quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Neiva Fernandes (Trovadora do Dia)


1
A Bíblia é um dicionário
onde converso com Deus,
parece ser um diário,
não tem a palavra...adeus!
2
Amigo eu trago guardado
com muita dedicação,
naquele lugar sagrado,
que se chama coração.
3
Até mesmo os animais,
se unem nas refeições:
partilham tudo, e bem mais
seus abraços e emoções!
4
A trova tem seu valor
trazendo sempre emoção
perpetuada com amor
no livro do coração!
5
Com muita Serenidade
o nosso amor começou...
Ficou somente a saudade
depois que tudo acabou!
6
Com você sempre extrapolo
minha alegria e emoção:
- Cada momento em seu colo
põe-me em festa o coração!
7
Da música que componho,
fica difícil lembrar,
por que, só componho em sonho
e me esqueço, ao acordar.
8
Deixei pegadas na areia
indo em direção ao mar...
As dunas na lua cheia
formam beleza sem par.
9
Duzentos anos de glória
na cultura e educação.
Cantagalo, sua história
orgulha nossa nação.
10
Ela vem toda faceira,
toda coberta de flores,
minha linda Cerejeira
chega e desperta os amores!
11
Em tempos muito distantes
eu encontro uma lembrança
de dois olhinhos brilhantes
com o brilho da esperança!
12
É no relógio do tempo
que vejo o tempo passar;
alegre sem contratempo
deixo a vida me levar!
13
Eu vejo um farol brilhar
e contemplo a natureza...
Somente no teu olhar
já encontrei tanta  beleza!
14
Existe tanta beleza
e tal grandeza no mar,
que sinto na natureza
Deus presente a nos guiar!
15
Foi num barco de papel
que encontrei inspiração
para fazer um cordel
que guardo no coração.
16
Na bela estrada vazia,
procurando nova fonte,
peço carona à  poesia
buscando a luz no horizonte!
17
Na chuva ele vai cantando
e lavando o coração...
Inspiração vai buscando
com o guarda chuva na mão.
18
Nas taças, o amor brotou
e nos deu felicidade...
Do vinho, o que nos restou
tem o aroma da saudade!
19
Nossa vida é um paraíso 
de amor e felicidade...
Mas se faltar teu sorriso
a tristeza nos invade.
20
Nosso outrora tão distante
na saudade permanece,
lembrança tão incessante
que o coração não esquece!
21
Numa prisão desolado
escondendo sua dor;
vive triste abandonado
um coração sem amor.
22
O menino tão bonzinho
transmite boa lição,
abraçando o cachorrinho
com ternura e emoção!
23
O sucesso é passageiro
tenha os pés firmes no chão...
melhor que ser o primeiro
é vencer com a razão.
24
O Trianon na euforia
dos seus quinze anos de arte;
recebe com alegria
poetas de toda parte.
25
Passado se faz presente
quando estou a recordar
com você na minha mente
não posso raciocinar.
26
Primavera vem chegando
Trazendo paz e beleza...
Margaridas vão brotando
perfumando a  natureza.
27
Quatro crianças se abraçam,
com tanta graça e pureza;
seus verdes sonhos enlaçam
contemplando a natureza!
28
Quem me dera alguém pudesse
entender meu sentimento;
seria a trova uma prece
para o fim do sofrimento.
29
Se o local tem um aviso
que é Proibido beijar,
respeite, tenha juízo,
o beijo pode esperar!
30
Sobre um tapete  florido,
Vejo o outono alvorecer:..
Pensando em você, querido,
caminho e sinto prazer!
31
Tão tristes e encabulados,
dois solitários peixinhos...
Tão perto, mas separados,
 sem poder trocar beijinhos..
32
Tenho orgulho do que faço;
se é feito com perfeição.
Mas aceito meu fracasso
se não tiver solução.
33
Um arco de sete cores
estendido sob o céu...
Um sonho em seus resplendores,
sobre o mar, formando um véu.
34
Um tango hoje vou dançar
e a alegria predomina...
A dança me faz lembrar
meu sorriso de menina.
35
Vou correndo atrás do trem
com a bagagem na mão...
Aceno num vai e vem
para alcançar o vagão.
36
Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.

Dina Salústio (A Oportunidade do Grito)

Quando cheguei, a conversa, que ia a meio foi interrompida para os cumprimentos e uma breve troca de elogios, porque nos amamos e, por isso, há sempre um tempinho para uma palavra carinhosa que, livre, voa de umas para as outras.

Elsa pareceu-me triste e ainda pensei que estivesse a fazer charme, já que o vestido que trazia ficava a matar com um rosto ligeiramente tocado pela tristeza ou... qualquer coisa parecida com um pingo de desgosto.

A outra mulher é dessas que ao olhá-las, naturalmente a palavra vencedora nos vem à cabeça. Não pela arrogância patenteada, mas porque a força inquieta que lhe escapa dos olhos, diz  muito da sua capacidade de derrubar tudo que seja obstáculo ao que deseja.

Elsa levava o cigarro à boca, com tanta ansiedade que por momentos me distraí, pensando em como um simples e insignificante cigarro pode marcar de maneira cruel a nossa fragilidade.

— Tens que largar essa maneira de estar, por de lado o marasmo que te envolve. Parece até que estás a pedir esmolas à vida — dizia a vencedora.

Eu estava furiosa por não ter chegado uma meia hora antes, e percebe-se.

— Arranja força, sacode o mau olhado ou seja que diabo for, mas vive — continuava, agora num tom tão alto que obrigava um ou outro passante a diminuir o passo.

Olhei para a Elsa esperando uma reação, que só chegou depois de uma possível análise interna da legitimidade da resposta:

— Mas se eu não faço mal a ninguém! Se eu nem tenho inimigos!

— Ah! Aí é que está — quase gritou a outra — tens que incomodar, mostrar que existes, perturbar, brigar com o mundo e contigo. Sobretudo contigo. É um treino que atrai bons fluidos. Os outros, vendo a coragem com que te desafias a ti mesma, respeitam-te e temem--te. Tens que dar umas trochadas, rapariga, porque quem não as dá, acaba simplesmente por as apanhar,

— Claro que não quero continuar neste vegetar e, para que saibas, luto, esforço-me, rezo, mas não adianta muito.

— Rezas? E como é que rezas? — grunhiu a outra, já no limite do que parecia a sua paciência.

— Rezo, peço a Deus...

— Pedes a Deus? Idiota! Tens é que discutir com Ele. Enfrenta-o como mulher. Mostra-lhe as tuas razões. Grita se for preciso. Ele é que te pôs aqui, não é? Pois que assuma a sua parte da responsabilidade. Enfrenta-o. Deus gosta de mulheres fortes — gritou.

De repente eu percebi que ela era uma mulher vencedora porque enfrentava com garra todas as situações, mesmo que a situação se chamasse Deus. Encostei-me a mim mesma gozando o prazer da descoberta.

Fonte:
SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.

Olivaldo Junior (Poemas Escolhidos)

UMA CAIXA TODA BRANCA

No meu peito está disposta
uma caixa toda branca,
mausoléu de uma resposta
que na lápide se tranca.

Nela, o sonho que se gosta
desenvolve a zona franca,
toda noite à luz transposta,
novidade que se estanca.

Entre a fúria e todo o zen,
sei que guarda minha alma,
minha palma, meu vintém...

Branca e nua, a caixa tem
tudo aquilo que me acalma:
seu sorriso, que não vem.

CHUVA DE VERÃO

Você viu a chuva de verão?
Eu, não.

Ocupado que estava em recolher
de mim as últimas lágrimas,
nem vi as dos anjos,
a correr, a escorrer
pela vidraça, nuas, mágicas.

Você viu a chuva de verão?
Eu, não.

Ocupado que estava em revolver
de mim as últimas páginas,
nem vi as das nuvens,
a chover, a esconder
o que se passa, ruas, máquinas
de fazer troça a cada chuva,
de verão, ou não, que há do céu.

Você viu a chuva de verão?
Eu, não.

Mas, só por precaução,
guarda-chuva em punho,
pus a bota e o chapéu.

ENLUARADA

Peguei a lua
e dela fiz meu origami.

Peguei o sol
e dele fiz o seu arame.

Depois, 
com a fúria
de um poeta
que foi rei,
na lua o sol
a pino
eu espetei.

Pronto.
A noite
assim ficou
enluarada.

O DESEJO ESCRITO

Queria ter escrito
as primeiras representações
de objetos, ações
ou ideias, ter tido as razões
para dar meu grito
de independência 
e ter ficado em pé.

Queria ter criado
uma atividade, um objeto,
ou uma ideia
por um só signo
representados,
ter dado o mais completo
sentido a ti,
a mim, um legado.

Queria ter descrito
os signos que representam
os sons das sílabas
e das letras, que sustentam
todas essas línguas,
ainda vivas,
ainda "on".

Na verdade, queria ter tido
a chance de ter escrito
uma das ridículas cartas 
de que nos fala Pessoa,
de amor, de medo, e ferido
a pele da página,
que, calada (nunca em vão),
aceita 
a "pena" de um poeta,
o lápis de um menino,
a tinta de uma máquina
que imprime, exprime
e comprime o destino
de todo desejo escrito: 
ser lido.

LÂMINA FRIA

Na lâmina fria
de um sonho perfeito,
finjo ter jeito,
janto um bombom,
bomba de efeito.


Na lâmina fria
de um sonho desfeito,
sinto teu peito,
canto sem som,
sombra no leito.

Na lâmina fria
de um sonho refeito,
lindo confeito,
canto tão bom,
bom e imperfeito.

Fonte:
O Autor

Estante de Livros (Dina Salústio: Mornas eram as noites)

artigo “O lirismo como voz em ‘Mornas eram as noites’, de Dina Salústio”, por Carina Carvalho

Os 35 textos bastante curtos de “Mornas eram as noites” mergulham no calor de histórias com um lirismo intenso, em que a subjetividade desponta na narrativa

Segundo os dicionários, algo morno se caracteriza pela ausência de energia, de vida, pela pouca intensidade e até por certa monotonia. O adjetivo parece descabido, no entanto, se pensamos no livro de contos da escritora cabo-verdiana Dina Salústio.

Dina, pseudônimo de Bernardina de Oliveira (1941), escreve em 1994 esta obra. Em 35 textos bastante curtos, raramente ultrapassando página e meia, mergulhamos no calor de histórias com intenso lirismo, em que a subjetividade desponta na aparente simplicidade narrativa.

A morna, verdadeiro símbolo cabo-verdiano, é um tipo de música cantada e dançada em ritmo lento – tradicionalmente, um canto de mulheres. Assim, a incursão pelo texto de Dina Salústio acontece em uma atmosfera de histórias contadas e cantadas com um forte caráter de oralidade e poesia. Engana-se quem pensa que, dadas essas características, os contos tratam somente de temáticas leves ou onde impera a doçura. Morte, solidão, violência, pobreza e frustrações também invadem as páginas, compondo um panorama social que não se compromete com mascarar a dureza cotidiana.

Logo nos primeiros contos, não demoramos a captar um olhar mais demorado da autora para as personagens e problemáticas femininas. Conhecemos a prostituta que, com medo de entrar no cemitério, deixa no testamento “o seu último e ilegítimo desejo”: música a acompanhá-la no momento do enterro, quando as esquinas acordarem sem seu corpo.

“O sobrinho, mais pobre que os pobres, espreitou, dias e dias no cemitério, todos os enterros que se seguiram ao dela. Ao décimo dia o peito minguado encheu de esperança: um senhor e seu violino choravam na campa de alguém. Raúl arranjou coragem e pediu-lhe, quase soluçando, que tocasse uma música para tia Djina. Uma só. Não a clássica morna hora di bai, mas uma canção francesa que falasse de amor – com todo o respeito, senhor – soluçou o sobrinho.” (p. 32)

Deparamos, ainda, em “Liberdade adiada”, com a angústia de uma mulher cansada, com um “enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima”, esperando que “a qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa” (p. 5). Carregando sua lata cheia de água pela estrada, o barranco sorri em convite, promete liberdade em um mergulho – ao mesmo tempo que o pensamento chega à casa, onde os filhos certamente já chamam por ela.

Embora ocupem espaço notável na maior parte das tramas, não só em torno das mulheres se constrói o livro, mas de temáticas que nos fazem pensar a própria condição humana, reproduzindo extratos de vida de várias classes sociais no cenário cabo-verdiano. É nessa percepção atenta que o livro nos capta, conferindo nova roupagem, de coisa conhecida, história sabida porque vivenciada, à realidade dos dias. Em “Ele queria tão pouco”, temos um adolescente rebelde, cujo passado todos desconhecem, residente de um lar para jovens sem família ou casa. No conto, o dono da loja vizinha reclama do roubo de um aparelho seu, cobra providências dos responsáveis. O rapazinho, então, acaba descoberto:

“Encontrei-o deitado à sombra da árvore, com a barriguinha nua para cima, o rádio colado ao ouvido, quieto, apenas o pé direito no ar, marcando um compasso que eu não adivinhava. Estava tão indefeso, tão entregue, que preferi deixar para falar com ele mais tarde, consciente de que cometia uma infracção. […] confessou que roubara o rádio, porque gostava de ouvir música sozinho e em silêncio e, na sala, os colegas faziam muito barulho. […]
— Eu queria um rádio só pra mim – dizia enquanto o retirava para mo dar.
Era mais um sonho que ele desenterrava para abandonar, para entregar.” (p. 26)

Se em muitos momentos as palavras nos chegam duras, cabe destacar quanto colaboram para a reflexão dos caminhos ainda a percorrer, e lembrar que, em outros tantos, encontramos uma esperança em minúcias: “Na rua, o tempo é cálido e uns pinguinhos de chuva dizem-me que é julho. Vou contar à minha amiga que está a chover e que vale a pena viver, nem que seja somente para ouvir a alegria dos sapos” (p. 66).

Seja nos meandros das vivências femininas, no retrato da violência e da miséria ou das relações humanas, os contos de Dina Salústio nos mostram uma matéria real em que, se a mornidão ainda impera, há sinais de que residam movimento e possibilidades no tom da noite.

“Sem idade, sem verdade
Encontrei-te por acaso. Sorrindo, disseste-me que a vida era bela. Não te perguntei a idade. Para que? Tu eras verão e tinhas nos olhos a madrugada. Nos gestos, a infância do louco que, montando num pássaro, desafia as nuvens. Cheiravas a rosa abrindo-se na moleza do sol e tinhas a macieza da terra bebendo o orvalho das manhãzinhas. Trazias inteira a doçura do mar no corpo de um bote ao sol poente e o teu sorriso era a beleza de um instante belo.

Como dizer ao verão que o inverno acontece frio e triste? Como dizer à madrugada que ela é mentira, que é dia, quando a letra vence, e é noite, quando as dores aumentam? Como avisar o louco que por baixo das nuvens o abismo corre cada vez mais rápido, cada vez mais fundo? Conseguiria dizer à rosa que logo haverá missa pelas almas com terços e flores? Conseguiria? Como dizer à terra que o orvalho não basta e que a estiagem fere, racha até sangrar? Como? Poderia dizer a um instante que o dia tem muitas horas, muitos meses, muitos séculos? Como dizer ao mar, ao barco e ao sol poente que o ciclone vem aí? Como?

Olhei para ti e nem me perguntaste porque de repente ficara tão triste. E deixei-te ir. Leve. Suave. Feliz. Sem idade. Sem verdade.” (p. 37)

Fontes:
SALÚSTIO, Dina. Morna eram as noites. 3.ed. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.
Artigo disponível em Homo Literatus

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 20

Fonte: Facebook da trovadora

Contos do Egito Antigo (O Tesouro de Rhampsinit)

0 rei Rhampsinit possuía um tão grande tesouro que ninguém, nenhum de seus sucessores, o teve nem maior, nem perto do que ele era. Para conservá-lo com segurança, ele mandou construir uma sala de pedra talhada e quis que uma das suas muralhas se projetasse para além do corpo da construção e dos limites do palácio; no entanto, o construtor talhou e colocou uma pedra de tal modo perfeita que nem dois homens, quanto mais um só, poderiam tirá-Ia ou removê-Ia.

Construída a sala, o rei ali reuniu todas as suas jóias. Algum tempo depois, o pedreiro-arquiteto, ao sentir que se aproximava do final de sua vida, reuniu os filhos, que eram dois, e contou-lhes como realizara a empreitada e o artifício que havia usado ao construir a câmara do rei, a fim de que eles pudessem viver sem problemas de dinheiro. E depois de claramente ter-lhes feito entender a maneira de tirar a pedra, deu certas instruções e avisou-os de que, se elas fossem bem observadas, seriam eles os grandes tesoureiros do rei. E em seguida, expirou. E seus filhos não tardaram de pôr mãos à obra: foram à noite até o palácio do rei e, achando sem dificuldades a tal pedra, conseguiram deslocá-Ia e saíram de lá com grande quantidade de ouro. Porém, quando quis o destino que o rei fosse visitar sua sala do tesouro, encheu-se: ele de espanto ao perceber que suas ânforas estavam desfalcadas, e ficou sem saber a quem acusar ou de quem suspeitar, pois as marcas que colocara estavam intactas, e a sala muito bem fechada e refechada. E voltando lá por duas ou três vezes para constatar que suas ânforas continuavam se desfalcando, resolveu ele afinal, a fim de impedir que os ladrões ali voltassem com tanta facilidade, mandar construir armadilhas e colocá-Ias bem perto das ânforas onde estavam os tesouros.

Retornaram os ladrões, como seria de se esperar, e um deles entrou na câmara e, mal se aproximando de uma das ânforas, viu-se capturado pela armadilha. Percebendo a extensão do perigo, chamou depressa o irmão e mostrou-lhe o estado em que se encontrava, aconselhando-o a ali entrar e que lhe cortasse a cabeça para que ele não viesse a ser reconhecido e assim não prejudicasse também o irmão. Este achou que fazia sentido o que ele lhe dizia e seguiu-lhe enfim o conselho; e depois de repor a pedra, voltou para casa carregando a cabeça do irmão.

Na manhã seguinte, entrou o rei na sua câmara especial; e ao ver o corpo do ladrão preso na armadilha, e sem cabeça, muito espantado ficou já que não havia vestígio nem de entrada nem de saída do recinto. E, matutando como deveria proceder em tal circunstância, mandou que pendurassem o corpo do morto na muralha da cidade e encarregassem alguns guardas de prenderem e levarem à sua presença aquele homem ou mulher que vissem chorar ou demonstrar pena do degolado.

Ao ver o corpo desta forma exposto, a mãe, pela grande dor que sentia, exigiu do outro filho que, fosse lá como fosse, tratasse de trazer o cadáver do irmão, ameaçando-o de, caso se negasse a fazê-lo, denunciá-lo ao rei como o ladrão do tesouro. O filho, notando que a mãe falava sério, e que de nada lhe valiam suas argumentações, concebeu o seguinte ardil: mandou que albardassem alguns asnos com odres cheios de vinho e pôs-se a andar com eles, tocando-os com uma vara. Ao chegar ao local onde estavam os guardas, isto é, no local do morto, desatou dois ou três de seus odres e, vendo o vinho escorrendo pelo chão, começou a esmurrar a própria cabeça e a praguejar, como se não soubesse para qual dos asnos devia se voltar em primeiro lugar. Os guardas, ao perceberem que grande quantidade de vinho se derramava, acorreram até lá com vasilhas, considerando o ganho que teriam se apanhassem o vinho perdido. O mercador pôs-se então a xingá-los, dando sinais de viva indignação. Mas os guardas mostraram-se gentis e aos poucos ele foi se acalmando; moderou então sua raiva, afastando por fim os asnos do caminho para tornar a carregá-los; demorando-se no entanto com pequenas conversas com uns e outros, tanto que um dos guardas disse uma pilhéria ao mercador, que riu e até lhe deu, ainda por cima, um odre de vinho. E então os guardas resolveram sentar-se ali mesmo para continuar a beber, pedindo ao mercador que ficasse e bebesse com eles, o que foi aceito; e vendo que eles revelavam nisso grande prazer, o mercador ofereceu-lhes o resto de seus odres de vinho. 

Quando estavam já caindo de bêbedos, viram-se dominados pelo sono e adormeceram ali mesmo. O mercador esperou até alta noite; depois foi despendurar o corpo do irmão e, rindo-se dos guardas, raspou-lhes a todos a barba da face direita. Colocou o corpo do irmão sobre um dos asnos e tocou-os todos em direção de casa, executando assim a
ordem de sua mãe.

No dia seguinte, quando o rei tomou ciência de que o corpo do ladrão fora roubado misteriosamente, ficou muito aborrecido e, querendo porque querendo encontrar o autor de tal astúcia, fez tal coisa que, por mim, mal consigo acreditar: abriu a casa da sua filha e mandou que ela recebesse quem quer que por prazer viesse a procurá-Ia, indiferente de quem fosse, com a condição de que ela, antes de se deixar tocar, induzisse cada um deles a dizer o que fizera em sua vida de mais prudente e de mais perverso; aquele que lhe contasse o caso do ladrão deveria ser detido por ela, que não podia deixá-lo sair do seu quarto. A princesa obedeceu ao pai; mas o ladrão, ao perceber para que objetivo a coisa era feita, quis ficar a cavaleiro de todas as astúcias do rei e deu-lhe o seguinte contragolpe: cortou o braço de um recém-falecido, ocultou-o sob suas próprias vestes e foi ao encontro da moça. Logo que entrou, ela o interrogou, como fizera com os outros, e ele contou-lhe que o crime mais monstruoso por ele cometido fora o de arrancar a cabeça do irmão, preso na armadilha do tesouro do rei. Por outro lado, a ação mais avisada que praticara fora despendurar aquele seu mesmo irmão depois de ter embriagado os guardas. Assim que isso tudo ouviu, ela procurou detê-lo; mas o ladrão, valendo-se da escuridão do quarto, estendeu-lhe a mão morta que trazia oculta, e que ela apertou como se fosse a mão daquele com quem falava; enganava-se, porém, pois o ladrão facilmente encontrara como se escapar.

Quando este fato foi relatado ao rei, ele mostrou-se especialmente espantado com a astúcia e ousadia de tal homem. Por fim, ordenou que se fizesse anunciar por todas as cidades do seu reino que ele perdoava tal pessoa, e que se ela quisesse vir se apresentar ao rei, ele lhe concederia largos favores. O ladrão deu crédito à publicação real e foi ter com ele. Quando o rei o viu, ficou assombrado; no entanto, deu-lhe a filha em casamento. Pois - isso pensou ele - os egípcios eram superiores a todos os demais homens, e ele era superior aos próprios egípcios...

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da Literatura Universal. RJ: EDIOURO, 2002.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Clevane Pessoa (Teia de Trovas sobre Lembranças)



Preservar nossa memória
é a quintessência da mente:
- Nos mesclamos, pela história,
preservamos outra gente!

Recordar é um privilégio,
que organiza a trajetória,
da existência e sortilégio
de aprendiz na própria história!

Se lembramos nossa vida,
é por bom funcionamento
dos arquivos de uma lida,
a inundar o pensamento...

Episódios vivenciais, 
da retrógrada memória,
são sabores muito mais
lembrados em nossa história.

Em idoso que padeça
desmemória imediata, 
perde óculos ...na cabeça,
mas relembra antiga data!

De lembrar , eu gosto tanto!
é atestado desta vida:
– Qual a letra em certo canto,
sem lembrança...estou perdida!

E perpassa pelo afeto
recordar fatos passados, 
por caminho torto ou reto,
todos ficam registrados!

Testemunhas oculares
de vivencias necessárias,
subimos os patamares…
palavras são cantigárias!

Fonte: A Autora

Olivaldo Junior (Teimosia)

Faria de novo. E de novo. E de novo. O quê?! Implorar amor. Mas era um homem, como pode um homem daquele tamanho implorar amor? Pode. Não só pode, como deve implorar um pouco mais hoje à noite, um pouco mais amanhã cedo e um pouquinho mais à tarde. Pensou no quanto sofria? 

Tinha amado sem ser amado, e isso lhe trouxera um coração amargo, sem todo o vermelho sangue que nos traz vida. Seu coração, além de amargo, ficara cego, surdo, mudo e insensível ao toque de quem se tocava e só queria lhe dar um toque. Sai dessa! Sairia, sim. Sabia que quem dizia isso só queria vê-lo bem. Bem que eles falavam! Mas, de vez em quando, no hall de entrada da dor, uma poça de mágoa fazia com que ele escorregasse em suas lágrimas e voltasse a penar. Penas são panos que botamos nas situações sem remédio. 

A que fim levaria aquele homem, tão teimoso? Não sabia. Sabiá que perde o canto canta em silêncio. Vai onde Deus manda, ou ele mesmo se impõe que vá. Quem tanto tinha amado sequer se lembrava dele com aquela intensidade, com o mesmo sentimento. A vida é dura para os silentes. 

"Não aprendi dizer adeus / Mas deixo você ir / Sem lágrimas no olhar / Se o adeus me machucar / O inverno vai passar / E apaga a cicatriz"... Conhece essa música? É de autoria de Joel Marques, compositor de Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul. Fez grande sucesso com Leandro e Leonardo. Ultimamente tem ouvido a gravação do Alexandre Nero para ela. Também a tem cantado. Com teimosia. Até quando?

Fonte:
O Autor

Estante de Livros (China: O Sonho da Câmara Vermelha)

(literalmente “ O Sonho da Mansão Vermelha), é uma obra-prima da literatura chinesa e um dos Quatro Grandes Romances Clássicos da China. O livro foi escrito em meados do Século XVIII, durante a Dinastia Qing, e tem sua autoria atribuída a Cao Xueqin. Esta obra é reconhecida como o ponto mais alto dos romances clássicos chineses. "Vermelhologia" é o campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. 

O romance circulou em cópias manuscritas com vários títulos até sua impressão em 1791. Enquanto os primeiros 80 capítulos foram escritos por Cao Xueqin, Gao E, que preparou a primeira e segunda edições impressas com seu sócio Cheng Weiyuan em 1791–2, adicionou 40 capítulos a mais ao romance.

Acredita-se que o conteúdo da história seja semi-autobiográfica descrevendo o destino da própria família do escritor e, por extensão, da dinastia Qing. Como o autor detalha no primeiro capítulo, o livro se destina a ser um memorial para as mulheres que ele conheceu em sua juventude: amigas, familiares e serviçais. O romance é memorável, não só pelo seu enorme elenco de personagens (a maioria deles do sexo feminino) e pelo âmbito psicológico, mas também pela sua precisa e detalhada observação da vida e das estruturas sociais típicas da aristocracia chinesa do século XVIII.

O tema principal gira em torno de um triângulo amoroso entre a personagem principal, Jia Baoyu, que ama sua prima adoentada Lin Daiyu, porém está predestinado a se casar com outra prima, Xue Baochai. Este triângulo amoroso tem como pano de fundo o declínio do clã (família) Jia, cujos antepassados foram feitos duques, e no início do romance, este clã está entre as mais ilustres famílias na capital.

A história é escrita em chinês baihua (ou chinês vernacular), ao invés de chinês clássico, apesar de seu autor ser bem versado no chinês clássico, com trechos no estilo semi-wenyan, e é uma das obras que ajudaram a estabelecer a legitimidade do chinês baihua. Os diálogos são escritos em um dialeto de Pequim vivo com influências do Mandarim de Nanjing. No começo do século XX, lexicógrafos utilizaram o texto para estabelecer o vocabulário da nova língua padronizada e reformistas usaram o romance para promover a escrita vernacular.

No capítulo de abertura do romance, um dístico é introduzido: Verdade torna-se ficção quando a ficção é verdade; Real torna-se irreal onde o irreal é real.

Como um crítico aponta, o dístico significa “ uma divisão não rígida e determinística entre falsidade e verdade, realidade e ilusão, mas a impossibilidade de se fazer essa distinção em qualquer mundo, ficcional ou real.”

O nome da família principal, Jia, é um homônimo com o caracter ji, significando falso ou fictício; isso se reflete em uma outra família com o sobrenome Zhen, um homófono para a palavra “ real”. Foi sugerido que a família do romance é tanto um reflexo realístico e um uma versão ficcional ou“ sonhada” da própria família
de Cao.

O romance é normalmente chamado de Hung Lou Meng ou Hong Lou Meng, literalmente O Sonho da Câmara Vermelha. A câmara vermelha, é uma expressão idiomática que designava as salas protegidas onde as filhas das famílias abastadas viviam.

A história se refere a um sonho tido por Baoyu, fixados em uma “ câmara vermelha” , onde o destino de muitos das personagens do sexo feminino é prenunciado. A palavra “ câmara” é também muitas vezes traduzida como “mansão” , devido à grande dimensão de significados da palavra chinesa. Porém, o termo“ mansão” não traduz corretamente a atmosfera da história e é considerada um erro de tradução por Zhou Ruchang.

Fonte:
Wikipedia

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Ógui Lourenço Mauri (Oração ao Despertar)


Paleta de Versos n. 2

Isabel Furini
(Curitiba/PR)

A CANETA DO POETA

o poeta reflete sobre a vida
concentra-se nos movimentos da caneta

o poeta compreende a estratagema da caneta
:
a caneta faz piruetas
                        mímicas
                           acrobacia
dança
     ziguezagueia
                        espia
(qual astuta serpente)
e por fim escreve a poesia
que o poeta guardava no laboratório de alquimia
localizado no portal da mente subconsciente
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Clevane Pessoa
(Belo Horizonte/MG)

A BELEZA E A MUDEZ

O pássaro belo e próximo, 
grande, 
sugerência de trinado, 
quintessência da Criação, 
influência de contentamento, 
não foge á presença 
de quem ama as aves. 
Poso , sorridente, 
entre a luz da tarde 
e a luminescência da alma. 
Nas crenças egípcias, era a alma-pássaro, 
a que habitava o corpo de penas 
até ao destino final 
ser marcado. 
Não me bica, 
não tatala as asas 
em euforia ou temor. 
O pássaro e eu. 
Ele também foi fotografado 
e faz parte de uma exposição a céu aberto (*). 
Gostaria de ser maga o suficiente 
para inflar-lhe vida, 
vê-lo catar grãos na grama, 
dar pulinhos aqui e alí. 
Ah, se pudesse ouví-lo em seus cantares 
inflamando de notas ardentes os ares 
ou num galho, num canto qualquer 
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* 2009, Parque Municipal Américo renê Gianetti, na capital mineira, , galeria da Árvore, exposição do MUNAP (um olhar sobre o Parque), organizada pela poetisa e fotógrafa Regina Mello, autora dessa foto.
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Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

QUANDO MEU SORRISO FALA

Se eu te amo e minha boca silencia,
Meu olhar, contrariando o meu receio,
Grita anseios, produzindo a fantasia
Que repousa dentro do meu devaneio.

Tenho o tema, o coração e a vontade,
Mas o grito sufocado não permite
Que eu liberte esse desejo que me invade
E sussurre que te amo... ou que te grite.

No dilema entre a voz e o fitar-te,
Meu olhar transforma a emoção em arte
E uma lágrima sublime que resvala

Pinta a tela dos meus lábios onde o riso
Reproduz o sentimento mais preciso
Dos meus olhos, quando o meu sorriso fala.
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Vivaldo Terres
(Itajaí/SC)

QUE NOITE DORIDA

Não sei como consigo me enganar,
Pensando que vivo sem ao menos viver.
Depois que tudo aconteceu... 
Ela era o sol da minha vida,
A luz para meu caminho escurecido.
Como foi me deixar,
Deixando a alma e o coração desiludido.

Que noite dorida e fatal,
Quando ainda no seu leito disse a chorar:
– Eu vou e sei que vais ficar, mas onde eu estiver...
Jamais deixarei de te amar.

Ela partiu levando suas boas qualidades,
Sua alma e seu coração enquanto viveram...
Eram cheios de bondade.

Nunca deixou de ajudar os desvalidos,
Ou o doente sofredor.
Até porque em sua alma e em seu coração,
Nunca lhe faltou o amor. 
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Francisco José Pessoa
(Fortaleza/CE)

SENTIMENTO

Meu sentimento vaga na poesia,
meu cantar tomou forma do meu pranto
pois chorar, se por ti, fez-se acalanto
saber tudo do nada que eu sabia
é sentir que sentindo não sentia
o prazer, se é prazer tudo que sinto
e o amar, se é amor, amo e não minto
um sei lá!... posto quando a ti me achego
na impossibilidade de um chamego
sonho louco, num louco labirinto...

“sentindo que sentir eu não sentia
o prazer qual prazer não me aprazia”.
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Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

EVOCAÇÃO
Para Bel Lopes 

Um breve 
E ebúrneo sorriso teu
Eu de olhos bem fechados
Enlevado 
A sonhar contigo
Negra ninfa do bosque

Eu 
Encerrado e lúgubre
No vergel em chamas

És negra flor 
Musselinosa e enclausurada 
Em uma noctívaga 
Digressão
No verve meu 

Caem as folhas mortas 
No meu coração
Pois é outono
Pois é anunciação 

E uma negra lágrima 
Brotou
No lívio rosto teu
Esvaeceu
Trespassou 
E se perdeu 
Para além do infinito

Não vá
Não me abandone
Não agora 
Nem nunca
Deusa imortal 
Minha negra Valquíria

Abriga-te 
Para todo o sempre
Na minha écloga
No estro meu
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Sílvia Regina Costa Lima
(Vinhedo/SP)

ANTES DA AURORA
(soneto n.121)

Indecisa, eu paro na encruzilhada
até o teu vulto (assustada) divisar,
meio impreciso à luz clara do luar,
caminhando lento na madrugada.

Escuto, embaraçada, a tua risada
que me lembra as ondas do mar
arrastando qualquer coisa lunar,
numa sensação por mim almejada.

Tremo intranquila no sentir primário
que a tua mão me desperta... e aflora
a paixão pelo ser - que me é contrário.

Ah, tu me deitas sob a árvore frondosa
e antes... muito antes da luz da aurora,
fazes-me tua amante... mulher... e rosa!
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Sandra Galante
(Piracicaba/SP)

AUSÊNCIA... 

Não deixarei que a tua ausência me maltrate. 
Me enfeitarei com o brilho das estrelas 
Para que nunca me vejas sofrendo e triste. 
Mas quero ser o perfume das tuas brisas. 

Quero te envolver nos véus da minha lua, 
Exibir-me esplendorosa pra ti toda nua. 
Em teus sonhos renascerei em ti e por ti 
Minh`alma te seguirá e te ti não sairei... 

Te levarei dentro de mim eternamente. 
Viveremos dias felizes em minhas fantasias. 
Eterno será o fugidio encontro em nossas luas 
Do teu amor e paixão, jamais serei descrente.
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Pedro Du Bois
(Balneário Camboriú/SC)

(DES)IMPORTÂNCIA

Na relativa importância
legamos conhecimento

impávidos descendentes
de (im)próprios deuses
cientes em verdades

em relativa (des)importância
insetos voam ao redor 
da luz onde se multiplicam

utilitários ascendentes
transferem aos novos

o necessários para a vida.