido e fumava charuto. Contaram-me que é formado em Medicina. Fiquei fazendo reflexão otimista. Enfim neste bom Brasil velho não há ódios de raça e é possível a um homem de cor conseguir posição na sociedade e na política. Os negros afinal de contas são criaturas humanas como os brancos, os amarelos e os vermelhos. E eu até acho que se qualquer um de nós fosse morar na África, permanecendo todo o dia exposto àquele sol, sem qualquer defesa, no fim de alguns anos ficaria pretinho da silva.

Esta conversa vem a propósito da escravatura que por tantos anos existiu no Brasil e em outros países. E a escravatura se relaciona com a grande aventura que há pouco prometi narrar. Logo que tomaram conta do Brasil, os portugueses verificaram que não podiam contar com o índio para os trabalhos da lavoura. O indígena era andejo, não se sujeitava a ficar de sol a sol lavrando a terra. (Eu tenho sangue de índio nas veias, gosto do sol, do ar livre e das viagens; sinto-me mal dentro de quatro paredes.) Mas, como eu dizia, o índio não se sujeitava ao trabalho da lavoura. Era preciso resolver o problema. Então os portugueses pensaram em trazer negros da África e vendê-los no Brasil como escravos, experimentando-os como lavradores.

Entre as próprias tribos africanas se cultivava a escravatura. Os traficantes portugueses compravam escravos em África ou simplesmente os caçavam vivos sem pagar nada a ninguém. Os principais viveiros desse gado humano eram Moçambique, Angola, Guiné e Costa da Mina. Os pobres-diabos eram marcados a ferro em brasa, bem como se faz nas fazendas com cavalos, bois, vacas, etc..., e depois metidos nos sujos e escuros porões dos navios, onde ficavam amontoados numa mistura pavorosa. Mal alimentados, judiados, sem ar e sem luz, essa pobre carga humana, sacudida quase sempre por grandes tempestades, chegava após longos dias de sofrimento às costas do Brasil, onde era vendida. Iam os negros para as lavouras. Eram surrados quando cometiam qualquer falta. Havia senhores de escravos que surravam só pelo prazer de ver o sofrimento dos africanos. Outros, entretanto, tinham bom coração e chegavam a libertar seus escravos, dando-lhes uma vida mais ou menos decente. As vezes, cansados de sofrer, cheios de saudades da África, os pretos fugiam, ganhavam o mato. O fim dos fugitivos quase sempre era triste. Ou caíam nas garras das feras ou eram de novo capturados, sofrendo castigos cruéis.
34 - TIBICUERA ESCRAVO!

Aproveitando talvez a confusão das últimas guerras contra os holandeses, os negros fugiam e se iam reunindo em aldeias fortificadas chamadas quilombos, Havia desde o Rio São Francisco até os sertões de Pernambuco vários quilombos. Pouco a pouco os pretos se armavam, organizavam seu exército, reforçavam suas fortificações e se dispunham a não voltar para a canga: preferiam morrer lutando com as armas na mão.

Bom. Lá pelo ano de 1677, se não me falha a memória, eu andava caminhando escoteiro pelo mato, contente com aquela vida despreocupada de aventura, quando um capitão de mato cujo nome não guardei, me prendeu. Andava ele à procura de negros fugidos e trazia consigo dez homens armados. Amarraram-me as mãos fortemente às costas. Protestei, frenético, contra aquela prisão. Eu não era um escravo, não, senhores! Era um índio livre como o vento. Tinha serviços prestados ao País.

Como resposta, o capitão de mato me chicoteou o rosto. Quase estourei de ódio. Não adiantava gritar ou espernear. Segui em silêncio, com o rosto ardendo. Lembrei-me de Anchieta e duma bela história que ele me contou uma noite em Piratininga. Cristo mandava oferecer a face esquerda a quem nos tivesse batido na direita... Eu era ainda muito bronco, selvagem e fogoso para compreender o espírito da lição.

Chegamos a um engenho. Mandaram-me para a lavoura. Desde o nascer do sol até o piscar das primeiras estrelas eu ficava trabalhando num canavial. Os outros trabalhadores eram negros. Passavam o dia cantando cantigas tristes nascidas nas terras misteriosas da África. Aprendi muitas delas. Fiz inúmeras amizades. Havia um negro retinto, muito lustroso e de músculos fortes. Se ele tivesse nascido neste nosso século XX seria na certa um campeão de catch-as-catch-can, esse esporte pavoroso de pavorosa brutalidade que se justificaria no tempo do homem das cavernas mas que está fora de lugar na época do rádio e da televisão. Pois esse preto, que trabalhava quase sempre a meu lado, tinha o apelido de Rapadura. Era uma alma boa. Sabia lindas histórias. Uma noite, no leito, Rapadura me cochichou no ouvido:

— Tibicuera, precisamos fugir.

Arregalei os olhos.

— Fugir para onde?

— Para o quilombo dos Palmares. Lá somos livres. Zumbi é grande e valente.
35 — A FUGA

Combinamos o plano de fuga. Numa noite sem lua prendemos fogo nas palhas de um galpão e demos o alarme. Estávamos presos ao chão por pesadas correntes. O feitor apareceu e mandou que nos libertassem, a fim de que ajudássemos os empregados brancos a apagar o fogo que ameaçava destruir também a casa-grande.

O galpão era uma enorme fogueira, cujas línguas cor de fogo (naturalmente...) subiam para o céu, como se quisessem também incendiá-lo. Havia uma confusão tremenda. Mulheres saindo de casa aos gritos. O feitor berrando ordens. Os negros dum lado para outro, carregando baldes d’água.

Parece que só de madrugada é que conseguiram dominar o fogo. Quando tudo se acalmou de novo, fizeram a chamada dos escravos. Deram então pela falta de Tibicuera e Rapadura. Àquela hora nós já estávamos longe. Caminhamos, caminhamos, caminhamos... Passamos por mil perigos e por mil sustos. Eu estava resolvido a não tornar a cair vivo nas mãos daquela gente do engenho.

Já estávamos principiando a nos entregar ao desânimo, quando avistamos uma patrulha. Nossos corações bateram apressadamente. Sentimos um alívio quando vimos que a patrulha era formada de pretos. Fizemos sinais de paz. Eles se aproximaram de nós. Era gente dos Palmares. Poucas horas depois estávamos junto de Zumbi, o grande chefe, fazendo nosso juramento de fidelidade.

Se Rapadura era um homem agigantado, o Zumbi era um gigante completo. Tinha uma voz profunda, um ar autoritário. Senti-me pequeno perto dele.
36 — OS PALMARES

O quilombo dos Palmares era formado por vários núcleos. Passei entre os pretos daqueles aldeamentos alguns anos bem felizes. Havia ali muita ordem e muita paz. Eu gostava de ver as danças, as cantigas, as festas dos quilombolas. Eles se enfarpelavam da maneira mais curiosa, pintavam-se de jeito muito engraçado, de sorte que era um espetáculo divertido vê-los em dia de festa.

Às vezes, certas noites, eu ficava de papo para o ar, olhando para as estrelas, pensando na vida e ouvindo a cantiga arrastada, preguiçosa e tristonha dos filhos da África. Quando eles paravam, ficava só o cochicho do vento que contava segredos de outros mundos às palmeiras.

Quantos anos fiquei nos Palmares? Não me lembro com certeza. Só sei que quando eu começava a ficar nervoso por estar parado tanto tempo no mesmo lugar, lá surgia um exército de brancos para nos atacar. Travavam-se combates tremendos. Nós estávamos fortes e éramos ao todo trinta mil homens e mulheres unidos para a vida e para a morte. O governo achava que a existência dos quilombos constituía um perigo para a nação. Atirou contra nós várias expedições. Desanimados de nos vencerem pelas armas, mandaram os brancos um emissário com propostas de paz. Chegou-se a fazer um tratado. Ora, hoje neste mundo civilizado (vejam a Europa) não se respeitam os tratados. É natural que o nosso tratado de 1678 não durasse muito. Em breve estava de novo acesa a guerra. Nova expedição para nos combater. Ainda dessa vez a vitória foi dos negros.

Percebi que o Zumbi andava inquieto, apesar das vitórias. Uma noite vi-o passar pensativo, olhar o céu e meter-se na sua choça.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

sábado, 31 de março de 2018

Trova 281 - Janske Niemann (Curitiba/PR)


Contos e Lendas do Mundo (Brasil: Zinho, O Detetive)

O Detetive Zinho estava em seu quarto arrumando suas coisas de detetive, quando ouviu um grito pavoroso:

- Aaaiiiii!

Zinho saltou da cama, pegou sua lupa e seu chapéu, e abriu a porta do seu quarto. Daí ouviu o grito de novo:

- Aaaiiiii!

Zinho quase se assustou. Mas aí lembrou-se que um verdadeiro detetive não se assusta. Engoliu o susto em seco e pegou um desentupidor de pia que estava no corredor. Com o desentupidor debaixo do braço ele se sentiu mais confiante para enfrentar aquela ameaça terrível. E pôs-se a investigar de onde viriam os gritos.

- Aaaiiiii!

Era o grito pavoroso de novo. Zinho já estava no alto da escada quando decidiu pegar mais uma arma: entrou no quarto da mãe e saiu de lá com um sutiã na mão para usar como se fosse estilingue. Testou o suti-estilingue e... funcionava. Lançou uma bola de meia longe. A bola bateu no espelho do corredor, voltou e bateu na cabeça de Zinho, que ficou meio atordoado. O que mostrava que o suti-estilingue funcionava.

- Aaaiiiii!

Quanto mais descia a escada mais pavoroso o grito ficava. E o detetive Zinho resolveu se armar de um tênis largado pelo irmão mais velho bem no pé da escada. O tênis estava muito sujo e Zinho fez a besteira de cheirar o tênis do irmão.

- Arrgghh! Que chulé! - “ disse Zinho tapando o nariz.

Era mais uma arma perfeita contra o que quer que fosse que estava causando aqueles gritos de medo. E por falar em grito:

- Aaaiiiii!

Passando pelo banheiro no corredor o detetive Zinho entrou. Pelo barulho que fez deve ter derrubado um monte de coisas lá dentro. E saiu armado de papel higiênico (pra amarrar o inimigo), uma escova de dentes (caso ele esteja com mal-hálito) e um rodo (que podia ser usado como espada ou coisa assim).

Carregado com todos esses apetrechos o detetive Zinho ouviu novamente:

- Aaaaaahhhhhh!

O grito tinha ficado ainda mais pavoroso. E finalmente Zinho pode identificar de onde vinha o grito: da cozinha.

Aproximou-se com cuidado da porta da cozinha, que estava fechada. O detetive Zinho ainda se lembrou de pegar um espanador que estava numa mesinha perto da porta. Por um segundo ou dois hesitou. Devia mesmo entrar? Que terríveis perigos o aguardavam atrás daquela porta.

- Aaaaahhhhhhhh!

Quando ouviu esse último grito não teve dúvidas: ele ia fazer o que tinha vindo fazer. E chutou a porta da cozinha com tanta força que ela se abriu estrondosamente. Pode ver então sua irmã mais velha em cima de uma cadeira. A irmã olhava para o lado e deu mais um grito horripilante:

- Socoorroooo!

Que terríveis monstros marcianos atacavam a cozinha querendo raptar sua irmã? Que perversos bandidos assaltavam a casa em busca dos doces que sua mãe tinha feito para o jantar? Que cruéis monstros sanguinários invadiam a casa prontos para sugar todo o leite da geladeira até a morte? O detetive Zinho tentou manter a calma. E reparou que sua irmã olhava para baixo. Estalou os dedos e concluiu brilhantemente:

- Ahá! O que está assustando minha irmã deve estar no chão!

Então o detetive aproximou-se do ser maligno que estava causando todo esse terror em sua parente tão próxima. Armado com todos os objetos que pegou pela casa ele não tinha medo, não podia falhar.

E foi então que ele chegou bem perto e pode ver, ali no chão limpo da cozinha... uma barata.

Fonte:
Contos de Encantar

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular) IV


Ai, os pratos de arroz doce
com as linhas de canela!
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa mão ser a dela!

À roda dos dedos juntos
enrolaste a fita a rir.
Corações não são assuntos
e falar não é sentir.

A Senhora da Agonia
tem um nicho na Igreja.
Mas a dor que me agonia
não tem ninguém quem a veja.

A tua janela é alta,
a tua casa branquinha.
Nada lhe sobra ou lhe falta
senão morares sozinha.

Comes melão às dentadas,
porque assim não deve ser.
Não sei se essas gargalhadas
me fazem rir ou sofrer.

Comi melão retalhado
e bebi vinho depois,
quanto mais olho p'ra ti
mais sei que não somos dois.

Compreender um ao outro
é um jogo complicado,
pois quem engana não sabe
se não estava enganado.

Cortaste com a tesoura
o pano de lado a lado.
Porque é que todo teu gesto
tem a feição de engraçado?

Deixaste o dedal na mesa
só pelo tempo da ausência —
Se eu te roubasse dirias
que eu não tinha consciência.

Deram-me um cravo vermelho
para eu ver como é a vida.
Mas esqueci-me do cravo
pela hora da saída.

Dona Rosa, Dona Rosa.
de que roseira é que vem,
que não tem senão espinhos
para quem só lhe quer bem?

Dona Rosa, Dona Rosa,
quando eras inda botão
disseram-te alguma cousa
de a flor não ter coração?

Eu vi ao longe um navio
que tinha uma vela só,
ia sozinho no mar...
Mas não me fazia dó.

Floriu a roseira toda
Com as rosas de trepar...
Tua cabeça anda à roda
Mas sabes-te equilibrar.

Frescura do que é regado,
por onde a água inda verte...
Quero dizer-te um bocado
do que não ouso dizer-te.

Manjerico que te deram,
amor que te querem dar...
Recebeste o manjerico.
O amor fica a esperar.

O canário já não canta.
não canta o canário já.
Aquilo que em ti me encanta
talvez não me encantará.

O laço que tens no peito
parece dado a fingir.
Se calhar já estava feito
como o teu modo de rir.

O malmequer que colheste
deitaste-o fora a falar.
Nem quiseste ver a sorte
que ele te podia dar.

O que sinto e o que penso
de ti é bem e é mal.
É como quando uma xícara
tem o pires desigual.

O ribeiro bate, bate
nas pedras que nele estão,
mas nem há nada em que bata
o meu pobre coração.

Quando ela pôs o chapéu
como se tudo acabasse,
sofri de não haver véu
que inda um pouco a demorasse.

Quem te deu aquele anel
que ainda ontem não tinhas?
Como tu foste infiel
a certas ideias minhas!

Tens um anel imitado,
mas vais contente de o ter.
Que importa o falsificado
se é verdadeiro o prazer.

Uma boneca de trapos
não se parte se cair.
Fizeste-me a alma em farrapos…
Bem: não se pode partir.

Fonte:
PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Olivaldo Júnior e José Feldman (Um Homem Solitário)

Pintor: Teun Hocks (Holanda, 1947-)
De Olivaldo Júnior para José Feldman

Só um homem solitário
tem na boca a lua cinza,
que sorri de modo vário,
mas acaba só, ranzinza.

Só um homem solitário
quer tornar a vida linda,
que, bonita, faz lendário
um herói que luta ainda...

Na janela, o calendário
"vira" pássaro e revoa,
busca o novo itinerário!...

Mas um homem solitário,
no silêncio que atordoa,
faz, sem sol, seu relicário.

26.12.2017

De José Feldman para o Olivaldo Júnior

Só um homem solitário
transforma em dias as trevas,
carregando em seu fadário
tantas tristezas malevas.

Só um homem solitário
sabe o sentido da dor,
e, exprimindo-a num rimário,
chora a ausência de um amor.

Faz de seus olhos vidraça,
do pranto seu vestuário,
das lágrimas a mordaça.

Pois, neste homem solitário
cujas ilusões abraça...
solidão é um rosário.

27.12.2017

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Afastamento

Por motivos de saúde (visão comprometida) diminuo consideravelmente as postagens no blog, contudo sempre que possível efetuarei postagens esporádicas.
Agradeço a compreensão