sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Luiz Eduardo Caminha (Poemas Escolhidos)


Imprecisões

Quem sou eu,
este ser inerme,
que faz da voz,
arma confusa?

Quem sou eu,
este ser inerte,
que mexe, remexe,
látego impiedoso?

Quem sou, afinal,
este ser sereno,
que num ímpeto se faz,
irascível mordaz.

Oh, cruel, inominado e controverso ser,
Verso, reverso, homo erraticus et perdidit!

Acaso uma criatura?
Erro da Criação,
insigne animal,
pedestal de areia?

Quiçá um dia,
de tanto me procurar,
alcance, almejo,
lugar pra descansar.

Desta busca infindável,
deste contínuo rebuscar.
Neste dia, quiçá, porvir,
Deus se ponha a me perdoar.
_________________

Folhas de Outono

São como esperanças,
As Folhas de Outono.

Voam sem saber prá onde
O vento as leva.
Caem porque – urge que caiam!
Donde saíram,
Um broto nascerá.

São folhas, só folhas.
No solo, um tapete – nada mais!
Os pés que as pisam,
Errantes, apenas passam,
Que destino tomarão?

São como o futuro,
Os caminhos pisados,
Nas folhas de outono.
Incertos, imprecisos,
Calçadas de descalços.

Homens cruzam os caminhos,
Pés pisam as folhas,
A vida vai passando
Os passos se vão indo,
Rumo ao amanhã.

Assim mesmo,
Tão certo,
Como uma nova estação,
Como o inverno que virá!
Outono é caminho... de passagem!!!
________________

Acorda Sociedade

Acorda Sociedade!
Egoísta, escravizante
(escravocrata),
Olha ao teu redor,
Enxerga esta gente
Que tornaste marginal!
Escuta os clamores
Pelo pão, pela vida,
E antes que seja tarde,
Que o verdugo da justiça
Te faça sangrar,
Vai ao encontro do irmão,
Despede-te da luxúria
E corrige os teus erros
Frutos da ganância
Da hipocrisia
Da exploração.
Vai, anda logo,
Escuta, age
Antes que tarde seja,
Para a paz.
______________________

Antípodas

Lareira,
Vinho tinto,
Fondue
...
Pra passar o frio.

De minha parte,
Prefiro:

Sol,
Cerveja gelada
(ou água pura),
E... churrasco.

Mais alegre,
Minha praia.
__________________

Poesia

Que seja ela,
A poesia,
Firme como a árvore,
Embora estática,
Finca raízes,
Faz da seiva fruto
Doce cantar.

Todavia,
Que seja ela,
A poesia,
Como a água,
Que se move,
Corredeira abaixo,

Busca mar oceano,
Onde singram velas,
Horizontes sem fim!!!
_______________

Inquietudes 

Seria acaso
Azul,
A cor “escarlate”
Que corre, veias adentro,
A nobreza?
Oh! Nobre amada?

E ao se lhe ferir
O coração,
Seria sem cor
A cor do sentimento
Que lhe domina
A frigidez de seus atos?

Acaso se reveste
De rubro carmim
A vio(lácea)lenta paixão,
Quando se lhes é dado
Apaixonar-se?
Apaixonas-te tu, oh! Mulher?

Qual nada, dirão!
Nobres não tem sentimento
Apaixonam-se tampouco.
Pálida é, portanto,
A tez de seu coração.

Pálido também o é,
O sangue que lhe corre
As veias;
Esquálida,
A vida que é
Seu dia a dia.

Até que a morte
Lúgubre sombra esguia,
Na negritude da noite,
Sem lua,
Leve-a daqui.

Entrega-te
Oh! Nobilíssima amada
Ou assim será...
____________________

Desilusão

Sonho,
Amargurado,
Agruras
Dum dia feliz...
Que não vem.

Sol, chuva,
Noite fria,
Lua nua,
Noite, dia,
Que se vão

Dia, noite,
Noite dia,
Cá espero.

A Felicidade?
Mera quimera,
Castelo d’areia.
Fere-me a alma.
Machuca-me
O coração que anseia
O vazio de sua ausência,
Preencher.

Tempo passa
Ela não vem
Nem a Felicidade,
Nem aquela,
Quem me dera,
Me pudera,
Fazer feliz...

Sorrir,
Quiçá,
Outra vez!!!
_________________

O Poeta e o Velejador


Escrever está
Para o poeta, um cantor,
Como velejar,
Para o navegador!!!

Ao poeta cabe velejar
Nos oceanos de si mesmo,
Ao navegador, largar-se ao mar,
Fazer, fora de si, viagens a esmo.

Naquele, a brisa faz a pena
Navegar sobre o papel,
Neste, o vento faz poema
Singrar seu barco, sob o céu.

Sonham ambos, devaneiam,
Cada noite, cada dia,
Ao brilho da lua vadia,
Delírios que vagueiam.

Assim, lá os dois, se vão.
Poeta a velejar,
Velejador a poetar,
A rima, o mar, fazem seu pão.

Em cada folha de papel,
A poesia faz viagem
A cada porto de passagem,
Uma amada espera, fiel.

No porto, esperam a viragem
No horizonte, oceano, céu.
Rabiscam poesias... num papel
Riscam cartas... de viagem!

Poesia navega... veleja afinal!
____________________

M a m ã e

Suave, aos poucos, a música tomava o ar lentamente,
Da luz, as centelhas, enchiam de magia, o ambiente,
Trazido por anjos, um arco-íris depunha, qual tesouro, o berço iluminado,
Envolta em alvas roupas, trombetas a anunciar, ela nascia.

De tudo tomou conta, o silêncio,
Dos grilos e cigarras, o cantar,
Dos pássaros, o chilreio, das cascatas, o espoucar.
Até das matas, o barulho se fez calar.

Do berço, as mãos de Deus a tomaram (pequeno ser),
Anjos, potestades, querubins se prostraram,
À gentil palmada, um choro, rasgou aquele mágico instante.
Uma voz, tonitroante, sacudiu todas as estruturas.

Nascestes, oh! Criança! Fruto da semente plantada ao ventre,
Broto da rama, angelical expressão do Amor.
És a lúcida imagem da mulher que te gerou, há de te ver crescer,
És o prêmio, troféu de alegrias, glórias e dores,
Daquela que, por ti, se fez mãe.

Agora, és adulto indócil, irrequieto,
Seguistes tua vida,
Depois que a segurança, da barra de sua saia,
Se tornara, para ti, um estorvo.

Em ti, porém, uma semente divina foi plantada,
Semente da árvore da doce saudade,
Do querer insistente daqueles dias,
Do tempo em que todo o seu tempo, seu vigor, ela dispensava,
Guardiã majestosa do teu crescer.

Em ti, esta semente,
Gerará a árvore da lembrança,
Do querer sempre latente,
De voltar a ser criança.

Nem que seja para desfrutar momentos,
Por ti curtidos, ou sequer vividos,
Instantes inocentes, alegres, joviais,
Sonhos, devaneios, da infância revivida.

Hiatos, em que tu chegavas,
Sem que se ouvisse o ladrar dos cães,
E lá estava ela, sorridente, cálida,
Pronta prá te permitir balbuciar: mamãe!!!
__________________

Otimista

Sim, sim!
Eu sei que sou!
Um otimista prepotente.
Compulsivo e compulsório.

Forjado no talhe da ideologia,
No malho da consciência.
Ideológica, idiosincrásica,
Idiopática...mente.
Que, às vezes, mente,
Para dizer verdades,
Ou verbetes,
De uma vida.

Sou crítico,
Mordaz
Lúgubre,
Mas poço profundo,
De sonhos
E esperanças.

Quem disse que não vou mudar o mundo?
Vou sim! Se vou!
Você vai ... também!
Ele vai, nós vamos!
Cada um de nós,
Erráticos cidadãos
Deste planeta Gaia, vai!

Para melhor...
Ou para pior.
Basta querer,
Basta viver,
Dia após dia.

Não há um só
Que ao ocaso chegue,
Sem que marcas fiquem
De nossa passagem,
De nossas ações.
Como rastros
De nossos pés,
Rastejantes,
O sol por testemunha,
O pó como rastilho.

O que virá?
Depende do rumo,
Do norte que
Quisermos singre,
A nossa nau,
A nossa nave mãe...
Terra.

Tenho (ainda) esperança,
Sou otimista!

Moacyr Scliar (Infância passo-fundense)

Tenho um carinho especial por Passo Fundo, onde passei boa parte de minha infância. Isso aconteceu na pré-história, claro, mas ainda lembro de muita coisa: a casa onde morávamos, perto da Avenida Brasil, a antiga Delegacia de Polícia e, sobretudo, o Colégio Notre Dame, do qual fui aluno. Aliás, menor aluno, provavelmente; eu não tinha nem quatro anos e já frequentava o primeiro ano do curso primário. Devo dizer que era considerado, ao menos por minha mãe (fã entusiasmada do filho) como garoto prodígio. De fato, aprendi precocemente a ler e a escrever, o que seria um motivo de orgulho, não fosse por um episódio que me remeteu de volta à humildade.

Uma manhã estávamos em aula quando passou um desfile militar (se não me engano, em preparação para o Sete de Setembro). Todos, inclusive a professora, correram para as janelas para ver os garbosos soldados. E todos estavam entusiasmados. Menos eu.

Em primeiro lugar, não alcançava a janela: era pequeno demais. Em segundo lugar, estava com um prosaico problema: queria fazer xixi. Era inverno e nessa época o apelo da bexiga infantil se torna mais premente, imperioso, mesmo. Tentei chamar a atenção da mestra, que era uma religiosa, e de meus colegas. Inútil. O desfile os fascinava. Sem licença para ir lá fora, eu não podia sair da sala. Enquanto me debatia nesse dilema existencial, a natureza resolveu o problema da forma mais prática, ainda que pouco conforme às regras de etiqueta: quando vi, tinha feito xixi na calça, a grossa calça de lã que eu então usava. 

Foi, como se pode imaginar, uma humilhação. Naquele dia descobri uma coisa importante: se é para urinar nas calças, o melhor é não ser menino prodígio. Para adquirir cultura sempre há tempo. Para se fazer xixi quando se está apertado é que nem sempre se dispõe de tempo suficiente.

Voltei muitas vezes a Passo Fundo para palestras, debates, para as Jornadas de Literatura que hoje repercutem no país inteiro. Cada vez mais admiro a cidade. E cada vez mais me parecem mais gratas as recordações da infância que ali passei, nelas incluído o episódio do colégio. Ocorre-me que deveria ter guardado a calça que usava na ocasião. Pode não valer tanto quanto o vestido de Mônica Levinsky, mas para mim evocaria um momento transcendente. Ainda que molhado.

Estante de Livros (Mia Couto: Terra Sonâmbula)

do artigo "As guerras e os sonhos no africano Terra sonâmbula, de Mia Couto", de Vilto Reis

Mia Couto, um português que não é nosso, mas que também não é de Portugal, é o que logo se nota ao pegar nas mãos o livro Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto. As palavras parecem pertencer a um outro local, que não poderia ser o urbano das cidades brasileiras ou portuguesas, nem mesmo o interior, é algo mais antigo e profundo, mas ao mesmo tempo atual, como se o autor tivesse achado no português uma forma de destilar a alma e as lendas africanas.

Com um pano de fundo que parece gritar na obra, um sentimento que mistura a agressividade da guerra à passividade do sono, Terra Sonâmbula é um livro errante, que contas duas histórias simultâneas. No primeiro plano se tem a história de Muidinga, um jovem que acompanha Tuahir até chegarem ao machimbombo, um autocarro completamente queimado, onde eles resolvem se abrigar, estão fugindo da guerra. Neste ínterim, surge a segunda linha narrativa, pois Muidinga encontra uns cadernos na mala que está ao lado de um homem morto. Como só ele sabe ler, passa então a fazer a leitura destes cadernos para seu companheiro de viagem, Tuahir.

“O jovem retira os caderninhos. Guarda-os por baixo de seu banco. Não pretende sacrificar aqueles papéis para iniciar o fogo. Fica sentado, alheio. No entanto, lá fora, tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre, cego. Muidinga olha o escuro e estremece. É um desses negros que nem os corvos comem. Parece todas as sombras desceram à terra. O medo passeia seus chifres no peito do menino que se deita, enroscado como um congolote. O machibombo se rende à quietude, tudo é silêncio taciturno”. (pg. 13)

Algo que chama a atenção em Muidinga é sua construção como personagem. Ele não recorda de seu passado, apenas que desde que se lembra, está se escondendo da guerra e viajando com Tuahir. Assim, quando começa a ler os cadernos de Kindzu, como são intitulados as folhas que estavam na mala do cadáver, o leitor se pergunta se não há ligações entre os dois, pois surge a seguinte frase: “Acendo a história, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (pg. 15).

Kindzu narra sua trajetória desde a partida de sua aldeia, após a morte do pai, a quem deixa de realizar um ritual que o perseguiria pelo resto da viagem, até o encontro com uma certa mulher chamada Farida. Sua saída da aldeia, na verdade, tem um objetivo: tornar-se um Napurama – espécie de guerreiro tribal vestido de penas, que luta contra a injustiça. Mas para isso, precisa lidar com o fantasma da lembrança paterna, com a culpa de ter abandonado a mãe que se diz grávida há anos e a ausência do irmão, Junhito, desaparecido após ter sido condenado a viver em meio às galinhas.

Se na linha de Muidinga, o leitor se depara com um realismo mágico (poder ser caracterizado assim); na de Kindzu, há um verdadeiro tom surreal, que apresenta uma série de lendas africanas.

Repare neste trecho, no qual é narrado um sonho de Kindzu, com atenção ao “quem sabe”, logo na primeira frase:

“Numa das seguintes noites, escuras de perder o próprio nariz, tive, quem sabe, um sonho. O mar parava, imovente. As ondas se aplanavam, seu rugido emudecia. Havia uma calma dessas que precederam o nascer do mundo. Então, súbito e inesperado, das profundezas emergiram os afogados. Vinham ao de cimo, borbulhavam em festa. Entre eles estava meu pai, idoso como não o tínhamos deixado. Chamou-me, saudou-me sem nenhum afecto”. (pg. 43).

O livro carrega, em todo ele, esta prosa poética (de um outro português) que caracteriza o estilo de Mia Couto. Muito embora, o enredo também não é por menos, pois o leitor sai surpreso com o final proposto pelo escritor moçambicano em Terra Sonâmbula.

As guerras e os sonhos

Há um fator de cunho social também na obra. No entanto, Mia Couto se mostra um escritor maduro, pois não usa sua obra como panfleto político. Apenas descreve seus personagens de forma coerente ao mundo em que vivem. E ainda assim, oferece ao leitor frases belíssimas, como esta do padre a Farida: “O mundo não tem nenhuma utilidade, disse ele. E concluiu: a felicidade só cabe no vazio da mão fechada. A felicidade é uma coisa que os poderosos criaram para ilusão dos mais pobres” (pg. 77).

Surge sempre uma espécie de dualidade, guerra-sonho, que acompanha a obra como um todo. E funciona como se uma fruta, da qual quanto mais Mia Couto espreme, mais trechos de verdades humanas aparecem. Reparem na conclusão de Kindzu após saber a história do homem que vê morto na estrada, com uma corda na mão:

“A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco” (pg. 121).

Quem busca uma história de alto teor poético, e ainda vê na literatura uma oportunidade de utilizar sua imaginação, encontrará no livro Terra Sonâmbula, de Mia Couto, uma ótima leitura. Este aspecto de ser nosso idioma, mas ao mesmo tempo não ser, é uma experiência enriquecedora, como venho comentando na resenha inteira.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Neiva Fernandes (Trovadora do Dia)


1
A Bíblia é um dicionário
onde converso com Deus,
parece ser um diário,
não tem a palavra...adeus!
2
Amigo eu trago guardado
com muita dedicação,
naquele lugar sagrado,
que se chama coração.
3
Até mesmo os animais,
se unem nas refeições:
partilham tudo, e bem mais
seus abraços e emoções!
4
A trova tem seu valor
trazendo sempre emoção
perpetuada com amor
no livro do coração!
5
Com muita Serenidade
o nosso amor começou...
Ficou somente a saudade
depois que tudo acabou!
6
Com você sempre extrapolo
minha alegria e emoção:
- Cada momento em seu colo
põe-me em festa o coração!
7
Da música que componho,
fica difícil lembrar,
por que, só componho em sonho
e me esqueço, ao acordar.
8
Deixei pegadas na areia
indo em direção ao mar...
As dunas na lua cheia
formam beleza sem par.
9
Duzentos anos de glória
na cultura e educação.
Cantagalo, sua história
orgulha nossa nação.
10
Ela vem toda faceira,
toda coberta de flores,
minha linda Cerejeira
chega e desperta os amores!
11
Em tempos muito distantes
eu encontro uma lembrança
de dois olhinhos brilhantes
com o brilho da esperança!
12
É no relógio do tempo
que vejo o tempo passar;
alegre sem contratempo
deixo a vida me levar!
13
Eu vejo um farol brilhar
e contemplo a natureza...
Somente no teu olhar
já encontrei tanta  beleza!
14
Existe tanta beleza
e tal grandeza no mar,
que sinto na natureza
Deus presente a nos guiar!
15
Foi num barco de papel
que encontrei inspiração
para fazer um cordel
que guardo no coração.
16
Na bela estrada vazia,
procurando nova fonte,
peço carona à  poesia
buscando a luz no horizonte!
17
Na chuva ele vai cantando
e lavando o coração...
Inspiração vai buscando
com o guarda chuva na mão.
18
Nas taças, o amor brotou
e nos deu felicidade...
Do vinho, o que nos restou
tem o aroma da saudade!
19
Nossa vida é um paraíso 
de amor e felicidade...
Mas se faltar teu sorriso
a tristeza nos invade.
20
Nosso outrora tão distante
na saudade permanece,
lembrança tão incessante
que o coração não esquece!
21
Numa prisão desolado
escondendo sua dor;
vive triste abandonado
um coração sem amor.
22
O menino tão bonzinho
transmite boa lição,
abraçando o cachorrinho
com ternura e emoção!
23
O sucesso é passageiro
tenha os pés firmes no chão...
melhor que ser o primeiro
é vencer com a razão.
24
O Trianon na euforia
dos seus quinze anos de arte;
recebe com alegria
poetas de toda parte.
25
Passado se faz presente
quando estou a recordar
com você na minha mente
não posso raciocinar.
26
Primavera vem chegando
Trazendo paz e beleza...
Margaridas vão brotando
perfumando a  natureza.
27
Quatro crianças se abraçam,
com tanta graça e pureza;
seus verdes sonhos enlaçam
contemplando a natureza!
28
Quem me dera alguém pudesse
entender meu sentimento;
seria a trova uma prece
para o fim do sofrimento.
29
Se o local tem um aviso
que é Proibido beijar,
respeite, tenha juízo,
o beijo pode esperar!
30
Sobre um tapete  florido,
Vejo o outono alvorecer:..
Pensando em você, querido,
caminho e sinto prazer!
31
Tão tristes e encabulados,
dois solitários peixinhos...
Tão perto, mas separados,
 sem poder trocar beijinhos..
32
Tenho orgulho do que faço;
se é feito com perfeição.
Mas aceito meu fracasso
se não tiver solução.
33
Um arco de sete cores
estendido sob o céu...
Um sonho em seus resplendores,
sobre o mar, formando um véu.
34
Um tango hoje vou dançar
e a alegria predomina...
A dança me faz lembrar
meu sorriso de menina.
35
Vou correndo atrás do trem
com a bagagem na mão...
Aceno num vai e vem
para alcançar o vagão.
36
Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.

Dina Salústio (A Oportunidade do Grito)

Quando cheguei, a conversa, que ia a meio foi interrompida para os cumprimentos e uma breve troca de elogios, porque nos amamos e, por isso, há sempre um tempinho para uma palavra carinhosa que, livre, voa de umas para as outras.

Elsa pareceu-me triste e ainda pensei que estivesse a fazer charme, já que o vestido que trazia ficava a matar com um rosto ligeiramente tocado pela tristeza ou... qualquer coisa parecida com um pingo de desgosto.

A outra mulher é dessas que ao olhá-las, naturalmente a palavra vencedora nos vem à cabeça. Não pela arrogância patenteada, mas porque a força inquieta que lhe escapa dos olhos, diz  muito da sua capacidade de derrubar tudo que seja obstáculo ao que deseja.

Elsa levava o cigarro à boca, com tanta ansiedade que por momentos me distraí, pensando em como um simples e insignificante cigarro pode marcar de maneira cruel a nossa fragilidade.

— Tens que largar essa maneira de estar, por de lado o marasmo que te envolve. Parece até que estás a pedir esmolas à vida — dizia a vencedora.

Eu estava furiosa por não ter chegado uma meia hora antes, e percebe-se.

— Arranja força, sacode o mau olhado ou seja que diabo for, mas vive — continuava, agora num tom tão alto que obrigava um ou outro passante a diminuir o passo.

Olhei para a Elsa esperando uma reação, que só chegou depois de uma possível análise interna da legitimidade da resposta:

— Mas se eu não faço mal a ninguém! Se eu nem tenho inimigos!

— Ah! Aí é que está — quase gritou a outra — tens que incomodar, mostrar que existes, perturbar, brigar com o mundo e contigo. Sobretudo contigo. É um treino que atrai bons fluidos. Os outros, vendo a coragem com que te desafias a ti mesma, respeitam-te e temem--te. Tens que dar umas trochadas, rapariga, porque quem não as dá, acaba simplesmente por as apanhar,

— Claro que não quero continuar neste vegetar e, para que saibas, luto, esforço-me, rezo, mas não adianta muito.

— Rezas? E como é que rezas? — grunhiu a outra, já no limite do que parecia a sua paciência.

— Rezo, peço a Deus...

— Pedes a Deus? Idiota! Tens é que discutir com Ele. Enfrenta-o como mulher. Mostra-lhe as tuas razões. Grita se for preciso. Ele é que te pôs aqui, não é? Pois que assuma a sua parte da responsabilidade. Enfrenta-o. Deus gosta de mulheres fortes — gritou.

De repente eu percebi que ela era uma mulher vencedora porque enfrentava com garra todas as situações, mesmo que a situação se chamasse Deus. Encostei-me a mim mesma gozando o prazer da descoberta.

Fonte:
SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.

Olivaldo Junior (Poemas Escolhidos)

UMA CAIXA TODA BRANCA

No meu peito está disposta
uma caixa toda branca,
mausoléu de uma resposta
que na lápide se tranca.

Nela, o sonho que se gosta
desenvolve a zona franca,
toda noite à luz transposta,
novidade que se estanca.

Entre a fúria e todo o zen,
sei que guarda minha alma,
minha palma, meu vintém...

Branca e nua, a caixa tem
tudo aquilo que me acalma:
seu sorriso, que não vem.

CHUVA DE VERÃO

Você viu a chuva de verão?
Eu, não.

Ocupado que estava em recolher
de mim as últimas lágrimas,
nem vi as dos anjos,
a correr, a escorrer
pela vidraça, nuas, mágicas.

Você viu a chuva de verão?
Eu, não.

Ocupado que estava em revolver
de mim as últimas páginas,
nem vi as das nuvens,
a chover, a esconder
o que se passa, ruas, máquinas
de fazer troça a cada chuva,
de verão, ou não, que há do céu.

Você viu a chuva de verão?
Eu, não.

Mas, só por precaução,
guarda-chuva em punho,
pus a bota e o chapéu.

ENLUARADA

Peguei a lua
e dela fiz meu origami.

Peguei o sol
e dele fiz o seu arame.

Depois, 
com a fúria
de um poeta
que foi rei,
na lua o sol
a pino
eu espetei.

Pronto.
A noite
assim ficou
enluarada.

O DESEJO ESCRITO

Queria ter escrito
as primeiras representações
de objetos, ações
ou ideias, ter tido as razões
para dar meu grito
de independência 
e ter ficado em pé.

Queria ter criado
uma atividade, um objeto,
ou uma ideia
por um só signo
representados,
ter dado o mais completo
sentido a ti,
a mim, um legado.

Queria ter descrito
os signos que representam
os sons das sílabas
e das letras, que sustentam
todas essas línguas,
ainda vivas,
ainda "on".

Na verdade, queria ter tido
a chance de ter escrito
uma das ridículas cartas 
de que nos fala Pessoa,
de amor, de medo, e ferido
a pele da página,
que, calada (nunca em vão),
aceita 
a "pena" de um poeta,
o lápis de um menino,
a tinta de uma máquina
que imprime, exprime
e comprime o destino
de todo desejo escrito: 
ser lido.

LÂMINA FRIA

Na lâmina fria
de um sonho perfeito,
finjo ter jeito,
janto um bombom,
bomba de efeito.


Na lâmina fria
de um sonho desfeito,
sinto teu peito,
canto sem som,
sombra no leito.

Na lâmina fria
de um sonho refeito,
lindo confeito,
canto tão bom,
bom e imperfeito.

Fonte:
O Autor

Estante de Livros (Dina Salústio: Mornas eram as noites)

artigo “O lirismo como voz em ‘Mornas eram as noites’, de Dina Salústio”, por Carina Carvalho

Os 35 textos bastante curtos de “Mornas eram as noites” mergulham no calor de histórias com um lirismo intenso, em que a subjetividade desponta na narrativa

Segundo os dicionários, algo morno se caracteriza pela ausência de energia, de vida, pela pouca intensidade e até por certa monotonia. O adjetivo parece descabido, no entanto, se pensamos no livro de contos da escritora cabo-verdiana Dina Salústio.

Dina, pseudônimo de Bernardina de Oliveira (1941), escreve em 1994 esta obra. Em 35 textos bastante curtos, raramente ultrapassando página e meia, mergulhamos no calor de histórias com intenso lirismo, em que a subjetividade desponta na aparente simplicidade narrativa.

A morna, verdadeiro símbolo cabo-verdiano, é um tipo de música cantada e dançada em ritmo lento – tradicionalmente, um canto de mulheres. Assim, a incursão pelo texto de Dina Salústio acontece em uma atmosfera de histórias contadas e cantadas com um forte caráter de oralidade e poesia. Engana-se quem pensa que, dadas essas características, os contos tratam somente de temáticas leves ou onde impera a doçura. Morte, solidão, violência, pobreza e frustrações também invadem as páginas, compondo um panorama social que não se compromete com mascarar a dureza cotidiana.

Logo nos primeiros contos, não demoramos a captar um olhar mais demorado da autora para as personagens e problemáticas femininas. Conhecemos a prostituta que, com medo de entrar no cemitério, deixa no testamento “o seu último e ilegítimo desejo”: música a acompanhá-la no momento do enterro, quando as esquinas acordarem sem seu corpo.

“O sobrinho, mais pobre que os pobres, espreitou, dias e dias no cemitério, todos os enterros que se seguiram ao dela. Ao décimo dia o peito minguado encheu de esperança: um senhor e seu violino choravam na campa de alguém. Raúl arranjou coragem e pediu-lhe, quase soluçando, que tocasse uma música para tia Djina. Uma só. Não a clássica morna hora di bai, mas uma canção francesa que falasse de amor – com todo o respeito, senhor – soluçou o sobrinho.” (p. 32)

Deparamos, ainda, em “Liberdade adiada”, com a angústia de uma mulher cansada, com um “enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima”, esperando que “a qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa” (p. 5). Carregando sua lata cheia de água pela estrada, o barranco sorri em convite, promete liberdade em um mergulho – ao mesmo tempo que o pensamento chega à casa, onde os filhos certamente já chamam por ela.

Embora ocupem espaço notável na maior parte das tramas, não só em torno das mulheres se constrói o livro, mas de temáticas que nos fazem pensar a própria condição humana, reproduzindo extratos de vida de várias classes sociais no cenário cabo-verdiano. É nessa percepção atenta que o livro nos capta, conferindo nova roupagem, de coisa conhecida, história sabida porque vivenciada, à realidade dos dias. Em “Ele queria tão pouco”, temos um adolescente rebelde, cujo passado todos desconhecem, residente de um lar para jovens sem família ou casa. No conto, o dono da loja vizinha reclama do roubo de um aparelho seu, cobra providências dos responsáveis. O rapazinho, então, acaba descoberto:

“Encontrei-o deitado à sombra da árvore, com a barriguinha nua para cima, o rádio colado ao ouvido, quieto, apenas o pé direito no ar, marcando um compasso que eu não adivinhava. Estava tão indefeso, tão entregue, que preferi deixar para falar com ele mais tarde, consciente de que cometia uma infracção. […] confessou que roubara o rádio, porque gostava de ouvir música sozinho e em silêncio e, na sala, os colegas faziam muito barulho. […]
— Eu queria um rádio só pra mim – dizia enquanto o retirava para mo dar.
Era mais um sonho que ele desenterrava para abandonar, para entregar.” (p. 26)

Se em muitos momentos as palavras nos chegam duras, cabe destacar quanto colaboram para a reflexão dos caminhos ainda a percorrer, e lembrar que, em outros tantos, encontramos uma esperança em minúcias: “Na rua, o tempo é cálido e uns pinguinhos de chuva dizem-me que é julho. Vou contar à minha amiga que está a chover e que vale a pena viver, nem que seja somente para ouvir a alegria dos sapos” (p. 66).

Seja nos meandros das vivências femininas, no retrato da violência e da miséria ou das relações humanas, os contos de Dina Salústio nos mostram uma matéria real em que, se a mornidão ainda impera, há sinais de que residam movimento e possibilidades no tom da noite.

“Sem idade, sem verdade
Encontrei-te por acaso. Sorrindo, disseste-me que a vida era bela. Não te perguntei a idade. Para que? Tu eras verão e tinhas nos olhos a madrugada. Nos gestos, a infância do louco que, montando num pássaro, desafia as nuvens. Cheiravas a rosa abrindo-se na moleza do sol e tinhas a macieza da terra bebendo o orvalho das manhãzinhas. Trazias inteira a doçura do mar no corpo de um bote ao sol poente e o teu sorriso era a beleza de um instante belo.

Como dizer ao verão que o inverno acontece frio e triste? Como dizer à madrugada que ela é mentira, que é dia, quando a letra vence, e é noite, quando as dores aumentam? Como avisar o louco que por baixo das nuvens o abismo corre cada vez mais rápido, cada vez mais fundo? Conseguiria dizer à rosa que logo haverá missa pelas almas com terços e flores? Conseguiria? Como dizer à terra que o orvalho não basta e que a estiagem fere, racha até sangrar? Como? Poderia dizer a um instante que o dia tem muitas horas, muitos meses, muitos séculos? Como dizer ao mar, ao barco e ao sol poente que o ciclone vem aí? Como?

Olhei para ti e nem me perguntaste porque de repente ficara tão triste. E deixei-te ir. Leve. Suave. Feliz. Sem idade. Sem verdade.” (p. 37)

Fontes:
SALÚSTIO, Dina. Morna eram as noites. 3.ed. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.
Artigo disponível em Homo Literatus

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 20

Fonte: Facebook da trovadora

Contos do Egito Antigo (O Tesouro de Rhampsinit)

0 rei Rhampsinit possuía um tão grande tesouro que ninguém, nenhum de seus sucessores, o teve nem maior, nem perto do que ele era. Para conservá-lo com segurança, ele mandou construir uma sala de pedra talhada e quis que uma das suas muralhas se projetasse para além do corpo da construção e dos limites do palácio; no entanto, o construtor talhou e colocou uma pedra de tal modo perfeita que nem dois homens, quanto mais um só, poderiam tirá-Ia ou removê-Ia.

Construída a sala, o rei ali reuniu todas as suas jóias. Algum tempo depois, o pedreiro-arquiteto, ao sentir que se aproximava do final de sua vida, reuniu os filhos, que eram dois, e contou-lhes como realizara a empreitada e o artifício que havia usado ao construir a câmara do rei, a fim de que eles pudessem viver sem problemas de dinheiro. E depois de claramente ter-lhes feito entender a maneira de tirar a pedra, deu certas instruções e avisou-os de que, se elas fossem bem observadas, seriam eles os grandes tesoureiros do rei. E em seguida, expirou. E seus filhos não tardaram de pôr mãos à obra: foram à noite até o palácio do rei e, achando sem dificuldades a tal pedra, conseguiram deslocá-Ia e saíram de lá com grande quantidade de ouro. Porém, quando quis o destino que o rei fosse visitar sua sala do tesouro, encheu-se: ele de espanto ao perceber que suas ânforas estavam desfalcadas, e ficou sem saber a quem acusar ou de quem suspeitar, pois as marcas que colocara estavam intactas, e a sala muito bem fechada e refechada. E voltando lá por duas ou três vezes para constatar que suas ânforas continuavam se desfalcando, resolveu ele afinal, a fim de impedir que os ladrões ali voltassem com tanta facilidade, mandar construir armadilhas e colocá-Ias bem perto das ânforas onde estavam os tesouros.

Retornaram os ladrões, como seria de se esperar, e um deles entrou na câmara e, mal se aproximando de uma das ânforas, viu-se capturado pela armadilha. Percebendo a extensão do perigo, chamou depressa o irmão e mostrou-lhe o estado em que se encontrava, aconselhando-o a ali entrar e que lhe cortasse a cabeça para que ele não viesse a ser reconhecido e assim não prejudicasse também o irmão. Este achou que fazia sentido o que ele lhe dizia e seguiu-lhe enfim o conselho; e depois de repor a pedra, voltou para casa carregando a cabeça do irmão.

Na manhã seguinte, entrou o rei na sua câmara especial; e ao ver o corpo do ladrão preso na armadilha, e sem cabeça, muito espantado ficou já que não havia vestígio nem de entrada nem de saída do recinto. E, matutando como deveria proceder em tal circunstância, mandou que pendurassem o corpo do morto na muralha da cidade e encarregassem alguns guardas de prenderem e levarem à sua presença aquele homem ou mulher que vissem chorar ou demonstrar pena do degolado.

Ao ver o corpo desta forma exposto, a mãe, pela grande dor que sentia, exigiu do outro filho que, fosse lá como fosse, tratasse de trazer o cadáver do irmão, ameaçando-o de, caso se negasse a fazê-lo, denunciá-lo ao rei como o ladrão do tesouro. O filho, notando que a mãe falava sério, e que de nada lhe valiam suas argumentações, concebeu o seguinte ardil: mandou que albardassem alguns asnos com odres cheios de vinho e pôs-se a andar com eles, tocando-os com uma vara. Ao chegar ao local onde estavam os guardas, isto é, no local do morto, desatou dois ou três de seus odres e, vendo o vinho escorrendo pelo chão, começou a esmurrar a própria cabeça e a praguejar, como se não soubesse para qual dos asnos devia se voltar em primeiro lugar. Os guardas, ao perceberem que grande quantidade de vinho se derramava, acorreram até lá com vasilhas, considerando o ganho que teriam se apanhassem o vinho perdido. O mercador pôs-se então a xingá-los, dando sinais de viva indignação. Mas os guardas mostraram-se gentis e aos poucos ele foi se acalmando; moderou então sua raiva, afastando por fim os asnos do caminho para tornar a carregá-los; demorando-se no entanto com pequenas conversas com uns e outros, tanto que um dos guardas disse uma pilhéria ao mercador, que riu e até lhe deu, ainda por cima, um odre de vinho. E então os guardas resolveram sentar-se ali mesmo para continuar a beber, pedindo ao mercador que ficasse e bebesse com eles, o que foi aceito; e vendo que eles revelavam nisso grande prazer, o mercador ofereceu-lhes o resto de seus odres de vinho. 

Quando estavam já caindo de bêbedos, viram-se dominados pelo sono e adormeceram ali mesmo. O mercador esperou até alta noite; depois foi despendurar o corpo do irmão e, rindo-se dos guardas, raspou-lhes a todos a barba da face direita. Colocou o corpo do irmão sobre um dos asnos e tocou-os todos em direção de casa, executando assim a
ordem de sua mãe.

No dia seguinte, quando o rei tomou ciência de que o corpo do ladrão fora roubado misteriosamente, ficou muito aborrecido e, querendo porque querendo encontrar o autor de tal astúcia, fez tal coisa que, por mim, mal consigo acreditar: abriu a casa da sua filha e mandou que ela recebesse quem quer que por prazer viesse a procurá-Ia, indiferente de quem fosse, com a condição de que ela, antes de se deixar tocar, induzisse cada um deles a dizer o que fizera em sua vida de mais prudente e de mais perverso; aquele que lhe contasse o caso do ladrão deveria ser detido por ela, que não podia deixá-lo sair do seu quarto. A princesa obedeceu ao pai; mas o ladrão, ao perceber para que objetivo a coisa era feita, quis ficar a cavaleiro de todas as astúcias do rei e deu-lhe o seguinte contragolpe: cortou o braço de um recém-falecido, ocultou-o sob suas próprias vestes e foi ao encontro da moça. Logo que entrou, ela o interrogou, como fizera com os outros, e ele contou-lhe que o crime mais monstruoso por ele cometido fora o de arrancar a cabeça do irmão, preso na armadilha do tesouro do rei. Por outro lado, a ação mais avisada que praticara fora despendurar aquele seu mesmo irmão depois de ter embriagado os guardas. Assim que isso tudo ouviu, ela procurou detê-lo; mas o ladrão, valendo-se da escuridão do quarto, estendeu-lhe a mão morta que trazia oculta, e que ela apertou como se fosse a mão daquele com quem falava; enganava-se, porém, pois o ladrão facilmente encontrara como se escapar.

Quando este fato foi relatado ao rei, ele mostrou-se especialmente espantado com a astúcia e ousadia de tal homem. Por fim, ordenou que se fizesse anunciar por todas as cidades do seu reino que ele perdoava tal pessoa, e que se ela quisesse vir se apresentar ao rei, ele lhe concederia largos favores. O ladrão deu crédito à publicação real e foi ter com ele. Quando o rei o viu, ficou assombrado; no entanto, deu-lhe a filha em casamento. Pois - isso pensou ele - os egípcios eram superiores a todos os demais homens, e ele era superior aos próprios egípcios...

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da Literatura Universal. RJ: EDIOURO, 2002.